Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 679/2023-T
Data da decisão: 2024-06-05  IRC  
Valor do pedido: € 33.610,98
Tema: IRC; artigo 23.º, indispensabilidade dos gastos
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Sumário:

  1. A AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da atividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objetivos alheios.
  2. Para que um custo seja dedutível na determinação da matéria tributável para efeitos de IRC está completamente arredada a visão finalística, segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos.
  3. Importa averiguar é se os gastos ocorreram no âmbito e por força da atividade empresarial da empresa, a qual por definição terá como escopo a obtenção do lucro.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitra Ana Pinto Moraes designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, decide o seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

  1. A..., LDA., com o número único de matrícula e de identificação fiscal ...  e sede na ... n.ºs..., ... e ..., ..., ...-... Estoril (‘Requerente’), vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), na sequência do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa que apresentou e que correu termos sob o n.º de processo ...2022..., com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à  anulação dos actos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (‘IRC’) com o n.º 2021 ... de 16 de dezembro de 2021, referente ao exercício de 2017.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 27 de setembro de 2023 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (‘CAAD’) e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (‘AT’ ou ‘Requerida’).

 

  1. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. As partes foram notificadas dessa designação em 15 de novembro de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral singular ficou constituído em 6 de dezembro de 2023.

 

I.1 ARGUMENTOS DAS PARTES

  1. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:
  1. Para dar cumprimento ao seu objeto social e agilizar o início do desenvolvimento da sua atividade económica lucrativa, a Requerente encetou imediatamente uma fase preparatória indispensável que compreendeu duas vertentes (i) cumprimento dos requisitos legais e regulatórios prévios à comercialização de produtos farmacêuticos em Portugal, nomeadamente a obtenção das autorizações de introdução dos seus produtos no mercado (Marketing Authorisations), de acordo com o Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto e dos Price Certificates, junto da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (“INFARMED”); e (ii) a criação, em Portugal, de infraestruturas e de uma rede de distribuição que permitissem, num primeiro momento, o transporte e o armazenamento dos produtos farmacêuticos a comercializar pela Requerente, para, posteriormente, se assegurar a comercialização e a exportação dos referidos produtos, a partir de Portugal, com um rigoroso controlo de qualidade e segurança;
  2. A Requerente celebrou com uma empresa especializada, a B..., Unipessoal, Lda. (“B...”) – atualmente designada C..., Unipessoal, Lda. (“C...”) –, um contrato de prestação de serviços, através do qual esta se comprometeu a prestar (i) apoio técnico no cumprimento de todos os referidos requisitos legais e regulatórios prévios às atividades de registo, promoção, comercialização, distribuição e exportação de medicamentos e produtos farmacêuticos, incluindo o contacto direto com o Infarmed, e (ii) serviços de assessoria no exercício dessa atividade, nomeadamente no controlo da qualidade e de compliance;
  3. Em agosto de 2022, a C... e a Requerente foram notificadas pelo Infarmed dos Price Certificates que atestaram que os referidos produtos cumprem todos os requisitos legais para venda em território português, pelo que só após esta data passou a cumprir todos os requisitos legais e regulatórios da atividade económica que se propôs exercer;
