Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 707/2023-T
Data da decisão: 2024-06-12  IRS  
Valor do pedido: € 2.301,30
Tema: IRS – Residente Não Habitual – Artigos 16.º, n.º 8, 9 e 10 do CIRS
Versão em PDF

Sumário:

 

A aplicação do regime dos residentes não habituais assenta, nos termos do disposto no artigo 16.º do Código do IRS, na verificação de dois requisitos:

  1. o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português, e
  2. não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores.

 

A falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina a exclusão do regime correspondente.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A árbitra, Alexandra Gonçalves Marques, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral, em formação singular, constituído em 14 de Dezembro de 2023, decide o seguinte:

 

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A..., NIF ... e B..., NIF..., com morada na Rua ... n.º ..., na ..., apresentaram, em 6 de Outubro de 2023, pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, ambos do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), com pedido a pronúncia arbitral (PPA), nos termos que constam da petição inicial (PI) apresentada, em que é demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na qual pedem a anulação integral  do acto tributário de liquidação de IRS n.º 2023 ..., referente ao IRS do ano de 2021, com um valor global a pagar de 2.301,30 (dois mil, trezentos e um euros e trinta cêntimos).
  2. A Requerida é a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
  3. No pedido de pronúncia arbitral, os Requerentes optaram por não designar árbitro.
  4. Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitra singular a ora signatária, que aceitou o cargo no prazo legalmente estipulado e de cuja designação, as partes não apresentaram recusa.
  5. O tribunal arbitral singular ficou constituído em 14 de Dezembro de 2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos termos do artigo 11.º, n.º 1 alínea c) e n.º 8 do RJAT.
  6. A Requerida apresentou a sua resposta no dia 1 de Fevereiro de 2024, na qual pugna pela improcedência do pedido, com defesa por excepção e impugnação.
  7. Os Requerentes responderam por escrito às excepções invocadas pela Requerida.
  8. Não tendo havido oposição das partes, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º, n.º 1 do RJAT.
  9. A Requerente apresentou alegações em 13 de Março de 2024 e a Requerida apresentou alegações em 9 de Abril de 2024.
  10. Nos termos do artigo 18.º, n.º 2 do RJAT, foi indicada como data para a prolação da decisão final o termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1 do mesmo diploma.

 

O processo não enferma de nulidades, as partes têm legitimidade, personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas.

 

II – MATÉRIA DE FACTO

 

Factos provados

 

  1. Com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos:
  1. Entre Novembro de 2006 e Setembro de 2018, os Requerente residiram na Alemanha. (cf. artigo 1.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documentos 1 e 2 juntos ao PPA).
  2. A Requerente A... encontra-se registada, no cadastro da AT, como residente em Portugal – Anos 2018, 2019, 2020.

(cf. Processo Administrativo junto aos autos).

  1. A Requerente A... não era residente fiscal em Portugal, pelo menos, nos cinco anos anteriores a tornar-se residente fiscal, em Portugal, em 2018 (i.e. entre 2017 e 2013).

(cf. Processo Administrativo junto aos autos).

  1. O Requerente B... encontra-se registado, no cadastro da AT, como residente em Portugal – Anos 2019 e 2020.

(cf. Processo Administrativo junto aos autos).

  1. O Requerente B... não era residente fiscal em Portugal, pelo menos, nos cinco anos anteriores a tornar-se residente fiscal, em Portugal, em 2019 (i.e. entre 2018 e 2014).

(cf. Processo Administrativo junto aos autos).

  1. Em 2021, os Requerentes eram residentes fiscais em Portugal.

(cf. Processo Administrativo junto aos autos).

  1. Em 2021, os Requerentes solicitaram a sua inscrição como residentes não habituais, com início em 2021.

(cf. artigo 5.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 5 junto ao PPA).

  1. Os Requerentes – no âmbito da audição prévia – solicitaram que o regime dos residentes não habituais fosse aplicável ao ano de 2019 porque deixaram de ser residentes na Alemanha em 2018.

(cf. artigo 6.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 6 junto ao PPA).

