Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 998/2023-T
Data da decisão: 2024-07-05  IRC  
Valor do pedido: € 31.689,35
Tema: IRC – OICVM; retenção na fonte; pedido de revisão oficiosa; competência em razão da matéria do Tribunal Arbitral.
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Sumário:

  1. O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
  2. O artigo 22.º do EBF, ao circunscrever o regime de tributação nele previsto aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, procede a um tratamento desfavorável dos OIC não residentes, o qual se afigura incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I. Relatório

1. No dia 18 de dezembro de 2023, A..., organismo de investimento coletivo em valores mobiliários constituído e a operar em Espanha, com sede na ..., ... …, Espanha, residente para efeitos fiscais em Espanha e aí registado com o NIF ES..., tendo-lhe sido atribuído o NIF português..., de que é sociedade gestora o B..., SGIIC, S. A. (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a pronúncia deste Tribunal relativamente:

  1. À ilegalidade do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que teve por objeto os atos de retenção na fonte de IRC a seguir elencados;
  2. À ilegalidade dos seguintes atos tributários:
  • Ato de retenção na fonte de IRC, referente ao exercício de 2019, no valor de € 9.975,47;
  • Ato de retenção na fonte de IRC, referente ao exercício de 2020, no valor de € 5.360,99; e,
  • Atos de retenção na fonte de IRC, referente ao exercício de 2021, no valor global de € 16.352,89.

O Requerente juntou 13 (treze) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

 

2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), o Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (“OICVM”) que está constituído sob a forma de fundo mútuo, enquanto Fondo de Inversión, com sede e direção efetiva em Espanha, sendo administrado pelo “B..., SGIIC, S. A.”, sociedade gestora também residente para efeitos fiscais em Espanha.

Nos períodos de tributação de 2019, 2020 e 2021, o Requerente deteve participações em diversas sociedades residentes, para efeitos fiscais, em território português, tendo estas mesmas entidades colocado lucros à disposição do Requerente em virtude das mencionadas participações por este detidas, no montante total de € 211.262,33 (€ 66.503,15, relativamente ao exercício de 2019, € 35.739,95 relativamente ao período de 2020 e € 109.019,23 relativamente ao exercício de 2021).

Sobre tais lucros que foram colocados à disposição do Requerente incidiu IRC, liquidado e cobrado a título definitivo, através do mecanismo de retenção na fonte. A entidade que procedeu à retenção na fonte, atuando na qualidade de substituto tributário, foi o Banco C..., S. A., tendo procedido à retenção na fonte em sede de IRC do valor global de € 31.689,35 (€ 9.975,47 relativamente ao exercício de 2019, € 5.360,99 relativamente ao período de 2020 e € 16.352,89 relativamente ao exercício de 2021), à taxa reduzida de 15% ao abrigo do disposto na CDT celebrada entre Portugal e Espanha. Por se tratar de entidade não sujeita a imposto sobre o rendimento no seu Estado de residência, o Requerente suportou o imposto retido em Portugal sem possibilidade alguma de o recuperar em Espanha.

Por considerar que foi alvo de um tratamento discriminatório face àquele que seria conferido a um OICVM residente para efeitos fiscais em Portugal, à luz do Direito da União Europeia e respetiva jurisprudência, o Requerente apresentou, em 18 de maio de 2023, um pedido de revisão oficiosa dirigido à Direção de Finanças de Lisboa. A 9 de outubro de 2023 formou-se a presunção de indeferimento para efeitos de recurso aos tribunais.

Por não se conformar com o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que interpôs e, portanto, com a legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC que lhe estão subjacentes, o Requerente vem suscitar a apreciação da legalidade dos referidos atos, requerendo a anulação dos mesmos com as devidas consequências legais.   

O Requerente termina o seu pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA) peticionando o seguinte:

“Termos em que se requer a V. Exas. que o presente pedido de pronúncia arbitral seja considerado inteiramente procedente e, em consequência:

a) seja declarada a ilegalidade e anulado o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, na medida em que recusou a anulação, nos termos que aqui se discutiram, dos atos de retenção na fonte de IRC relativos aos períodos de tributação de 2019, 2020 e 2021 aqui em causa, com isso violando o princípio da legalidade;

b) seja declarada a ilegalidade daqueles atos de retenção na fonte de IRC relativos aos períodos de tributação de 2019, 2020 e 2021 e serem consequentemente anulados, no montante em excesso de € 31.689,35;

c) seja, consequentemente, reconhecido o direito do Requerente ao reembolso deste montante total de € 31.689,35 indevidamente pago;

d) em qualquer dos casos, o montante a reembolsar ao Requerente deverá ser acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios contados, até ao seu integral reembolso, desde a data do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa (i.e., desde 18 de setembro de 2023).”  

             

3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 27 de dezembro de 2023.

           

4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 9 de fevereiro de 2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 27 de fevereiro de 2024.

 

5. No dia 12 de abril de 2024, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a Resposta que aqui se dá por inteiramente reproduzida, na qual suscitou a exceção da incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral e impugnou os argumentos aduzidos pelo Requerente, tendo concluído pela sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, nem procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).

 

6. No dia 29 de abril de 2024, o Requerente, devidamente notificado para o efeito, pronunciou-se quanto à matéria de exceção vertida na Resposta, nos termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, pugnando a final pela improcedência das exceções invocadas pela AT.