  4. Entre 2017 e 2020, em consequência dos serviços prestados, a C... comunicou a emissão de faturas com os seguintes valores, em todas identificando como natureza dos fornecimentos Consultoria/registo de medicamentos;
  5. Em 2019, com o objetivo de se dotar de uma estrutura e meios que permitissem, assim que possível, iniciar as atividades de distribuição e a exportação dos seus produtos, a partir de Portugal, a Requerente celebrou com a D..., S.A. (“D...”) um contrato mediante o qual esta se comprometeu com o armazenamento dos produtos daquela, em Portugal, assim como com o transporte dos mesmos para Portugal;
  6. A Requerente e a E... (“E...”) assinaram um acordo de distribuição em Portugal dos produtos farmacêuticos comercializados pela Requerente;
  7. Em 22 de junho de 2023 e 14 de setembro de 2023, a E... formalizou duas encomendas de produtos farmacêuticos comercializados pela Requerente – para os quais se requereu a emissão pelo Infarmed dos certificados acima referidos;
  8. Para assegurar a produção dos produtos a comercializar, a Requerente contratou a F... Ltd. (“F...”) como Contract Development and Manufacturing Organization (“CDMO”), comprometendo-se esta a prestar serviços de desenvolvimento e fabricação de medicamentos;
  9. Foi reconhecido pelos Serviços de Inspeção Tributária que os gastos em causa foram efetivamente suportados pela Requerente em 2017;
  10. A Requerente invoca o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de novembro de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 0372/16, sobre conceito de indispensabilidade dos gastos, na qual se conclui que só não serão indispensáveis os custos que não tenham relação causal e justificada com a atividade produtiva da empresa;
  11. Bem como o Acórdão de 28 de junho de 2017, proferido no processo n.º 627/16, no qual se conclui que o controlo a efetuar pela AT sobre a verificação deste requisito da indispensabilidade tem de ser pela negativa, ou seja, a AT só deverá desconsiderar como custos fiscais os que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, independentemente do resultado (ou seja, com ou sem êxito) que em concreto proporcionaram;
  12. A Requerente entende que os custos foram suportados no âmbito da indispensável fase prévia ao exercício da sua atividade de comercialização/exportação de produtos farmacêuticos, razão pela qual entende ainda que não pode, de modo algum, ser posto em causa o seu caráter exclusivamente empresarial;
  13. Defende a Requerente que toda a fase preparatória durante a qual foram incorridos os custos em causa teve notoriamente em vista a operacionalização do negócio, visando atingir a obtenção de lucros, não se podendo eliminar, sem mais, o claro intuito comercial que subjaz à mesma, com o propósito claro de exponenciar a obtenção de receita tributária;
  14. Entende a Requerente que a AT só deverá desconsiderar como custos fiscais aqueles que claramente não tenham potencialidade para gerar incremento dos ganhos, o que significa que não compete lhe compete aferir se tais gastos resultaram, efetivamente, em rendimentos, mas apenas se os mesmos tinham essa potencialidade;
  15. Invoca a Requerente que não estão sequer em causa gastos que pudessem ser dispensados: de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 14.º do RJMUH, “a comercialização de medicamentos no território nacional está sujeita a autorização do órgão máximo do INFARMED, I.P.”, o que significa que qualquer sujeito passivo que pretenda desenvolver uma atividade económica como a da Requerente terá impreterivelmente de realizar semelhante atividade preparatória e suportar os gastos a ela inerentes;
  16. Conclui a Requerente que o ato tributário consubstanciado na liquidação de IRC, com o n.º 2021..., de 16 de dezembro de 2021, referente ao exercício de 2017, enferma de vício de violação de lei, erro imputável aos serviços, razão pela qual deveria a decisão do Pedido de Revisão ter concluído pela sua anulação.

