SUMÁRIO:
1. Não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade.
2. As facturas do fornecedor de combustíveis não permitem atestar que a Requerente suportou, efectivamente, o tributo contra o qual reage. E esta seria a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernando Araújo (Presidente), Elisabete Flora Louro Martins Cardoso e Hélder Faustino (relator), designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral Colectivo, constituído em 20 de Fevereiro de 2024, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
1. No dia 7 de Dezembro de 2023, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa apresentado em 11 de Maio de 2023, junto do Serviço de Finanças de Cascais – ..., o contribuinte A..., com sede na ..., ...-... Cascais, com número de pessoa colectiva de direito público n.º ... (“Requerente”), formulou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária – RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”), solicitando a revogação do acto de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) respeitante aos exercícios de 2019 a 2022 e pela respectiva ilegalidade das liquidações e pagamento da CSR repercutida subjacentes, com as devidas consequências legais, designadamente, o reembolso do imposto indevidamente pago por repercussão pela Requerente e de todos os impostos que foram suportados sobre esse valor de CSR indevidamente liquidado tais como o IVA e a tributação autónoma e, bem assim, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios previstos no artigo 43.º da LGT.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitros, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os presentes signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas das designações, não tendo manifestado vontade de recusar as mesmas, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Por requerimento de 10 de Janeiro de 2024, a Requerida solicitou a identificação do(s) acto(s) de liquidação cuja legalidade a Requerente pretende ver sindicada. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do tribunal a constituir.
2.4. Por requerimento de 18 de Janeiro de 2024, no exercício, por iniciativa própria, do direito ao contraditório, a Requerente apresentou resposta ao Requerimento da Requerida. Por Despacho, na mesma data, do Presidente do CAAD, ficou a matéria remetida para decisão do tribunal a constituir.
2.4.1. Entende a Requerente que, ao contrário do alegado, a Requerida está em condições para identificar os actos tributários subjacentes ao acto de indeferimento objecto do presente pedido arbitral e às facturas juntas aos autos.
2.4.2. Alega que foram facultadas à Requerida todas as facturas em que a CSR, mediatamente impugnada no pedido de pronúncia arbitral em causa, foi repercutida sobre a Requerente e que foram incluídas nas Declarações de Introdução no Consumo (“DIC”), nos respectivos anexos, com base nas quais se processa a liquidação e pagamento do imposto.
2.4.3. E que a Requerida dispõe de todas as facturas que identificam os litros em causa e encontra-se na posse de toda a informação relativa aos actos tributários emitidos na sequência das DICs que identificam cada factura junta ao processo. Portanto não subsiste qualquer incerteza sobre os actos tributários.
2.4.4. Alega que a lei não impõe que a CSR conste das facturas como um elemento separado ao contrário do que sucede no caso de outros impostos repercutidos (e.g. IVA), o que não significa que a CSR não esteja incluída no preço de venda dos combustíveis.
2.4.5. E que os actos em que se contém a repercussão da CSR sobre a Requerente encontram‑se devidamente identificados no pedido de pronúncia arbitral, recaindo sobre a Requerida o ónus de identificação das antecedentes liquidações de CSR praticadas pela própria Requerida e notificadas aos respectivos sujeitos passivos, tendo sido posteriormente objecto de repercussão, e às quais a Requerente não tem acesso.
2.4.6. Defende que compete à Requerida a identificação das liquidações subjacentes aos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do período compreendido entre Março de 2019 e 31 de Dezembro de 2022.
2.4.7. Pelo que não era exigível à Requerente que identificasse as liquidações que a Requerida emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa, nem essa identificação é necessária para apurar a ilegalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas em causa.
2.4.8. E que a exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas, não é compatível com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efetiva garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade concreta de a Requerente impugnar contenciosamente atos que lhe aplicam tributação ilegal e impõem um encargo reconhecidamente indevido.