 

7. Na mesma data, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, a determinar a notificação das partes para, querendo, apresentarem alegações escritas e a indicar o dia 31 de julho de 2024 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

 

8. Apenas a Requerida apresentou alegações escritas, que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, nas quais essencialmente reiterou a posição anteriormente vertida no respetivo articulado.

           

II. Saneamento

9. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído (cf. artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Admite-se a cumulação de pedidos – estão em causa diversos atos tributários atinentes a retenção na fonte de IRC –, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pelo Requerente depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).

  

10. A Requerida suscitou a exceção da incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral, para cujo conhecimento se torna necessário, previamente, fixar a matéria de facto provada e não provada, após o que será aquela apreciada e decidida.

Não existem quaisquer outras exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.

 

III. Fundamentação                             

III.1. De Facto

§1. Factos ProvadosROVADOS

11. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

a) O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (“OICVM”) que se encontra constituído sob a forma de fundo mútuo, enquanto um Fondo de Inversión, nos termos da Diretiva n.º 2009/65/CE, do Parlamento e do Conselho, de 13 de julho de 2009, com sede e direção efetiva em Espanha, nos anos de 2019, 2020 e 2021. [cf. documentos n.ºs 1, 2 e 3 anexos ao PPA]  

b) O Requerente é administrado (e era em 2019, 2020 e 2021) pelo B..., SGIIC, S.A., sociedade gestora com residência fiscal em Espanha. [cf. documento n.º 3 anexo ao PPA]

c) Em 2019, 2020 e 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por diversas sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante global de € 211.262,33 (€ 66.503,15 relativos ao período de 2019, € 35.739,95 relativos ao período de 2020 e € 109.019,23 relativos ao período de 2021), que foram sujeitos a retenção na fonte de IRC, à taxa de 15%, no valor global de € 31.689,35 (€ 9.975,47 relativos ao período de 2019, € 5.360,99 relativos ao período de 2020 e € 16.352,89 relativos ao período de 2021), nos seguintes termos [cf. documento n.º 5 anexo ao PPA]:   

 

Período de tributação de 2019

Entidade

Data

Montante bruto

dos Dividendos

Retenção na fonte

Ac.  D... SGPS SA

22/05/2019

€ 66.503,15

€ 9.975,47

Total

€ 66.503,15

€ 9.975,47

 

Período de tributação de 2020

Entidade

Data

Montante bruto

dos Dividendos

Retenção na fonte

Ac.  E... SA

12/05/2020

€ 35.739,95

€ 5.360,99

Total

€ 35.739,95

€ 5.360,99

 

Período de tributação de 2021

Entidade

Data

Montante bruto

dos Dividendos

Retenção na fonte

Ac. F... SGPS SA

20/12/2021

€ 3.794,83

€ 569,22

Ac. E... SA

22/04/2021

€ 45.606,65

€ 6.841,00

Ac. G... SGPS SA

14/09/2021

€ 26.133,25

€ 3.919,99

Ac. G... SGPS SA

18/05/2021

€ 33.848,50

€ 5.022,68

Total

€ 109.019,23

€ 16.352,89

 

            d) A entidade que procedeu à retenção na fonte foi o Banco C..., com o número de identificação fiscal em Portugal..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do disposto no artigo 94.º, n.ºs 1, alínea c) e 7, do Código do IRC (redação em vigor à data dos factos).

e) Por se tratar de entidade não sujeita a imposto sobre o rendimento no seu Estado de residência, o Requerente suportou o IRC retido na fonte, em Portugal, a título definitivo, isto é, sem possibilidade alguma de recuperar em Espanha o imposto assim suportado em Portugal. [cf. documentos n.ºs 2 e 3 anexos ao PPA]

f) No dia 18 de maio de 2023, o Requerente apresentou, através de email dirigido à Direção de Finanças de Lisboa, o pedido de revisão oficiosa dos referidos atos de retenção na fonte de IRC, nos termos e com os fundamentos que aqui se dão como reproduzidos. [cf. documento n.º 4 anexo ao PPA]

g) Não foi proferida decisão sobre o referido pedido de revisão oficiosa até 18 de dezembro de 2023, data em que o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]

 

§2. Factos não Provados

12. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.

 

§3. Motivação quanto à Matéria de Facto

13. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada. 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e nos documentos juntos com o PPA, que não foram impugnados e que foram objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

III.2. De Direito

§1. Da (in)competência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral

14. Na sua resposta, a Requerida suscitou a exceção da incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral, alegando nuclearmente o seguinte:

- O Requerente, na qualidade de substituído tributário, pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efetuadas pelo substituto tributário, sem que tenha desencadeado procedimento de reclamação graciosa, nos termos do artigo 132.º do CPPT;

- Tal situação está fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais, sobretudo quando o Requerente não recorreu, em tempo, à reclamação graciosa, tendo deixado precludir o prazo de 2 anos previsto no artigo 132.º do CPPT;

- O procedimento administrativo de revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa prevista no artigo 132.º do CPPT;

- Não tendo o pedido de anulação das retenções na fonte sido precedido, em prazo, de reclamação graciosa necessária, o Tribunal Arbitral carece de competência para apreciar a (i)legalidade das mesmas, ainda que o Requerente tenha apresentado um pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos;

- É constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação de poderes (cf. artigos 2.º e 111.º da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 2, da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 , da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ai recurso jurisdicional pleno (cf. artigos 25.º e 27.º do RJAT que impõem uma restrição dos recursos da decisão arbitral);