 

  1. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta em 30 de janeiro de 2024, tendo concluído pela improcedência da presente ação e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

 

  1. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:
  1. Do procedimento inspetivo efetuado resultou uma correção, porquanto os SIT consideraram que a sociedade registou gastos no montante de € 33.610,98, que não serviram para a obtenção de rendimentos ou manutenção/criação de força produtora, não sendo, por isso, os mesmos dedutíveis nos termos do artigo 23.º do Código do IRC;
  2. A Requerente não obteve rendimentos desde o início de atividade (2015) até, pelo menos 2022 (Consulta às declarações fiscais entregues pela Requerente);
  3. Os documentos apresentados pela Requerente dizem respeito fundamentalmente a licenças para comercialização, isto é, as autorizações de introdução no mercado de medicamentos;
  4. Apesar das autorizações de introdução dos seus produtos no mercado terem sido concedidas em 2018 e uma delas até 2016, a Requerente não iniciou a comercialização e distribuição dos referidos medicamentos, pelo menos até 2022;
  5. A Requerente não efetuou qualquer atividade comercial desde o início da sociedade, ou seja, durante 7 anos, a única atividade que desenvolveu teve a ver com a obtenção das autorizações de introdução no mercado de medicamentos;
  6. A Requerente continuou sem ter instalações durante diversos anos e só em 20.05.2020 foi assinado um para o armazenamento e o transporte dos produtos em Portugal;
  7. A Requerente não tem qualquer trabalhador ao seu serviço, não possui instalações (apenas as instalações virtuais de domiciliação), e é representada pelos sócios, os quais não são residentes em Portugal;
  8. A correlação direta dos gastos e encargos não é de todo evidente, pois desde o início de atividade (16.12.2015) até 2022 não foi possível estabelecer uma correlação entre os encargos suportados pela Requerente e quaisquer rendimentos, uma vez que, nesse longo período não foram apresentados quaisquer rendimentos relativos à atividade;
  9. A Requerente foi constituída em 14 de dezembro de 2015 com um capital social de €500,00 distribuído por quatro sócios residentes no Líbano tendo por objeto social, o registo, a promoção, a comercialização, a distribuição e a exportação de medicamentos e produtos farmacêuticos, atuando como centro de gestão internacional para fora de Portugal;
  10. As despesas com a obtenção das referidas Autorizações de Introdução no Mercado dos medicamentos a comercializar, atribuídas pelo INFARMED à Requerente ou por esta adquiridas a outrem, de acordo com a norma contabilística e de relato financeiro – NCRF – n.º 6 - Ativos Intangíveis, que prevê o tratamento contabilístico e estabelece os critérios de reconhecimento e de mensuração daqueles ativos, configuram um ativo intangível e cumprem os critérios ali definidos;
  11. A Requerente contabilizou as despesas como gastos do período e não como ativos intangíveis como seria contabilisticamente apropriado, assim como deveria ter procedido à sua amortização a uma taxa determinada em função do período de tempo em que tiver lugar a sua utilização exclusiva a partir do momento em que os ativos ficaram disponíveis para o uso;
  12. Conclui a Requerida que tendo ficado claramente demonstrado que a argumentação aduzida no pedido de pronúncia arbitral carece de sustentação nos factos e na lei, deverá o ato impugnado ser mantido na ordem jurídica.

 

  1. Por despacho proferido em 4 de março de 2024, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT, facultando-se às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, as quais foram apresentadas pela Requerente e Requerida.

 

II. SANEAMENTO

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

  1. O processo não enferma de nulidades.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

  1. Analisada a prova produzida no âmbito do presente processo, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
  1. A Requerente é uma sociedade por quotas que tem como objeto social o «registo, a promoção, a comercialização, a distribuição e a exportação de medicamentos e produtos farmacêuticos, atuando como centro de gestão internacional para fora de Portugal. Adicionalmente, a sociedade poderá ainda comercializar e distribuir medicamentos e produtos farmacêuticos, que se encontrem autorizados ou registados em Portugal, dentro do território nacional» (cit.).
  2. A Requerente está registada com a CAE 46460 – Comércio Por Grosso de Produtos Farmacêuticos;
  3. Em 2017 a Requerente incorreu em várias despesas respeitantes à obtenção de Autorizações de Introdução no Mercado dos medicamentos;
  4. Estas despesas foram, em termos contabilísticos, lançadas diretamente em gastos do período;
  5. Os gastos em causa foram efetivamente suportados pela Requerente, em 2017;
  6. A Requerente foi alvo de inspeção tributária em cumprimento das ordens de serviço n.ºs OI2021..., OI2021..., OI2021... e OI2021..., inspeção tributária essa de âmbito parcial e caráter interno, incidente sobre os exercícios de 2017 a 2021, na qual foi efetuada uma correção, em sede de IRC, no valor de € 33.610,98;
  7. A Requerente foi notificada do ato de liquidação de IRC com o n.º 2021..., de 16 de dezembro de 2021;
  8. A Requerente apresentou ao abrigo do disposto no artigo 78.º da LGT, um pedido de revisão oficiosa submetido junto da AT;
  9. O referido pedido de revisão oficiosa n.º ...2022... foi indeferido expressamente por Despacho proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa, em 27.06.2023, por subdelegação de competências, deduzida contra a liquidação de IRC n.º 2021 ... (nula), de 14.12.2021, referente ao período de 2017, Demonstração do Acerto de Contas n.º 2021..., identificação do Acerto de Contas n.º 2021..., que resultou das correções efetuadas no âmbito do procedimento inspetivo externo realizado ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2021..., no montante de € 33.610, 98;
  10. Em 26 de setembro de 2023 a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

III.1.2. Factos não provados

 

  1. Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

  1. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

 

  1. Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. A questão decidenda prende-se com a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de IRC n.º 2021..., que resultou das correções efetuadas no âmbito do procedimento inspetivo externo realizado ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2021..., no montante de € 33.610, 98.