2.4.9. Conclui que a repercussão da CSR, tal como do ISP, por parte dos sujeitos passivos que introduzem o combustível no consumo, decorre de uma imposição legal.
2.4.10. E que não subsiste qualquer dúvida sobre quem suporta o encargo do imposto que está incorporado em cada facturação de litro de combustível, informação na posse da Requerida.
2.5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 20 de Fevereiro de 2024.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
4. A Requerida apresentou resposta em 8 de Abril de 2024, defendendo-se por excepção(ões) e impugnação. Em relação às excepções, a Requerente apresentou em 29 de Abril de 2024, resposta escrita, em respeito do princípio do contraditório.
5. Tendo sido exercido o contraditório em matéria de excepção(ões), entendeu o Tribunal Arbitral que a prova testemunhal seria inteiramente dispensável, seja porque as questões que subsistem são essencialmente de direito; seja porque, nos termos do artigo 393.º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal teria necessariamente de cingir-se à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam. Neste sentido, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.
6. As Partes apresentaram alegações escritas, a Requerente em 6 de Maio de 2024 e a Requerida em 17 de Maio de 2024, reproduzindo, no essencial, as posições apresentadas nas suas peças anteriores.
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SANEAMENTO
7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
8. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão devidamente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
9. Em face das excepções invocadas (relativas à competência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, à ilegitimidade da Requerente, à ineptidão do pedido de pronúncia arbitral por falta de objecto e à caducidade do direito de açcão), impõe-se o conhecimento prioritário das mesmas (vd., ponto IV abaixo). Seguir-se-á – se a resposta àquelas o permitir – a análise do mérito do pedido.
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FUNDAMENTAÇÃO
III.1. MATÉRIA DE FACTO
10. Com relevância para a presente decisão, consideram-se assentes e provados os seguintes factos:
10.1. A Requerente, na sua qualidade de município, realiza múltiplas actividades nas áreas da intervenção municipal, actividades que compreendem a intervenção na área de promoção cultural, organização do património histórico, polícia municipal, serviço de proteção civil, gestão territorial, transportes, acompanhamento de processos de contratação pública.
10.2. Na realização das suas funções, a Requerente dispõe de uma vasta extensão de pessoal e de uma frota significativa de viaturas de transporte.
10.3 No exercício da sua actividade, a Requerente efectua aquisições de combustíveis, designadamente, gasóleo e gasolina.
10.4. A B..., S.A. é uma empresa que comercializa combustíveis (Documentos n.º 1 a n.º 48 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.5. No exercício de 2019, a Requerente adquiriu à B..., S.A., 262.414,20 litros de gasóleo e 91.615,40 litros de gasolina (Documentos n.º 1 a 12 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.6. No exercício de 2020, a Requerente adquiriu à B..., S.A., 184.143,08 litros de gasóleo e 81.971,05 litros de gasolina (Documentos n.º 13 a 24 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.7. No exercício de 2021, a Requerente adquiriu à B..., S.A., 205.685,77 litros de gasóleo e 121.408,45 litros de gasolina (Documentos n.º 25 a 36 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.8. No exercício de 2022, a Requerente adquiriu à B..., S.A., 216.499,33 litros de gasóleo e 118.220,33 litros de gasolina (Documentos n.º 37 a 48 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.9. Em 11 de Maio de 2023, a Requerente deduziu, junto do Serviço de Finanças de Cascais - ..., um pedido de revisão oficiosa com vista à anulação das liquidações de CSR e dos consequentes actos de repercussão consubstanciados nas facturas emitidas pela B..., S.A. referentes ao gasóleo e à gasolina à mesma adquiridos pela Requerente nos exercícios de 2019 a 2022 – pedido sobre o qual não recaiu, até ao momento, qualquer decisão (Documento n.º 49 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
10.10. Para tanto, a Requerente alegou que com a aquisição do referido combustível, em resultado da repercussão efectuada pela B..., S.A., suportou, a título de CSR, a quantia global de € 131.966,91 (Documentos n.º 1 a n.º 53 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
10.11. Em 7 de Dezembro de 2023 foi apresentado o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
11. Não foi feita prova de que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto em causa, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: i. Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos; ii. Que foi a Requerente que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes / munícipes não estava contemplada a repercussão de CSR (e/ou a medida em que não o estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto. A Requerente limitou-se a juntar as facturas de aquisição de combustível ao seu fornecedor de combustíveis, as quais não contêm os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
12. O Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
14. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos.