- Ainda que assim não se entenda, estando-se perante um indeferimento tácito, sobre o qual a AT não tomou posição expressa sobre a existência de erro imputável aos serviços, compulsado o pedido de revisão oficiosa apresentado não se retira do mesmo que o Requerente tenha invocado erro de direito imputável à AT, ou que, tendo-o invocado, o comprove invocando, designadamente, que as retenções na fonte se deveram a orientações ou instruções da AT;

- O que se retira do pedido apresentado é que as retenções na fonte terão sido feitas conforme à lei e que o cumprimento desta importa, no entender do Requerente, uma restrição discriminatória ao princípio da livre circulação de capitais, contrária ao artigo 63.º do TFUE;

- Sempre que o contribuinte opte pelo pedido de revisão, não tem quatro anos para o fazer, mas o prazo da reclamação graciosa e quando, como é o caso dos autos, não tenha havido erro imputável aos serviços na liquidação, preclude, com o decurso do prazo de reclamação, o direito de o contribuinte obter a seu favor a revisão do ato de liquidação;

- No caso concreto, o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é um ato silente, na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito, para efeitos de impugnação judicial;

- Tal indeferimento pode consubstanciar e, no caso, teria obrigatoriamente que se reportar a um indeferimento por extemporaneidade;

- No presente PPA é inquestionável, pois, que o Tribunal Arbitral vai ter de analisar os pressupostos de aplicação do mecanismo de revisão oficiosa, uma vez que inexiste, não prova o Requerente, a existência de qualquer erro de direito, imputável à AT que justificasse a revisão da liquidação;

- O Tribunal Arbitral vai ter de decidir se o Requerente ainda estava em tempo de apresentar pedido de revisão oficiosa, tendo em conta a existência de erro imputável aos serviços;

- O Tribunal Arbitral não tem competência para apreciar e decidir a questão de saber se o indeferimento do pedido de revisão violou, ou não, o artigo 78.º da LGT e se os pressupostos de aplicação de tal mecanismo de revisão foram, ou não, bem aplicados pela AT;

- Assim, verifica-se a existência de uma exceção dilatória, consubstanciada na incompetência material do Tribunal Arbitral, a qual obsta ao conhecimento do pedido e, por isso, deve determinar a absolvição da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

15. O Requerente, notificado para o efeito, pronunciou-se sobre esta exceção, tendo aduzido essencialmente o seguinte:

- A alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não exclui casos como o em apreço, isto é, não exclui os casos precedidos de revisão oficiosa apesar de, imperfeitamente, remeter para o disposto no artigo 132.º do CPPT;

- Sendo o pedido de revisão oficiosa formulado em prazo, não pode haver qualquer razão que explique que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do ato tributário em vez de reclamação graciosa, mesmo que em tempo;

- A referência expressa ao artigo 132.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de retenção na fonte;

- O sentido útil do legislador, face ao estabelecido no RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, foi o de assegurar que o contribuinte não recorre a tribunal antes de qualquer tomada de posição da AT sobre a situação gerada com o ato do contribuinte;

- Podendo a AT, por sua iniciativa, proceder à revisão oficiosa do ato tributário, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços (nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT), também o contribuinte pode, naquele prazo da revisão oficiosa, pedir esta mesma revisão com aquele fundamento;

- É irrelevante para a questão do meio processual adequado de reação a um indeferimento pela AT, saber se a decisão administrativa chegou ou não a pronunciar-se sobre as ilegalidades imputadas à liquidação, pois, conforme é preconizado pelo STA, o que releva é, unicamente, saber se a petição do contribuinte tem por objeto a apreciação da legalidade de uma liquidação de imposto, sendo que, em caso afirmativo, tal meio processual de reação é a impugnação judicial ou, alternativamente, a arbitragem tributária;

- A AT tinha o dever de convolação do pedido de revisão oficiosa, referente ao ano de 2021, em reclamação graciosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, o que não fez;

- A jurisprudência, em matéria de pedido de revisão oficiosa nos casos de substituição tributária, tem entendido que o que releva é que haja erro do sujeito passivo traduzido na não obrigação de pagar o imposto para que, dentro do prazo de quatro anos, se reponha a legalidade; 

- Tendo o Requerente visto ser processada retenção na fonte na distribuição a seu favor de dividendos de fonte portuguesa, assistia-lhe o direito de espoletar um procedimento de revisão oficiosa em relação a estes atos até ao decurso do prazo de quatro anos;

- Tal prazo conta-se a partir da verificação da obrigação de proceder aos atos de retenção na fonte devidos no momento da colocação à disposição dos dividendos, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 6, do Código do IRC, conjugado com o artigo 78.º, n.º 1, da LGT, pelo que, no caso concreto, o pedido de revisão oficiosa foi interposto em tempo;

- Estava, portanto, o Requerente em tempo para dar entrada do seu PPA, ou seja, fazê-lo no prazo de 90 dias, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, norma da qual decorre que estão incluídos no âmbito da jurisdição do Tribunal Arbitral todos os tipos de atos passíveis de serem impugnados através de impugnação judicial, desde que tenham por objeto os atos mencionados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, sendo ainda que a alínea d) do n.º 1 deste artigo 102.º prevê a possibilidade de impugnação judicial no prazo de 3 meses contados a partir da “formação de presunção de indeferimento tácito”.

 

16. A competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, pelo que impõe-se começar por apreciar e decidir esta questão.

