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DECISÃO ARBITRAL
Na sequência da apresentação por parte da Requerente de pedido de reforma da sentença, e atendendo aos fundamentos nele aduzidos, vem o Tribunal Arbitral decidir o seguinte:
I – Dos antecedentes processuais
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A 20 de fevereiro de 2024, o Tribunal Arbitral proferiu decisão nos presentes autos no sentido de julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “IRS”) n.º 2022..., referente ao ano de 2021, e do qual resultou o valor a pagar de €6.467,74 (seis mil quatrocentos e sessenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), absolvendo-se a Requerida da instância, nos termos do artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”), o que obstou ao conhecimento do mérito do pedido, mantendo-se, assim, o ato tributário aqui impugnado na ordem jurídica.
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No mesmo dia, o Centro de Arbitragem Administrativa (doravante “CAAD”), remeteu às partes a notificação da referida decisão arbitral.
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A 22 de fevereiro de 2024, a Requerente apresentou pedido de reforma da sentença, pese embora, invocando, o disposto nos artigos 614.º (sob a epígrafe “Retificação de erros materiais”), e 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) (sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”), ambos do Código de Processo Civil (doravante “CPC”).
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Tendo em consideração a notificação da decisão arbitral às partes e o prazo de 10 (dez) dias para pedir a reforma da sentença, compulsando o disposto no artigo 149.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), temos que o prazo para tal apresentação terminaria a 04 de março de 2024.
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O pedido de reforma da sentença foi, assim, tempestivamente apresentado, tendo a Requerente legitimidade, nos termos do artigo 616.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
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A 23 de fevereiro de 2024, o Tribunal Arbitral despachou no sentido de ser notificada a Requerida para se pronunciar sobre o pedido de reforma da sentença apresentado pela Requerente.
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Neste seguimento, veio a Requerida informar o Tribunal Arbitral “de que confirma a descrição da factualidade ocorrida na reunião do artigo 18.º RJAT no passado dia 23-10-2023, tal como descrita pela Requerente na sua exposição.”, tendo apresentado outro requerimento, no qual acrescentou que “a AT mantém a posição que expressou, em tempo, na referida reunião, de que os argumentos aduzidos pela Requerente na sua resposta à exceção, de 06-10-2023, devem ser atendidos no sentido da não verificação da exceção de inimpugnabilidade do ato.”
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A 04 de março de 2024, foi proferido despacho, pela anterior titular do processo, cujo teor se transcreve: “Nos termos do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil, determino a reforma da sentença proferida no Processo 248/2023-T e, nos termos do artigo 21.º do RJAT, a sua reabertura, e a prorrogação do prazo por mais dois meses.”
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No mesmo dia, foi proferido despacho, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos seguintes termos:
“Com referência ao processo em epígrafe, a Exma. Dra. Maria Alexandra Mesquita, árbitro do tribunal arbitral singular constituído neste processo, veio renunciar às funções arbitrais invocando para tanto razões que são de considerar como justificativas.
Em tal conformidade, nos termos e ao abrigo do disposto do Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária (artigo 6.º, n.º 5) determina-se a substituição, como árbitro no presente processo, da Exma. Dra. Maria Alexandra Mesquita pela Exma. Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho.
Dê conhecimento.”
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A 17 de abril de 2024, a atual titular do processo proferiu o seguinte despacho:
“Atendendo à mudança de titularidade do processo e à necessidade de apreciação do mérito da causa, decide-se, no uso da faculdade prevista no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, prorrogar, por mais 2 (dois) meses, o prazo para a decisão.”
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Desconhecendo o Tribunal Arbitral que a Requerente tenha interposto recurso para o Tribunal Constitucional ou para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no artigo 25.º do RJAT e, tendo a anterior titular do processo proferido o despacho referido em 8., será por aqui de admitir o pedido de reforma apresentado, ao abrigo do disposto no artigo 616.º, do CPC.
II – Dos argumentos e fundamentos do pedido de reforma da sentença
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Vem a Requerente peticionar pela reforma da decisão arbitral proferida nos autos, “ao abrigo do artigo 614.º do CPC e das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, como ainda ao abrigo do dever de colaboração processual, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva,
por se constatar que, certamente por lapso, a mesma tomou conhecimento de uma exceção alegada pelo Exmo. Representante da Fazenda Públia (RFP), que, para além de expressamente retirada pelo mesmo por concordar com a respetiva falta de fundamento, foi dada como resolvida pelo Tribunal Arbitral na Reunião de 23 de outubro de 2023,
o que consubstancia uma nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão, ambiguidade e obscuridade da decisão que a tornam ininteligível, e ainda por conhecer questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia)”
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Sustenta a Requerente que a própria Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT”), ora Requerida, reconheceu, na reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, que não se verificava qualquer exceção, por falta de fundamento, e que o Tribunal Arbitral teria afirmado expressamente que tal questão se dava por resolvida, assistindo, assim, razão à Requerente quando refutou tal exceção.
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Para tanto, suporta tais conclusões, designadamente, nas seguintes passagens, por referência à aludida reunião, realizada a 23.10.2023:
Exma. Sra. Árbitra: “No momento da substituição, a parte foi esclarecer, uma vez que a Reclamação já estava a correr, foi aceite fora de tempo, vocês não tinham outra solução que não fazer uma nova liquidação?”
RFP: “De facto quando há a apresentação de uma declaração de substituição, a AT no sistema emite uma nova liquidação. É uma contingência do sistema, digamos assim.”
(minutos 30:10 a 31:30 da segunda parte da gravação)
RFP: “Mas posso confirmar que, de facto, o objeto da declaração de substituição foi diferente daquele que é o objeto do que está aqui em questão.”
RFP: “Em termos de sistema é gerada uma nova liquidação porque no sistema da AT não subsistem liquidações, digamos assim, parciais. Em termos jurídicos esta liquidação subsistiria e surgiria uma nova liquidação. Tal como a parte na resposta à exceção referiu, relativamente ao que está aqui em questão, a liquidação, juridicamente manteve-se incólume.”
(minutos 31:40 a 32:35 da segunda parte da gravação)
Mandatário da Requerente: “Sendo assim, não se percebe qual a razão para invocar a exceção...”
Exma. Sra. Árbitra: “Dr., não vamos falar sobre a exceção desculpe. A exceção está resolvida.”
(minutos 33:20 a 34:10 da segunda parte da gravação)
RFP: “De qualquer forma, dá-me autorização só para fazer um comentário relativamente à exceção? Relativamente a essa questão, no processo administrativo não existia mais informação a não ser a de que existia uma declaração de substituição. A informação de que a declaração de substituição versou sobre questão diferente faz com que a nossa apreciação vá na linha da resposta da parte à nossa exceção. Isso é importante, de facto, ser dito aqui, para que não haja dúvidas que aquilo que foi dito na resposta à exceção está de acordo com a realidade e juridicamente bem enquadrado.”
Exma. Sra. Árbitra: “Pronto, não há mais nada sobre as exceções, o problema já está resolvido relativamente às exceções.”
(minutos 35:20 a 36:20 da segunda parte da gravação)
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Defende, assim, a Requerente, que, nessa reunião, o Tribunal Arbitral decidiu, com a Requerente e a própria AT, que não se verificava qualquer exceção.
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Argumenta ainda a Requerente que: “Dificilmente se perceberia que os contribuintes, sempre que substituíssem declarações que o sistema da AT, por defeito, faz emergir formalmente outras liquidações, vissem os prazos de reclamação reabrir para qualquer matéria integrante de liquidações já emitidas e consolidadas no passado.”
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Neste sentido, afirma a Requerente que “foi certamente por lapso que o Tribunal Arbitral decidiu no sentido da decisão de 20 de fevereiro, onde julgou verificar-se a alegada exceção, pois já havia, no decurso da Reunião afastado essa mesma exceção por falta de fundamento da mesma expressamente, (...), em concordância com a AT e a Requerente.”
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Na visão da Requerente, a decisão arbitral está ferida de nulidade, quer “por excesso de pronúncia, ao decidir sobre a matéria de exceção que já havia sido dada como resolvida na Reunião e sobre a qual a própria parte que a invocou ter concordado com a falta de fundamento dessa exceção”, quer “por oposição dos fundamentos com a decisão pois não pode dar como assente que a declaração de substituição não versou sobre os rendimentos em causa nos autos e não alterou o valor do IRS liquidado em 2021, visto ter sido destinada apenas a declarar o reinvestimento de imóvel vendido em 2018, e desaguar na conclusão de que a liquidação de IRS a impugnar era a que AT emitiu, por “contingência do sistema”, como atestou o RFP, mas mantendo a liquidação reclamada incólume!”
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Finaliza a Requerente, peticionando, a final, que “sejam as nulidades supridas mediante a prolação de decisão retificativa, o que se impõe não só mas também por dever de colaboração processual, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, na qual se conheça do mérito da questão, sob pena do contribuinte ter de se sujeitar à demora de um processo de impugnação da decisão judicial, junto do TCA Sul, cujo desfecho é inequívoco face à ostensiva nulidade de que a decisão arbitral padece.”
Vejamos, então, se assiste razão à Requerente.
III – Da apreciação do pedido de reforma da sentença:
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Prevê o n.º 2, do artigo 616.º, do CPC que “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
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Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
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Constem do processo documento ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.”
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Conforme se extrai do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 1150/13.9TBBGC-C.G1, de 8 de outubro de 2015:
“O instituto da reforma da decisão constitui uma importante e necessária limitação no império absoluto do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, conferindo ao próprio julgador que proferiu a decisão a possibilidade de alterar o decidido, mesmo nos casos em que se verifica não uma “omissão”, mas antes um “ativo erro de julgamento” Cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, p. 444.”
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Como refere Lebre de Freitas (cfr. Código de Processo Civil Anotado), “o erro de julgamento, quer respeite ao apuramento dos factos da causa, quer respeite à aplicação do direito aos factos apurados” (...) “quando não haja lugar a recurso, pode o juiz da causa alterar, ele próprio, a decisão sob reclamação (...), quando tenha ocorrido lapso manifesto na determinação da norma aplicável, na qualificação jurídica dos factos ou na omissão de considerar documento ou outro meio de prova plena que, só por si, implicasse necessariamente decisão diversa da proferida”. A expressão lapso manifesto (na redação atual manifesto lapso) não se trata já de erros revelados pelo próprio contexto da sentença ou das peças do processo para que ela remete, nem de omissões sem consequência no conteúdo da decisão, mas de erro revelado por recurso a elementos que lhe são exteriores.”
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É consabido que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso: (i) para o Tribunal Constitucional “na parte que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada”, ou (ii) para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo” (cfr. artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT).
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No caso em apreço, desconhecendo o Tribunal Arbitral a interposição de recurso da decisão arbitral colocada em crise e, tendo a anterior titular do processo proferido o despacho de 04 de março de 2024, que determinou a reforma da sentença proferida nos presentes autos, foi a mesma admitida.
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Contudo, a Requerente não abrigou o seu pedido de reforma da sentença proferida nos autos a nenhuma das alíneas do n.º 2, do artigo 616.º, do CPC, tendo, antes, invocado as normas referentes à retificação de erros materiais (Cfr. artigo 614.º, do CPC), e às causas de nulidade da sentença (Cfr. artigo 615.º, do CPC, designadamente, as suas alíneas c) e d)), o que formalmente inviabilizaria esse pedido, pois, os aludidos meios de reclamação lato sensu (retificação por erros materiais, suprimento de nulidades e reforma da sentença), são distintos entre si e obedecem a regulamentação própria.
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Não obstante, atendendo ao despacho de 04 de março de 2024, o Tribunal Arbitral procedeu à reanálise e reapreciação de todo o processado.
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Dessa reanálise e reapreciação, bem assim dos esclarecimentos que ressaltam do arrazoado da Requerente em sede de pedido de reforma da sentença, considera o presente Tribunal que tal pedido poderá ter enquadramento na alínea a), do n.º 2, do artigo 616.º, do CPC, mas já não nos artigos 614.º e 615.º, do citado diploma.
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Na verdade, não existe qualquer erro material que se revele no contexto do teor ou estrutura da decisão arbitral, que careça de retificação (cujo objeto não é, pois, o conteúdo do ato decisório, mas a sua própria expressão material – o corpus por que se exterioriza a vontade do juiz –, podendo distinguir-se entre (i) erro de escrita, (ii) erro de cálculo e (iii) “quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, em termos em tudo idênticos aos do artigo 249.º, do Código Civil), nem tampouco se verificam as nulidades aduzidas pela Requerente (a saber, excesso de pronúncia e oposição dos fundamentos com a decisão).
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Conforme consabido, o Tribunal tem o dever de tomar posição sobre certa questão, o que ocorre tanto para as questões de conhecimento oficioso, como para questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. As questões a resolver são as questões de direito correspondentes aos pedidos, causas de pedir e exceções, tanto dilatórias como perentórias.
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Daí que, sempre se imporia ao Tribunal Arbitral conhecer da exceção invocada pela Requerida, na sua contestação/resposta, i.e, de tomar uma posição expressa sobre a mesma.
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A simples menção de que “a exceção está resolvida”, proferida pela Exma. Sra. Árbitra, na reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, não constitui uma decisão em si mesma, devidamente fundamentada.
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Aliás, a própria Exma. Sra. Árbitra “informou os representantes da Requerente e da Requerida que sobre a matéria de exceção se pronunciará na decisão final” (Cfr. Ata de inquirição de 23.10.2023).
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Nesta medida, e pese embora se possa criticar a bondade da decisão proferida quanto à dita exceção, o Tribunal Arbitral andou bem ao ter conhecido e apreciado a mesma, a final, não se verificando, assim, qualquer excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, que fira a sentença de nulidade.
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Por outro lado, a contradição/oposição entre os fundamentos e a decisão é, nos termos e para os efeitos da 1ª parte, da alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, estritamente no plano lógico da construção da decisão.