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APRECIAÇÃO DE EXCEPÇÕES E QUESTÕES PRÉVIAS QUE PODEM OBSTAR (OU NÃO) AO CONHECIMENTO DO MÉRITO DO PRESENTE PEDIDO ARBITRAL
IV.1. INTRODUÇÃO E SEQUÊNCIA
15. A questão jurídica material ou de fundo reporta-se à ilegalidade (ou não) da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por ser (ou não) um tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente com o n.º 2 do artigo 1.º da Directiva 2008/118/CE, de 16 de Dezembro de 2008, tendo por base o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de Fevereiro de 2022, no Processo n.º C-460/21.
16. Porém, na resposta, a Requerida invoca várias excepções (muito bem resumidas na resposta da Requerente às excepções invocadas), que, a proceder alguma, obstam ao conhecimento do pedido – e que, por isso, são de decisão prévia e antecedente.
17. A decisão arbitral tem de conhecer, em primeiro lugar, estas questões – as quais, a proceder, algum delas, prejudicam o conhecimento das restantes (das questões materiais suscitadas nos presentes autos) – cfr. artigo 608.º do CPC.
IV.2. A POSIÇÃO DAS PARTES
18. Efectua-se, de seguida, a súmula dos argumentos das partes, sem prejuízo de mais desenvolvimentos aquando da decisão destes temas na decisão arbitral.
IV.2.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
19. A Requerida invoca a incompetência material do tribunal, fundamentada na não-vinculação formal da AT aos tribunais arbitrais constituídos para a apreciação de quaisquer questões que não estejam relacionadas com “impostos”. Considera, ainda, a Requerida que se verifica a incompetência do tribunal em razão da matéria, na medida em que a Requerente, no pedido de pronúncia arbitral, teria vindo questionar o regime jurídico da CSR in totum, pretendendo discutir a sua conformidade jurídico-constitucional, o que extravasaria o âmbito da arbitragem tributária, e, em especial, o disposto no artigo 2.º do RJAT, que não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado. A esse propósito vem a Requerida argumentar que a instância arbitral se destina a um contencioso de anulação e que a Requerente estaria a pretender suspender a eficácia de actos legislativos que se afastaria desse âmbito.
20. A Requerente considera que o âmbito da arbitrabilidade abrange, como decorre da interpretação conjugada dos artigos 2.º do RJAT e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, a apreciação das pretensões relativas a tributos cuja administração esteja cometida à AT, com excepção dos casos enunciados nas alíneas do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março - abrangendo, portanto, também as pretensões relativas a “contribuições” por ela administradas. E que, como tem sido genericamente reconhecido, a CSR constitui um verdadeiro imposto administrado pela AT, ainda que de receita consignada, e não uma mera contribuição financeira, não sendo a sua denominação, para efeito de apreciação da competência deste tribunal arbitral, determinante. Nesse sentido, a jurisprudência arbitral do CAAD tem esclarecido, salvo algumas excepções relacionadas com posições doutrinais nominalistas, que dada a ausência de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade desta suposta contribuição financeira cuja receita se destina a financiar uma actividade pública específica, a mesma possui a natureza de imposto. Mais, tendo sido mencionada no seu pedido a questão da inconstitucionalidade de um imposto cobrado sem a devida autorização legislativa, importa reter que abundante jurisprudência arbitral já esclarece que a CRP, designadamente, no seu artigo 204.º, admite o controlo difuso de constitucionalidade pelos tribunais e prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. A desaplicação de normas pelos tribunais, por iniciativa oficiosa ou por alegação das partes, corresponde a uma forma de fiscalização concreta de constitucionalidade para que os tribunais têm competência própria, não se confundindo com a competência do Tribunal Constitucional, que intervém em sede de recurso de constitucionalidade ou no âmbito da fiscalização abstrata da constitucionalidade – cfr. artigo 281.