  1. A Direção de Serviços de Contribuintes indeferiu o pedido de inscrição como residente não habitual, com efeitos ao ano de 2019, porquanto:

«…com vista a poder beneficiar do estatuto de residente não habitual, os contribuintes devem solicitar a aplicação deste regime até 31 de março do ano seguinte àquele para o qual pretendem o seu início, de acordo com o previsto no nº 8 do artigo 16º do Código do IRS. Contudo, tendo efectuado em 2021-06-28 o pedido de inscrição como residente não habitual, deverá o mesmo ser liminarmente indeferido por extemporaneidade, para o ano de 2019 como para o ano de 2020, nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 109º do Código do Procedimento Administrativo».

«apesar de ter começado a residir em Portugal no ano de 2019, de acordo com as suas declarações, não procedeu no entanto ao pedido de inscrição de Residente N/Habitual, dentro do prazo estabelecido por lei, tendo efectuado um pedido para o ano de 2021, que face ao declarado, também não pode ser viabilizado (alínea b) do nº 1 da Circular 9/2012)».

(cf. artigo 7.º e 9.º da PI não impugnado pela Requerida e documentos 8 e 9 juntos com ao PPA)

  1. A Direção de Serviços de Contribuintes indeferiu o pedido de inscrição como residente não habitual, com efeitos ao ano de 2021, porquanto:

verificou-se que a requerente consta do cadastro como residente em Portugal nos anos de 2018, 2019 e 2020, não cumprindo o requisito estipulado na alínea b) do nº1 da Circular 9/2012 de 3 de agosto, pelo que em cumprimento do nº 3 dessa Circular, deveria a mesma comprovar esse facto através de documentos válidos para o efeito, emitidos pelas autoridades fiscais do país respectivo…».

(cf. artigo 7.º e 8.º da PI não impugnado pela Requerida e documentos 7 e 9 juntos com ao PPA)

  1. A AT concluiu que a Requerente:

«apesar de ter começado a residir em Portugal no ano de 2019, de acordo com as suas declarações, não procedeu no entanto ao pedido de inscrição de Residente N/Habitual, dentro do prazo estabelecido por lei, tendo efectuado um pedido para o ano de 2021, que face ao declarado, também não pode ser viabilizado (alínea b) do nº1 da Circular 9/2012)»

(cf. artigo 10.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 9 junto ao PPA)

  1. Os Requerentes procederam à entrega da declaração Modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2021, como residentes fiscais em Portugal.

(cf. artigo 10 da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento n.º 10 junto ao PPA).

  1. Os Requerentes foram, subsequentemente, notificados, de que a declaração apresentava o seguinte erro: “L55 – NIF titular não é residente não habitual”.

(cf. artigo 11 da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento n.º 11 junto ao PPA).

  1. O que motivou a entrega de uma declaração de substituição da declaração de IRS, a qual não compreendeu o Anexo L (residente não habitual).
  2. Os Requerentes foram notificados da liquidação de IRS, da qual resultou o montante de € 5.318,72 de imposto a pagar.

(cf. artigo 14.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 13 junto ao PPA).

  1. Os Requerentes procederam ao pagamento do imposto relativo à precedente liquidação de IRS.

(cf. artigo 14.º da petição inicial não impugnado pela Requerida).

  1. A mencionada declaração foi, posteriormente, selecionada para análise, por “necessidade de comprovar o grau de deficiência” do requerente B...

(cf. artigo 15.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 14 junto ao PPA).

  1. Os Requerentes procederam à entrega de uma terceira declaração Modelo 3 de IRS, em substituição da anterior, a qual não compreendeu o Anexo L (residente não habitual), corrigindo o grau de deficiência dos Requerentes.

(cf. artigo 16.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento 15 junto ao PPA).

  1. A AT procedeu à liquidação de IRS, mediante a liquidação de IRS n.º 2023..., respeitante ao ano de 2021, na qual foi apurado o montante a pagar de € 2.301,30, o qual se encontra pago.

(cf. artigo 17.º da petição inicial não impugnado pela Requerida e documento junto ao PPA).

