Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 601/2023-T
Data da decisão: 2024-06-12  Selo  
Valor do pedido: € 302.313,76
Tema: Imposto do Selo – Prestação de Garantia Judicial. Incidência IS. Verba 10 TGIS.
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SUMÁRIO

  1. Face à norma de incidência tributária, a constituição de garantias, qualquer que seja a sua natureza ou forma estão, genericamente, sujeitas a IS nos termos da verba 10 da TGIS.
  2. Está sujeita a imposto do selo a garantia imposta por decisão judicial, quando essa garantia visa repor a situação que antecedeu a extinção de valores mobiliários apreendidos no âmbito de um processo judicial, sem que as autoridades judiciárias, por causas imputáveis ao Requerente, tivessem podido pronunciar-se.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Juiz José Poças Falcão (presidente), Prof. Doutora Maria do Rosário Anjos e Dr. Nuno Pombo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 31-10-2023, acordam o seguinte:

 

I.  RELATÓRIO

  1. A..., SA, pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa (doravante "Requerente"), após notificação rececionada a 30.05.2023 da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., veio, ao abrigo dos artigos 2.º, n.o 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n-º 2, alínea a), e 10.º, n.o 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante "RJAT"), bem como dos artigos 95.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (doravante "LGT") e 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante "CPPT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante “AT” ou “Requerida”), no qual peticiona a declaração de ilegalidade e consequente anulação do mencionado ato de indeferimento e da autoliquidação de Imposto do Selo (doravante “IS”) subjacente, no valor de 302.313,76 €.
  2. O pedido foi aceite e notificado à AT, nos termos legalmente previstos. Dado que o Requerente não optou por nomear árbitro, esta nomeação ocorreu promovida pelo CAAD, tendo sido designados os Árbitros suprarreferidos, que aceitaram a sua nomeação. Notificadas as partes estas não se pronunciaram contra tal designação pelo que aceitaram a composição do Tribunal arbitral.
  3. Cumpridos, pois, todos os necessários e legais trâmites processuais, foi constituído Tribunal Arbitral Coletivo, em 31.10.2023, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
  4. Notificada em 31.10.2023, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, veio a AT apresentar resposta e juntar o processo administrativo a 06.12.2023. Em 7.12.2023, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:

«I - A reunião do Tribunal com as partes (artigo 18º, do RJAT)

À luz do disposto nos artigos 16º-c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, fica dispensada a reunião do Tribunal com as partes, considerando (i) que se trata, no caso, de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e (ii) que não há exceções ou questões prévias a debater e decidir.

 

II – Alegações finais

Mostrando-se concluída a fase instrutória do processo, ambas as partes apresentarão, no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, alegações finais escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito, formulando expressamente as respetivas conclusões. »

(…)

 

  1. O Requerente apresentou alegações em 08.01.2024, juntando comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente. A Requerida não apresentou alegações. Em 23.04.2023, o Senhor Juiz Presidente e Relator proferiu despacho, devidamente fundamentado, de prorrogação do prazo para prolação do Acórdão arbitral, nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, pelo qual a data-limite para proferir o Acórdão passou para 30-06-2024.

 

  1. SANEAMENTO

 

  1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado em 09.08.2023, i.e., no prazo de 90 dias previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, contado a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária notificada à Requerente (22.06.2023), conforme artigo 102.º, n.º 1, do CPPT.

 

  1. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente.

 

  1. O processo não enferma de nulidades.

 

  1. A Questão a decidir

 

  1. Considerando a formulação do pedido arbitral e a causa de pedir subjacente, em conformidade com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa aqui impugnada, a questão tal qual é colocada pelo Requerente consiste em “saber se uma garantia prestada por imposição judicial e / ou legal, como sucede no caso em crise, tem cabimento na própria incidência de base da verba n.0 10 da TGIS, antes de qualquer discussão relativa à acessoriedade e / ou simultaneidade.”

Dito de outro modo, a questão é colocada pelo Requerente como uma questão anterior ou prévia à do conhecimento dos pressupostos contidos na norma de incidência tributária (autonomia / acessoriedade / simultaneidade) em apreço. Para sustentar a sua posição convoca algumas teses doutrinais em defesa da não sujeição a imposto das garantias prestadas por imposição judicial, como é o caso dos presentes autos.

Para uma correta decisão da questão importa fixar a matéria de facto relevante, a qual, diga-se, não se afigura controvertida, tendo as partes expressamente referido por remissão aceitar como corretos os factos elencados na decisão de indeferimento.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