º da CRP. Nada obsta a que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre a questão de constitucionalidade das normas que subjazem à CSR no âmbito do reconhecido controlo difuso a que se refere o artigo 204.º da CRP. As normas de direito europeu derivado, como normas de direito internacional convencional, vigoram diretamente na ordem jurídica interna com a mesma relevância das normas de direito interno, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos - cfr. artigo 8.º da CRP. A impugnação judicial de um acto de indeferimento de anulação de liquidação e dos respectivos actos de liquidação, cujo encargo recaiu sobre o repercutido pode ser deduzida com fundamento em qualquer ilegalidade, nada permitindo distinguir entre a ilegalidade resultante de normas de direito interno ou de direito convencional. Não existe qualquer obstáculo a que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre o fundamento de ilegalidade dos actos de liquidação repercutidos baseado em desconformidade da CSR com Directiva europeia, sendo manifestamente improcedente a invocada exceção de incompetência do tribunal em razão da causa de pedir.
IV.2.2. SOBRE A ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE
21. A Requerida defende, em síntese, que: a) Por um lado, que «apenas os sujeitos passivos de imposto que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago»; b) Por outro lado, que «contrariamente ao que a Requerente alega, não existe no âmbito da CSR um ato tributário de repercussão legal, (...) sendo que as faturas apresentadas não corporizam atos de repercussão de CSR».
22. A Requerente sustenta que, como decorre da decisão do TJUE, processo n.º C-460/21, há uma obrigação de a AT reembolsar – não apenas aos respectivos sujeitos passivos – os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada. É corolário desta posição do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e o sujeito passivo só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade. Desta forma, os consumidores finais – os repercutidos – têm legitimidade processual activa para contestar as liquidações da CSR, de forma a obterem a sua anulação e respetivo reembolso. Por outro lado, quanto ao argumento da Requerida de que se verifica uma suposta ilegitimidade substantiva por não se estar, alegadamente, perante um caso de repercussão legal, mas meramente económica há a referir que tal suposta ilegitimidade não procede como excepção, aliás, como já referido, nem sequer se deve qualificar a sua apreciação como matéria de excepções pois atende ao mérito da causa. A CSR na sequela do ISP é um imposto sobre o consumo, cuja repercussão no contribuinte não se encontra na disposição das partes, o que sucede é que essa repercussão nem sempre tem de estar espelhada na factura. Aliás, para defesa do contribuinte, a ERSE, em dado momento, impôs o dever, análogo aquele que sucede no domínio do IVA de que o valor da CSR constasse expressamente no valor da factura, para os combustíveis vendidos em postos de abastecimento. Por ter legitimidade substantiva, enquanto repercutido o que se julga constituir uma questão de apreciação de mérito, nem por isso o objecto da sua sindicância são as facturas ou os actos de repercussão. Não há qualquer dúvida que aquilo que se discute são os actos de indeferimento e liquidação e o direito à restituição do imposto subjacente nas facturas em que foi repercutido.
IV.2.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL
23. A Requerida defende, ainda, que o pedido de pronúncia arbitral é inepto porque supostamente a Requerente não identifica os actos que são objecto do pedido arbitral, como exige a alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT.