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“Coisa diversa é o próprio silogismo estar errado no seu mérito, por conter uma contradição com os factos ou com o Direito: trata-se de erro do julgamento de facto decorrente de o juiz “decid(ir) contrariamente aos factos apurados” (RP 2-5-2016/Proc. 1556/14.6T8LOU-A.P1 (CORREIA PINTO)) ou de o julgamento de direito decorrente de o juiz decidir “contra a lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (RP 2-5-2016/Proc. 1556/14.6T8LOU-A.P1 (CORREIA PINTO)) – seja por erro de subsunção aos factos à norma jurídica aplicável, seja por erro na determinação de tal norma ou por erro na sua interpretação. Em ambas as eventualidades não ocorre nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. c), mas, um erro de julgamento da matéria de facto ou matéria de direito, respetivamente.[1]” (negrito nosso)
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Dito isto, o alegado pela Requerente de que a decisão “(...) não pode dar como assente que a declaração de substituição não versou sobre os rendimentos em causa nos autos e não alterou o valor do IRS liquidado em 2021, visto ter sido destinada apenas a declarar o reinvestimento de imóvel vendido em 2019, e desaguar na conclusão de que a liquidação de IRS a impugnar era que a que a AT emitiu, por “contingência do sistema”, como atestou o RFP, mas mantendo a liquidação reclamada incólume!”, configura, quanto muito, um erro de julgamento, mas já não a causa de nulidade consagrada na 1ª parte, da alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC.
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Volvendo ao assunto que ora nos ocupa – o pedido de reforma da sentença deduzido pela Requerente –, o artigo 616.º, do CPC, admite no seu n.º 2, a reforma da sentença quando “por manifesto lapso do juiz” tenha “ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” ou (ii) “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”.
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A reforma da decisão visa, assim, corrigir “um erro de julgamento resultante de um erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos, (...)[2]”. (negrito nosso)
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Ora, reanalisado todo o processo, temos para nós, que a Exma. Sra. Árbitra incorreu em lapso manifesto, verificando-se “um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação” dos autos, designadamente, no que toca à exceção invocada pela Requerida, o que justifica a reforma da sentença proferida, nos termos do n.º 2, da alínea a), do 616.º, do CPC.
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Pelo que, é de proceder a pretensão da Requerente, no que respeita à reforma da sentença agora requerida, alterando-se a decisão arbitral, nos seguintes termos:
IV – Da decisão reformada
SUMÁRIO:
I – A atribuição de ações a favor dos trabalhadores efetuada pela entidade patronal é considerada um rendimento em espécie, qualificado como rendimento de trabalho dependente (Categoria A) e, como tal, sujeito a tributação em sede de IRS.
II – A norma ínsita na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, lida em conjunta com o ponto 7), da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo diploma legal, não contém uma presunção legal (nem tampouco, uma ficção legal), porquanto, o facto que se pretende tributar é a atribuição de um bem ou direito que, na data da atribuição, tem um determinado valor de mercado e que passa a integrar o património dos trabalhadores (e, no caso em concreto, a custo zero).
III – Os trabalhadores adquirentes de ações colhem um efetivo acréscimo patrimonial (cujo valor é objetivo, concreto, real e determinável), que permite um crescimento da sua esfera patrimonial, o que despoleta a tributação em sede de IRS, nos termos das citadas normas.
IV – Há que distinguir os rendimentos em espécie atribuídos aos trabalhadores – in casu, ações –, dos ganhos que podem vir a ser gerados com os direitos de disposição dessas ações, pois, se as ações vão permitir ou não realizar mais-valias é outra questão, cuja sede fiscal já não é a tributação dos rendimentos de trabalho.
DECISÃO ARBITRAL
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RELATÓRIO
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A..., NIF ..., residente na Rua ..., n.º ..., ... ..., ...-... Porto (doravante “a Requerente”), veio, em 06.04.2023, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante “IRS”), n.º 2022..., referente ao ano de 2021, do qual resultou o valor a pagar de €6.467,74 (seis mil quatrocentos e sessenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), na parte em que foi tributado, enquanto rendimento de trabalho (Categoria A), o valor das ações a si atribuídas pela entidade empregadora ao abrigo de um plano de atribuição de ações, bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa, que teve como objeto o dito ato.
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A Requerente junta 14 (catorze) documentos, requer a tomada de declarações de parte e arrola uma testemunha.
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O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite a 10.04.2023 pelo Exmo. Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante “CAAD”) e automaticamente notificado à Requerida.
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A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a anterior titular do processo, Exma. Dra. Maria Alexandra Mesquita, como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
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A 30.05.2023 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído a 20.06.2023.
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Por despacho proferido pelo Tribunal Arbitral a 20.06.2023 foi a Requerida notificada para, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentar resposta, juntar cópia do processo administrativo (doravante “PA”) e, querendo, requerer a produção de prova adicional.
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Em 08.09.2023, a Requerida apresentou requerimento, no qual peticionou pela prorrogação do prazo de resposta, por mais 10 (dez) dias, em virtude de não lograr obter em tempo útil o processo administrativo instrutor, o que lhe foi deferido, por despacho de 10.09.2023.
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No dia 25.09.2023, a Requerida apresentou a sua resposta, na qual invocou a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação de IRS aqui em apreço, defendeu-se por impugnação e, juntou aos autos o processo administrativo.
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Por despacho de 26.09.2023, foi a Requerente notificada para, querendo, se pronunciar sobre a exceção invocada pela Requerida na sua resposta, no prazo de 10 (dez) dias.
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Nesse mesmo dia, foi proferido outro despacho, cujo teor se transcreve:
“Para efeitos da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, fixa-se o dia 23 de outubro, pelas 10:30 horas.
1. Nessa reunião agendada terá lugar a audiência de julgamento.
2. a. Para esse efeito, devem as partes informar o CAAD, num de pelo menos 5 dias úteis à diligência agendada sobre a vontade de deslocação às instalações do CAAD, em Lisboa, ou no Porto, ou em alternativa participar na diligência on-line, via WEBEX, e se as testemunhas serão apresentadas nas instalações do CAAD no Porto ou em Lisboa.
b. Presume-se, na ausência tempestiva de resposta, que as partes e as testemunhas se irão apresentar nas instalações do CAAD em Lisboa.
c. Na reunião proceder-se-á à inquirição de testemunhas pela Requerente.
d. Na reunião será fixada a data para alegações, a menos que as partes delas prescindam.
e. A prestação de declarações pela Autora e a prestação testemunhal requeridas, circunscrevem-se a factos em crise nos autos, pelo que na resposta ao ponto a. solicita-se à Requerente A... que este Tribunal Arbitral seja informado factual e sucintamente dos mesmos.
(...)”
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No dia 03.10.2023, a Requerente juntou aos autos requerimento, no qual: (i) requereu, nos termos do n.º 2, do artigo 598.º, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicável ex vi alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º, do RJAT, o aditamento ao rol de uma nova testemunha; (ii) informou que pretendia participar na reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, através das instalações do Porto e; (iii) indicou sobre que factos incidiriam as declarações de parte da Requerente e a inquirição das testemunhas arroladas.
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Por despacho de 04.10.2023, foi admitido o aditamento ao rol de testemunhas requerido pela ora Requerente, ao abrigo da garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva das partes, bem como à luz dos princípios do contraditório e da autonomia do Tribunal Arbitral.
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Nesse mesmo dia, a Requerida submeteu junto do CAAD, via correio eletrónico, uma comunicação, na qual manifestou a sua intenção de participar na reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, através da plataforma “WEBEX”.
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Em 06.10.2023, a Requerente apresentou requerimento, no qual se pronunciou sobre a exceção invocada pela Requerida na sua resposta, pugnando pela improcedência da mesma.
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No dia 23.10.2023, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual: (i) foram ouvidas as testemunhas arroladas pela Requerente, bem como a própria Requerente, em sede de declarações de parte; (ii) foi designado pelo Tribunal Arbitral o dia 20.12.2023 para o efeito de prolação da decisão arbitral; (iii) foram as partes notificadas para, de modo simultâneo, apresentarem, querendo, alegações escritas, no prazo de 10 (dez dias); (iv) foi solicitado às partes o envio das peças processuais em formato Word; e (v) foi a Requerente notificada para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente e juntar aos autos o respetivo comprovativo.
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Em 03.11.2023, a Requerida e a Requerente apresentaram as suas alegações finais, tendo esta junto, ainda, o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
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Por despacho de 11.12.2023, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo para a prolação da decisão, nos termos dos n.ºs 1 e 2, do artigo 21.º, do RJAT.
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No dia 27.12.2023, a Requerente veio, em face de factos supervenientes ocorridos após a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e da apresentação das alegações, apresentar requerimento, por considerar que tais factos eram relevantes para a boa decisão da causa, juntando para o efeito 3 (três) documentos.
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Por despacho de 27.12.2023, o Tribunal Arbitral admitiu o requerimento referido em 19., e notificou a Requerida para, querendo se pronunciar sobre o mesmo, no prazo de 10 (dez) dias, a qual nada disse.
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A 20 de fevereiro de 2024, o Tribunal Arbitral proferiu decisão nos presentes autos no sentido de julgar procedente a exceção de inimpugnabilidade do ato de liquidação de IRS, aqui sindicado, absolvendo-se a Requerida da instância, nos termos do artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”).
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No mesmo dia, o CAAD remeteu às partes a notificação da referida decisão arbitral.
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A 22 de fevereiro de 2024, a Requerente apresentou pedido de reforma da sentença, pese embora, invocando, o disposto nos artigos 614.º (sob a epígrafe “Retificação de erros materiais”), e 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) (sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”), ambos do CPC.
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A 23 de fevereiro de 2024, o Tribunal Arbitral despachou no sentido de ser notificada a Requerida para se pronunciar sobre o pedido de reforma da sentença apresentado pela Requerente.
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Neste seguimento, veio a Requerida informar o Tribunal Arbitral “de que confirma a descrição da factualidade ocorrida na reunião do artigo 18.º RJAT no passado dia 23-10-2023, tal como descrita pela Requerente na sua exposição.”, tendo apresentado outro requerimento, no qual acrescentou que “a AT mantém a posição que expressou, em tempo, na referida reunião, de que os argumentos aduzidos pela Requerente na sua resposta à exceção, de 06-10-2023, devem ser atendidos no sentido da não verificação da exceção de inimpugnabilidade do ato.”
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A 04 de março de 2024, foi proferido despacho, pela anterior titular do processo, cujo teor se transcreve: “Nos termos do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil, determino a reforma da sentença proferida no Processo 248/2023-T e, nos termos do artigo 21.º do RJAT, a sua reabertura, e a prorrogação do prazo por mais dois meses.”
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No mesmo dia, foi proferido despacho, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos seguintes termos:
“Com referência ao processo em epígrafe, a Exma. Dra. Maria Alexandra Mesquita, árbitro do tribunal arbitral singular constituído neste processo, veio renunciar às funções arbitrais invocando para tanto razões que são de considerar como justificativas.
Em tal conformidade, nos termos e ao abrigo do disposto do Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária (artigo 6.º, n.º 5) determina-se a substituição, como árbitro no presente processo, da Exma. Dra. Maria Alexandra Mesquita pela Exma. Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho.
Dê conhecimento.”
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A 17 de abril de 2024, a atual titular do processo proferiu o seguinte despacho:
“Atendendo à mudança de titularidade do processo e à necessidade de apreciação do mérito da causa, decide-se, no uso da faculdade prevista no artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, prorrogar, por mais 2 (dois) meses, o prazo para a decisão.”
II. POSIÇÃO DAS PARTES
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A fundamentar o PPA, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IRS, na parte aqui impugnada, invocou a Requerente, de entre o mais, o seguinte:
Da ilegalidade dos atos tributários
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A Requerente, apesar de não ter vendido nenhuma das 545 ações em 2021, viu o valor de €18.074,75 ser tributado em IRS do ano de 2021, enquanto rendimento do trabalho (categoria A), às taxas gerais e progressivas do IRS, previstas no artigo 68.º, do Código do Imposto sobre o rendimento das Pessoas Singulares (doravante “CIRS”).
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Aquele valor de €18.074,75 foi calculado, tendo por referência a cotação das ações a 18 de maio de 2021, i.e., no primeiro dia da primeira “Janela de Negociação” após terem sido levantadas as restrições que impendiam sobre a Requerente no que contende com a transmissibilidade das ações ao abrigo das regras de política interna do Grupo B... .
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A Requerente viu aquele valor sujeito a tributação, enquanto rendimento do trabalho (Categoria A), mesmo não tendo realizado qualquer liquidez (porque não vendeu essas ações em 2021) e independentemente do valor das ações que têm vindo a desvalorizar.
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Mesmo que a Requerente tivesse vendido as ações em alguma das “Janela de Negociação” permitidas posteriormente a maio de 2021, o que acabou por suceder, em novembro de 2022 (aí vendeu 503 ações), foi tributada precisamente sobre o mesmo valor de €18.074,75, ou seja, com referência a uma cotação da Ação superior àquele valor que efetivamente teria conseguido realizar (a 22 de novembro de 2022, quando vendeu 503 dessas ações, a cotação de cada ação era de €7,15).
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A 30 de junho e a 13 de julho de 2022, o produto da venda das 545 ações, se tivesse sido concretizada, nem teria sido suficiente para pagar o IRS liquidado pela AT, relativamente ao ano de 2021, por ter sido considerado o rendimento tributável de €18.074,75. E aquando da venda de parte dessas ações, a perda qualificada como menos-valia não possuiu relevância fiscal, uma vez que as menos-valias só são dedutíveis a mais-valias que a Requerente não apurou, como se demonstrou, ou seja, num cenário de apuramento de perdas aquando da venda das ações, a Requerente não beneficiou de um impacto fiscal simétrico.
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Este desfecho é, pois, uma consequência da aplicação literal das disposições do Código do IRS e que SALDANHA SANCHES E RUI BARREIRA, no primeiro estudo em Portugal sobre esta temática, já qualificavam como “(...) a situação única no ordenamento jurídico-tributário português de tributação de um ganho meramente potencial”[3].
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Por força da disposição legal ínsita na subalínea 7), da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS, os “ganhos” decorrentes de planos de atribuição de ações devem ser enquadrados, para efeitos de determinação do IRS, como rendimento do trabalho dependente (Categoria A). No entanto, o modo como se opera a sujeição a imposto resulta da conjugação desta norma com os preceitos constantes das várias alíneas do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS e, em particular, da alínea e).
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Apesar de iníqua e inconstitucional se interpretada como constituindo uma regra incondicional e imperativa, a verdade é que da alínea e) deste preceito decorre literalmente, para o caso sob análise, que o “ganho” derivado do Plano se considera obtido no momento em que os trabalhadores se encontram plenamente investidos nos direitos emergentes das ações, ou seja, a partir do momento em que podem exercer livremente os direitos associados às ações. Por seu turno, o rendimento tributável resulta da diferença positiva entre o valor de mercado naquela data e o que eventualmente haja sido pago pelo trabalhador para aquisição das ações (no plano aplicável à Requerente não está previsto preço a pagar pelas ações por parte do trabalhador, pelo que o rendimento tributável é determinado apenas pelo valor da cotação das ações).