Factos provados

  1. Com relevância para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. O Requerente é um banco, constituído a 04.08.2014, pela resolução operada pelo Banco de Portugal ("BdP") ao B..., S.A. ("B..."), tendo o Requerente mantido o objeto social e a atividade que o B... desenvolvia (ou seja, a atividade bancária);
  2. A atividade desenvolvida pelo Requerente encontra-se regulada no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (doravante "RGICSF"), sendo supervisionada pelo BdP, pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (doravante "CMVM") e pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (doravante "ASF");
  3. No âmbito da sua atividade, o Requerente pratica todas as operações permitidas aos bancos nos termos do artigo 4.º do RGICSF, nas quais se inclui a receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis.
  4. Em resultado de uma ação judicial movida pelo Ministério Público, o Requerente é parte do processo judicial n.../14....TELSB, a correr termos no Tribunal Central de Instrução Criminal — Juiz I (doravante "Tribunal"), no âmbito do qual foi emitida uma sentença judicial no sentido de impor ao Requerente a prestação de uma «caução económica» no valor de 50.385.627,34 Euros;
  5. No referido processo está em causa a apreensão de duas contas bancárias do C... (Panamá) (doravante "C...") domiciliadas junto do Requerente, bem como de toda a carteira de títulos que lhes está associada, conforme decretado pelo Tribunal para efeitos do processo;
  6. Neste Processo n.º 324/14.0TELSB, decidiu-se que: “Como é sabido, as obrigações são valores nominativos titulados que encerram o direito de receção da verba neles inscritos na data de vencimento prevista, tendo as autoridades judiciárias portuguesas, à data da apreensão, a legítima expectativa de que o valor a ser pago pela obrigação fosse depositado numa conta, onde judicialmente seria dado o seu destino”. (cfr. 1.º parágrafo, pág. 131, da Sentença proferida no Processo n.º 324/14.0TELSB). Esta omissão, por parte do A..., dos mais elementares deveres enquanto destinatário de uma ordem de apreensão de valores mobiliários colocados sob a sua custódia e, igualmente, dos deveres que sobre si impendiam decorrentes dos artigos 2.º, 3.º, n.º 1, al. a) e 17.º da então vigente Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, e, por outro lado, o cumprimento de instruções respeitantes a bens colocados sob tutela judicial sem que as autoridades judiciárias se pronunciassem, redundou diretamente na perda da garantia de valores que poderiam vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, ou em benefício de ofendidos dos crimes indiciados, em valores ascendentes a 8.890.000 € e 46.500.000 USD” (cfr. pág. 133 da Sentença proferida no Processo n.º 324/14.0TELSB).»
  7. Em resultado de acordos de novação efetuados entre as entidades envolvidas nas operações (i.e., o emitente dos títulos e os tomadores da dívida), foram extintos da carteira de títulos que estavam domiciliadas junto do Requerente duas das obrigações que a integravam (em concreto, E..., 5.4%, 29/06/2016; e I..., 5%, 18/06/2016);
  8. Como resultado destas operações, o Tribunal considerou ter ocorrido uma diminuição das garantias de cumprimento das obrigações decorrentes do processo, tendo ordenado a prestação de uma «caução económica» de valor equivalente ao valor dos títulos apreendidos (i.e., 50.385.627,34 Euros);
  9. O Requerente solicitou ao Banco D... a emissão de uma garantia bancária a favor do Tribunal, até ao montante máximo de 50.385.627,34 Euros, tendo o Banco D...  procedido à respetiva emissão da garantia;
  10. O Banco D... procedeu à liquidação de IS sobre a garantia bancária em discussão, o qual ascendeu a 302.313,76 Euros;
  11. A garantia bancária foi emitida a 25.11.2021, o referido IS foi liquidado e pago à AT através da DMIS n.º ..., submetida a 16.12.2021 pelo Banco D..., o qual ascendeu a 302.313.76 Euros;
  12. O encargo do IS foi imputado ao Requerente, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, alínea e), do Código do IS (doravante “CIS”);
  13. O Requerente apresentou, a 12.012023, reclamação graciosa junto da AT, para anulação do IS liquidado e pago, a qual foi processada com o n.º de processo ...2023...;
  14. Em 30.05.2023 foi proferida decisão de indeferimento, a qual foi notificada ao Requerente nesse mesmo dia;
  15. Em síntese, a decisão de indeferimento apresenta a seguinte fundamentação:

"A verba 10. da TGIS prevê tributação em Imposto do Selo para as garantias das obrigações «salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente»" (cfr. ponto 30 da decisão de indeferimento);

(…) para que a constituição e garantias não seja tributada é necessário que, além de estas serem materialmente acessórias dos contratos tributados (no caso, a fiança), que sejam «constituídas simultaneamente com a obrigação garantida»" (cfr. ponto 31 da decisão de indeferimento);

(..) Adicionalmente, refere a AT que, para uma garantia não ser tributada em IS, é necessário: "(i) A existência de acessoriedade material entre a garantia e a obrigação garantida; (ii) Que a obrigação garantida seja especialmente tributada pela TGIS; e, (iii) Haja simultaneidade entre o nascimento da obrigação garantida e a constituição da respetiva garantia" (cfr. ponto 32 da decisão de indeferimento);

Todavia, nos casos em que a obrigação de garantia possui autonomia relativamente à obrigação subjacente, pressupõe o legislador que se trata de uma manifestação autónoma de capacidade contributiva e sujeita-a a imposto, mesmo nas situações em que o contrato subjacente esteja sujeito a Imposto do Selo" (cfr. ponto 33 da decisão de indeferimento);

Partindo a AT do pressuposto de que está perante uma garantia capturada pela incidência objetiva da verba n 0 10 da TGIS, continua a sua fundamentação focada na não verificação dos critérios de exclusão de tributação previstos na norma: "Parecendo-nos estarmos perante uma situação de garantia autónoma, através do qual o garante (in casu Banco D...) se obriga a pagar a um terceiro beneficiário certa quantia (Tribunal), verificado o incumprimento da sentença, sendo mandante ou ordenante o devedor desse contrato (ora Reclamante), independentemente das vicissitudes que este sofra" (cfr. ponto 37 da decisão de indeferimento)

(…) a independência ou autonomia do contrato de garantia autónoma, [...], jamais pode ser considerada acessória de um qualquer contrato especialmente tributado na TGIS" (cfr. ponto 39 da decisão de indeferimento).

 "Assim sendo, na situação sub judice, a "caução económica" em causa, está sujeita a imposto do selo, nos termos previstos na verba 10. da TGIS, em função do respetivo prazo" (cfr. ponto 44 da decisão de indeferimento).”

o) Em 09.08.2023, o Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.

Factos não provados

  1. Não existem, factos que devam considerar-se como não provados, com relevo para a decisão.

Fundamentação da matéria de facto

  1. Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pelo Requerente em anexo ao PPA, que constam do processo administrativo e que as partes reconhecem como válidos, ao que acresce que não há controvérsia entre as partes sobre a matéria de facto. Por outro lado, relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Assim, sem necessidade de maiores explanações, foram considerados provados todos os factos devidamente documentados, que não suscitam, sequer, discussão entre as partes.

 

  1. MATÉRIA DO DIREITO

§1 – Quanto à alegada ilegalidade dos atos impugnados

 

  1. O Requerente coloca uma questão de direito para conhecimento deste Tribunal Arbitral, qual seja a de decidir se uma garantia imposta judicialmente deve considerar-se, ou não, sujeita a incidência de IS, nos termos previstos na verba 10 da TGIS. Ou seja, a questão é saber se deve entender-se ser ou não devido, no caso, imposto do selo sobre a “(…) constituição de uma garantia bancaria, até ao montante máximo de € 50.385.627,34 (DMIS nº 74690 de novembro de 2021: verba 10.3 TGIS, € 302.313,76), imposta judicialmente / legalmente a favor do Tribunal Central de Instrução Criminal, no âmbito do processo judicial nº 324/14.0TELSB (…)”.