24. A Requerente entende que não apresentou os actos de liquidação subjacentes porque não estão na sua posse o que não fundamenta qualquer ineptidão do seu pedido o qual foi apreendido pela AT. Na defesa apresentada pela Requerida, esta demonstra abundantemente perceber o que pretende a Requerente com o pedido que formula. A falta de indicação das liquidações pela Requerente está perfeitamente fundamentada, pois elas foram emitidas pela Requerida à empresa que apresentou as DICs e não foram notificadas à Requerente. Por esse motivo foi instada a Requerida para que viesse fornecer ao processo ou solicitar a terceiros essa informação. As facturas de venda de combustíveis juntas aos autos incluem o montante da CSR que a fornecedora pagou ao Estado, pelo que são, por essa via, apuráveis os montantes cuja anulação a Requerente pretende. Não era exigível à Requerente que identificasse as liquidações que a Requerida emitiu com base nas vendas de combustíveis em causa, nem essa identificação é necessária para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas em causa. A exigência de identificação das liquidações, numa situação deste tipo, em que o repercutido não tem possibilidade de as identificar e a identificação não é imprescindível para apurar a legalidade da cobrança de CSR ínsita nas facturas, não seria compaginável com o princípio constitucional da proporcionalidade e o direito à tutela judicial efectiva garantido pelos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, pois inviabilizaria a possibilidade prática de a Requerente impugnar contenciosamente actos que lhe aplicam tributação e lesam a sua esfera jurídica. Também não há qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir conforme erradamente pretende a Requerida, não estando em causa a legalidade da emissão das facturas, do acto de repercussão qua tale, mas a legalidade dos actos de liquidação de CSR subjacentes e o direito à restituição do seu pagamento por repercussão.
IV.2.4. SOBRE A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO
25. A Requerida entende que a falta de identificação dos actos de liquidação em causa impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa da liquidação formulado pela Requerente. Para a Requerida: i. Não existiu qualquer erro de direito imputável aos serviços que permita aplicação do prazo de 4 anos para a revisão oficiosa, previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT; ii. Aos actos de liquidação de CSR aplica-se o regime especial previsto nos artigos 15.º e 16.º do Código dos IEC, que é de três anos.
26. A Requerente sustenta, conforme também se afirma na decisão do CAAD no processo n.º 294/2023-T, nesse capítulo da tempestividade, há muito vem entendendo uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo que «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (artigo 266.°, n.º 1 da CRP e 55.° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços». No caso em apreço, é manifesto que os erros imputados aos actos impugnados não são imputáveis à Requerente, pois não teve qualquer intervenção no procedimento de liquidação. O prazo para apresentação de pedido de revisão oficiosa era de quatro anos, pelo que foi apresentado tempestivamente o mesmo sucedendo consequentemente ao pedido arbitral.
IV.3. DECISÃO
IV.3.1. QUANTO À (IN)COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
30. O Tribunal Arbitral é competente para conhecer da ilegalidade de liquidações de CSR, por se tratar de um imposto, em linha com a argumentação constante da decisão do processo arbitral 304/2022-T, de 5 de Janeiro de 2023. Neste sentido, reproduzem-se alguns excertos da mencionada decisão:
«Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC n.º 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC n.º 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”
Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.
Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental[5]), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC n.º 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).
Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.
O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.
[...]
Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.
[...]
Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.
A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6.º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3.º, n.º 2 da Lei n.º 55/2007).
Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.
A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1.º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2.º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.
No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4.º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.
Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.
Nos termos do n.º 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.
Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.
Sobre o conceito de contribuintes, o n.º 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis. Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.
Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.
Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.
[...]”.
31. Em relação aos “actos de repercussão” impugnados, o Tribunal Arbitral não pode conhecer dos mesmos, pois não são actos tributários, não estando prevista a sua sindicabilidade (cfr. artigo 2.º do RJAT). No entanto, como foram, em simultâneo, contestados pela Requerente os actos de liquidação de CSR, é sobre estes que recai a pronúncia do Tribunal Arbitral.
IV.3.2. SOBRE A EXCEPÇÃO DE ILEGITIMIDADE DA REQUERENTE
32. Não consta do RJAT a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do CPPT, do CPTA e do CPC.
33. A regra geral do direito processual, que emana do artigo 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse directo” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade activa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CPTA).
34. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um acto tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da LGT, como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”.
35. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a AT, agindo como tal, e as pessoas singulares ou colectivas e entidades equiparadas (cfr. artigo 1.º, n.º 2, da LGT).
36. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo- se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”.
37. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.
38. Na situação em análise, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a acção arbitral.
39. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
40. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjectiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (cfr. artigo 9.º, n.º 1 e n.º 4, do CPPT).
41. Neste âmbito, assinala JORGE LOPES DE SOUSA: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.o, n.o 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do respectivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.
42. JORGE LOPES DE SOUSA assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.” – cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.
43. Com posição similar, LIMA GUERREIRO, em anotação ao artigo 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”.
44. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as pessoas colectivas de direito privado e, bem assim, de direito público repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários).
45. Infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual no facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pela empresa distribuidora de combustíveis – a B..., S.A..
46. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, ou seja, que mereça a tutela do direito substantivo.
47. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”[3] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do artigo 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.
48. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código do IEC efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.
49. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:
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A referida Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
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Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício da sua actividade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes / munícipes.
50. Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, ou seja, a menos que evidencie a existência de um interesse directo e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre a mesma impende.
51. Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR. Qualifica esta repercussão, erradamente, como legal, invocando timidamente o disposto no artigo 2.º do Código do IEC. Recorde-se que essa repercussão – a ser “legal” –, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe).
52. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo.
53. Rigorosamente, a Requerente é tão-só cliente comercial do sujeito passivo que liquidou a CSR. Não é o sujeito passivo dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
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Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos;
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Que, por sua vez, o preço dos bens / serviços que presta aos seus clientes /munícipes não comporta a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comporta, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportou, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respectivo quantum.
54. A Requerente limitou-se a juntar as facturas do seu fornecedor de combustíveis − a B..., S.A. −, que estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Com efeito, das facturas anexas ao pedido arbitral apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto. Não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR.
55. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento / duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplo(s) repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
56. Por fim, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra o seu fornecedor, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da Constituição).
57. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respectiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (cfr. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).
58. Em face do exposto, deve julgar-se verificada a excepção de ilegitimidade da Requerente, constituindo a mesma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.
IV.3.3. SOBRE A INEPTIDÃO DO PEDIDO ARBITRAL E A CADUCIDADE DO DIREITO À ACÇÃO
59. Perante o que se concluiu quanto à ilegitimidade da Requerente, é desnecessário o pronunciamento sobre os temas da ineptidão do pedido arbitral e da caducidade do direito à acção, nos termos do artigo 608.º do CPC, e porque prejudicados pela decisão dada ao tema da ilegitimidade.
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DECISÃO
Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral:
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Julga verificada a excepção de ilegitimidade (activa) da Requerente, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal Arbitral conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a), e 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea e), do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT;
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Condena a Requerente no pagamento das custas do processo.
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VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 131.966,91 (cento e trinta e um mil, novecentos e sessenta e seis euros e noventa e um cêntimos), nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
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CUSTAS
Custas a cargo da Requerente, no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de Maio de 2024
Os Árbitros,
Fernando Araújo, Presidente
(junta declaração de voto)
Elisabete Flora Louro Martins Cardoso, Vogal
Hélder Faustino, Relator
A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Conquanto adira ao sentido da decisão e entenda procedente a excepção da ilegitimidade da Requerente, com todas as consequências para o desfecho deste processo, entendo que uma tal excepção é logicamente precedida pela de ineptidão do pedido arbitral, que entendo igualmente procedente, o que prejudicaria o conhecimento daquela excepção que veio a prevalecer.
A Requerida faz assentar essa excepção no argumento, já utilizado no Requerimento de 10/1/2024 e depois retomado na Resposta de 8/4/2024, da insuficiente identificação dos actos impugnados: e é verdade que a Requerente não identifica os actos de liquidação de CSR, como lhe cabia (arts. 10º, 2, b) do RJAT, 108º, 1 do CPPT e 78º, 2, e) do CPTA).