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Ao ter sido dado cumprimento às normas acima referenciadas, a Requerente sofreu a tributação de um rendimento meramente potencial sem que tenha tido um ingresso, no seu património, oriundo de um ganho real.
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É esta a dissonância entre o momento em que a tributação ocorre e o momento em que há verdadeiramente um rendimento gerador de riqueza a favor da Requerente e que lhe permitiria pagar os impostos (o IRS) que merece censura quer no plano legal quer no plano constitucional.
Do Primeiro Fundamento
As normas em apreço constituem forçosamente ficções legais ou presunções ilidíveis – a proibição de presunções inilidíveis em matéria de incidência tributária
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Num plano infra constitucional, há que aferir, desde logo, se uma norma que “considera” que o rendimento de um plano de ações surge e tem de ser quantificado na data em que a trabalhadora contemplada, a Requerente, dispõe do direito de as transacionar – mesmo se na mesma data essas ações não forem alienadas – não pode ser desaplicada se se concluir que essa trabalhadora não obteve qualquer rendimento efetivo comparável com o valor de mercado naquela data.
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Se essa desaplicação é possível, não há dúvidas que a norma que a pode habilitar será o artigo 73.º da Lei Geral Tributária (doravante “LGT), segundo o qual “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”.
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Para invocar tal disposição legal (73.º, da LGT), é necessário apurar se determinada norma é uma norma de incidência tributária lato sensu e se consagra uma presunção, pelo que importa descortinar se isso se verifica quanto à norma contida na aliena e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS.
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Não só as normas que determinam objetivamente que rendimentos integram cada Categoria de IRS são consideradas como normas de incidência, como também o são todas aquelas normas que definem a materialidade da obrigação de imposto e procedem à conformação do facto tributário.
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As normas aqui em causa são normas de incidência, na medida em que realizam a identificação, em concreto, de quem efetivamente suporta o imposto e a medida em que o suporta. O artigo 2.º do CIRS define a incidência objetiva destes rendimentos, enquanto rendimentos do trabalho dependente (Categoria A) e a sua sujeição às regras de tributação desta categoria, e as normas do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, estabelecem o momento em que adquire relevância, para efeitos fiscais, um rendimento, e como se determina o rendimento coletável.
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É no Código Civil que encontramos a definição de presunções, aí se dispondo que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. De resto, as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir, sendo que em matéria de incidência tributária a lei não permite presunções juris et de jure (inilidíveis).
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No que respeita aos preceitos sob análise, SALDANHA SANCHES e RUI BANDEIRA caracterizam-nos como ficção legal quando, apontando em (2001) severas desconformidades legais e constitucionais ao regime fiscal, referem que “considerá-los realizados (os ganhos consideram-se obtidos) constitui uma ficção jurídica que poderia ter sentido se tais acréscimos patrimoniais pudessem conduzir a ganhos futuros que não fossem tributados”.
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O legislador recorreu então à técnica legislativa da ficção legal porque decidiu que um ganho meramente potencial (um trabalhador apenas investido nos direitos sobre ações da sociedade) deveria ser tratado como um rendimento efetivo do trabalhador ao qual subjaz um pagamento em dinheiro, e sujeitou-o às mesmas regras de tributação. Implicitamente, pode entrever-se na mesma norma um mimetismo fiscal entre ações e dinheiro que, em boa verdade, não tem, em princípio, aderência real, económica ou financeira.
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Com isso, o legislador esquece que não se pagam impostos com ações e que enquanto as ações não forem vendidas não se constatou um aumento do poder aquisitivo e da capacidade contributiva do sujeito passivo, a menos que uma distribuição de dividendos o possibilite, em maior ou menor medida, in casu, não houve lugar a qualquer distribuição de dividendos.
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O princípio geral da efetiva realização ou obtenção de valor de uso ou de substituição na tributação dos rendimentos do trabalho
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Segundo o princípio geral de incidência objetiva consagrada no proémio do artigo 2.º, do CIRS, o rendimento do trabalho é tributado quando é pago ou colocado à disposição.
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É certo que o legislador admitiu a tributação de remunerações acessórias, que não têm dinheiro por objeto, nomeadamente nas muitas subalíneas da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS. Contudo, todas as remunerações acessórias aí elencadas, com a exceção das decorrentes de planos de ações, possuem traços comuns que as afastam das ações e as assimilam claramente a dinheiro: umas são mesmo atribuições em dinheiro, ainda que não com o rótulo formal de salário ou ordenado (ou abono de família e o subsídio de alimentação) e as outras que possuem valor de uso ou substituição (utilização de viaturas automóveis), que evitam que o trabalhador faça ele mesmo esse dispêndio, como é o caso de todas as demais remunerações acessórias (salvo as atribuições de ações, é claro).
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As ações são tributadas sem que haja uma utilização. Repare-se que as ações aqui em apreço nem sequer podem ser usadas com garantias de obrigações, e nem dividendos distribuíram! Também por este motivo, a dita ficção legal tem de ter-se por ilidível.
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A aplicação ao caso sub judice da jurisprudência dos Tribunais superiores
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Quer esteja em causa uma ficção legal ou uma presunção legal, a jurisprudência dos tribunais superiores e do Tribunal Constitucional subsume ambas as técnicas legislativas à proibição de presunções inilidíveis ditada pelo artigo 73.º, da LGT.
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Da leitura do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2017, 02.05.2017, proc. 285/15, infere-se que sempre que o sujeito passivo seja confrontado com uma presunção contida numa norma de incidência tributária, deve ser-lhe permitida a prova de que o rendimento presumido ou ficcionado não correspondeu a um rendimento real, afastando, por esta via, a tributação de um rendimento inexistente e não revelador de uma capacidade contributiva acrescida.
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Há ainda que ter presente que, se houver dúvidas quanto a ser devida essa ilisão de presunção, sempre cumprirá atender à realidade económica subjacente aos factos tributários, que é um critério de interpretação ditado pelo n.º 3, do artigo 11.º, da LGT, e a realidade é que o rendimento de trabalho efetivamente auferido pela Requerente não foi o preço à data do primeiro dia da “Janela de Negociações” (18 de maio de 2021).
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A mera detenção de ações não pode consubstanciar, per se, um facto tributário e uma medida de valor não sujeita a prova do contrário, no domínio da tributação do trabalho, muito menos no domínio de atribuição de ações cotadas em bolsa. Os proventos, a existirem, serão meramente potenciais, a menos que ocorra uma venda ou uma distribuição de dividendos (na situação vertente, repise-se, não ocorreu), que serão sempre serão tributadas como tal.
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Como é evidente, a cristalização fiscal da cotação inicial, independentemente do efetivo valor de realização, pode conduzir – como conduziu – ao absurdo de o valor de IRS a pagar ser (muito) superior ao valor de realização que o trabalhador encaixou por via de uma forte desvalorização da cotação.
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A não dedução do gasto pela C... em IRC
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Apesar de o IRS ter imperativos de capacidade contributiva que não têm de depender do que se passa ao nível do IRC, poder-se-ia convocar a falta de simetria entre o momento da tributação em IRS e a dedução do gasto em IRC em abono de uma tese contrária à possibilidade de ilisão da presunção.
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Porém, na situação vertente, o Estado beneficiou de forma totalmente arbitrária do IRS da Requerente sem qualquer relação com a capacidade contributiva e não tem qualquer redução da receita decorrente do reconhecimento de um gasto de igual valor em IRC pela C... (porquanto, esta não deduziu em 2021 – nem deduz atualmente – qualquer gasto, em IRC, relativo às ações aos seus trabalhadores, na medida em que a D... Limited não refatura o valor das ações atribuídas aos trabalhadores à C... Portugal.
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Conclui-se, assim, por tudo quanto se expôs, que a presunção contida na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo Código, é uma presunção ilidível que a Requerente, em concreto, afastou ao ter provado que não vendeu as ações em 2021, e, portanto, provou não ter tido um rendimento real ou equivalente àquele que foi sujeito a tributação no período de 2021, pelo que a tributação sobre o rendimento presumido de €18.074,75 é ilegal, devendo ser anulada a liquidação de IRS na parte em que tributou essa quantia.
Do Segundo Fundamento
A inconstitucionalidade material das normas por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva
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A alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS (lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo Código), é materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da igualdade tributária e do princípio da capacidade contributiva, segundo os artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa, na interpretação segundo a qual para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a planos de atribuição de ações, ali se estabelece uma “presunção inilidível” quanto ao momento e valor que servem de base à tributação.
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Se a Requerente não vendeu as ações, o imposto exigido não tem efetiva correspondência com a sua capacidade contributiva.
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Falha, portanto, de forma evidente, a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, o que conduz a que só se possa aceitar, a esta luz, a tributação da diferença entre o valor efetivo de venda das ações e o quantitativo (nulo, neste caso) pago pelo trabalhador.
Do Terceiro Fundamento
As consequências da limitação dos direitos sobre as ações
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O momento de tributação, à luz da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, é, citando, “o momento em que os trabalhadores ou membros dos órgãos sociais são plenamente investidos dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração”.
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Estar plenamente investido, significa, em boa verdade, não estar limitado, de forma alguma, e ainda que apenas temporalmente, nos poderes de disposição e oneração. Nenhum acionista, por natureza está “plenamente investido” – a lei bem podia ter-se limitado ao termo “investido” em singelo – nos direitos sobre as ações que possui, se se acha interdito de transmitir essas ações durante a maior parte do tempo, não estando o seu comportamento influenciado por qualquer interdição.
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Quanto à Requerente verifica-se que ela sofre restrições temporais que cerceiam em muito o direito de dispor e, consequentemente, de gerir as suas vendas de ações como um qualquer investidor.
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A Requerente, por força das limitações que possuiu em 2021 (e ainda possui), relativamente à transmissão das ações (a possibilidade de venda está circunscrita a períodos predeterminados pelo Grupo B...), não pode ser considerada “plenamente investida dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração, não existindo, assim, qualquer facto tributário em 2021 que despolete a tributação em sede de Categoria A, em razão das ações atribuídas, devendo ser o pedido arbitral julgado procedente, anulando-se a liquidação de IRS na parte em que considerou o rendimento tributável de €18.074,75.
Do Quarto Fundamento
A dedução de perdas relacionadas com a desvalorização das ações
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Atendendo ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 100/2022 (que analisa a conformidade constitucional, à luz do princípio da capacidade contributiva, de uma interpretação normativa segundo a qual o IRS era devido sobre o valor da mais-valia apurada no ano da venda de uma participação social – rendimento de Categoria G – Mais-Valias), entende a Requerente que deverá ser-lhe permitido deduzir aos rendimentos da Categoria A as perdas apuradas.
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Se se ficciona que o trabalhador teve um rendimento real quando pôde transacionar e foi tributado nessa base, então, sabendo-se que ele não recebeu esse rendimento – que não deixa de ser potencial até à venda efetiva – tem de igualmente considerar-se que a desvalorização experimentada ulteriormente configura uma perda dedutível aos próprios rendimentos da categoria A e não uma menos-valia dedutível a futuras mais-valias.
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No caso concreto, uma possível qualificação como menos-valia é ainda mais inapropriada, na medida em que o contexto em que as ações continuam a ser detidas pelos trabalhadores, como foi o caso da Requerente, é totalmente estranho a um investidor médio e apenas concebível num cenário de atribuição salarial e relação laboral ou profissional. Tal é assim porque a negociação está limitada a janelas temporais muito curtas e a extensos períodos de interdição negocial (pelo menos seis vezes mais longos do que aquelas), o que também afasta irremediavelmente esta perda da natureza de menos-valia.
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O n.º 1, do artigo 55.º, do CIRS, estabelece um princípio geral de dedução de perdas dentro das mesmas categorias, mas o corpo do artigo é omisso quanto às perdas de categoria A.
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No entanto, podendo esta (ações atribuídas pela entidade empregadora) e outras situações em que se geram perdas de rendimento do trabalho – podemos pensar numa outra situação rara, mas possível, de atribuição de vales de educação tributável em que a empresa que emite os vales fica insolvente e estes perdem o seu valor na totalidade – não há qualquer motivo para refutar o direito à dedução ao abrigo deste preceito, o qual assegura a execução prática do princípio de dedução de perdas advogado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 100/2022.
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A título subsidiário, só a dedução de perdas permite corrigir (ainda que em momento futuro) a agressão à capacidade contributiva dos sujeitos passivos daquela resultante e assegurar e conformar a regra da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS.
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Uma interpretação segundo a qual o n.º 1, do artigo 55.º, do CIRS, impede a dedução do rendimento líquido negativo, aos rendimentos da categoria A do IRS, quando o sujeito passivo aliena as ações por um valor inferior àquele que foi sujeito a tributação, nos termos da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, ou quando não alienando as ações estas sofrem uma desvalorização (apurada a 31 de dezembro do ano), é ilegal por erro nos pressupostos de aplicação daquele mesmo artigo e materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade tributária (horizontal) emanado do artigo 13.º da Constituição, bem como os princípios da capacidade contributiva e da tributação do rendimento real, vertidos no artigo 103.º e n.º 2, do artigo 104.º, da Constituição,
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o que não sucederá se se reconhecer à Requerente a dedução da perda de €2.058,12 aos rendimentos da Categoria A do ano de 2021.
Do Quinto Fundamento
Dedução de perdas nos períodos de interdição
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Caso assim não se entenda, então, a dedução das perdas verificadas nas ações nos períodos de interdição devem ser deduzidas aos rendimentos da Categoria A.
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A existência das “Janelas de Negociação” revela de forma decisiva o total arbítrio e injustiça fiscal de não considerar como perda de rendimento do trabalho a desvalorização da cotação das ações.
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Deverão ser dedutíveis todas as perdas acumuladas nos períodos de interdição de negociação, nos quais a Requerente não haja podido vender as ações para evitar precisamente essas perdas, pois nesses períodos não estava de modo algum “investida nos seus direitos”
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Subsidiariamente, à luz deste fundamento também os atos tributários são ilegais, devendo ser reconhecida à Requerente a dedução da perda de €1.181,15 aos rendimentos da Categoria A do ano de 2021.
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Por sua vez, a AT defendeu-se por impugnação, em síntese, nos seguintes termos:
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Dos preceitos normativos ínsitos nos artigos 24.º, n.º 4, alínea e) e 2.º, n.º 3, alínea b), subalínea 7), ambos do CIRS, resulta que a atribuição das ações em benefício dos trabalhadores efetuada pela entidade patronal é considerada um rendimento em espécie, qualificado como rendimento de trabalho dependente e, como tal, sujeito a tributação em sede de IRS.