 

  1. O pedido formulado pelo Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos seguintes atos:

“1. Decisão de indeferimento da reclamação graciosa referente ao processo n.º ...2023..., da autoria do Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação de competências (cfr. Documento n.0 1); e

2.    Autoliquidação de IS realizada através da Declaração Mensal de Imposto de Selo (doravante "DMIS") n 0 ..., na qual foi indevidamente liquidado e pago IS de 302.313,76 Euros sobre a constituição de uma garantia bancária imposta judicialmente/legalmente a favor do Tribunal.”

  1. Na decisão da reclamação graciosa, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que é devido Imposto de Selo relativamente à constituição desta garantia, que só foi exigida porque em resultado da extinção das obrigações suprarreferidas, a garantia anteriormente prestada ficara diminuída. Ou seja, considerou que a exigência da prestação de uma «caução económica» no mencionado montante, resultou do facto de terem sido celebrados acordos de novação efetuados entre as entidades envolvidas nas operações (i.e., o emitente dos títulos e os tomadores da dívida), pelos quais foram extintos da carteira de títulos obrigações que estavam domiciliadas junto do Requerente, em concreto, duas das obrigações que a integravam: “E..., 5.4%, 29/06/2016 e I..., 5%, 18/06/2016”.

 

  1. Foi em resultado destas operações que o Tribunal considerou ter ocorrido uma diminuição das garantias de cumprimento das obrigações decorrentes do processo, tendo ordenado a prestação de uma «caução económica» de valor equivalente ao valor dos títulos apreendidos (i.e., 50.385.627,34 Euros). Neste enquadramento, o Tribunal considerou ser aplicável o disposto no artigo 227.º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual havendo fundado receio de que “faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis derivadas do crime, o lesado pode requerer que o arguido ou o civilmente responsável prestem caução económica".

 

  1. É, pois, sobre a garantia prestada nas concretas condições apuradas e assentes na matéria de facto que este Tribunal Arbitral tem de pronunciar-se. Chegados aqui, impõe-se ressaltar que a decisão sobre esta questão de direito tem de respeitar a norma de incidência tributária em causa, pois isso mesmo decorre dos princípios jurídico-constitucionais aplicáveis in casu, nomeadamente, dos princípios da legalidade fiscal e da capacidade contributiva.

 

  1. Alega, porém, o Requerente que a AT não terá entendido corretamente o que estava em causa no pedido efetuado, “em particular a fundamentação do Requerente no sentido de não poderem ser tributadas em IS as garantias impostas judicialmente/legalmente. Caso contrário, não teria a AT sustentado a sua decisão de indeferimento com base em argumentos em nada relacionados com a fundamentação aduzida pelo Requerente.”

 

Vejamos, pois, se assiste razão ao Requerente.

 

  1. Em concreto, o Requerente alega que a AT conduziu toda a sua argumentação partindo do pressuposto de que estamos perante uma garantia objetivamente sujeita a IS nos termos da verba n.º 10 da TGIS, cuja não tributação dependeria unicamente da verificação dos critérios de exclusão previstos naquela verba (i.e., acessoriedade material de contrato tributado e simultaneidade). Porém, o que está em causa na questão levantada pelo Requerente não é se a garantia prestada é acessória e simultânea de um contrato tributado. O que está em causa é uma questão prévia: saber se uma garantia prestada por imposição judicial e/ou legal, como sucede no caso em crise, tem cabimento na própria incidência de base da verba n.º 10 da TGIS, antes de qualquer discussão relativa a acessoriedade e/ou simultaneidade! Assim, entende o Requerente que a AT incorreu num lapso interpretativo da fundamentação por si apresentada, pois sustentou a sua decisão de indeferimento em argumentos de direito que não respondem à questão de base levantada pelo Requerente, sendo que a verdadeira questão sob análise é o facto de a garantia ter sido imposta judicialmente/legalmente e não dever, por isso, ser sequer sujeita a IS, independentemente de ser, ou não, acessória e simultânea de uma obrigação tributada em IS, conforme se fundamenta adiante.

 

  1. A questão que é objeto do presente processo é a de saber se é devido Imposto do Selo, à face do artigo 1.º, n.º 1, do CIS e da verba 10 da TGIS, relativamente a este contrato de constituição de garantia (constituição de uma garantia bancária até ao montante máximo de € 50.385.627,34 (DMIS nº... de novembro de 2021: verba 10.3 TGIS, € 302.313,76), imposta judicialmente/legalmente a favor do Tribunal Central de Instrução Criminal, no âmbito do processo judicial nº 324/14.0TELSB).

 

  1. A apreciação da questão impõe a análise do enquadramento da situação na verba 10 da TGIS, a qual prevê a tributação em Imposto do Selo para as garantias das obrigações «salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na presente Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, ainda que em instrumento ou título diferente».

Nos termos previstos na verba 10 da TGIS, é havido como garantia qualquer instrumento jurídico destinado ao cumprimento da obrigação, exceto nos casos em que ocorra uma qualquer exclusão de tributação, expressa ou implicitamente presentes naquela verba. Atendendo, pois, à letra da lei, o argumento invocado pelo Requerente de que apenas as garantias prestadas de forma voluntária se devem subsumir na norma de incidência, não tem respaldo na formulação objetiva da norma de incidência tributária.

Ao que acresce que, dada a factualidade provada nos presentes autos se conclui que a fixação da garantia em causa no âmbito do processo judicial em curso, foi resultado da prática de um ato que diminuiu, substancialmente, a garantia anteriormente assegurada com o arresto de títulos, que, fruto de novação ocorrida, ficou visivelmente diminuída. Dito de outro modo, foram as vicissitudes que impenderam sobre os títulos em causa, sem que as autoridades judiciárias sobre elas se pudessem pronunciar e ao arrepio dos mais elementares deveres do Requerente enquanto destinatário de uma ordem de apreensão de valores mobiliários colocados sob a sua custódia, que estiveram diretamente na origem da perda da garantia de valores que poderiam vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, ou em benefício de ofendidos dos crimes indiciados e na consequente decisão judicial de se exigir ao Requerente a prestação da garantia agora em análise.