A questão da competência material do Tribunal Arbitral foi igualmente colocada, em termos muito similares àqueles com que aqui nos confrontamos, no âmbito do processo n.º 940/2023-T, tendo ali sido decidido o seguinte pelo respetivo Tribunal Arbitral coletivo (do qual o aqui signatário fez parte enquanto árbitro adjunto) que, por merecer a nossa inteira concordância, aqui, data venia, adotamos:

 “No que respeita à competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD, foi decidido, entre outros, no Acórdão Arbitral proferido no processo n.º 124/2018-T, conforme o extrato que, com a devida vénia, se transcreve:

“A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeiro lugar, limitada às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no
CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária foi vinculada àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o artigo 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que
funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele artigo 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral. 

Na alínea a) do artigo 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles artigos 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (artigo 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do artigo 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

(…)

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no artigo 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo artigo 2.º do RJAT. 

Na verdade, neste artigo 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».

No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de
tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. 

(…)

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa.

(…)

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e retenção na fonte e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência aos artigos 131.º a 133.º do CPPT, disseram
imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de atos dos tipos referidos, acabaram por incluir referência aos artigos 131.º a 133.º que não esgotam as possibilidades de apreciação administrativa desses atos.

(…)

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto de a redação daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do ato tributário a possibilidade de
apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de atos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adotada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adoção da interpretação que consagre a solução mais acertada. 

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011,
devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de retenção na fonte que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

(…)

Improcede, assim, esta exceção de incompetência, derivada de não ter sido apresentada reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte.”

Estando em causa nos presentes autos liquidações de IRC por retenção na fonte a título definitivo, relativamente às quais se colocam questões exclusivamente de Direito, conclui-se pela desnecessidade de recurso à reclamação graciosa prevista nos artigos 131.º a 133.º, do CPPT, como condição sine qua non da ação arbitral.

Contudo, salienta a AT que o facto de, no caso concreto, o pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC – retenções na fonte do ano de 2019 e 2020 – , não ter sido objeto de qualquer decisão administrativa, antes consubstanciando um ato silente, “na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito”, obriga a que o Tribunal Arbitral deva aferir da verificação dos pressupostos de aplicação do mecanismo da revisão oficiosa, uma vez que o Requerente não prova a existência de qualquer erro de direito imputável à AT, que justificasse a revisão da liquidação.

Sobre esta temática se pronunciou já, reiteradamente, o Supremo Tribunal Administrativo, designadamente no Acórdão proferido em 9 de novembro de 2022 no processo n.º 087/22.5BEAVR, em que se decidiu:

“I - Mesmo depois do decurso dos prazos de reclamação graciosa e de impugnação judicial, a Administração Tributária tem o dever de revogar atos de liquidação de tributos que sejam ilegais, nas condições e com os limites temporais referidos no art. 78.º da L.G.T.

II - O dever de a Administração efetuar a revisão de atos tributários, quando detetar uma situação de cobrança ilegal de tributos, existe em relação a todos os tributos, pois os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tributária tem de observar na globalidade da sua atividade (art. 266.º, n.º 2, da C.R.P. e 55.º da L.G.T.), impõem que sejam oficiosamente corrigidos, dentro dos limites temporais fixados no art. 78.º da L.G.T., os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de quantias de tributos que não são devidas à face da lei.

III - A revisão do ato tributário com fundamento em erro imputável aos serviços deve ser efetuada pela Administração tributária por sua própria iniciativa, mas, como se conclui do n.º 7 do art. 78º da L.G.T., o contribuinte pode pedir que seja cumprido esse dever, dentro dos limites temporais em que Administração tributária o pode exercer.

IV - O indeferimento, expresso ou tácito, do pedido de revisão, mesmo nos casos em que não é formulado dentro do prazo da reclamação administrativa, mas dentro dos limites temporais em que a Administração tributária pode rever o acto com fundamento em erro imputável aos serviços, pode ser impugnado contenciosamente pelo contribuinte [art. 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da L.G.T.].

V - A formulação de pedido de revisão oficiosa do ato tributário pode ter lugar relativamente a atos de retenção na fonte, independentemente de o contribuinte ter deduzido reclamação graciosa nos termos do artº 132.º do CPPT, pois esta é necessária apenas para efeitos de dedução de impugnação judicial.

VI - O meio procedimental de revisão do ato tributário não pode ser considerado como um meio excecional para reagir contra as consequências de um ato de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do ato de liquidação).

VII – Assim, nos casos como o dos autos, em que há lugar a retenção da fonte, a título definitivo, de quantias por conta de imposto de selo, cobrado no âmbito de operações de concessão de crédito, e suportado pelas Recorrentes, o erro sobre os pressupostos de facto e de direito dessa retenção é suscetível de configurar “erro imputável aos serviços”, para efeitos de apresentação, no prazo de 4 anos, do pedido de revisão dos atos tributários, nos termos do nº1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária.”.

Entendeu o Venerando Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão citado e na esteira da sua anterior jurisprudência firmada que “desde que o erro não seja imputável a conduta negligente do sujeito passivo, será imputável à Administração Tributária” e que

“Assim, há que ter em conta que in casu estamos perante uma situação de substituição tributária, realizada através do mecanismo de retenção na fonte, em que não há intervenção do contribuinte, e em que o substituto actua por imposição legal.

(…)

Por fim, não advém da sentença recorrida que os actos de retenção e cobrança do imposto tenham sido despoletados ou originados com base em elementos erróneos indicados pelo sujeito passivo.