  1. Os Requerentes apresentaram pedido de constituição do tribunal arbitral em 6 de Outubro de 2023.

 

Factos não provados

 

O tribunal considera não existirem factos tidos como não provados relevantes para a decisão.

 

Fundamentação da decisão quanto à matéria de facto

 

Os factos pertinentes para a decisão da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em fase das várias soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Os factos provados resultam da convicção formada pela análise da documentação junta aos autos com os articulados, do processo administrativo junto pela AT, e da posição assumida pelas partes.

 

Posição das partes

 

Os Requerentes alegam, em síntese, que:

  1. Reúnem os requisitos legais, previstos no artigo 16.º do Código do IRS, para serem considerados residentes não habituais, apesar de não estarem registados na base de dados da AT, como residente não habitual, porquanto não foram residentes nos cinco anos anteriores a 2019, ano em que passaram a residir em Portugal.
  2. No entanto, a falta de registo formal como residente não habitual na base de dados da AT, não obsta ao direito de ser tributado como residente não habitual nos termos do artigo 16.º, n.º 11 do Código de IRS,
  3. Em abono da sua tese invocam as decisões arbitrais proferidas nos Processos 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T, 550/2022-T, 705/2022-T, 680/2022-T.
  4. Concluem pela ilegalidade da liquidação impugnada.

 

Por seu turno, a Requerida entende:

  1. Existir incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal arbitral para apreciação do pedido de aplicação aos Requerentes do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais, porquanto entende que, subjacente ao pedido de pronuncia arbitral (anulação da liquidação de IRS do ano de 2021), está em causa o “pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual”, questão esta que está fora da esfera de competência do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT.  Em abono da sua tese invoca, a decisão arbitral proferida no processo 796/2022-T, a qual segue o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, proferido no Processo n.º 723/2016, de 2017/11/15
  2. Existir erro na forma do processo, por ser o acto impugnado insuscetível de impugnação, com fundamento no estatuto de RNH, por assentar num procedimento prévio e independente da liquidação em causa, conforme reconhecido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017.
  3. Invoca ainda que a inscrição como RNH foi extemporânea e que a essa mesma inscrição constitui um requisito prévio necessário à concessão do estatuto/benefício de RNH, o qual não foi atempadamente requerido pelos Requerentes, pelo que não se verifica a ilegalidade da liquidação contestada.
  4. Vem, por fim, a AT alegar a “inconstitucionalidade da interpretação invocada sobre o efeito meramente declarativo da inscrição prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, por violação dos artigos 3.º, n.º 3, 103.º, n.º 2 e 267.º, n.º 2 e 2.º da Constituição da República Portuguesa”.

 

III – DO DIREITO

 

  1. Da exceção de incompetência em razão da matéria

 

  1. A Requerida começa por invocar a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal arbitral para a apreciação do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual.

 

  1. Conforme resulta dos autos, os Requerentes deixaram claro que “A eventual ilegalidade das decisões de indeferimento dos pedidos apresentados pelos requerentes para serem registados como residentes não habituais é matéria que não cabe no âmbito do presente pedido de anulação do ato tributário de liquidação de IRS, que ora se impugna.” (cf. ponto 20 do PPA), mas sim a liquidação de IRS, referente ao ano de 2021, no valor de € 2.301,30.

 

  1. Sobre a questão da competência, em casos semelhantes ao dos autos, existe jurisprudência anterior, em sucessivas decisões do CAAD, que se pronuncia no sentido sustentado pelos Requerentes (cf. decisões do CAAD n.ºs 891/2023, 544/2023, 487/2023-T, 705/2022, 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T), nas quais se decidiu que o tribunal arbitral é competente para se pronunciar sobre os actos de liquidação de IRS, quando é suscitada a aplicação do regime dos residentes não habituais.

 

  1. Acompanhamos nesta matéria a jurisprudência firmada naquelas decisões, em que já se analisou a argumentação que sustenta a posição da Requerida também neste processo.

 

  1. Em sintonia com a decisão proferida no Processo n.º 777/2020-T, salientamos que:

 

“Que o Requerente não se encontra registado como “residente não habitual” é um facto provado. E se foi legal ou ilegal o indeferimento do pedido do Requerente para ser registado como “residente não habitual” é matéria que não cabe analisar nesta instância.