Posto isto, o Requerente não ignora que toda a factualidade provada nos autos revela sobejamente as razões que determinaram a necessidade da imposição de uma caução económica, que repusesse o montante da garantia anterior, assegurada com o arresto dos títulos entretanto extintos. Vir agora, nesta sede, defender que a garantia imposta por decisão judicial não deve estar sujeita a IS por resultar de uma imposição e não de um ato voluntário é, no mínimo, irrelevante, senão mesmo abuso de direito.

Certo é que a alegação do Requerente não tem respaldo na letra nem na ratio legis da norma de incidência tributária, a qual, mal ou bem, prevê a tributação das garantias das obrigações (sem distinção das que eventualmente sejam ordenadas por decisão judicial), excetuando apenas as que sejam excluídas nos termos legalmente previstos.

Ora, no caso em apreço, a imposição da prestação de garantia decorre da diminuição da garantia que se havia estabelecido através do arresto, e apenas procurou repor a situação que antecedeu o desaparecimento da tutela judicial, não já sobre os títulos apreendidos, mas sobre o valor dos mesmos. Certo é que, no caso dos presentes autos, a incidência do IS decorre da letra da lei e não se vislumbra que na ratio legis da norma de incidência o legislador tenha almejado outro desiderato que não este. 

Conclui-se, pois, que, em termos gerais, as garantias das obrigações estão sujeitas a IS, sendo que para que tal não suceda, é necessário que, além de estas serem materialmente acessórias dos contratos tributados, sejam «constituídas simultaneamente com a obrigação garantida». No caso dos autos não se encontram razões para se eximir esta concreta garantia bancária do âmbito de incidência tributária, nem se verificam aqueles pressupostos, como aliás o próprio Requerente reconhece.

 

  1. Mas alega ainda o Requerente que o que está em causa é a questão de saber se, na base, uma garantia prestada por imposição judicial e ou não, per se, abrangida pela norma de incidência consagrada na verba n.º 10 da TGIS, antes de se ter qualquer discussão quanto à exclusão de tributação por acessoriedade material e simultaneidade, pois essa questão apenas se coloca se, na base, houver incidência. Como vimos, o legislador define como regra de incidência de IS a constituição de garantias das obrigações, não impondo limitações nem discriminando as garantias em função da sua origem. Devemos, face a esta formulação da norma de incidência considerar que nos casos em que a exigência de garantia decorre de uma imposição legal ou judicial, caso em que a prestação de garantia se afigura como obrigatória e não dependente de algum contrato subjacente, não se traduzindo, pelo menos à primeira vista, um ato voluntário do sujeito passivo, não deve estar sujeita a IS?  Será que da norma de incidência em causa se deve extrair tal entendimento? E se sim, será esse entendimento aplicável no caso dos presentes autos?  A nossa resposta é negativa, porquanto não cabe a este Tribunal Arbitral analisar questões abstratas ou hipotéticas, mas antes, a questão concreta, factual do caso em discussão nos presentes autos. E, assim sendo, o que temos é a imposição de uma caução económica, porque se frustrou a garantia que anteriormente servia o propósito de assegurar interesses do Estado e/ou das vítimas de eventuais crimes no âmbito de um processo judicial. E, neste particular, a fazer fé no que foi decidido pelo Tribunal que impôs ao Requerente a prestação de uma caução económica, este não pode senão lamentar o seu próprio comportamento, por não ter levado ao conhecimento das autoridades judiciárias competentes os factos que estiveram na origem da diminuição de valor da garantia existente. Assim, com todo o respeito pelas teses doutrinais apresentadas pelo Requerente no PPA, é evidente que as mesmas não correspondem a reflexões doutrinais sobre questão semelhante à que agora analisamos, como a seguir se demonstrará.

 

  1. Vejamos, pois, o caso concreto. Face à factualidade provada, o que sucedeu, efetivamente, foi que a caução económica só veio a ser imposta porque a garantia que, anteriormente, tinha sido determinada pelo arresto da carteira de títulos na qual se inseriam as obrigações posteriormente extintas pela novação referida ficou diminuída. Ou seja, não estamos perante uma constituição de garantia decorrente de uma imposição legal objetiva, mas antes diante da necessidade de ser reforçada uma garantia existente por ela se ter desvalorizado, por violação, por parte do Requerente, “dos mais elementares deveres enquanto destinatário de uma ordem de apreensão de valores mobiliários colocados sob a sua custódia e, igualmente, dos deveres que sobre si impendiam decorrentes dos artigos 2.º, 3.º, n.º 1, al. a) e 17.º da então vigente Lei n.º 25/2008, de 5 de junho”, e, por outro lado, por ter dado cumprimento a instruções respeitantes a bens colocados sob tutela judicial sem que as autoridades judiciárias se pronunciassem”. Assim, todo o enquadramento anterior, que não pode ser ignorado e que serviu de base à imposição da constituição desta garantia, revela não estarmos perante uma mera imposição legal, mas sim uma decisão judicial determinada num caso concreto e em circunstâncias imputáveis ao comportamento do Requerente.

 

  1. Como bem alega a AT a este propósito, o A..., à revelia do Tribunal, procedeu à anulação da posição na carteira do C... na sequência da novação dos empréstimos, outorgado entre a E... (emitente), a F... (tomador) e a G... (tomador), datado de 17.06.2016, contrato que excluiu a H..., outorgado entre a I... (emitente), a F... (tomador) e a H... (tomador), datado de 13.06.2016, e que conduziram à extinção das obrigações em causa.  Dito de outro modo, no Processo n.º 324/14.0TELSB, verificou-se que por força da novação ocorrida envolvendo as obrigações referidas, que são valores nominativos titulados que encerram o direito de receção da verba neles inscritos na data de vencimento prevista, frustrou-se a legítima expectativa das autoridades judiciárias portuguesas, à data da apreensão de que o valor a ser pago pelas obrigações fosse depositado numa conta, onde judicialmente seria dado o seu destino. (cfr. 1.º parágrafo, pág. 131, da Sentença proferida no Processo n.º 324/14.0TELSB). A este propósito insista-se em recordar o seguinte trecho da decisão judicial: «esta omissão, por parte do A..., dos mais elementares deveres enquanto destinatário de uma ordem de apreensão de valores mobiliários colocados sob a sua custódia e, igualmente, dos deveres que sobre si impendiam decorrentes dos artigos 2.º, 3.º, n.º 1, al. a) e 17.º da então vigente Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, e, por outro lado, o cumprimento de instruções respeitantes a bens colocados sob tutela judicial sem que as autoridades judiciárias se pronunciassem, redundou diretamente na perda da garantia de valores que poderiam vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, ou em benefício de ofendidos dos crimes indiciados, em valores ascendentes a 8.890.000 € e 46.500.000 USD” (cfr. pág. 133 da Sentença proferida no Processo n.º 324/14.0TELSB).