Neste conspecto, propendemos a considerar que em tal situação se justifica que os erros praticados no acto de retenção sejam imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no nº 1 do artigo 78º da LGT, pois se afigura inviável responsabilizar o contribuinte pela actuação do substituto, sob pena de violação dos seus direitos garantísticos.”.

Também no caso dos autos e não obstante o pedido de revisão oficiosa ter sido apresentado para além do prazo da reclamação administrativa, mas dentro do prazo em que a AT poderia ter revisto os atos de retenção na fonte indevida, estamos perante uma situação de substituição tributária, concretizada através de retenção na fonte a título definitivo, em que não houve intervenção do Requerente, e em que o substituto atuou por imposição legal, devendo o erro na retenção na fonte ser imputado aos serviços.

Em face de todo o exposto, é de concluir pela admissibilidade do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC – retenção na fonte, dentro do prazo e com os fundamentos previstos no n.º 1 – 2.ª parte, do artigo 78.º, da LGT, independentemente de tal pedido ter sido expressa ou tacitamente indeferido, bem como pela arbitrabilidade da pretensão do Requerente e, consequentemente, pela improcedência da exceção da incompetência deste Tribunal Arbitral para dirimir o litígio em análise, invocada pela Requerida.”

 

§2. O thema decidendum

17. A questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir, consiste em determinar se a retenção na fonte de IRC, a título definitivo, sobre dividendos pagos a OICVM não residente em Portugal, como é o caso do Requerente, viola o Direito da União Europeia, estando concretamente em causa analisar o regime previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), à luz do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A resposta que for dada a essa questão será, naturalmente, determinante para o juízo a emitir quanto à (i)legalidade dos atos tributários controvertidos.

O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição ao Requerente do montante total de € 31.689,35, referente a IRC retido na fonte – decorrente do somatório dos seguintes valores: € 9.975,47 relativos ao período de 2019, € 5.360,99 relativos ao período de 2020 e € 16.352,89 relativos ao período de 2021 –, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

 

            §2.1. As posições das Partes

            18. A propósito da aludida questão jurídico-tributária, o Requerente propugna, nuclearmente, o seguinte:

            - Verifica-se um tratamento discriminatório face ao Direito da União Europeia, em virtude de o artigo 22.º do EBF impor para a sua aplicação a necessidade de os OIC se constituírem e operarem de acordo com a legislação nacional, sem, contudo, conceder que entidades da mesma natureza, que se constituam e operem nos mesmos termos, mas ao abrigo da legislação de outro Estado-Membro da UE ou até de Estado terceiro, possam comprovar que cumprem exigências equivalentes às contidas na lei interna para beneficiar igualmente daquele regime fiscal;

- Por isso, a não aplicação ao Requerente da exclusão de tributação constante do artigo 22.º do EBF, apenas em virtude do simples facto de o Requerente não ser um OIC residente em Portugal, constitui uma clara violação do princípio da não discriminação previsto no TFUE;

- No caso concreto, existe uma tributação efetiva de IRC suportada por um OICVM residente num outro Estado-Membro mais gravosa do que a suportada por um OICVM residente em território português, de idêntica natureza e em iguais circunstâncias (i.e., 15% face a uma exclusão de tributação);

- Motivo pelo qual o Requerente considera que a retenção na fonte sofrida viola grosseiramente o disposto no TFUE, nomeadamente no que se refere ao princípio da livre circulação de capitais, o qual, conforme resulta do artigo 63.º do TFUE, tem plena aplicação nas relações existentes entre uma entidade residente num Estado-Membro e uma entidade residente num outro Estado-Membro;

- Tal facto torna-se ainda mais evidente quando se verifica que as exigências a que estão sujeitos os OICVM que se constituam e operem ao abrigo da lei de Espanha são, necessariamente, equivalentes às impostas aos OICVM que constituam e operem ao abrigo da legislação portuguesa (e que se integram no conceito mais abrangente de OIC), em virtude ambos os normativos legais resultarem da transposição da Diretiva n.º 2009/65/CE do parlamento e do Conselho, de 13 de julho de 2009;

- A fim de aferir se a restrição em apreço poderá ser justificada por eventuais condicionalismos, é necessário apurar: (i) se as situações sob análise são ou não comparáveis, (ii) se existem reconhecidas razões de interesse geral que justifiquem essa restrição e (iii), no caso de as restrições serem justificadas, se a diferença no tratamento não se revela excessiva;

- Uma vez demonstrado que o tratamento diferenciado em causa é aplicável a situações comparáveis e, bem assim, que não existem razões de interesse geral que o justifiquem, não releva se o tratamento diferenciado é ou não excessivo, uma vez que o mesmo não é, de todo, permitido à luz do TFUE;

- Conforme jurisprudência do TJUE, uma restrição ou discriminação, como as que resultem da legislação fiscal interna, não é passível de anulação/compensação através de eventuais vantagens que os acionistas não residentes possam obter no seu país de residência;

- O Requerente entende que deverá atender-se ao princípio do primado do Direito da União Europeia, o qual estabelece, em traços gerais, que o Direito da União Europeia prevalece sobre o direito interno dos Estados-Membros (cf. artigo 8.º, n.ºs 3 e 4, da CRP);

- Quando uma norma europeia aplicável a determinada situação se apresente perfeitamente clara, não levantando qualquer questão quanto á sua interpretação, deverá verificar-se a aplicação direta na ordem jurídica do Estado-Membro, em detrimento de eventual legislação nacional que disponha em sentido contrário à legislação da UE;

- A jurisprudência do TJUE tem vindo a reconhecer que a aplicação integral do Direito da União Europeia é também da responsabilidade dos órgãos da Administração;

- Uma vez declarada a ilegalidade dos montantes de retenção na fonte com carater definitivo na parte aqui peticionada (ilegalidade dos atos de retenção na fonte aqui em causa), o Requerente tem direito não só ao respetivo reembolso, mas também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de imposto indevidamente pago, no valor de € 31.689,35, relativamente aos períodos de 2019, 2020 e 2021, contados a partir da data do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.        