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No caso em apreço, sendo uma atribuição gratuita de ações e considerando a Requerente estar investida do poder de disposição das ações apenas em 18.05.2021, entende-se que a entidade patronal comunicou corretamente à AT (e a contribuinte inscreveu na respetiva Mod. 3 de IRS) a atribuição das 545 ações no valor da cotação de cada ação naquela data, USD 40,31/EUR 33,164, o que perfez um total de €18.074,75. Ou seja, ao contrário do que afirma a Requerente, em 18.05.2021 inexistiam quaisquer limitações que impedissem a Requerente de vender as ações.
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Nos termos do artigo 1.º, do CIRS, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares incide sobre o valor anual dos rendimentos das várias categoriais, quer em dinheiro quer em espécie.
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E por ser assim, o sistema português de tributação do rendimento das pessoas singulares não se reduz à tributação dos acréscimos patrimoniais que se traduzem num aumento líquido dos meios monetários do seu titular (cash basis).
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Embora o sistema português favoreça o “princípio da realização”, o que ressalta, particularmente, no regime das mais-valias, a verdade é que o figurino de tributação escolhido pelo legislador não assenta exclusivamente nos fluxos monetários, contemplando, nomeadamente, os acréscimos patrimoniais que se traduzem em pagamentos em espécie.
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Por este motivo, os rendimentos tributáveis, nomeadamente os do trabalho dependente, ficam sujeitos a tributação quando são pagos em dinheiro, mas também quando atribuídos em espécie (“bens, direitos ou benefícios”).
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Para a Requerente – erradamente –, o IRS visa exclusivamente tributar os acréscimos patrimoniais que tenham tradução num aumento líquido dos meios monetários do seu titular (ou, no caso, dos “fringe benefits” – que não sejam atribuição de ações –, no aproveitamento de um bem).
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E por assentar a sua tese nessa premissa, a Requerente conclui que a norma constante da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, incorpora uma presunção do valor de realização das ações atribuídas como remuneração do trabalho dependente. Mas, obviamente, não é essa a intenção do legislador no caso em apreço, porquanto, o objeto de tributação é, concreta e objetivamente, o acréscimo patrimonial correspondente à entrada de ações no património do trabalhador.
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E, portanto, o que se pretende tributar é o valor da ação, líquido de despesas eventualmente incorridas, e não o ganho obtido com a sua realização.
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De resto, esta confusão da tributação dos planos de ações com a realização das mesmas, que permeia todo o PPA, foi também cometida no estudo de SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA em que a Requerente se apoia, estudo esse cujas conclusões foram já, entretanto, refutadas por XAVIER DE BASTO, na obra “IRS: Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos”, Coimbra Editora, 2007, p. 48.
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Não há qualquer tributação de um “ganho meramente potencial” na tributação dos planos de ações, como aquele autor bem explica. Nem se “ficcionam valores” quando se estabelece o critério de equivalência monetária para o rendimento em espécie.
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Com efeito, a atribuição de ações em benefício dos trabalhadores, gratuitamente ou em condições privilegiadas face aos restantes subscritores, tem subjacente a existência de um vínculo laboral com a entidade patronal, constituindo por isso um benefício auferido em razão da relação laboral existente, e por isso enquadrável como rendimento do trabalho dependente nos termos da subalínea 7), da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS.
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É certo que a atribuição de ações não corresponde a um pagamento em dinheiro, antes consubstancia um rendimento em espécie, porquanto, os trabalhadores passam a deter os valores mobiliários que, caso não lhes tivessem sido atribuídos pela entidade patronal, teriam de ser adquiridos pelos trabalhadores (enquanto subscritores comuns), com recurso a um pagamento que corresponderia um decréscimo do seu património.
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Assim, o trabalhador, por via da atribuição das ações, incrementa o seu património mobiliário, sem despender para o efeito qualquer recurso financeiro próprio, razão pela qual esta atribuição de ações corresponde a um rendimento em espécie atribuído pela entidade patronal ao trabalhador.
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Poder-se-á equacionar a este propósito que o plano de atribuição de ações faz parte do “pacote salarial” atribuído aos trabalhadores aquando da celebração do contrato de trabalho e que, não sendo pagos aqueles rendimentos em espécie (determináveis de acordo com o valor dos bens e/ou direitos atribuídos), poderiam em sua substituição ser pagos em dinheiro rendimentos equivalentes, não havendo dúvidas quanto a estes da sua tributação em sede de categoria A de IRS.
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A esta luz, torna-se claro que é falacioso o argumento prosseguido no douto PPA, segundo o qual em “todas as remunerações acessórias aí elencadas, com a exceção das decorrentes de planos de ações (...) existe um efeito caixa (equivalente ao valor que deixa de ser gasto), líquido no orçamento do trabalhador”.
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Ademais, não impressiona esta comparação com as outras remunerações acessórias previstas na alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS, desde logo, porque se trata de uma lista exemplificativa, nela cabendo qualquer entrega em espécie de bens, quer tenham expressão imediata ou não em dinheiro ou uso.
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De resto, levando a teste da Requerente às últimas consequências, quaisquer pagamentos efetuados pela entidade empregadora através de bens não monetários que não permitissem “uso ou substituição”, que não constassem da lista naquela alínea b), ficariam excluídos de tributação. Ora, não poderia ter sido essa a intenção do legislador.
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Coisa diferente – mas que, como referimos, a Requerente confunde, ao longo do PPA, com este rendimento em espécie –, prende-se com os ganhos (dividendos ou mais-valias), que podem vir a ser gerados com os direitos de disposição destas ações.
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Com efeito, tendo sido atribuídas ações aos trabalhadores por um determinado valor de mercado podem estas gerar dividendos e valorizar ou desvalorizar, mais ou menos, com o decurso do tempo. Mas a gestão das ações e a potencialização do ganho gerado com as mesmas decorre de uma decisão do trabalhador no sentido de vender ou não, e quando, as ações que lhe foram atribuídas.
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Foi decisão da Requerente não vender as ações a 18.05.2021, o momento considerado para efeitos de determinação do rendimento em espécie.
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Neste caso, tendo a Requerente optado por vender parte das ações em novembro de 2022, por um valor inferior, permitiu-lhe apurar uma menos-valia que pode ter deduzido ou poderá vir a deduzir a eventuais mais-valias que tenha/venha a apurar em sede de IRS nos cinco anos seguintes (Cfr. artigo 55.º, n.º 1, alínea d), pelo que não colhe o argumento aduzido pela Requerente no artigo 101.º, do PPA.
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Ou seja, os dividendos ou as eventuais mais-valias que os trabalhadores venham a obter posteriormente são rendimentos diferentes (respetivamente, Categoria E ou Categoria G de IRS).
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Não há, assim, qualquer dúvida de que, na norma de incidência dos planos de atribuições de ações, não existe qualquer presunção de ganho, porquanto o facto que se pretende tributar é a atribuição de um bem ou direito que, na data da atribuição, tem um determinado valor de mercado e que passa a integrar o património dos trabalhadores, a custo “zero”.
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Os ganhos posteriores, decorrentes da detenção destes bens ou direitos pelos trabalhadores, a existirem, são tributados em sede da categoria E (dividendos) ou G (mais-valias) de IRS.
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O desiderato da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS é o de estabelecer, primeiro, (i) que a equivalência pecuniária dos rendimentos em espécie, que assumam a forma de atribuição de ações, se faz através do critério do valor de mercado, e, segundo, (ii) que o valor de mercado a considerar é o que se verificar “no momento em que os trabalhadores ou membros dos órgãos sociais são plenamente investidos dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição e oneração”.
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Este segundo critério, que baliza temporalmente o valor de mercado a considerar, reflete a preferência do legislador no momento em que o rendimento em espécie assume maior liquidez – em respeito do princípio da capacidade contributiva.
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Tal, porém, não pode nem deve ser confundido – como o faz a Requerente – com uma intenção de tributar o ganho potencial com a realização das ações!
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Esta opção do legislador não consiste na consagração de uma presunção legal, isto é, de uma disposição que assevera um facto desconhecido com recurso a um facto conhecido (artigo 349.º, do Código Civil). Com efeito, o valor de mercado das ações e a capacidade contributiva manifestada na sua atribuição não são factos desconhecidos do legislador a que este apenas chega através da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS.
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Aliás, o valor das ações aquando da primeira janela de negociação é um facto confessado pela Requerente. Foi nesse valor que o património da Requerente objetivamente teve um acréscimo e foi também sobre esse valor que incidiu a tributação.
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Sendo certo que, ao contrário do que pretende a Requerente, o que o legislador pretende tributar é o acréscimo patrimonial verificado com a entrada das ações no património do trabalhador e, não, os ganhos que eventualmente se verifiquem com a venda dessas ações.
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Também não colhe a comparação que a Requerente ensaia fazer com o n.º 2, do artigo 44.º, do CIRS, sobre a qual se pronunciou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 211/2017, 02.05.2017, proc. 285/15. Nessa norma, ficciona-se um valor de aquisição que não coincide com o valor auferido pelo contribuinte, para efeitos de cálculo de mais-valia (VPT), ou seja, ficciona-se um ganho que poderá não ter tido uma expressão real na transação da causa.
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Menos sentido faz ainda confundir a tributação dos rendimentos em espécie com a discussão sobre a tributação de mais-valias sem pagamento havida no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 100/2022. Toda a argumentação que a Requerente desfia neste ponto do seu PPA só muito artificialmente se relaciona com os atos de liquidação ora em crise, servindo apenas o propósito de reforçar o equívoco que a Requerente pretende urdir em volta da questão dos rendimentos em espécie, confundindo-os com tributação de mais-valias.
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Pensar que na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS se “ficciona” um ganho é algo que só se equaciona quando se parte da premissa errada de que ali se procura tributar uma mais-valia.
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A circunstância de o bem atribuído como remuneração acessória sofrer oscilações de valor após ter entrado no património do trabalhador (algo que, de resto, poderia suceder em qualquer outro tipo de bem, que não ações – veja-se o exemplo de uma obra de arte –), é algo que terá, como vimos, consequências ao nível de mais ou menos-valias, sendo certo que, diferir a tributação dos pagamentos em espécie para o momento da sua realização resultaria em situações insuperáveis de desigualdade.
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Consequentemente, verifica-se uma impossibilidade objetiva de violação do disposto no artigo 73.º, da LGT, que prevê o carácter obrigatoriamente ilisivo das presunções constantes de normas de incidência, aqui entendidas no seu sentido lato de normas de determinação e quantificação do imposto. Ao inexistir naquela norma a previsão de qualquer presunção, terá também de se concluir inexistir violação do princípio da proporcionalidade resultante da alegada impossibilidade de ilisão da presunção, improcedendo também a ilegalidade invocada pela Requerente a este respeito.
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Também não se verifica qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade, na sua dimensão de capacidade contributiva. Bem ao contrário, o respeito pelo princípio da capacidade contributiva está patente na solução normativa consagrada na alínea e), do nº 4, do artigo 24.º, do CIRS, ao estabelecer que o valor de mercado das ações atribuídas será aquele que se verificar “no momento em que os trabalhadores ou membros de órgãos sociais são plenamente investidos dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração”.
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De resto, não se verifica no regime instituído pela alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, qualquer discriminação arbitrária, irrazoável ou infundada, que não se apoie na materialidade das situações objeto da norma e na compatibilização com outros princípios constitucionais, tais como a praticabilidade, o combate à evitação fiscal e a prossecução da igualdade entre os cidadãos tendo em vista a justa repartição da riqueza.
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Pelo contrário, a tributação dos planos de atribuição de ações é uma opção do legislador ordinário que visa precisamente assegurar o cumprimento do princípio da igualdade tributária.
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É a tese da Requerente, ao confundir a tributação das remunerações acessórias mediante atribuição de ações com a tributação das mais valias, que constitui uma ameaça ao princípio da igualdade, como bem alertou XAVIER DE BASTO.
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Por outro lado, como a própria Requerente deixou evidente no seu articulado, a entidade patronal declarou a atribuição das ações no momento em que a trabalhadora foi investida do poder de dispor das ações que lhe foram atribuídas, isto é, no 1.º dia da janela de negociações de 2021 (18 de maio) e não no momento em que, de acordo com o plano de atribuição de ações, lhe seriam atribuídas (“primeiro mês do trimestre em que completa 2 anos desde o grant/contratação – 04.01.2021”).
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Por fim, na liquidação vigente está em causa a tributação da atribuição das ações enquanto rendimento de espécie decorrente de trabalho dependente. Os ganhos e/ou perdas geradas com a titularidade destes valores mobiliários são sujeitos a tributação na esfera da categoria E (dividendos) ou Categoria G (mais-valias), sendo aplicável o regime de reporte de perdas estabelecidas no Código de IRS para estas categorias de rendimentos.
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Face a todo o exposto, não poderá proceder o ora propugnado pela Requerente.
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SANEAMENTO
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
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As partes gozam de personalidade, capacidade judiciária, legitimidade processual e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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O processo não enferma de nulidades.
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A exceção suscitada pela Requerida será apreciada após determinada a matéria de facto.
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MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
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Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A C... Portugal é uma sociedade que integra um vasto grupo internacional de sociedades, o Grupo B..., e cujo negócio está focado na plataforma (www...) , líder mundial no comércio online de artigos de moda de luxo.
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Como forma de reconhecimento do esforço dos seus trabalhadores, no âmbito da respetiva política de recursos humanos aplicável a nível global, para além da retribuição mensal (salário) e de outras componentes (como o subsídio de alimentação) devidas por força da relação laboral, o Grupo B... institui um Plano de Atribuição de Ações Global (doravante “Plano”) (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA e depoimento prestado pela testemunha E... na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT).
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Tal Plano é aplicável a todos os trabalhadores da C..., com contrato de trabalho sem termo, independentemente da categoria profissional ou posição que ocupam nos quadros da mesma (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA e depoimento prestado pela testemunha E... na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT).
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O referido Plano tem por objeto as ações da sociedade mãe da C... Portugal, a D... Limited, residente, para efeitos fiscais, no Reino Unido, e cotada na Bolsa de Nova Iorque – New York Stock Exchange (doravante “NYSE”) –, sendo essas ações transacionadas em bolsa no mercado norte americano.