 

  1. Entenderam os serviços de inspeção que os gastos incorridos pela Requerente não serviram para a obtenção de rendimentos ou manutenção/criação de força produtora, não sendo, por isso, os mesmos dedutíveis nos termos do artigo 23.º do Código do IRC.

 

  1. Para o efeito a Requerida invoca essencialmente que desde o início de atividade (2015) até, pelo menos 2022, a Requerente não teve qualquer atividade e rendimento e que esteve sem ter instalações durante diversos anos e só em 2020 foi assinado um para o armazenamento e o transporte dos produtos em Portugal.

 

  1. Refere ainda a Requerida que a Requerente não tem qualquer trabalhador ao seu serviço, não possui instalações (apenas as instalações virtuais de domiciliação), e é representada pelos sócios, os quais não são residentes em Portugal.

 

  1. Pelo que conclui a Requerida que a correlação direta dos gastos e encargos não é de todo evidente.

 

  1. Sucede que tal entendimento contraria clara e expressamente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de novembro de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 0372/16, na qual se concluiu o seguinte:

«I - No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar quanto à indispensabilidade como requisito para que um custo seja dedutível na determinação da matéria tributável para efeitos de IRC (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção anterior a 2009), está completamente arredada a visão finalística, segundo a qual se exigiria uma relação de causa efeito, do tipo conditio sine qua non, entre custos e proveitos.

II - No mesmo entendimento, um custo será aceite fiscalmente desde que, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros e a AT apenas pode desconsiderar como custos fiscais os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios.

III - Em conformidade, sendo o contribuinte uma sociedade que se dedica à comercialização de veículos, não pode a AT desconsiderar os custos por ela suportados com o IVA respeitante à aquisição de veículos noutros Estados-Membros da União Europeia com o fundamento de que o não exercício do direito de reembolso ao abrigo da 8.ª Directiva do Conselho (79/1072/CEE), de 6 de Dezembro, faz com que não possa dar-se por verificado o requisito da indispensabilidade» (cit.).

 

  1. No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal administrativo de 28 de junho de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 0627/16:

«I - No entendimento que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adoptar para efeito de averiguar da indispensabilidade de um custo (cfr. art. 23.º do CIRC na redacção em vigor em 2001), a AT não pode sindicar a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa, sob pena de se intrometer na liberdade e autonomia de gestão da sociedade.

II - Assim, um custo ou perda será aceite fiscalmente caso, num juízo reportado ao momento em que foi efectuado, seja adequado à estrutura produtiva da empresa e à obtenção de lucros, ainda que se venha a revelar uma operação económica infrutífera ou economicamente ruinosa, e a AT apenas pode desconsiderar os que não se inscrevem no âmbito da actividade do contribuinte e foram contraídos, não no interesse deste, mas para a prossecução de objectivos alheios (quando for de concluir, à face das regras da experiência comum que não tinha potencialidade para gerar proveitos).

(…)

IV - Ademais, esse entendimento da indispensabilidade reconduz-se à exigência de uma relação de causalidade necessária e directa entre custos e proveitos há muito recusada pela doutrina e pela jurisprudência» (cit.).

 

  1. Note-se que muito embora os acórdãos acima referenciados tenham sido proferidos por referência à redação anterior a 2009, mantêm-se as suas conclusões quanto à redação atual do n.º1 do artigo 23.º do Código do IRC, no que releva ao presente caso.

 

  1. Isto porque, o que importa averiguar é se os gastos sub judice ocorreram no âmbito e por força da atividade empresarial da Requerente a qual por definição terá como escopo a obtenção do lucro, sem, contudo, existir um critério temporal definido.

 

  1. Neste sentido a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 45/2019-T:

«Importa agora subsumir os factos provados ao disposto no artigo 23.º, n.º 1 do CIRC na redação resultante da lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

Trata-se de saber se os gastos sub judice ocorreram “no âmbito e por força da (…) atividade empresarial [da Requerente], a qual por definição terá como escopo a obtenção do lucro.”