Foi neste contexto que foi exigida a prestação da garantia em discussão nos presentes autos.

Ora, sendo assim, apesar da garantia ter sido prestada para dar cumprimento a uma ordem judicial, não se pode ignorar o contexto em que esta ordem foi determinada, pelo que a garantia prestada foi, em última análise, resultado da ação do próprio Requerente e, neste sentido, não pode aceitar-se como procedente a alegação do Requerente quanto à não incidência do IS devido. Na verdade, o resultado que conduziu à exigência da garantia em causa é imputável ao Requerente, sobre o qual recaía o dever de guardar os bens apreendidos que encerravam um direito de crédito.

 

  1. Quanto à informação emitida pela Requerida (Informação n.º 175-ISCPS1/2023 da Unidade dos Grandes Contribuintes, constante dos autos e que se dá por inteiramente reproduzida, onde se apreciou a liquidação do imposto do selo no montante de € 302.313,76, devido pela prestação de uma “caução económica”, no valor de € 50.385.627,34, fixada no Processo n.º 324/14.0TELSB), adere-se ao teor da mesma ressaltando a parte que a seguir se transcreve:

(…) «Todavia, nos casos em que a obrigação de garantia possui autonomia relativamente à obrigação subjacente, pressupõe o legislador que se trata de uma manifestação autónoma de capacidade contributiva e sujeita-a a imposto, mesmo nas situações em que o contrato subjacente esteja sujeito a Imposto do Selo. É o que acontece relativamente à “caução económica” em causa, determinada no âmbito do processo judicial n.º 324/14.0TELSB, que correu termos no Tribunal Central de Instrução Criminal – Juizo I, por se encontrarem verificados os requisitos para a manutenção de uma medida de garantia patrimonial que, o Tribunal entendeu ser suficientemente apta a impedir o desaparecimento da tutela judicial, não já sobre os títulos apreendidos, mas sobre o valor dos mesmos. De facto, o Tribunal determina a aplicação da referida caução, nos termos do artigo 227.º n.º 1 do Código de Processo Penal, norteado por fins garantísticos, tendo em conta a perda de garantia de valores que poderiam vir a ser declarados perdidos a favor do estado ou em benefício dos ofendidos dos crimes indiciados. E, com efeito, em cumprimento da referida sentença judicial, o Reclamante solicitou ao Banco D... para emitir garantia bancária a favor do Tribunal, tendo o Banco  D... procedido à respetiva emissão da garantia e liquidado o IS sobre a mesma, nos termos da verba 10.3 da TGIS. Parecendo-nos estarmos perante uma situação de garantia autónoma, através do qual o garante (in casu Banco D...) se obriga a pagar a um terceiro beneficiário certa quantia (Tribunal), verificado o incumprimento da sentença, sendo mandante ou ordenante o devedor desse contrato (ora Reclamante), independentemente das vicissitudes que este sofra.»

 

  1. Acompanhamos este entendimento, ressaltando que a garantia em apreciação deve qualificar-se como autónoma, dado que da factualidade provada resulta que a obrigação do garante e a obrigação principal são autónomas, visto a sorte daquela não estar dependente da sorte desta, e tanto assim é que o garante apenas pode opor ao beneficiário os meios de defesa diretamente derivados da própria relação de garantia e nunca os derivados da relação que lhe serviu de base. E, sendo assim está sujeita a IS. O facto da constituição da garantia ter sido ordenada judicialmente não pode alterar esta conclusão, face à norma de incidência tributária, da qual resulta que a constituição de garantias, qualquer que seja a sua natureza ou forma estão, genericamente, sujeitas a IS nos termos da verba 10 da TGIS, variando a taxa a aplicar em função do prazo, conjugada com o n.º 1 do artigo 1.º do CIS.

Por último, como bem alega a AT, «aumentar o valor da garantia (a par da constituição de uma garantia ou a prorrogação do prazo de uma garantia), preenche os pressupostos de incidência previstos na verba 10. da TGIS, articulada com o n.º 1 do artigo 1.º do CIS, conduzindo, por regra, a uma nova liquidação de imposto do selo que incidirá sobre o valor da garantia, total ou adicional respetivamente.»

 

  1. Face ao que vem exposto, na situação em apreço nos presentes autos, a garantia em causa está sujeita a imposto do selo, nos termos previstos na verba 10 da TGIS, pelo que, improcede o pedido do Requerente, porquanto o despacho de indeferimento da reclamação graciosa se encontra devidamente fundamentado e conforme à norma de incidência tributária. A verba 10 da TGIS, apresenta-se redigida de forma clara, objetiva, cabendo nela todas as garantias das obrigações, qualquer que seja a sua natureza ou forma, salvo quando materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na Tabela e sejam constituídas simultaneamente com a obrigação garantida.

 

§ 2º Quanto às alegadas inconstitucionalidades

 

  1. Alega, ainda, o Requerente que outro entendimento diferente do que preconiza quanto à não sujeição a IS de garantia imposta por lei ou por decisão judicial resulta em violação dos princípios constitucionais da legalidade fiscal, igualdade e capacidade contributiva.

Também quanto a esta alegação não se vê que assista razão ao Requerente.