  

            19. Por seu turno, a Requerida aduz, essencialmente, o seguinte:

            - O artigo 63.º do TFUE visa assegurar a liberalização da circulação de capitais dentro do mercado interno europeu e entre este e países terceiros, portanto, proíbe qualquer restrição ou discriminação que resulte do tratamento fiscal diferenciado concedido pelas disposições da lei nacional a entidades de Estados-membros ou de países terceiros que crie condições financeiras mais desfavoráveis a estes últimos e seja suscetível de os dissuadir de investir em Portugal;

- No entanto, para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo – que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos;

- O imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão o Requerente não esclareceu;

- Assim, contrariamente ao afirmado pelo Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente, antes pelo contrário;

- Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objetivas dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos OIC estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, necessário se torna comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos;

- Só deste modo será possível concluir se a desvantagem de cash-flow criada pela retenção na fonte de IRC, aos fundos de investimentos estabelecidos noutros Estados-Membros da UE, cria um obstáculo ao acesso ao mercado financeiro nacional, colocando-os numa situação desfavorável quando comparada com a situação tributária aplicada aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF;

- Não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o Direito da União Europeia;

- A Administração Tributária não pode deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada;

- A Administração Tributária, como qualquer órgão da Administração Pública, encontra-se estritamente vinculada ao cumprimento da lei, de acordo com o artigo 3.º do CPA, aplicável subsidiariamente às relações jurídico-tributárias ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT;

- A Administração Tributária tem que aplicar o disposto nos códigos fiscais que se encontram em vigor e as disposições deles constantes que regulam determinada relação jurídico-tributária, de acordo com o artigo 2.º, alínea b), da LGT, in casu, as normas constantes do Código do IRC e do EBF concretamente aplicáveis;

- Inexistindo qualquer ilegalidade dos atos impugnados, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, importando, contudo e sem conceder, salientar que a alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, determina que são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

 

            Apreciando e decidindo.

 

§3. Enquadramento e subsunção normativa

            20. O artigo 22.º do EBF, na redação vigente em 2019, 2020 e 2021, estabelece o seguinte:

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1. São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2. O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3. Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4. Os prejuízos fiscais apurados nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5. Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6. As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

7. Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.

8. As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.

9. O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo, no entanto, ser inferior a um ano civil:

a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil;

b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.

10. Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.

11. A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.

12. O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.

            13. As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.

14. O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.

15. As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.

            16. No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo-lhes ainda aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.

 

            21. O artigo 63.º do TFUE estatui o seguinte:

Artigo 63.º (ex-artigo 56.º TCE)

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

 

22. O artigo 65.º do TFUE, limitando a aplicação do disposto no citado artigo 63.º, estatui o seguinte:

Artigo 65.º (ex-artigo 58.º TCE)

1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

 b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

 2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

 3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

4. Na ausência de medidas ao abrigo do n.º 3 do artigo 64.º, a Comissão, ou, na ausência de decisão da Comissão no prazo de três meses a contar da data do pedido do Estado-Membro em causa, o Conselho, pode adotar uma decisão segundo a qual as medidas fiscais restritivas tomadas por um Estado-Membro em relação a um ou mais países terceiros são consideradas compatíveis com os Tratados, desde que sejam justificadas por um dos objetivos da União e compatíveis com o bom funcionamento do mercado interno. O Conselho delibera por unanimidade, a pedido de um Estado-Membro.

 

23. A questão da discriminação entre OICVM residentes e não residentes em Portugal e da alegada violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE foi analisada no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE, em 17 de março de 2022, no âmbito do processo C‑545/19; no âmbito do referido acórdão entendeu-se, além do mais, o seguinte:

“36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).

37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).”

Destarte, constitui entendimento do TJUE que o aludido regime jurídico consubstancia uma discriminação de natureza a violar diretamente o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, uma vez que estabelece um regime de tributação menos favorável aos OICVM não residentes quando comparado com o regime aplicável aos OICVM residentes.

 

24. No entanto, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, designadamente nos acórdãos Futura Participations (Processo C-391/97), Marks & Spencer (Processo C‑446/03) e Denkavit II (Processo C‑170/05), a proibição da referida diferenciação pelo artigo 63.º do TFUE só se restringe aos casos em que ambas as situações sejam objetivamente comparáveis; neste mesmo sentido, no citado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN foi aduzido o seguinte:

“40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

            41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].

42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida].”

Assim, importa então determinar se a circunstância de os OICVM não residentes não estarem sujeitos à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do Código do IRC e ao Imposto do Selo (Verba 29 da TGIS), mas apenas a tributação em sede de IRC que não se verifica quanto aos OICVM residentes, não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OICVM residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. A este respeito foi afirmado o seguinte no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN:

“49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).

(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida). (…)

53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek  (C‑252/14, EU:C:2016:402).

            55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.

56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.

57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.”

            Ainda a propósito da análise da comparabilidade objetiva das situações em apreço, foi afirmado o seguinte no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN:

“60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).