Na verdade, a Requerente não apenas não prova os actos de liquidação de CSR, assente na convicção de que lhe não cabia essa prova – mas também não prova as próprias repercussões que alega terem ocorrido, limitando-se a apresentar facturas nas quais se conclui que ela presume ficar documentada uma repercussão completa em cada transacção – portanto, ao mesmo valor fixo por litro de combustível, de acordo com o cálculo que necessariamente ocorreu nas liquidações a montante daquelas repercussões; o que, como é evidente, tratando-se de uma mera repercussão económica, e não de uma repercussão legal, não pode deixar de considerar-se como um simples exercício de conjectura.
Suscita-se, assim, um problema de inteligibilidade: impugna-se as liquidações (não provadas) ou as repercussões (também não provadas, e meramente presumidas pela Requerente)?
Suscita-se ainda um problema de inidoneidade: porque os únicos actos impugnáveis são as liquidações (não provadas, e meramente pressupostas), não as repercussões, que não são actos tributários (dado que, insiste-se, não vigorava para a CSR, nem passou a vigorar, um regime de repercussão legal).
Mas o mais decisivo, e grave, é que se manifesta uma contradição entre o pedido (a anulação dos únicos actos tributários em causa, as liquidações de CSR, e o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa daqueles actos tributários) e a causa de pedir (a invalidade da repercussão plena de um tributo que já era ilegal, por desconformidade desse tributo com o direito da União, para efeitos de reembolso do que foi pago por repercussão – isto, relativamente a um tributo cuja liquidação não se provou, por se pressupor que vigorava para esse tributo um regime de repercussão legal, e de que, de um tal regime, decorria que a repercussão pudesse ser presumida, seja no seu quid, seja no seu quantum, permitindo inferir, da ilegalidade das liquidações, a invalidade das repercussões, fosse qual fosse o nexo entre liquidações e repercussões).
Estando nós perante uma acção de anulação, a causa de pedir é “a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” (art. 581º, 4 do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
Não tendo legitimidade para impugnar directamente a liquidação – porque, muito simplesmente, não foi parte nela, e nem sequer a consegue identificar – a Requerente tenta alcançar o efeito equivalente apoiando-se numa invalidade da repercussão, ou do “pagamento por repercussão”, um acto de que ela se julga parte legítima por presumir (erradamente) uma configuração peculiar do fenómeno da repercussão.
E fá-lo por implicitamente reconhecer que é impossível anular, ainda que parcialmente, actos de liquidação não-identificados – apegando-se, pois, à facturação, que, no seu entendimento quanto à natureza da repercussão, a Requerente julga ser suficiente para identificar este outro acto tributário inválido.
Lembremos que a Requerente remata o PPA com o pedido de reembolso “do imposto indevidamente pago por repercussão pela Requerente e de todos os impostos que foram suportados sobre esse valor de CSR indevidamente liquidado”:
Lembremos ainda que, logo em Requerimento de 18 de Janeiro de 2024, a Requerente alega que “os atos em que se contém a repercussão da CSR sobre a Requerente encontram-se devidamente identificados no pedido de pronúncia arbitral, recaindo sobre a AT o ónus de identificação das antecedentes liquidações de CSR […] Aliás, a repercussão da CSR, tal como do ISP, por parte dos sujeitos passivos que introduzem o combustível no consumo, decorre de uma imposição legal.” (neste caso, apoiando-se no art. 6º da Lei nº 24-E/2022, que é flagrantemente inconstitucional, na medida em que ele tenta estabelecer uma verdadeira retroactividade, em violação do art. 103º, 3 da CRP).
Na verdade, esta contradição entre pedido e causa de pedir é fatal para o prosseguimento da acção, comprometendo irremediavelmente a sua finalidade, porque este tribunal pode pronunciar-se sobre a legalidade de liquidações, que são actos tributários, mas não pode pronunciar-se sobre a invalidade de fenómenos de repercussão económica, que não são actos tributários: pelo que o pedido poderia ser apreciado por este tribunal, mas não com uma tal causa de pedir.