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Neste Plano, no momento inicial, a C... atribui aos trabalhadores um certo número de Unidades de Ações Restritivas (UARs) da D... Limited (na terminologia em inglês, Restricted Stock Unit – RSU), que representa o direito a receber, no futuro, uma Ação Ordinária de Classe A da D... Limited (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
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A cada um dos trabalhadores é entregue um dossier composto pelo “Aviso de Atribuição de Unidades de Ações Restritas”, “Anexo A” (“Datas de Aquisição”), e “Anexo B” (“Contrato de Unidades de Ações Restritas”) (Cfr. Modelo do Documento n.º 3 junto ao PPA).
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Do “Anexo A” consta o calendário que define os momentos em que o direito futuro (incorporado nas UARs), se irá materializar, ou seja, quando as Ações Ordinárias de Classe A da D... Limited (doravante “Ações”) serão efetivamente atribuídas aos trabalhadores ao abrigo do Plano (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
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Este calendário está intrinsecamente ligado ao vínculo laboral do trabalhador com a C..., uma vez que o trabalhador apenas terá direito a converter as UARs em Ações no final de cada um dos quatro anos seguintes à “Data de Atribuição” (adesão ao Plano) se mantiver aí o seu vínculo laboral com a C... Portugal (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
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Conforme resulta do calendário constante do “Anexo A”, aos trabalhadores que mantenham vínculo laboral no final de cada um dos quatro anos seguintes à “Data de Atribuição” (adesão ao Plano), é atribuída a proporção de 25% das Ações incorporadas no total das UARs que lhe foram comunicadas (Cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
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Os trabalhadores apenas podem proceder à venda das ações nas denominadas “Janelas de Negociação”, através da plataforma interna (Shareworks), o que se deve a exigências regulatórias (em especial por estarem admitidas à negociação em bolsa) e à política de tolerância zero em relação ao abuso de informações privilegiadas (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA e depoimento prestado pela testemunha E... na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT).
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Nos termos da “Política sobre o Abuso de Informações Privilegiadas (Insider Trading)”, “Os C... apenas poderão comprar, vender ou de outra forma transferir valores mobiliários durante uma janela de negociação. Uma janela de negociação é um período que se inicia com a abertura da bolsa de valores no segundo dia de negociações após o dia em que a C... divulga publicamente os resultados financeiros anuais, semestrais e trimestrais e termina no (i) 7.º dia do terceiro mês de cada trimestre fiscal e (ii) 30.º dia após a abertura da janela de negociação, o que ocorrer primeiro.” (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA).
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Mesmo nos períodos referidos em J., o Grupo B... pode determinar a suspensão das negociações de ações por parte dos trabalhadores devido a desenvolvimentos que ainda não foram divulgados ao público (Cfr. Documento n.º 4 junto ao PPA).
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Em 2021, existiram as seguintes quatro “Janelas de Negociação”:
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Entre 2 de março e 5 de março (4 dias);
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Entre 18 de maio e 7 de junho (21 dias);
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Entre 24 de agosto e 7 de setembro (16 dias);
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Entre 23 de novembro e 7 de dezembro (15 dias);
ou seja, em 2021, houve um total de 55 dias de negociação, com uma “Janela de Negociação” em cada trimestre (Cfr. Documento n.º 5 junto ao PPA).
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Em 2022, as “Janelas de Negociação” foram as seguintes:
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Entre 1 de março e 7 de março (7 dias);
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Entre 31 de maio a 7 de junho (8 dias);
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Entre 30 de agosto a 7 de setembro (9 dias);
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Entre 22 de novembro e 7 de dezembro (16 dias);
ou seja, em 2022, houve um total de 40 dias de negociação, com uma “Janela de Negociação” em cada trimestre (Cfr. Documento n.º 6 junto ao PPA).
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O valor de mercado (cotação) das ações da D... Limited tem oscilado num período muito curto de tempo (Cfr. https://www...) e depoimento prestado pela testemunha E... na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT).
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As ações atribuídas não conferiram direito a dividendos no passado (Cfr. https://www...) e depoimento prestado pela testemunha E... na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT).
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Os gastos relativos à atribuição destas ações aos trabalhadores em Portugal são totalmente suportados pela D... Limited, não tendo a C... Portugal qualquer benefício, nomeadamente, a dedução do gasto em IRC em Portugal (Cfr. Documento n.º 7 junto ao PPA).
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A Requerente celebrou um contrato de trabalho com a C... Portugal, no dia 04 de março de 2019, com duração indeterminada.
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Aquando da contratação, foram atribuídas à Requerente 2.180 RSU que lhe dão o direito a receber 2.180 ações, de acordo com o seguinte esquema temporal de vesting (datas de aquisição/vesting dates):
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25% no primeiro mês do trimestre em que completa 1 ano desde o grant/contratação (01.01.2020) – 545 ações;
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25% no primeiro mês do trimestre em que completa 2 anos desde o grant/contratação (04.01.2021) – 545 ações;
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25% no primeiro mês do trimestre em que completa 3 anos desde o grant/contratação (01.01.2022) – 545 ações;
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25% no primeiro mês do trimestre em que completa 4 anos desde o grant/contratação (01.01.2023) – 545 ações;
(Cfr. Documento n.º 8 junto ao PPA).
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A primeira data em que a Requerente pôde transacionar as ações (i.e., quando as restrições se levantaram e foi investida nos direitos inerentes ocorreu em 18 de maio de 2021 (que é o primeiro dia da segunda “Janela de Negociação” do ano 2021).
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Por força das funções que exerce, e nos termos da “Política sobre o Abuso de Informações Privilegiadas (Insider Trading)”, a Requerente esteve impedida de transacionar as ações entre 22 de novembro de 2021 e 30 de agosto de 2022 (Cfr. Documento n.º 9 junto ao PPA).
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Em concreto, em 2021, a Requerente teve a possibilidade de transacionar as ações durante 36 dias:
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Entre 18 de maio e 7 de junho (21 dias);
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Entre 24 de agosto e 7 de setembro (15 dias).
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Em 2022, a Requerente teve a possibilidade de transacionar as ações:
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Entre 30 de agosto a 7 de setembro (9 dias);
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Entre 22 de novembro e 7 de setembro (16 dias).
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A C... Portugal (entidade empregadora da Requerente) comunicou à AT a atribuição das ações pelo valor da cotação das ações da D... Limited à data de 18 de maio de 2021.
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O valor comunicado correspondeu ao número de 545 ações multiplicado pela cotação de cada ação à data de 18 de maio de 2021 e que se cifrava em USD 40,31/EUR 33,164, o que perfez o total de €18.074,75.
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O valor da cotação das ações desde 31 de dezembro de 2021 até à data em que a Requerente recebeu a liquidação de IRS do ano de 2021, foi caindo:
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A Requerente acabou por vender parte das aludidas ações, mais precisamente, 503 ações, em 22 de fevereiro de 2022, tendo recebido por cada ação o valor de USD 7,35/EUR 7,15 (Cfr. Documento n.º 12 junto ao PPA).
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Com a venda das 503 ações, a Requerente recebeu, portanto, o total de €3.596,45.
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Em 2021, a Requerente auferiu rendimentos da categoria A, pagos pela C... Portugal, sujeitos a retenção na fonte no valor de €58.757,50 (grosso modo, salários e subsídios de férias e Natal) (Cfr. Documento n.º 10 junto ao PPA), e foram-lhe atribuídas as já mencionadas 545 ações comunicadas como rendimento dispensado de retenção no valor de €18.074,75 (Cfr. Documento n.º 11 junto ao PPA).
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Aquando da entrega da declaração de rendimentos (Modelo 3) do IRS, em 05.07.2022, pela Requerente, para além dos rendimentos pagos em dinheiro (€58.757,50), encontrava-se pré-preenchida, de igual modo, uma outra linha no quadro 4 do Anexo A, no valor de €18.074,75, referente às ações (Cfr. Documento n.º 11 junto ao PPA).
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Ambos os valores (€58.757,50 + €18.074,75) foram tributados em IRS enquanto rendimento do trabalho (Categoria A), o que originou a liquidação de IRS n.º 2022..., de 06.07.2022, ora reclamada, com o valor a pagar de €6.467,74 (Cfr. Documento n.º 2 junto ao PPA).
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A Requerente não procedeu ao pagamento do imposto, tendo prestado garantia (o seu veículo automóvel) para suspender o processo de execução fiscal movido pela AT para cobrança do IRS (Cfr. Documento n.º 14 junto ao PPA).
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Em 30.09.2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa, pretendendo a anulação da liquidação referida em EE., na parte que tributa como rendimento de trabalho dependente o valor referente às ações atribuídas àquela pela entidade empregadora (Cfr. Documento n.º 1 junto ao PPA).
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Em 20.12.2022, a Requerente submeteu nova declaração de rendimentos (que se destinou apenas a preencher o anexo G, relativo a mais-valias de imóveis, na parte do regime de reinvestimento de um imóvel por si alienado em 2018, em nada interferindo com a anterior liquidação de IRS, mantendo-se os rendimentos de Categoria A exatamente iguais), a qual deu origem a uma nova liquidação (n.º 2023..., de 20.01.2023), com o mesmo valor a pagar (Cfr. PA).
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A emissão de nova liquidação, aquando de uma declaração de substituição, é uma contingência do sistema (Cfr. Esclarecimentos prestados pela Requerida na reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, realizada a 23.10.2023).
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No dia 18 de dezembro de 2023, foi emitido um comunicado interno, dirigido a todos os trabalhadores, pelo Founder, Chairman e CEO da C..., F..., através do qual confirmou a eminente aquisição da C... pela empresa sul coreana Coupang, como forma de garantir a sobrevivência do negócio (Cfr. Documentos juntos com o requerimento de 27.12.2023, apresentado pela Requerente).
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Tal comunicado refere que: “(e)ste acordo significa que a atividade da C... pode continuar a funcionar com uma nova propriedade privada, um balanço mais sólido e uma posição de tesouraria reforçada. Temos estado a trabalhar sem parar para encontrar a melhor forma de preservar o máximo de valor possível na empresa para os nossos trabalhadores, clientes e parceiros. No entanto, lamento informar que, infelizmente, o caminho que estamos a seguir significada que os acionistas – incluindo os detentores de ações dos trabalhadores – não irão realizar qualquer valor das suas participações adquiridas e não adquiridas” (Cfr. Documentos juntos com o requerimento de 27.12.2023, apresentado pela Requerente).
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Também a FAQ dirigida aos trabalhadores afirma que: “(e)mbora não seja imediato, prevê-se que a empresa seja retirada da Bolsa de Valores durante a conclusão da transação e espera-se que os detentores de ações da ..., incluindo trabalhadores, não recuperem nenhum dos seus investimentos pendentes na C... . Não haverá uma trading window onde os trabalhadores possam vender as suas ações. Para além disso, dado o anúncio, anúncio dessa transação, não nos é possível afetar a aquisição de quaisquer ações da C...– o seu futuro capital não será adquirido e o seu salário não será pago. As suas futuras ações não serão adquiridas e não as poderá vender” (Cfr. Documentos juntos com o requerimento de 27.12.2023, apresentado pela Requerente).
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Em 06.04.2023, a Requerente apresentou o PPA que deu origem ao presente processo arbitral (Cfr. Sistema informático do CAAD).
FACTOS NÃO PROVADOS
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Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
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Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
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Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
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O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, da prova testemunhal produzida, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
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Na reunião do artigo 18.º do RJAT que teve lugar no dia 23.10.2023, o Tribunal Arbitral ouviu as testemunhas E..., gerente da C... Portugal, Unipessoal, Lda., e G..., diretor jurídico da C... Portugal, bem como, a Requerente, em declarações de parte, os quais descreveram, apenas, o funcionamento do plano de ações e a relação contratual entre a Requerente e a entidade empregadora. O Tribunal Arbitral considera que as testemunhas e a Requerente prestaram o seu depoimento com isenção e não vê motivo para questionar a veracidade dos mesmos.
V. MATÉRIA DE DIREITO
§1. Questões a decidir
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O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado na sequência do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra o ato de liquidação de IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2021, do qual resultou o valor a pagar de €6.467,74 (seis mil quatrocentos e sessenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos).
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Considerando a factualidade exposta, as pretensões e posições da Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar as seguintes questões:
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A Exceção da inimpugnabilidade do ato de liquidação de IRS invocada pela Requerida;
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Se a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo diploma legal, contém uma presunção legal (ou, uma ficção legal);
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Se as normas acima indicadas são materialmente inconstitucionais por violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva;
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Se inexiste facto tributário por não se verificar a condição da Requerente ter sido “plenamente investida” nos direitos sobre as ações, nos termos da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS;
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Se deve ser reconhecido à Requerente o direito a deduzir as perdas relacionadas com a desvalorização das ações enquanto estas permanecem na sua esfera patrimonial (i.e, até à alienação) ou as verificadas nos períodos de interdição, ou seja, fora das “Janelas de Negociação”.
§2. Da Inimpugnabilidade do ato (de liquidação de IRS)
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Veio a AT invocar que “a liquidação de IRS n.º 2022..., ora impugnada, foi substituída pelo ato de liquidação de IRS n.º 2023..., de 2023-01-20 (a qual foi emitida na sequência da declaração de substituição de IRS apresentada pela Requerente, em 20.12.2022, ou seja, após ter reclamado graciosamente contra a primitiva liquidação de IRS), não se encontrando, por isso, a produzir efeitos na ordem jurídica”,
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concluindo, em consequência, “que se verifica a inimpugnabilidade do ato administrativo, procedendo a exceção dilatória de inumpugnabilidade do ato em sindicância nos presentes autos, o que, por força do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea i), do CPTA (ex vi art. 29.º n.º, al. c) do RJAT), obsta ao conhecimento do mérito e importa a absolvição da Requerida da instância”.
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Para a Requerida, este ato de liquidação decorrente da primeira declaração de IRS seria inimpugnável, porquanto, foi apresentada uma declaração de substituição que deu origem a um novo ato de liquidação que veio a revogar o primeiro, ora em contenda.
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Não obstante, o alegado pela Requerida, em sede de resposta, a mesma acabou por concordar – na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, realizada a 23.10.2023 –, com a falta de fundamento da exceção que havia invocado, dando razão à Requerente, que pugnou pela sua improcedência quando exerceu o seu direito ao contraditório.