(…) na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

            72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).

            73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”

            Atentas as citadas considerações vertidas no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, há que concluir que os dividendos auferidos por um OICVM não residente, como é o caso do Requerente, devem ser tratados de modo equiparável aos dividendos auferidos por um OICVM residente em situação análoga, isto é, não pode existir discriminação entre OICVM acionistas residentes e não residentes no que respeita à tributação dos dividendos, sob pena de se verificar uma discriminação decorrente da “aplicação de regras diferentes a situações comparáveis”, tal como evidenciou o TJUE no acórdão ACT 4, proferido em 12 de dezembro de 2006, no âmbito do processo C‑374/04.

           

            25. Acresce referir que decorre igualmente da jurisprudência do TJUE que o princípio da livre circulação de capitais pode ser objeto de restrições, desde que motivadas por razões imperiosas de interesse geral, tais como a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros.

            Quanto à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, o TJUE, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, afirmou expressamente que para que tal justificação seja admissível “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78); ora, no caso em concreto, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” (considerando 80). Por conseguinte, concluiu o TJUE que a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional” (considerando 81).

            No concernente à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros, o TJUE entendeu, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, que “a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território” (considerando 82); mais, “quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos” (considerando 83). Nesta conformidade, concluiu o TJUE que “a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida” (considerando 83).

           

            26. Na sequência do exposto, o TJUE, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, decidiu o seguinte:

“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

           

27. Atento o acima explanado, “é forçoso concluir-se que o artigo 63.º do TFUE não deve ser interpretado no sentido de admitir que os dividendos distribuídos por uma sociedade residente a um OICVM não residente sejam objecto de retenção na fonte e de aceitar que os dividendos distribuídos a um OICVM residente sejam isentos dessa retenção. O artigo 63.º do TFUE deve, pois, ser interpretado, no sentido facilitar a liberdade de circulação dos investimentos imobiliários e de não criar entraves ao movimento de capitais. Por conseguinte, o artigo 22.º, n.º 1 do EBF acaba por estabelecer um tratamento discriminatório prejudicial ao circunscrever o regime de isenção de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional e penalizar as entidades que operem no território nacional mas que são constituídas segundo o direito de um outro Estado-Membro.

            Conforme se referiu, os Estados-Membros podem estabelecer distinções entre sujeitos passivos que se encontrem numa situação idêntica desde que isso não implique, segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3 do TFUE, uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais. De acordo com o acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C‑545/19, em 17 de Março de 2022, a diferença de tratamento fiscal apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objectivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no âmbito dos processos n.º C-436/08 e n.º C-437/08). Ora, tal como resulta da jurisprudência do TJUE aplicável aos presentes autos, não se verifica que existam razões imperiosas de interesse geral que admitam o tratamento discriminatório prejudicial acima descrito ao OICVM não residentes em face dos OICVM residentes que se encontram em situações objectivamente comparáveis.

            Acresce ainda que as disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0188/15, em 1 de Julho de 2015.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 382/2021-T).

Importa, ainda, salientar que, como é consabido, a jurisprudência do TJUE tem caráter vinculativo para os tribunais nacionais, em matéria de Direito Europeu (ver, neste sentido e entre outros, os acórdãos do STA de 26.03.2003, processo n.º 01716/02, de 09.11.2005, processo n.º 01090/03 e de 03.12.2008, processo n.º 0587/08); como salientado no acórdão do STA, de 18.12.2013, proferido no processo n.º 0568/13, “atento o primado do direito comunitário (…), é vedado ao tribunal aplicar normas do direito nacional que afrontem o que naquele se impõe, sendo que, havendo acórdão interpretativo proferido pelo TJUE a decisão nele proferida retroage à data da entrada em vigor da respectiva norma, excepto se no próprio acórdão se dispusesse de forma diferente, como claramente se vê do seguinte trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 10/05/2012, nos processos apensos C-338/11 a C-347/11:

«58. (…) segundo jurisprudência constante, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267º TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido cumprida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se também se encontrarem reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (v., designadamente, acórdãos de 3 de outubro de 2002, Barreira Pérez, C-347/00, Colet., p. I-8191, nº 44, e de 17 de fevereiro de 2005, Linneweber e Akritidis, C-453/02 e C-462/02, Colet., p. I-1131, nº 41, e de 6 de março de 2007, Meilicke e o., C-292/04, Colet., p. I-1835, nº 34).

59. Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa-fé. Para que se possa decidir por esta limitação, é necessário que se encontrem preenchidos dois critérios essenciais, ou seja, a boa-fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (v., designadamente, acórdãos de 10 de janeiro de 2006, Skov e Bilka, C-402/03, Colet., p. I-199, nº 51, e de 3 de junho de 2010, Kalinchev, C-2/09, Colet., p. I-4939, nº 50).».” 

 

            28. Assim, em face do decidido pelo TJUE no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN e que é inteiramente aplicável ao caso sub judice, impõe-se concluir que quer os atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, no montante global de € 31.689,35, quer o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que os manteve são ilegais por radicarem no artigo 22.º do EBF que, nos termos acima enunciados, viola o disposto no artigo 63.º do TFUE.

Tal vício invalidante tem por consequência a anulação dos atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, no montante global de € 31.689,35 e a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que os manteve (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).   