Por um lado, como já se disse, o legislador não estabelece quaisquer limitações, nem faz depender a tributação das motivações que lhe estão na origem, ou da natureza voluntária ou coativa da mesma, pelo que não se alcança a alegada violação dos referidos princípios nem se encontra fundamento legal para excluir as garantias judiciais, prestadas nas circunstâncias já supramencionadas, mormente, quando impostas para reforço ou substituição de garantia pré-existente.

Na verdade, o Tribunal Arbitral, resolvida a questão em sede infraconstitucional, não necessitaria de mais para fundamentar a sua decisão. Porém, alegadas as referidas inconstitucionalidades, não pode deixar de tomar posição, podendo fazê-lo por remissão para o douto acórdão do Tribunal Constitucional a seguir citado, e ao qual se adere na íntegra, o qual tratou já das questões agora suscitadas relacionadas com a verba 10 da TGIS.

Assim, quanto a esta questão aderimos, sem necessidade de maiores explanações, à Jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 475/2020 (Processo n.º 278/18), o qual se debruçou sobre situação similar à dos presentes autos, e que decidiu «não julgar inconstitucional a Verba n.º 10 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), anexa ao Código do Imposto do Selo (CIS), aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto), quando interpretada no sentido de se aplicar às garantias das obrigações materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na mesma Tabela, que, embora constituídas em momento posterior, se destinam a substituir as garantias constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, entretanto perecidas; e, consequentemente, negar provimento ao recurso.»

 

  1. Neste acórdão, ao qual se adere e dá por integralmente reproduzido, o TC declarou expressamente que:

«Este Tribunal tem, com efeito, constantemente entendido que a garantia de tipicidade que emana do princípio da legalidade fiscal é compatível com o recurso, pelo legislador, ao uso de conceitos indeterminados, de técnicas de tipificação, ou à configuração de tipos abertos, sobretudo quando motivados por razões de igualdade e praticabilidade, «desde que os dados legais contenham uma densificação tal que possam ser tidos pelos destinatários da norma como elementos suficientes para determinar os pressupostos de actuação da Administração e que simultaneamente habilitem os tribunais a proceder ao controlo da adequação e proporcionalidade da actividade administrativa assim desenvolvida.» (v. o Acórdão n.º 233/1994 e, entre muitos outros, os Acórdãos n.º 756/95, 127/2004, 252/2005, 500/2009, 753/2014 ou 211/2017).

À luz deste entendimento, é de reconhecer que os termos amplos em que se encontra redigida a Verba n.º 10 da TGIS lhe conferem, é bom de ver, uma plasticidade que de outro modo não teria e que viabiliza uma aplicação coerente e eficiente da norma, tanto às operações mais simples, como a operações mais complexas ou dotadas de maior grau de sofisticação.

O caso dos autos é, neste aspeto, bem ilustrativo: estava em causa a substituição de penhores financeiros sobre unidades de participação de um fundo imobiliário que, à data de celebração do contrato de financiamento especialmente tributado na TGIS, já se antecipava que seria extinto no prazo de cerca de três anos. Foram essas as garantias que pereceram e que houve que substituir, através da constituição de hipotecas voluntárias sobre os três prédios de que o fundo a dissolver era proprietário, por um prazo que justificou a aplicação da taxa mais elevada de 0,6% (prevista na Verba n.º 10.3).

A abertura do tipo configurado pela Verba n.º 10 permite, em casos como o dos autos, que o imposto do selo possa incidir sobre operações diversificadas, e previsivelmente mais complexas num setor em constante evolução, sem que deixe de deter o nível de desenvolvimento ou densificação bastante, para permitir antecipar a sua aplicação, tanto às garantias constituídas ex novo, como, por exemplo, às garantias constituídas por exigência do credor para reforçar as previamente prestadas (e eventualmente tributadas) ou para as substituir por outras de diferente natureza (independentemente do que motiva a substituição), ou ainda às garantias que forem constituídas em resultado de novação da obrigação garantida.

 Por fim, refira-se brevemente que os termos em que se encontra delimitada a incidência do imposto, no que respeita aos pressupostos da exclusão das garantias materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na Tabela, também não infirmam esta observação. Dada por demonstrada in casu a acessoriedade material da garantia objeto de tributação – requisito cuja interpretação, na prática, se tem revelado mais problemática (v., v.g., o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23 de Abril de 2020, Proc. n.º 1649/10.9BELRS, disponível em http://www.dgsi.pt) – não suscita especiais dificuldades a identificação dos contratos especialmente tributados na Tabela nem a definição do que deve entender-se, para este efeito, por simultaneidade, mantendo-se na prática constante o entendimento de que este requisito se encontra preenchido quando forem coincidentes as datas de celebração do contrato principal e do contrato de prestação de garantia ( a este respeito,  v., v.g., o Ofício Circulado n.º 40091, de 17 de setembro de 2007, da DSIMT, disponívelem  https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/legislacao/instrucoes_administrativas/Documents/Of-Circulado_40091-2007.pdf).

Em face do exposto, não se mostra possível concluir que a norma que constitui objeto do presente recurso – segundo a qual, recorde-se, a Verba n.º 10 da TGIS abrange as garantias materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na mesma Tabela que, embora constituídas em momento posterior, se destinam a substituir as garantias constituídas simultaneamente com a obrigação garantida, entretanto perecidas – é o fruto imprevisível da interpretação de um tipo configurado pelo legislador em termos que não garantem o grau de calculabilidade e determinabilidade que o princípio da tipicidade fiscal impõe. Não procede, portanto, a violação do princípio da tipicidade invocada pela recorrente. (…)»

 

  1. Ainda no mesmo Acórdão o TC discorre sobre as obrigações excluídas da incidência na norma contida na verba 10 da TGIS, afirmando o seguinte:

 «Resta agora saber se a norma, na medida em que exige que as obrigações excluídas da incidência da Verba n.º 10 da TGIS sejam constituídas na mesma data que os contratos especialmente tributados na Tabela, ofende o princípio da igualdade quando em causa está a substituição de garantias entretanto perecidas.