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Com efeito, a Requerida admitiu, na aludida reunião que: “De facto quando há a apresentação de uma declaração de substituição, a AT no sistema emite uma nova liquidação. É uma contingência do sistema, digamos assim”; “Em termos de sistema é gerada uma nova liquidação porque no sistema da AT não subsistem liquidações, digamos assim, parciais. Em termos jurídicos esta liquidação subsistiria e surgiria uma nova liquidação. Tal como a parte na resposta à exceção referiu, relativamente ao que está aqui em questão, a liquidação, juridicamente, manteve-se incólume.” (minutos 30:10 a 31:30 da segunda parte da gravação e minutos 31:40 a 32:35 da segunda parte da gravação).
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Aliás, tal entendimento veio a ser reforçado pela Requerida, quando se pronunciou sobre o pedido de reforma da sentença formulado pela Requerente, em que informou o Tribunal Arbitral “de que confirma a descrição da factualidade ocorrida na reunião do artigo 18.º RJAT no passado dia 23-10-2023, tal como descrita pela Requerente na sua exposição.”, acrescentando que “(...) mantém a posição que expressou, em tempo, na referida reunião, de que os argumentos aduzidos pela Requerente na sua resposta à exceção, de 06-10-2023, devem ser atendidos no sentido da não verificação da exceção de inimpugnabilidade do ato.”
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E, efetivamente, é esta também a posição do Tribunal Arbitral, i.e., de que não existe inimpugnabilidade do ato de liquidação por força da apresentação de declaração de substituição e emissão de um novo ato de liquidação, designadamente, quando este em nada contende com o ato de liquidação já praticado e impugnado.
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Desta feita, e sem prejuízo de exaustividade, tomamos por referência o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do Processo n.º 02965/15.9BEPRT, de 07.04.2021, a que aludiu a Requerente, por a ele aderirmos e por ser aqui aplicável (com as devidas adaptações), cujo sumário determina que: “Não é impugnável o ato de liquidação emitido na sequência de um deferimento parcial de uma reclamação graciosa se o impugnante já havia impugnado aquela decisão, seja porque este ato de liquidação não substitui o ato de liquidação impugnado no processo que está pendente, na parte que está sob escrutínio judicial, seja porque esta liquidação também não enferma de qualquer vício próprio.” (negrito nosso)
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Face ao exposto, improcede a exceção de inimpugnabilidade do ato administrativo invocada pela Requerida.
§3. DA QUESTÃO DE FUNDO
§3.1 Da alegada presunção contida na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS
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Sustenta a Requerente, num primeiro momento, que a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo diploma legal, há-de reconduzir-se a uma presunção legal (ou, até, a uma ficção legal), que, face ao disposto no artigo 73.º, da LGT (que afasta expressamente, no domínio das normas de incidência tributária, a possibilidade de existência de presunções inilidíveis), deverá ter-se por ilidível.
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Presunção essa que a Requerente terá afastado ao provar “que não vendeu as ações em 2021 e, portanto, provou não ter tido um rendimento real ou equivalente àquele que foi sujeito a tributação no período de 2021.” “Provou ainda que quando vendeu, em novembro de 2022, grande parte dessas 545 ações (vendeu 503) o rendimento que recebeu foi muito inferior àquele que foi sujeito a tributação (uma vez que recebeu €7,15 por ação quando o valor sujeito a tributação em 2021 foi de €33,164 por ação).”
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Dispõe a subalínea 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do CIRS, o seguinte:
“3 – Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente: (...)
b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respetivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente:
7) Os ganhos derivados de planos de opções, de subscrição, de atribuição ou outros de efeito equivalente, sobre valores mobiliários ou direitos equiparados, ainda que de natureza ideal, criados em benefício de trabalhadores ou membros de órgãos sociais, incluindo os resultantes da alienação ou liquidação financeira das opções ou direitos ou de renúncia onerosa ao seu exercício, a favor da entidade patronal ou de terceiros, e, bem assim, os resultantes da recompra por essa entidade, mas, em qualquer caso, apenas na parte em que a mesma se revista de carácter remuneratório, dos valores mobiliários ou direitos equiparados, mesmo que os ganhos apenas se materializem após a cessação da relação de trabalho ou de mandato social;” (negrito nosso)
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Estabelece a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, o seguinte:
“4 - Os ganhos referidos no n.º 7) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º consideram-se obtidos, respetivamente:
(...)
e) Nos planos de atribuição de valores mobiliários ou direitos equiparados em que se verifiquem pela entidade patronal, como condições cumulativas, a não aquisição ou registo dos mesmos a favor dos trabalhadores ou membros de órgãos sociais, a impossibilidade de estes celebrarem negócios de disposição ou oneração sobre aqueles, a sujeição a um período de restrição que os exclua do plano em casos de cessação do vínculo ou mandato social, pelo menos nos casos de iniciativa com justa causa da entidade patronal, e ainda que se adquiram outros direitos inerentes à titularidade destes, como sejam o direito a rendimento ou de participação social, no momento em que os trabalhadores ou membros de órgãos sociais são plenamente investidos dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração, sendo o ganho apurado pela diferença positiva entre o valor de mercado à data do final do período de restrição e o que eventualmente haja sido pago pelo trabalhador ou membro de órgão social para aquisição daqueles valores ou direitos.” (sublinhado nosso)
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A fim de dar resposta ao problema em questão, afigura-se-nos pertinente indagar se a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, ambos do CIRS, consagra uma presunção (ou, até, uma ficção legal), como aduz a Requerente.
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Na doutrina e na jurisprudência tem sido analisada a distinção entre as ficções e as presunções, na perspetiva do direito fiscal.
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JOÃO SÉRGIO RIBEIRO (“TRIBUTAÇÃO PRESUNTIVA DO RENDIMENTO, Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável”, Almedina, Teses, 2010, pp. 48-49), considera que o critério de distinção entre as duas realidades deve ser “eminentemente jurídico” e que “À luz desse critério a diferença essencial entre presunção e ficção legal passa a residir no facto de a primeira ter como ponto de partida a verdade de um facto, ou seja, uma ligação à ordem natural das coisas, dado que de um facto conhecido se infere um facto desconhecido provável; enquanto a ficção, contrariamente, nasce de uma falsidade ou de algo irreal, desligado da ordem natural das coisas. Isto é, na ficção cria-se uma verdade jurídica distinta da real; na presunção cria-se uma relação causal entre duas realidades ou factos naturais. (...).
A despeito de tanto a presunção como a ficção constituírem o resultado de técnicas legislativas, através das quais se depreendem consequências de factos jurídicos tomados como verdadeiros, o que verdadeiramente as distingue é a circunstância de, na presunção legal, o facto presumido ter um alto grau de probabilidade de existir, e de, na ficção, o facto presumido ser muito improvável”.
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CASALTA NABAIS, também se debruçou sobre esta questão (“O dever fundamental de pagar impostos”, Almedina, 2004, p. 500-501) escrevendo que “(...) há que separar as situações em que estamos face a presunções legais, em que de um facto conhecido (real ou até jurídico) se infere um facto jurídico naturalmente provável, caso em que se há-de admitir prova em contrário, para as compatibilizar com o princípio da capacidade contributiva, das situações em que nos deparamos com a assunção de regras da experiência comum como regras de tributação, verificando-se assim a construção de normas jurídicas (ou de tipos legais) com o (eventual) recurso a ficções legais. Nestas, o princípio da capacidade contributiva sofre o natural embate dos princípios da praticabilidade e da eficaz luta contra a evasão fiscal, havendo de contentar-se com uma válvula de segurança relativamente aqueles casos que, por atingirem tais rigores de iniquidade, não podem deixar de permitir o afastamento das regras da experiência”.
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Assim, por regra, as presunções legais estipulam uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada mediante prova em contrário – presunções ilidíveis ou presunções iuris tantum. Já as presunções iuris et de iure não admitem prova em contrário, sendo assim também chamadas de presunções inilidíveis ou absolutas (as quais se aproximam da figura das ficções legais), e tidas como a exceção àquela regra (Cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
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Em matéria de incidência tributária cumpre recordar a regra (sem exceção) consagrada no artigo 73.º, da LGT: “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”
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Tem-se entendido que, para os efeitos previstos no artigo 73.º, da LGT, a referência a normas de incidência é utilizada na aceção lata (as que “definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação”) e não apenas na aceção mais restrita (normas que indicam o sujeito passivo e a definição da matéria coletável, sem abranger a sua determinação).
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Assumindo-se que “as presunções em matéria tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, mas “também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objetiva”, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores, (...)” (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11.10.2017, proferido no processo n.º 0880/16, que aplicou o artigo 73.º, da LGT, em sede de imposto sobre o rendimento.
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Ora, no caso em apreço, e à luz da doutrina e jurisprudência citada, temos para nós que não existe qualquer presunção legal (ou ficção legal) ou que a mesma resulte da exegese do bloco normativo invocado pela Requerente.
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Na verdade, a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, ambos do CIRS, não permite um juízo interpretativo claro sobre a natureza presuntiva das normas em apreço quanto ao valor e ao regime da base tributável.
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Ou seja, tais normas não consagram, no nosso entender, uma presunção legal, i.e., disposições que asseveram um facto desconhecido com recurso a um facto conhecido (Cfr. artigo 349.º, do Código Civil), nem tampouco uma ficção legal, antes pelo contrário.
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Afigura-se-nos, sim, que o legislador entendeu seguro afirmar que por via da aquisição de ações, o adquirente passou a ter na sua esfera jurídica um património de determinado valor, razão pela qual se considera existir uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para o objeto do imposto.
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Não existe, nas aludidas normas (designadamente, na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS), qualquer presunção de ganho, porquanto, o facto que se pretende tributar é a atribuição de um bem ou direito que, na data da atribuição, tem um determinado valor de mercado e que passa a integrar o património dos trabalhadores (e, no caso em concreto, a custo zero).
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Assim, a Requerente, por força da atribuição de ações, incrementa o seu património mobiliário, sem despender para o efeito de qualquer recurso financeiro próprio, fruto da existência de um vínculo laboral com a entidade patronal, o que constitui um benefício auferido em razão dessa relação de trabalho dependente.
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A alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, ao referir que o ganho decorrente do plano de atribuição de ações se considera obtido no momento em que os trabalhadores se encontram plenamente investidos nos direitos emergentes das ações (ou seja, a partir do momento em que podem exercer livremente os direitos inerentes às ações, em particular os de disposição ou oneração), e que o rendimento tributável resulta da diferença positiva entre o valor de mercado naquela data e o que eventualmente haja sido pago pelo trabalhador para aquisição das ações, consagra, sim, uma regra objetiva de determinação do valor.
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A tributação, nos termos impostos pela alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, nada tem de presuntivo e a sujeição à incidência não está, de modo nenhum, desligada de um indicador de aumento efetivo do poder aquisitivo do contribuinte ou, na terminologia constitucional, de ampliação da capacidade contributiva operada no período tributário, entendida como fundamento e critério de tributação do rendimento.
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Tal norma estabelece, justamente, um critério valorimétrico (objetivo), com nexo direito (e inteiramente identificado) com a forma como o incremento se gerou e se consolidou no património da Requerente.
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Como foi bom de ver, o valor de mercado das ações, no momento em que a Requerente delas podia dispor (18 de maio de 2021, i.e., no primeiro dia da segunda “Janela de Negociação” após terem sido levantadas as restrições que impendiam sobre a mesma no que contende com a transmissibilidade das ações ao abrigo das regras de política interna do Grupo B...), correspondia a um montante real/objetivo e não ficcionado, que integrava a sua esfera.
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E, é esse rendimento, devidamente determinado e que ingressou no património da Requerente, que se pretende tributar, ao abrigo das ditas normas, laborando esta em erro, desde logo, ao confundir rendimento com “liquidez”.
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Aliás, como bem refere a Requerida, “o valor das ações aquando da (...) janela de negociação é um facto confessado pela Requerente.” E, “foi esse o valor que o património da Requerente objetivamente teve um acréscimo e foi também sobre esse valor que incidiu a tributação.” (negrito nosso)
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Recorde-se que, segundo os citados normativos, a atribuição de ações a favor dos trabalhadores efetuada pela entidade patronal é considerada um rendimento em espécie, qualificado como rendimento de trabalho dependente e, como tal, sujeito a tributação em sede de IRS.
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A diferença entre o preço de mercado das ações e o preço por que as ações foram adquiridas (in casu, a custo zero) constitui rendimento da Categoria A para efeitos de IRS, pois, não há dúvida de que decorre de uma relação de trabalho: a Requerente só pôde adquirir as ações nos termos em que as adquiriu por ser trabalhadora da empresa, o que constitui um benefício que lhe foi atribuído em razão daquela relação.
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A Requerente adquirente das aludidas ações colheu um efetivo acréscimo patrimonial, o que permitiu um crescimento da sua esfera patrimonial.
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Posto isto, é inevitável dizer-se que o trabalhador “recebeu um rendimento em espécie traduzido na aquisição de um ativo por um preço inferior ao do seu valor do mercado[4]” (aliás, no caso concreto, a Requerente adquiriu-as a custo zero).
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Saliente-se que a concessão de ações em benefício dos trabalhadores por parte da entidade patronal, está exclusivamente associada à tributação da vantagem acessória strictu sensu, e por isso, é uma questão autónoma da eventual tributação de rendimento de capital, em sentido amplo, dividendos e/ ou mais-valias, os quais correspondem a rendimentos de natureza diversa da que se discute nos autos.
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Não se tratam aqui de rendimentos/ganhos meramente potenciais, que só se concretizarão aquando da eventual venda das ações pela Requerente, como esta afirma, pois, tal venda reporta-se já a um evento posterior ao acréscimo patrimonial ocorrido aquando da aquisição das ações.
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Sendo que a eventual tributação por mais-valias, aquando da venda das ações por parte da Requerente, não impede que estas sejam, desde logo, tributadas em IRS e como rendimento de trabalho dependente pela diferença entre o preço de mercado e o preço pelo qual foram adquiridas, na medida em que, conforme refere a Requerida, “(...) o objeto de tributação é, concreta e objetivamente, o acréscimo patrimonial correspondente à entrada de ações no património do trabalhador. (...) o que se pretende tributar é o valor da ação, líquido de despesas eventualmente incorridas, e não o ganho obtido com a sua realização.” (negrito nosso)
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E, é esta a confusão que sustenta quase todo o PPA, porquanto, a Requerente confunde a tributação dos planos de ações com a tributação em sede de mais-valias, apoiando-se no estudo de SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA[5], o qual não só foi refutado, posteriormente, por XAVIER DE BASTO[6], como teve por assente “um cenário que acabou por não entrar em vigor. Tendo em conta aquela realidade (de que “as legislações tencionavam tributar os ganhos imputáveis às stock options, enquanto rendimentos do trabalho, o faziam para preencher lacunas na tributação do ganho final que os beneficiários possam vir a auferir”), consideraram que, a tributação para as mais-valias seria o único momento oportuno para ocorrer a tributação dos ganhos decorrentes das stock options.[7]”
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Realidades estas, que como já se referiu, reiteradamente, são, efetivamente, distintas.