 

§4. A restituição dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios

29. O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição ao Requerente do montante global de € 31.689,35 referente a IRC retido na fonte – decorrente do somatório dos seguintes valores: € 9.975,47 relativos ao período de 2019, € 5.360,99 relativos ao período de 2020 e € 16.352,89 relativos ao período de 2021 –, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estatuir que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Ora, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito ao reembolso de quantias pagas ou retidas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

Cumpre, então, apreciar e decidir.

 

30. Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação quer dos atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, quer do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, nos termos acima enunciados, há lugar à restituição das prestações tributárias indevidamente suportadas pelo Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

Nesta conformidade, tem o Requerente direito à restituição do valor global de € 31.689,35 (trinta e um mil seiscentos e oitenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos), referente a IRC retido na fonte, decorrente do somatório dos seguintes valores: € 9.975,47 relativos ao período de 2019, € 5.360,99 relativos ao período de 2020 e € 16.352,89 relativos ao período de 2021.

 

31. Para além da restituição do aludido montante global atinente a imposto que indevidamente suportou, tem ainda o Requerente direito a juros indemnizatórios.

Com efeito, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do Direito da União Europeia tem como consequência não só o direito à restituição, como o direito a juros, sendo disso exemplo, entre outros, o acórdão proferido, em 18 de abril de 2013, no processo C-565/11, no qual foi afirmado o seguinte:

“21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em

violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).

22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).

23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).”

Como resulta deste aresto, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo; no caso português, o regime substantivo do direito a juros indemnizatórios está plasmado no artigo 43.º da LGT que estatui o seguinte:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efetuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do ato tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

Neste conspecto, tendo em vista a correta delimitação do direito do Requerente a juros indemnizatórios, importa também ter presente que o prazo da reclamação graciosa de atos de retenção na fonte de IRC é, nos termos do disposto no artigo 137.º, n.º 3, do Código do IRC, de “dois anos a contar do termo do prazo de entrega, pelo substituto, do imposto retido na fonte ou da data do pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos, se posterior”.

Como tem sido entendido pelo STA, quando o pedido de revisão oficiosa é apresentado no prazo da reclamação graciosa é equiparável a esta, pelo que, nesse caso, o direito a juros indemnizatórios é regulado pelo n.º 1 do artigo 43.º da LGT (neste sentido, entre outros, o acórdão de 03.06.2015, proferido no processo n.º 0793/14 e o acórdão de 18.11.2015, proferido no processo n.º 01509/13).

Por outro lado, como foi decidido pelo STA no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2023, proferido em 30.09.2020, no processo n.º 040/19.6BALSB, nos casos em que o pedido de revisão oficiosa é apresentado fora do prazo da reclamação graciosa, “[s]ó são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa”, nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.

 

32. Volvendo ao caso concreto, relativamente aos atos de retenção na fonte de IRC referentes aos períodos de 2019 e 2020, afigura-se evidente que decorreram mais de dois anos entre o termo dos prazos de entrega, pelo substituto, do imposto retido na fonte (20.06.2019 e 20.06.2020, respetivamente) e a data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa (18.05.2023).

Por consequência, é aqui aplicável o regime resultante da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT e, por isso, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, relativamente às quantias a restituir referentes aos períodos de 2019 (€ 9.975,47) e de 2020 (€ 5.360,99), a partir do dia 18.05.2024 até à data da emissão da respetiva nota de crédito a favor do Requerente. 

No tangente ao período de 2021, é manifesto que decorreram menos de dois anos entre o termo dos prazos de entrega, pelo substituto, do imposto retido na fonte (20.05.2021, 20.06.2021, 20.10.2021 e 20.01.2022) e a data em que foi apresentado o pedido de revisão oficiosa (18.05.2023).

Por isso, o pedido de revisão oficiosa é aqui equivalente a uma reclamação graciosa.

O STA uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão proferido em 29.06.2022, no processo n.º 093/21.7BALSB, nos seguintes termos: “em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”.

Nesta conformidade, tem pois o Requerente direito a juros indemnizatórios desde a data em que se formou o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa – o que sucedeu em 18.09.2023, uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 18.05.2023 (cf. artigo 57.º, n.ºs 1 e 5, da LGT) –, até à data da emissão da respetiva nota de crédito a favor do Requerente, sobre a quantia total a restituir referente ao período de 2021, que é de € 16.352,89 (€ 569,22 + € 6.841,00 + € 3.919,99 + € 5.022,68).

Os juros indemnizatórios são calculados à taxa legal supletiva, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT, no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.     

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 33. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil face à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários controvertidos, nos termos acima enunciados que asseguram eficaz tutela dos interesses do Requerente (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

IV. Decisão

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegais e anular:
  • O ato de retenção na fonte de IRC, referente ao período de 2019, no valor de € 9.975,47, com as legais consequências;
  • O ato de retenção na fonte de IRC, referente ao período de 2020, no valor de € 5.360,99, com as legais consequências;
  • Os atos de retenção na fonte de IRC, referentes ao período de 2021, nos valores de € 569,22, € 6.841,00, € 3.919,99 e € 5.022,68, com as legais consequências;
  1. Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, com as legais consequências;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir ao Requerente o montante global de € 31.689,35 (€ 9.975,47 relativos ao período de 2019, € 5.360,99 relativos ao período de 2020 e € 16.352,89 relativos ao período de 2021), acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima enunciados, com as legais consequências;
  3. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.

 

V. Valor do Processo

Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de 31.689,35 (trinta e um mil seiscentos e oitenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos).

 

VI. Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

Lisboa, 5 de julho de 2024.

 

O Árbitro,

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)