Pressupondo que se mantém a acessoriedade material entre as garantias e os contratos especialmente tributados na Tabela, a recorrente estabelece uma comparação entre os sujeitos passivos ao qual é exigido imposto por garantias constituídas em momento posterior, para substituição de garantias anteriormente prestadas e perecidas («grupo alvo»); e os sujeitos passivos que constituem apenas na mesma data em que são celebrados os «contratos especialmente tributados na tabela» (par comparativo). E defende que, uma vez que «o financiamento (anteriormente tributado) é o mesmo, as obrigações garantidas são as mesmas», não há razão para conferir um tratamento diferenciado a estas categorias de sujeitos, ou seja, para não excluir as garantias prestadas em ambos os casos do âmbito de incidência da Verba n.º 10 da TGIS.

Esta conclusão pressupõe, claro está, que a manifestação de capacidade contributiva que o legislador visou atingir através da Verba n.º 10 da TGIS – e que deve ser erigida como termo de comparação do juízo de igualdade a fazer – se funde na obrigação garantida e se esgota no momento em que essa obrigação é constituída. Desta perspetiva, as garantias propriamente ditas só relevariam quando exprimissem, ex novo, a capacidade económica que é associada à constituição de obrigações garantidas (referindo-se, nesta hipótese, a uma capacidade contributiva virtual emergente do «“súbito enriquecimento aparente” resultante de uma disponibilidade monetária instantânea», v. Lobo, Carlos Baptista, “As operações financeiras no Imposto do Selo: enquadramento constitucional e fiscal”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, n.º 1 (Abril de 2008), p. 86).

Assim, a substituição de uma garantia por outra, quando materialmente acessória de um contrato que já foi especialmente tributado ao abrigo da TGIS e que permanece inalterado, não exprimiria uma renovada capacidade contributiva (antes atestaria que esta se mantém). A esta luz, seria ainda irrelevante que a garantia constituída em substituição da anteriormente prestada (e perecida) fosse de natureza distinta da primeiramente constituída, de valor superior ou inferior, ou que fosse constituída por prazo mais dilatado ou até sem prazo: desde que se destinasse a garantir a mesma obrigação anteriormente tributada e que esta se mantivesse inalterada, continuaria a ser expressão de uma capacidade contributiva já anteriormente atingida.» (…)

 

  1. E conclui ainda o Tribunal Constitucional que: «Em abstrato, não se afigura, todavia, possível interpretar a Verba n.º 10 da TGIS, em articulação com as pertinentes normas do CIS, de modo a afirmar, com a segurança com que o afirma a recorrente, que a manifestação de capacidade contributiva visada pelo legislador se esgota na obrigação garantida e não se se materializa (também) na garantia, propriamente dita e autonomamente considerada. Relembre-se que, à luz do princípio da capacidade contributiva, o termo de comparação a mobilizar para o juízo de igualdade há-de extrair-se da concretização legislativa da capacidade contributiva que com cada tributo se visa atingir, conquanto se reconheça à(s) norma(s) interposta(s) a necessária conformidade com o mesmo princípio (v. Casalta Nabais, José, O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, (3.ª Reimpr.), Almedina, Coimbra, 2012, p.444).

Esta é uma tarefa que pode revelar-se especialmente exigente quando a norma interposta é um regime como o do imposto do selo, que, não obstante a reforma iniciada em 1999, continua a dirigir-se a manifestações de capacidade contributiva não atingidas por outros impostos, tal como essas se encontram identificadas numa Tabela, por referência aos atos, contratos, factos ou situações jurídicas em que se materializam – o que confere a este tributo o alcance marcadamente «intersticial» que o caracteriza (o epíteto é de Carlos Baptista Lobo, loc. cit., p. 85).

Realmente, como expressivamente relembra Bruno Santiago, «não obstante esta tendência de desmaterialização e de procurar tributar a manifestação económica subjacente a uma determinada operação (no caso a constituição de garantias), não podemos encará-la de forma ilimitada pois importa não esquecer que, de acordo com a norma de incidência objectiva – o artigo 1.º do CIS – o imposto do selo continua a ser um imposto sobre actos, contratos, documentos, títulos e papéis. Não há nem como nem porque fugir a este facto que faz parte das características imanentes deste imposto desde os seus primórdios.» (v. Santiago, Bruno, op. cit., p. 120).

Ora, ao incluir na TGIS as «garantias das obrigações», não parece que o legislador tenha pretendido atingir apenas a manifestação de capacidade contributiva «revelada» pela constituição, no momento em que esta ocorre, de obrigações garantidas que não sejam especialmente tributadas ao abrigo da mesma Tabela. Pelo contrário, o legislador, sem ignorar a dinâmica das operações financeiras, parece ter pretendido atingir, como novas manifestações de capacidade contributiva, vários factos instantâneos, ocorridos em momentos diferentes e materializados em diferentes atos ou instrumentos, ainda que materialmente relacionados com a mesma obrigação garantida. Assim, por exemplo, não se coibiu de fazer incidir o imposto do selo sobre as mesmas obrigações garantidas em vários cenários hipotéticos, tais como: a prorrogação do prazo dos contratos visados pela Verba n.º 17.1; a prorrogação do prazo dos contratos abrangidos pela Verba n.º 10 (que é sempre considerada uma «nova operação»); ou ainda na hipótese de serem constituídas garantias materialmente acessórias de contratos especialmente tributados na tabela, em momento posterior ao da celebração destes (ainda que por razões totalmente alheias ao devedor).

É certo que, como se referiu supra, a configuração da Verba n.º 10 de algum modo acompanhou a reconfiguração do modelo de tributação do crédito iniciada em 1999 (em especial no que respeita aos prazos). Também não se ignora que a quantificação do facto tributário, para efeitos de liquidação e cobrança do imposto do selo sobre garantias, é feita por referência ao valor das obrigações garantidas (v., a este respeito, Laires, Jorge Belchior/Martins, Rui Pedro, op. cit., pp. 120-123), o que se justifica por razões de uniformidade, certeza e praticabilidade na aplicação concreta do tributo.

Daí não pode deduzir-se, porém, que a medida da igualdade a eleger neste âmbito seja dada apenas pelas obrigações garantidas, para assim concluir que, desde que estas se mantenham inalteradas – desde que o financiamento garantido seja o mesmo, nas palavras da recorrente – não pode ser exigido imposto do selo sobre quaisquer outras operações relacionadas com as garantias de tais obrigações.