 

Assim, o que interessa aferir nos presentes autos é apenas se o registo como “residente não habitual”, previsto no n.º 8 (à data dos factos) do artigo 16.º constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respectivo”.

 

  1. Como já acentuado, o pedido formulado, pelos Requerentes versa sobre a liquidação de IRS do ano de 2021 e não sobre o acto de indeferimento do pedido de inscrição como Residente Não Habitual, ainda que haja referência a esse acto.

 

  1. Tendo em consideração o pedido, tal como o mesmo é formulado pelos Requerentes, declaração de ilegalidade da liquidação de IRS, referente ao ano de 2021, o mesmo cabe na competência dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, enquanto acto que comporta a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de tributos, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

Improcede, assim, a excepção de incompetência material suscitada pela Requerida.

 

 

  1. Da (In)impugnabilidade do acto (tributário) de liquidação

 

  1. A Requerida invoca existir erro na forma do processo, por ser o acto impugnado insuscetível de impugnação com fundamento no estatuto de RNH, por assentar num procedimento prévio e independente da liquidação em causa, conforme reconhecido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017.

 

  1. Conforme já mencionado acima, o pedido formulado nos presentes autos visa a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS referente ao ano de 2021, no valor de € 2.301,30.

 

  1. Nos presentes autos não se discute a ilegalidade do reconhecimento prévio do estatuto de residente não habitual. Discute-se, sim, se os Requerentes adquiriram o direito a ser tributados como residentes não habituais. 

 

  1. Em abono da sua tese, invoca a AT o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017. Quanto a este aresto, cumpre assinalar que estava em causa uma liquidação de IRS referente ao ano de 2010, cujo cenário normativo não coincide com o que que está aqui em consideração. Com efeito, neste aresto estava em causa a redação originária introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23/09, que dispunha o seguinte: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Foi face a esta disposição que o Tribunal Constitucional fez operar a qualificação do acto de deferimento/indeferimento do estatuto de “Residente Não Habitual” como um acto tributário autónomo. Não sendo o cenário normativo coincidente com aquele que está em causa nestes autos, o mesmo não tem aplicação ao caso em apreço.

 

  1. Conforme já mencionado acima, o pedido formulado nos presentes autos visa a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS referente ao ano de 2021, no valor de € 2.301,30, a qual é sindicável judicialmente e perante os tribunais arbitrais, em matéria tributável, por via do presente pedido de pronúncia arbitral, que visa a apreciação da legalidade daquele acto tributário.

 

Improcede, assim, a excepção de erro na forma do processo.

 

  1. Da (i)legalidade da liquidação de IRS impugnada

 

  1. Nos presentes autos está em causa a aplicação aos Requerentes do regime fiscal dos residentes não habituais, no ano de 2021.

 

  1. A questão que constitui o thema decidendo do presente pedido de pronúncia arbitral tem sido amplamente tratada na jurisprudência do CAAD – (a título meramente exemplificativo, as decisões proferidas nos processos 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T, 550/2022-T, 705/2022-T, 680/2022-T, 487/2023 e, mais recentemente, ainda o processo 981/2023-T).

 

  1. O entendimento dos Requerentes funda-se nessa mesma jurisprudência.

 

  1. De acordo com a redação que resultou das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, o artigo 16.º, nºs 8 a 11 do CIRS dispõe o seguinte:

 

“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 – O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em cada momento desse ano.”

 

  1. Em sintonia com a decisão proferida no âmbito do processo 487/2023 que, por um lado, sustenta a posição dos Requerentes e, por outro, analisa o essencial da argumentação que sustenta a posição da AT, salientamos os passos seguintes, cuja argumentação subscrevemos:

“Centrando agora a apreciação na matéria de fundo da alegada ilegalidade das liquidações de IRS em causa, o ponto fáctico-jurídico estruturante da pretensão deduzida nos autos prende-se com a aplicação ao Requerente, nos anos de 2019, 2020 e 2021, do regime dos residentes não habituais.