A causa de pedir, além de existir e dever ser inteligível, deve estar em conformidade com o pedido, formando, com a qualificação jurídica, as premissas que constituem o corolário da pretensão formulada[4].
A contradição entre pedido e causa de pedir torna procedente a excepção de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186º, 2, b) do CPC (aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
Assim, por causa do entendimento que erradamente perfilhou sobre a natureza da repercussão da CSR, a Requerente não trouxe para os autos a documentação que, ao menos, pudesse comprovar a liquidação conjunta de ISP e de CSR pelos verdadeiros sujeitos passivos, nomeadamente as Declarações de Introdução no Consumo (DIC, art. 10º do CIEC), ou o Documento Administrativo Único / Declaração Aduaneira de Importação (DAU / DAI), de forma a, subsequentemente, permitir imputar, a esses valores totais da introdução no consumo, a parte de combustível vendida a ela Requerente – antes mesmo de qualquer prova, igualmente necessária, relativa ao quid e ao quantum da repercussão económica.
Na ausência desses elementos mínimos, como fazer, sequer, a prova de liquidação à qual o próprio direito da União obriga, removendo presunções que pudessem prejudicar a legitimidade activa dos sujeitos passivos – em eventual benefício de uma legitimidade sucedânea de “repercutidos”? Invoque-se, aqui, o standard de prova estabelecido pelo TJUE no seu despacho de 7 de Fevereiro de 2022, lavrado no Proc. nº C-460/21, nomeadamente no que respeita à vedação de presunções de repercussão da CSR.
Como, em suma, na ausência de identificação bastante dos únicos actos tributários relevantes – as liquidações originais das quais emerge tudo o resto, a própria condição dos “repercutentes”, e a posição dos “repercutidos” –, satisfazer o pedido a partir de uma causa de pedir (a invalidade de uma repercussão tida por “legal”) ostensivamente contraditória com ele, incompatível com ele, à luz do direito português e do direito da União?
A deficiência na formulação da causa de pedir, e na sua articulação com o pedido, verifica-se quando falte totalmente a indicação dos factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo concedentes do direito em causa (no caso, a invalidade da repercussão que a Requerente considera ter suportado).
E é isso que determina a nulidade do processo.
E não se diga que a Requerente fez referência às liquidações de CSR da melhor forma que podia: pelo contrário, desvalorizou-as, entendendo-as presumidas, e não carecidas de prova sua, por força de um regime legal que supôs ser o vigente (regime que, refira-se, também não dispensaria a prova mínima que aqui faltou – porque a presunção de que houve repercussão não poderia abarcar, obviamente, a presunção de que houve liquidação, tendo de provar-se que houve liquidação, e qual foi a liquidação).
A procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial teria determinado a nulidade insanável de todo o processo (arts. 186º, 1 e 577º, b) do CPC, e 98º, 1, a) do CPPT), e dispensaria a consideração da excepção da ilegitimidade da Requerente.
Cinge-se à procedência de uma excepção sobre outra excepção, que igualmente procederia, a minha única divergência quanto à fundamentação da decisão – divergência que, insisto, não se verifica relativamente ao sentido e consequências da decisão a que se chegou.
Fernando Araújo
[1] Ou em contradizer, no caso da entidade demandada.
[2] Ou, nalguns casos específicos de sindicabilidade autónoma no processo impugnatório, um acto de fixação da matéria colectável (cfr. artigos 2.º do RJAT e 97.º do CPPT).
[3] Atente-se ainda que o artigo 93.º-A do CIEC, regime para o qual remete o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto que cria a CSR, prevê o reembolso parcial de imposto incorrido para o gasóleo e gás profissional utilizado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte colectivo de passageiros, precisamente por não ser um consumo final mas tão-só um consumo intermédio no circuito produtivo de bens e serviços.
[4] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta & Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I- Parte Geral e Ação Declarativa, 2ª ed., p. 232.