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Citando-se XAVIER DE BASTO[8], “(...) É preciso não confundir o regime fiscal dos rendimentos das acções – que são dividendos e mais-valias – adquiridas ao abrigo destes planos, com o tratamento fiscal da “vantagem” atribuída pela entidade patronal, ao delinear, a favor dos seus trabalhadores ou administradores, estes planos de remunerações acessórias assentes em acções. Trata-se de rendimentos diferentes e só os segundos podem ser considerados rendimentos do trabalho e como tal tributados. (...) Os tratamentos fiscais têm lógicas diferentes e são, em larga medida, independentes. (...)”
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É verdade que a atribuição de ações aos trabalhadores por um determinado valor de mercado podem valorizar ou desvalorizar, com o decurso do tempo, contudo, a gestão e a potencialização do ganho gerado com as mesmas decorre de uma decisão do trabalhador. Foi a Requerente que decidiu não alienar as ações a 18.05.2021 (primeiro momento em que podia dispor das mesmas), colocando-se, assim, numa posição de acionista “comum”, aguardando uma potencial valorização das ações do grupo B... para o fazer, assumindo o risco inerente a tal decisão.
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Sendo que tais oscilações (valorização ou desvalorização das ações) terão repercussões, sim, em sede de mais-valias, pois, como afirma a Requerida, “tendo a Requerente optado por vender parte das ações em novembro de 2022 por um valor inferior, permitiu-lhe apurar uma menos-valia que pode ter deduzido ou poderá vir a deduzir a eventuais mais-valias que tenha/venha a apurar em sede de IRS nos cinco anos seguintes – “O saldo negativo apurado num determinado ano, relativo às operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g), h) e k), do n.º 1 do artigo 10.º, pode ser reportado para os cinco anos seguintes quando o sujeito passivo opte pelo englobamento” – cfr. art. 55.º, n.º 1 d) CIRS.”
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Por outro lado, também não colhe o argumento da Requerente de que todas as remunerações acessórias aí elencadas (artigo 2.º, n.º 3, alínea b), do CIRS), com a exceção das decorrentes de planos de ações, possuem traços comuns que as afastam das ações e as assimilam claramente a dinheiro: umas são mesmo atribuições em dinheiro, ainda que não com o rótulo formal de salário ou ordenado (ou abono de família e o subsídio de refeição) e as outras que possuem valor de uso ou substituição (utilização de viaturas automóvel), que evitam que o trabalhador faça ele mesmo esse dispêndio, como é o caso de todas as demais remunerações acessórias (salvo as atribuições de ações, é claro),
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desde logo, porque o elenco vertido na letra da lei (artigo 2.º, n.º 3, alínea b), do CIRS) não é exaustivo (não é um elenco fechado), podendo o legislador enquadrar qualquer situação no conceito de vantagem acessória, desde que se verifiquem os fundamentos para tal, e por isso, não nos parece que a sua intenção seja excluir de tributação quaisquer pagamentos pela entidade empregadora através de bens não monetários que não permitam o “uso ou substituição”, que não constem da “lista” consagrada naquela alínea b).
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Também não se compreende em que medida o facto de a C... Portugal não deduzir qualquer gasto em IRC relativo às ações atribuídas aos seus trabalhadores, releva para efeitos de tributação da Requerente em sede de IRS, pois, como esta bem refere, o IRS tem imperativos de capacidade contributiva que não têm de depender do que se passa ao nível do IRC, e por isso, afigura-se-nos que não há que convocar qualquer falta de simetria, porquanto, tratam-se de impostos de diferente natureza, com regulamentação e princípios distintos (pelo menos na sua dimensão).
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Já quanto à Jurisprudência invocada pela Requerente (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 211/2017, de 02/05/2017, processo n.º 285/15 e n.º 488/2021, de 07/07/2021, processo n.º 171/20; Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos 0880/16, 01402/16, 02681/15.1BEALM, 01108/14; Acórdãos Arbitrais, proferidos nos processos n.º 287/2016-T, de 16/11/2016, 411/2022-T, 144/2022-T e 463/2021-T), sobre presunções legais, há que salientar que não só se referem a realidades factuais totalmente distintas da dos autos, como as normas aí em apreciação permitem um juízo interpretativo claro sobre a sua natureza presuntiva, em resultado do seu texto, i.e., induzem a uma interpretação no sentido da verificação de presunção ou presunções quanto ao valor e regime da base tributável, o que não sucede no caso em apreço, como referimos supra.
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De tudo o que vem dito, considera o Tribunal Arbitral que a alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, ambos do CIRS, não contém qualquer presunção legal (ou ficção legal), como sustenta a Requerente.
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Aliás, cremos que a própria Requerente, não obstante invocar a existência de uma presunção legal (ou de uma ficção legal), insurge-se, na verdade, contra a opção legislativa tomada pelo legislador quanto ao momento da tributação e ao modo de determinação do valor a tributar, conforme se infere da sua afirmação: “(...) podendo (...) tributar como rendimento do trabalho a diferença entre o valor de mercado à data da atribuição e o valor pago pelas ações se estas tiverem sido alienadas por valor superior àquele valor de mercado (sendo o excesso tributado como mais-valia) ou tributar a diferença entre o valor de alienação e o valor pago pelo trabalhador como rendimento do trabalho, quando as ações se tiverem desvalorizado.”
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E, pese embora, se possa, eventualmente, criticar a “bondade” das aludidas normas e as inerentes consequências, que a Requerente aduz ao longo dos seus articulados, é de ressaltar que não nos cabe aqui opinar sobre as mesmas, mas somente recordar que o juízo que possa ser feito sobre a “bondade” de uma norma legal é (no plano infra-constitucional, em que por ora nos situamos), totalmente irrelevante em termos da decisão a ser tomada: o Tribunal Arbitral julga segundo o direito constituído (Cfr. artigo 2.º, n.º 2, do RJAT) e “O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo” (Cfr. artigo 8.º, n.º 2, do Código Civil).
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Face a todo exposto, considera o Tribunal Arbitral que não será de anular a liquidação de IRS aqui sindicada, na parte em que tributou a quantia de €18.074,75, com base no presente fundamento, porquanto, a Requerente foi tributada sobre um rendimento que, efetivamente, integrou o seu património, nos termos e para os efeitos, do disposto nos citados normativos.
§3.2 Da alegada inconstitucionalidade material das normas por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva
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Invoca, também, a Requerente que a liquidação aqui em crise “deve ser anulada, por a norma contida na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS (lida em conjunto com o ponto 7, da alínea b), do n.º 3, do artigo 2.º, do mesmo Código), ser materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da igualdade tributária e do princípio da capacidade contributiva, segundo os artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa, na interpretação segundo a qual para efeitos de determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a planos de atribuição de ações, ali se estabelece uma “presunção inilidível” não permitindo o afastamento da tributação sempre que o sujeito passivo demonstre que não vendeu as ações nem retirou qualquer vantagem económica das mesmas.”
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Em primeiro lugar, importa salientar que a “bondade” de uma norma legal não envolve, forçosamente, uma questão inconstitucional. Há, por princípio, que respeitar a liberdade de configuração normativa do legislador ordinário.
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Por outro lado, ao inexistir naquelas normas a previsão de qualquer presunção, conclui-se também inexistir violação dos princípios constitucionais referidos supra, na interpretação segundo a qual para efeitos de determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a planos de atribuição de ações, ali se estabelece uma “presunção inilidível”, que não permite o afastamento da tributação sempre que o sujeito passivo demonstre que não vendeu as ações nem retirou qualquer vantagem económica das mesmas, confundindo, mais uma vez, a Requerente, a tributação das remunerações acessórias mediante atribuição de ações com a tributação das mais-valias.
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Ora, o princípio da igualdade fiscal tem por base o princípio geral da igualdade, previsto no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, dele resultante o princípio da capacidade contributiva que, por imperativo constitucional, é o pressuposto e o critério da tributação.
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O princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo “a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério – o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” – Cfr. Casalta Nabais, “Direito Fiscal”, 5.ª edição, Coimbra, 2009, p. 151-152).
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Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva “afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-se a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” – Cfr. Casalta Nabais, “Direito Fiscal”, 5.ª edição, Coimbra, 2009, p. 154).
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“Só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem” (Cfr., v.g., o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 47/2010).
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Dito isto, saliente-se, desde já, que a Requerente, nesta sua segunda linha de argumentação, limita-se a esclarecer, numa perspetiva teórica, em que consistem estes princípios constitucionais, fazendo alusão a diversos acórdãos, sem sequer explicitar, por exemplo, qual a dimensão da igualdade violada.
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Certamente, que não será a igualdade relativamente aos trabalhadores “em geral” que, com idêntico montante de rendimento, são integralmente pagos em dinheiro, pois, conforme afirma Xavier de Basto, “A tributação dos ganhos resultantes dos planos – que são coisa diferente, são rendimento diferente do resultante das mais-valias realizadas com os títulos – faz-se por obediência aos princípios da igualdade horizontal no tratamento dos rendimentos do trabalho. Quer-se que os trabalhadores que recebem tais remunerações não fiquem em vantagem relativamente aos que, com idêntico montante de rendimento, são pagos integralmente em dinheiro. Não tributar os planos de opção, subscrição e aquisição de ações, com pretexto de que mais tarde as mais-valias iriam ser tributadas, seria esquecer que se trata de ganhos diferentes e, em definitivo, dar aos trabalhadores beneficiados com os planos vantagem fiscal sobre os trabalhadores a quem idêntica oportunidade não foi atribuída. No tratamento fiscal das remunerações acessórias é sobretudo o problema da igualdade horizontal quanto aos rendimentos de trabalho dependente que está em causa. Não há que dar a essas remunerações nenhum tratamento de favor, nem desfavor. Igualdade e neutralidade são os princípios que, em matéria de tributação de remunerações acessórias, devem guiar as opções do legislador.” – Cfr. JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, p. 99. (negrito e sublinhado nosso).
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Nem tampouco especifica em que consiste a violação do princípio da capacidade contributiva, pois, apenas refere que “se a Requerente não vendeu as ações, o imposto exigido não tem efetiva correspondência com a capacidade contributiva da Requerente”, laborando, repetidamente, em erro, igualando as duas realidades (tributação das remunerações acessórias mediante atribuição de ações e tributação das mais-valias), que, repita-se, são, manifestamente, distintas.
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Mais uma vez, recorrendo-se aos dizeres de Xavier de Basto, “Se na base de incidência do imposto pessoal de rendimento não for considerado, como rendimento de trabalho, o ganho imputável à concessão daqueles benefícios (remunerações acessórias baseadas em ações) – por se admitir, erradamente como veremos, que o ganho efetivo de tais operações só se concretiza quando se realizarem os rendimentos de capital nos títulos implicados, ou seja, os dividendos e mais-valias das ações – o sistema fiscal estará a consentir um planeamento das operações de remuneração suscetível de favorecer os rendimentos dos trabalhadores de mais elevada remuneração, porque lhes permite, por exemplo o diferimento no tempo da tributação ou a aplicação de taxas mais baixas, ou mesmo a isenção. É o que pode suceder se a tributação de tais ganhos for confundida com a tributação das mais-valias. (...) Uma tributação destas remunerações, que não consista no diferimento temporal do pagamento do imposto, nem confunda a tributação das remunerações do trabalho com a dos rendimentos que os títulos envolvidos podem proporcionar, é, pois, essencial para evitar o planeamento fiscal que, em última análise, se traduz no pagamento de menos impostos ou no seu diferimento temporal, sempre a dano dos padrões de equidade por que se deve reger o sistema fiscal.” – Cfr. JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, p. 91 e 92. (negrito e sublinhado nosso).
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Aqui chegados, não se vislumbra que os aludidos preceitos normativos violem os citados princípios constitucionais (da igualdade e da capacidade contributiva), muito menos à luz da interpretação concretizada pela Requerente, pelo que, também, não será de anular a liquidação de IRS aqui sindicada, na parte em que tributou a quantia de €18.074,75, com base neste fundamento.
§3.3 Das consequências da limitação dos direitos sobre as ações: da não verificação da condição da Requerente ter sido “plenamente investida” nos direitos
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Aduz, ainda, a Requerente que o PPA deve ser julgado procedente “por se concluir que a Requerente, por força das limitações que possuiu em 2021 (e ainda possui) relativamente à transmissão das ações (a possibilidade de venda está circunscrita a períodos predeterminados pelo Grupo B...), não pode ser considerada “plenamente investida dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração” e, por isso, “não existe (...) qualquer facto tributário em 2021 que despolete a tributação em sede de Categoria A por força das ações atribuídas”.
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Decorre da alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS, que o “ganho” derivado do Plano de atribuição de ações se considera obtido no “momento em que os trabalhadores (...) são plenamente investidos dos direitos inerentes àqueles valores ou direitos, em particular os de disposição ou oneração (...)”. (negrito e sublinhado nosso)
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Quer isto dizer que os trabalhadores se encontram plenamente investidos dos direitos inerentes às ações no momento em que delas possam dispor.
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Ora, é a própria Requerente que afirma ao longo do seu PPA que a entidade patronal declarou a atribuição das ações no momento em que foi investida do poder de delas dispor, isto é, no primeiro dia da segunda “Janela de Negociação” – 18 de maio de 2021 –.
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Recorde-se que foi a Requerente que decidiu não vender as ações naquela data, não porque não podia dispor delas, mas, sim, porque não quis.
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O facto de a Requerente ter sofrido restrições temporais que cercearam o seu direito de dispor das ações, não significa, como foi bom de ver, que no primeiro dia da segunda “Janela de Negociação” – 18 de maio de 2021 –, não estivesse plenamente investida dos direitos inerentes àquelas, pois, a trabalhadora podia, perfeitamente, ter disposto das mesmas (i.e, ter procedido à sua alienação), se, assim, o desejasse.