Para tal, e por outras palavras, podemos considerar que o gasto equivale a todo o custo realizado em ordem à obtenção de ingressos que represente um decaimento económico para a empresa. A dedutibilidade fiscal do custo depende por isso, e apenas, de uma relação causal e justificada com a atividade da empresa.

Como resulta dos factos dados como provados, ficou demonstrado que a Requerente deduziu o montante de EUR 172.845,90 concernente a quotizações suportadas pela Requerente em benefício da E... no exercício de 2015.

Assim, o requisito da comprovação do custo encontra-se preenchido.

Relativamente ao outro requisito que decorre do artigo 23.º do CIRC (ligação dos gastos aos rendimentos sujeitos a imposto) a Requerida considerou, referindo-se ao requisito da indispensabilidade (que, reitere-se, não se encontra expressamente previsto na atual redação do artigo 23.º, n.º 1) que “(…) os custos declarados pela Requerente sucumbiram ao crivo da indispensabilidade, pelo que se impunha à Requerente, na presente ação arbitral, o ónus de demonstrar que os montantes desconsiderados podiam subsumir-se no conceito legal de gasto.” (cfr. artigo 40.º da resposta)

Como vimos o conceito de indispensabilidade não consta já da redação atual do artigo 23.º, n.º 1 do CIRC. Não pode, por isso, atualmente proceder-se à avaliação do gasto à luz de um juízo estrito de imperiosa necessidade.

Em rigor, o que importa averiguar é se os gastos sub judice ocorreram “no âmbito e por força da (…) atividade empresarial [da Requerente], a qual por definição terá como escopo a obtenção do lucro.”

Tal implica averiguar se as quotizações pagas pela Requerente à E... ocorreram no âmbito e por força da atividade empresarial daquela, a qual por definição terá como escopo a obtenção do lucro» (cit.).

 

  1. Foi ainda mencionado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 45/2019-T no âmbito da apreciação ao abrigo da letra da lei em vigor após 2014 que: «como reconhece o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido a 29-03-2006, processo n.º 01236/05, “a Administração só pode excluir gastos não diretamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa”» (cit.).

 

  1. Neste sentido, o que releva é a potencialidade para gerar lucro tributável, isto é, a existência de uma real e fundada perspetiva de que os bens e serviços adquiridos em contrapartida desses custos venham a gerar receita, sem um critério temporal mínimo.

 

  1. Pelo que, só poderá concluir-se que os custos em análise foram suportados no âmbito da indispensável fase prévia ao exercício da atividade de comercialização/exportação de produtos farmacêuticos.

 

  1. Por último, quanto à norma contabilística e de relato financeiro – NCRF – n.º 6 - Ativos Intangíveis, invocada pela Requerida, notamos que o acervo dos fundamentos e argumentos agora identificados em sede de resposta e alegações não constam expressamente do relatório da inspeção, indo claramente mais além do que ali ficou dito.

 

  1. Ora, não é admissível legalmente a fundamentação a posteriori, considerando-se como fundamentação do ato impugnado, a que foi contemporânea da sua prática e como tal notificada ao contribuinte.

 

  1. Nos termos da jurisprudência assente do Supremo Tribunal Administrativo, Acórdão de 28 de outubro de 2020, proferido no processo 02887/13.8BEPRT: «I - No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori.  II - Assim, não pode a AT, em sede de recurso jurisdicional, pretender que se aprecie a legalidade da correcção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou».

 

  1. Pelo que, como entende o Supremo Tribunal Administrativo, não pode a Requerida invocar razões que não levou ao relatório ou à decisão que constitui a declaração formal fundamentadora das correções e das subsequentes liquidações.

 

  1. Neste contexto, não pode o tribunal, apreciando a legalidade desse ato em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, substituir-se à Requerida e ir ponderar se o ato pode ser sancionado com distinta fundamentação e argumentação jurídica.

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando o ato de indeferimento expresso da revisão oficiosa e o ato de liquidação objeto do presente processo;
  2. Condenar a Requerida a suportar integralmente as custas do processo.

 

 

V. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 33.610,98 atribuído pela Requerente e sem contestação da Requerida.

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 1.836, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de junho de 2024

 

 

 

 

 

 

 

Ana Pinto Moraes