Pelo contrário, é plausível e coerente com o regime do imposto do selo, que a constituição de garantias, em momento posterior ao da celebração do contrato especialmente tributado na tabela, seja considerada com uma nova manifestação de capacidade contributiva à luz da Verba n.º 10 da TGIS e do artigo 1.º, n.º 1, do CIS, revelada pelo obrigado à constituição da garantia sobre o qual deve recair o respetivo encargo (cf. a alínea e) do n.º 3 do artigo 3.º do CIS) – do mesmo modo que a constituição de uma nova garantia, que se destine a substituir outra anteriormente prestada e tributada ao abrigo da Verba n.º 10 da TGIS, pode em abstrato ser objeto de tributação, mesmo que se reporte à mesma obrigação garantida e esta se mantenha inalterada.

À luz deste critério, não se vê, por último, razão para distinguir a constituição de garantias, da substituição de garantias perecidas, quando o perecimento resulta do decurso de um prazo determinado e previsível e a substituição importa a constituição de garantias de diferente natureza por um prazo mais dilatado, como sucedeu no caso dos autos.

(…) Mas mesmo admitindo que foi intenção do legislador, através da Verba n.º 10 da TGIS, atingir a capacidade económica materializada nas obrigações garantidas e não nas garantias, em si mesmas consideradas, sempre haverá que reconhecer que o requisito da simultaneidade criticado pela recorrente responde a «exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal» (cf. o Acórdão n.º 142/2004).

Como supra se referiu já, à imposição deste requisito – tal como, v.g., às normas que equiparam a prorrogação do prazo das garantias a novas operações – subjaz o propósito de prevenir a adoção de comportamentos evasivos ou abusivos, no que parece ser o reverso da almejada suavização do formalismo característico do imposto do selo, através da atenção à substância das operações económicas tributadas.

A redação da Verba n.º 10 é reveladora dessa mesma preocupação: a possibilidade de considerar materialmente conexos atos que constam de instrumentos ou títulos distintos foi acompanhada da introdução dos requisitos da acessoriedade material e da simultaneidade. A superação da acessoriedade formal induziu, pois, a salvaguardar «com um escopo claramente anti-abusivo a necessidade da garantia ser constituída simultaneamente – i.e., na mesma data – uma vez que na maioria dos casos em que as garantias são acessórias o credor exige a sua constituição no mesmo dia da obrigação garantida.» (v. Bruno Santiago, loc. cit., p. 135).  

(…) Assim, por um lado, a realização das duas operações na mesma data fornece um indício seguro e facilmente apreensível da acessoriedade material, sem a qual não haveria razão para excluir as garantias do âmbito da incidência da Verba n.º 10 e não as tributar, nos termos gerais. Sendo de fácil verificação e demonstração, o requisito da simultaneidade torna assim mais simples e eficiente a aplicação das regras do imposto.  Por outro lado, contribui para prevenir a adoção de comportamentos eventualmente abusivos, na medida em que obsta a que sejam realizadas, em momento posterior, operações que eventualmente ocultem uma alteração de facto relevante, não (apenas) no plano das garantias, mas (também) das obrigações garantidas.  

Ora, tal como este Tribunal tem constantemente entendido e tal como se reafirmou no Acórdão n.º 105/2019: «De forma reiterada e uniforme, vem este Tribunal considerando que o legislador fiscal se encontra jurídico-constitucionalmente vinculado pelo princípio da capacidade contributiva, decorrente do princípio da igualdade tributária consagrado no artigo 13.º e nos artigos 103.º e 104.º da CRP, cujo sentido é o de exigir que os factos tributáveis considerados sejam reveladores de capacidade contributiva do sujeito passivo e que as diferenciações que venham a resultar da lei se baseiem na capacidade contributiva dos respetivos destinatários (Acórdãos n.os 57/95, 497/97, 348/97, 84/2013, 142/2004, 306/2010, 695/2014, 42/2014, 590/2015, 620/2015 e 275/16).

Todavia, tem este Tribunal igualmente salientado que «o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal. (…)

Neste caso, ainda que se admitisse que a norma que constitui o objeto do presente recurso estabelece uma diferenciação entre os sujeitos passivos que só constituem garantias em simultâneo com os «contratos especialmente tributados na tabela» e os sujeitos passivos ao qual é exigido imposto por garantias constituídas em momento posterior, ainda que materialmente acessórias do mesmo tipo de contratos, não poderia em face do exposto considerar-se privada de fundamento a diferenciação estabelecida.

As razões que levaram o legislador a exigir que a constituição de garantias ocorra na mesma data da celebração dos contratos especialmente tributados na TGIS, para efeitos de não sujeição à Verba n.º 10, são fundamentadas e plenamente apreensíveis, pelo que não é possível afirmar que resulta afrontado o princípio da capacidade contributiva.»

 

  1. Posto isto, sufragando-se na íntegra a jurisprudência do TC que vem exposta, improcedem as alegadas inconstitucionalidades.

 

§ 3º Do direito a juros indemnizatórios:

 

  1. Improcede o pedido de juros formulado em razão da improcedência do pedido principal. Dependendo o reembolso e juros indemnizatórios da existência de um pagamento indevido (como se infere do artigo 43.º, n.º 1, da LGT), a improcedência do pedido principal relativo à anulação da liquidação implica a improcedência dos pedidos consequentes.

 

 

VI - Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira dos pedidos;
  3. Condenar o Requerente no pagamento das custas processuais.

 

VII.  VALOR DO PROCESSO

Fixa-se ao processo o valor global de 302.313,76 €, de harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. CUSTAS

Fixa-se custas no montante de €5.508,00, em conformidade com a Tabela I, anexa ao RCPAT, e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, artigos 4.º, n.º 5, do RCPAT, e artigos 527.º e 536.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

  • Notifique-se.

Lisboa, 12 de junho de 2024

O Presidente do Tribunal Arbitral,

 

José Poças Falcão

A Árbitra Vogal e Relatora,

 

Maria do Rosário dos Anjos

 

O Árbitro Vogal,

 

                                                                

Nuno Pombo