Surge aqui, como questão a resolver, a de saber se a inscrição no registo da condição de RNH possui, não uma natureza meramente declarativa, mas eficácia constitutiva, no sentido de que se trata, com essa inscrição cadastral, de um pressuposto específico sem o qual não é possível beneficiar das reduções ou isenções fiscais que são conferidas ao contribuinte em razão dessa condição de RNH.

Há, sobre esta questão, abundante jurisprudência que se seguirá de perto.

Temos presente, em particular, as decisões do CAAD proferidas nos processos n.os 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T, 705/2022-T, e 57/2023-T.

Assim, passamos a apreciar.

O regime do RNH foi inicialmente previsto no artigo 23.º do Código Fiscal do Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, tendo criado o regime fiscal para o RNH em sede de IRS, tendo em vista atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado ou da propriedade intelectual, industrial ou know-how, bem como beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro.

O regime jurídico do RNH é enformado por uma política fiscal de atração de investimento estrangeiro no âmbito da realidade económico-financeira que resulta da crise (financeira) que limitou o crescimento económico em Portugal no início do século XXI. Ou, dito de outro modo, pretende promover o crescimento económico através da formação de capital humano, da transferência de inovação tecnológica e know-how e, assim, o desenvolvimento das empresas no país recetor de residentes e da competitividade do tecido empresarial.

Esse regime exige, assim, o cumprimento dos seguintes requisitos: i) que o sujeito passivo se torne fiscalmente residente em território português, de acordo com qualquer um dos critérios estabelecidos nos números 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS, no ano relativamente ao qual se pretenda a tributação como residente não habitual; e ii) que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores (àquele ano em que se pretende a tributação como RNH).

O direito à tributação como RNH fica condicionado ao cumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS e, concomitantemente, “da inscrição como residente em território português”, e não da inscrição como RNH.

(...)

Constata-se assim que os critérios para ter o estatuto de RNH são definidos pelo n.º 8 do artigo 16.º CIRS, que estabelece um critério positivo e negativo.

  1. Critério positivo: tornarem-se fiscalmente residentes nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 16.º do Código do IRS (1.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS);
  2. Critério negativo: não terem sido residentes em território português nos cinco anos anteriores (2.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS).

Por seu turno, o n.º 10 do mesmo artigo, refere que o contribuinte “deve” solicitar a sua inscrição até ao dia 31 de Março do ano seguinte em que se torne residente fiscal em Portugal. Trata-se de estabelecer como limite o dia anterior ao prazo do início da entrega do Modelo 3 do IRS (1 de Abril), previsto no artigo 60.º do CIRS, com vista a facilitar a tarefa de organização administrativa do cadastro, mormente com a liquidação do IRS dos beneficiários de tal estatuto.

Deste modo, do confronto dos números 8 a 10 do artigo 16.º do CIRS, dúvidas não restam de que os requisitos estão unicamente previstos no respectivo n.º 8.

Concluindo-se assim que a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, antes da data-limite prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, tem natureza exclusivamente declarativa, e não tem efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.

(...)

Acresce que, pela entrega das respetivas declarações modelos 3 do IRS com o anexo L, e com o pedido de inscrição como residente não habitual, ainda que em data posterior, é inequívoco que pretende beneficiar de tal regime, dado que cumpre os respetivos requisitos de atribuição.

Acompanha-se a fundamentação da decisão arbitral do processo n.º 777/2020-T, no sentido de que vale “(…) a junção dos anexos L à declaração de rendimentos como pedido, dirigido à AT, para ser tributado pelo regime dos “residentes não habituais (…)”

E concorda-se igualmente com a mesma decisão arbitral na parte em que decidiu que:

“(…) o que interessa aferir nos presentes autos é apenas se o registo como “residente não habitual,” previsto no n.º 8 (à data dos factos) do art.º 16.º, constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respetivo.

Atente-se na redação do n.º 7 do art.º 16º: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”

O direito a ser tributado como residente não habitual depende, portanto, e como se vê, apenas de o sujeito passivo “ser considerado residente não habitual”.

Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo, pelo contrário, o n.º 6 é inequívoco ao estabelecer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem os dois requisitos, positivo e negativo, a que já nos referimos; não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.

Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual seja requisito substancial, ou constitutivo, de aplicação do regime.

Acompanha-se igualmente a fundamentação do processo nº 188/2020-T:

“Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual – até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.”

 Deste modo, é patente a diferença de redacção com a anterior versão do n.º 2 do artigo 23.º Código Fiscal do Investimento, como bem se observa na decisão do processo n.º 705/2022-T:

“Esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRS e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.”

(...)

Igualmente se conclui que, por seu turno, a inscrição no registo de residentes não habituais tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito de ser tributado nos termos do respectivo regime.

O pedido de inscrição como residente não habitual, estabelecido no n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT), que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do beneficio fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição, e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos.

Sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como RNH.

Assim, considerando que se trata de um dever acessório, ao respetivo incumprimento pode corresponder uma contraordenação tributária (cfr. art. 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), mas isso não interfere com o direito à redução ou isenção tributária adveniente do regime do RNH, que assenta estritamente na satisfação das condições materiais legalmente previstas, e não pressupõe, como requisito substancial adicional, a inscrição cadastral.

Conclui-se, pois, que a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação de dois requisitos – de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores –, mas não depende da correspondente inscrição no cadastro.

Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.

Destarte, pelo facto de não ter sido aplicado o regime dos residentes não habituais, os actos de liquidação em causa são ilegais por erro nos pressupostos de direito, o que implica a sua anulação, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo.

 

  1. Conclui-se, assim, na esteira da citada jurisprudência, que a inscrição no registo de residentes não habituais tem natureza declarativa, não tendo efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime e, como tal, a intempestividade do pedido de inscrição não afasta a sua aplicação.

 

  1. O pedido formulado nos autos versa sobre a impugnação do acto de liquidação de IRS do ano de 2021.

 

  1. Os Requerentes residiram na Alemanha entre os anos de 2006 a 2018.

 

  1. Não tendo sido residentes fiscais em Portugal nos cinco anos anteriores a 2019 (facto este que é aceite pela Requerida, mormente no artigo 47.º da Resposta), nem a 2018 (se tivermos em conta que, neste ano, a Requerente mulher consta já do cadastro da AT como residente em Portugal).

 

  1. Os Requerentes pretendem ser tributados de acordo com o regime dos residentes não habituais no ano de 2021.

 

  1. Não tendo sido aplicado este regime de tributação, o acto tributário de liquidação em causa é ilegal, por erro nos pressupostos de direito, o que acarreta a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo.

 

  1. Por último, na sua resposta, a Requerida, alega ainda que a interpretação do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS, segundo a qual a inscrição aí prevista tem “efeito meramente declarativo” é inconstitucional por violação “frontal aos princípios da Legalidade, do Sistema Fiscal e da Segurança Jurídica (cf. artigos 3.º, n.º 3, 103.º, n.º 2 e 267.º, n.º 2 e 2.º todos da CRP) – cfr. ponto 89.º e seguintes da Resposta apresentada.

 

  1. Da análise do que aí se expõe, porém, resulta que a Requerida explana uma argumentação que revela a sua discordância com a jurisprudência do CAAD anteriormente mencionada, segundo a qual a inscrição em causa tem efeito meramente declarativo, sem um confronto em sentido próprio entre o artigo 16.º, n.º 10 do CIRS e as referidas normas constitucionais. Por outras palavras, tais normas constitucionais são invocadas, mas não se apresentam razões que, efetivamente, as coloquem como parâmetros com demonstração do porquê da respetiva violação.

 

  1. Improcede, pois, por não demonstrada, a invocada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 16.º, n.º 10 do CIRS.

 

Decisão:

 

Temos em que se decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com a anulação do acto de liquidação de IRS, referente ao ano de 2021.

 

Valor do processo:

 

Nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do Código de Procedimento e Processo Tributário, conjugado com o artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 2.301,30.

 

Custas:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos que resultam da aplicação da tabela I, ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Junho de 2024

 

 

 

 

A Árbitra,

 

Alexandra Gonçalves Marques

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.