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Assim, bem andou a entidade patronal da Requerente em comunicar à AT os ditos rendimentos (em espécie), no montante de €18.074,75 (correspondente ao valor de mercado), decorrentes do Plano de atribuição de ações, relativamente à Requerente, na primeira data em que aquela podia transacionar as ações – 18 de maio de 2021 –, em cumprimento do disposto na alínea e), do n.º 4, do artigo 24.º, do CIRS.
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Face ao exposto, conclui-se que o facto tributário ocorreu, exatamente, quando a Requerente foi “plenamente investida” naqueles direitos – em 18 de maio de 2021 –, o que despoletou a tributação em sede de Categoria A por força das ações atribuídas, pelo que falece, também, o fundamento aqui apresentado pela Requerente, visando a anulação do presente ato de liquidação de IRS na parte em que considerou o rendimento tributável de €18.074,75.
§3.4 Do alegado direito à dedução de perdas relacionadas com a desvalorização das ações enquanto elas permanecem na esfera patrimonial da Requerente (i.e., até à alienação) ou as verificadas nos períodos de interdição, ou seja, fora das “Janelas de Negociação”
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Aduz, por fim, a Requerente, que lhe deveria ser reconhecido o direito a deduzir as perdas relacionadas com a desvalorização das ações enquanto estas permanecem na sua esfera patrimonial (i.e., até à alienação) ou as verificadas nos períodos de interdição, ou seja, fora das “Janelas de Negociação”.
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Diga-se, desde já, que quanto a esta linha de argumentação, se sufraga a posição da Requerida de que “(...) na liquidação vigente está em causa a tributação da atribuição das ações enquanto rendimento de espécie decorrente de trabalho dependente. Os ganhos e/ou perdas geradas com a titularidade destes valores mobiliários são sujeitos a tributação na esfera da Categoria E (dividendos) ou Categoria G (mais-valias), sendo aplicável o regime de reporte de perdas estabelecido no Código do IRS para estas categorias de rendimentos.” (negrito nosso)
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Conforme já se referiu anteriormente, a opção da Requerente em vender parte das ações em novembro de 2022, por um valor inferior, permitiu-lhe apurar uma menos-valia que poderá deduzir a eventuais mais-valias que venha a apurar em sede de IRS nos cinco anos seguintes, nos termos do artigo 55.º (sob a epígrafe “Dedução de perdas”), n.º 1, alínea d), do CIRS – “O saldo negativo apurado num determinado ano, relativo às operações previstas nas alíneas b), c), e), f), g), h) e k) do n.º 1 do artigo 10.º, pode ser reportado para os cinco anos seguintes quando o sujeito passivo opte pelo englobamento” –,
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e, não, como pretende a Requerente, ao abrigo do disposto na alínea a), do mesmo preceito normativo, que respeita à categoria B (rendimentos empresariais e profissionais).
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Os ganhos e/ou perdas geradas com a titularidade destes valores mobiliários consubstanciam-se num acontecimento totalmente externo, que nada tem que ver com a tributação das vantagens acessórias. Ou seja, se as ações vão permitir ou não realizar mais-valias (ou menos-valias) é outro problema, cuja sede fiscal já não é a da tributação dos rendimentos de trabalho, a título de remunerações acessórias.
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Neste caso, o trabalhador que adquiriu as ações, decide aliená-las, realizando assim mais-valias (ou menos-valias).
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Há que distinguir, repita-se, os rendimentos em espécie atribuídos aos trabalhadores dos ganhos e/ou perdas que podem vir a ser gerados(as) com os direitos de disposição destas ações, e estes, designadamente, as perdas, têm o seu regime de reporte consagrado na alínea d), do n.º 1, do artigo 55.º, do CIRS,
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pelo que não assiste razão à Requerente quando afirma que “(...) só a dedução de perdas permite corrigir (ainda que em momento futuro) a agressão à capacidade contributiva dos sujeitos passivos daquele resultante e assegurar e conformar a regra da alínea e) do n.º 4 do artigo 24.º do Código do IRS com a lei e a constituição.”
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Aliás, a Requerente continua a laborar em erro, na presente linha de argumentação, confundindo, mais uma vez, a tributação dos planos de ações (em que se pretende tributar a atribuição de um bem ou direito que, na data de atribuição, tem, efetivamente, um determinado valor de mercado – valor esse, concreto e determinável –), com a realização das mesmas (em que os ganhos/perdas posteriores, decorrentes da detenção destes bens ou direitos pelos trabalhadores são, se for caso disso, tributados em sede da Categoria G (mais-valias) de IRS.
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De tudo o que já vem dito, e sem pretensões de exaustividade, importa, ainda, salientar que o thema decidendum no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 100/2022, proferido no processo n.º 995/21, a que alude a Requerente para sustentar a sua posição, em nada se relaciona com o quadro normativo e com a realidade factual que ora nos ocupa, o que implica, naturalmente, um tratamento diverso daquele a dar ao caso dos autos.
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Face a todo o exposto, também não colhe o presente fundamento invocado pela Requerente, não sendo de lhe reconhecer quaisquer deduções de perdas aos rendimentos da Categoria A do ano de 2021, nos termos por si peticionadas, o que não viola, nem ofende qualquer princípio constitucional.
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Aqui chegados, falece a pretensão anulatória da Requerente.
VI. DECISÃO
Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.
VII. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de € 6.467,74 (seis mil quatrocentos e sessenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VIII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €612,00 (seiscentos e doze euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.]
Notifique-se.
Lisboa, 22 de maio de 2024
A Árbitra,
Susana Mercês de Carvalho
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º: 248/2023-T
Tema: IRS. Rendimento de trabalho dependente. Substituição de ato de liquidação no decurso de reclamação graciosa. Inimpugnabilidade do PPA.
*Substituída pela decisão arbitral de 22 de maio de 2024
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SUMÁRIO:
Considerando que a liquidação substituída pelo novo ato de liquidação, não se encontra produzir efeitos na ordem jurídica, verifica-se a Inimpugnabilidade do ato em sindicância nos presentes autos, o que, por força do disposto no n.º 2 e n.º 4 alínea i) do artigo 89.º do Código do Processo nos Tribunais administrativos, obsta ao conhecimento Pedido de Pronúncia Arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
A Árbitro Maria Alexandra Mesquita, designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Singular, profere decisão nos termos que seguem:
RELATÓRIO
1. A..., contribuinte com o número de identificação fiscal (NIF) ..., residente na Rua..., n.º ..., ..., ...-..., Porto, integrada no Serviço de Finanças de Porto ..., doravante Requerente, veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), deduzir imediatamente Pedido de Pronuncia Arbitral (PPA) contra o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa instaurada e, mediatamente, contra o ato de liquidação do IRS n.º 2022... do qual resultou o valor a pagar de €6.467,74 nos termos do n.º 1 e 5 do artigo 57.º da Lei Geral Tributária (LGT) referente ao ano de 2021 e cujo silêncio da Autoridade Tributária, determinou o indeferimento tácito daquela reclamação em 20 de janeiro de 2023[9].
A Requerente informou não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.
É Entidade Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante aqui designada por Entidade Requerida, ou AT.
O Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) a 6 de abril de 2023 e foi automaticamente notificado à Requerida AT.
O Tribunal Arbitral singular considera-se constituído em 20 de junho de 2023.
I. POSIÇÃO DAS PARTES
Da Requerente
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A Requerente ao abrigo do artigo 140.º[10] do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singular (IRS) apresentou, na Direção de Finanças do Porto, nos termos dos artigos, 70.º e 102.º[11] do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT) Reclamação Graciosa do ato de liquidação do IRS com o número 2022..., relativo ao ano de 2021, como ato de liquidação mediatamente impugnado.
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Com o seguinte iter temporal:
No dia 13 de julho de 2022, foi a Requerente notificada da liquidação de IRS, a qual determinou um imposto a pagar no montante de € 6.467,74, com referência aos rendimentos de trabalho dependente[12], auferidos no período de tributação de 2021 e com prazo de pagamento até 31 de agosto de 2022.
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A declaração de rendimentos do IRS referente ao período de tributação de 2021 seguiu o modelo automático e, por não ter sido confirmado pela ora Requerente[13], foi considerado definitivo para efeitos do cumprimento da obrigação declarativa nos termos dos n. 3 e 4, alínea do artigo 58.ºA do CIRS, em 30 de agosto de 2022.
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A liquidação reclamada apresentou um rendimento global de € 76.832,25, correspondente a rendimento de trabalho dependente referente a esse mesmo ano.
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Tratou-se de um rendimento de trabalho dependente (categoria A) que se desagregou em duas rúbricas, ambas atribuídas e comunicadas pela entidade empregadora, B..., Unipessoal, Lda., daqui em diante, entidade empregadora, assim distribuídos:
•Rendimento do trabalho dependente sujeito a retenção na fonte, correspondente ao valor do salário pago pela entidade empregadora (Código 401) – € 58.757,50;
•Rendimento do trabalho dependente não sujeito a retenção na fonte[14], correspondendo ao valor de mercado de ações atribuídas na data em que as mesmas se tornaram totalmente disponíveis à ora Requerente (Código 414) – € 18.074,75), com o enquadramento que a seguir se transcreve, de forma sucinta, para a compreensão da situação laboral da Requerente, com expressão na totalidade no Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) faz parte integrante desta Decisão.
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A Requerente possui um contrato de trabalho com a B..., Unipessoal, Lda., com o NIF..., sendo esta última a sua entidade empregadora e o trabalho a esta prestado a sua única fonte de rendimentos, contrato esse por tempo indeterminado, mantendo atualmente esse vinculo laboral.
No plano de remuneração da Reclamante, incluem-se: 1) salário, 2) subsídio de alimentação, e ainda 3) um plano de atribuição de ações do Grupo C...[15].
A Requerente tem acesso a este plano através do qual tem o direito a receber as ações ao longo de um período de 4 anos, cujas datas estão associadas à sua permanência na Empresa, após atribuição do plano.
(…), no plano em questão, há que ter em consideração as seguintes datas:
• Atribuição [Award date]: Data em que é atribuído ao colaborador (o direito futuro) a receber ações da D... Limited (restricted stock units), de acordo com um cronograma definido ;
• Aquisição [Vesting date]: Data em que as restricted stock units (nome dado ao direito a receber ações) se convertem em ações que são atribuídas ao colaborador na plataforma interna (Shareworks) em que o plano é suportado – o número de ações fica disponível na plataforma nesta data, exceto se houver restrições à disponibilidade das ações;
• Janela de negociação (trading window): Data em que o colaborador pode efetivamente transacionar as ações atribuídas, ou seja, em que estas perdem as restrições;
• Selling date: Data em que o colaborador procede à alienação das ações – a qual deve ser operada através do Shareworks, plataforma interna da empresa para a gestão dos planos de ações (pertencente ao grupo E...).
No caso específico da Requerente, aquando da sua contratação (4 de Março de 2019), foi atribuído à Requerente um plano de RSU (award) de 2.180 ações, as quais seriam disponibilizadas ao longo do seguinte calendário de vesting (vesting dates):
• 25% no primeiro mês do trimestre em que se completa 1 ano desde o
grant/contratação (01/01/2020) – 545 ações;
• 25% no primeiro mês do trimestre em que se completa 2 anos desde o
grant/contratação (04/01/2021) – 545 ações;
• 25% no primeiro mês do trimestre em que se completa 3 anos desde o
grant/contratação (01/01/2022) – 545 ações;
• 25% no primeiro mês do trimestre em que se completa 4 anos desde o
grant/contratação (01/01/2023) – 545 ações.
Refira-se que a Política interna da Empresa a este respeito determina que,
“(i )Os B... apenas poderão comprar, vender ou de outra forma transferir valores mobiliários durante uma janela de negociação, vesting dates, acrescentamos nós, uma vez que foi num momento de vesting dates que a Requerente viu o seu Rendimento aumentado no valor das ações[16], à data de 4 de janeiro de 2021, no montante de 18.075,75€.
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A 4 de Janeiro de 2021, foi o dia do vesting day de 545 ações, das quais a Requerente obteve plenitude de direito da sua disposição, em 18 de Maio de 2021[17], como se acabou de referenciar.
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Como se comprova a entidade patronal efetuou a respetiva comunicação à ora Requerente através da Declaração Mensal de Remunerações (DMR), ao abrigo do artigo 119.º do CIRS, onde consta como dispensa de retenção na fonte, o montante de 19.807,25€.
Ano de 2021
Declaração de rendimentos da entidade empregadora referente ao mês de maio de 2021
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Daqui se confirma que no mês de maio de 2021 o seu rendimento como trabalhador dependente se evidenciou em, imposto retido, 18.663,00 rendimento sujeito a retenção na fonte de 58.757,00 e rendimento de trabalho (em espécie) não sujeito a retenção na fonte[18], o montante das ações atribuídas à Requerente (545 ações) a 4 de janeiro de 2021, das quais obteve plenitude da sua disposição, nomeadamente, venda, a 18 de maio de 2021.
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Contudo, refere a ora Requerente, por não ter procedido à venda dessas ações até ao presente não materializou nenhuma parte do rendimento potencial comunicado pela sua entidade empregadora, com referência àquela data, 18 de Maio de 2021.
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Ou, se quisermos, utilizando a letra da lei vertida nos artigos (1.º) e 2.º do CIRS[19], estas não constituíram uma vantagem económica.
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Assim, entende a Requerente, que tal rendimento potencial calculado pelo valor da cotação da ação na data da sua atribuição/ou primeira data em que pôde transacionar (€ 18.074,75) em 18/05/2021, não poderia ser incluído na sua base de tributação, enquanto o mesmo não fosse materializado, pelo que o mesmo não constituiu uma vantagem económica.
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E, se à data em que a mesma foi investida dos direitos sobre essas ações (18/05/2021) o seu portefólio tinha uma valorização potencial de €18.074,75, o mesmo não sucedendo nas datas seguintes, sendo que no final de 2021, aquela valorização seria apenas de 16.016,63 €, na data de conversão da declaração (Modelo 3) do IRS era € 3 781,87 e à data da liquidação era apenas de € 3 845,87.
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Aliás, a Requerente, inclusivamente, solicitou pedido de suspensão de execução da liquidação - por parte da Requerida AT - por,
- além de entender que a liquidação em apreço era ilegal,
- não possuía meios líquidos para o pagamento imediato da prestação do imposto de IRS em causa,
- uma vez que a tributação associada ao rendimento potencial declarado pela entidade patronal da ora Requerente traduzia-se num encargo de imposto no montante de 8.133,64€, considerando que a sua taxa de imposto com a inclusão do tal rendimento da categoria A potencial é apurada em 45% (€18,074.75 x 45%).
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O plano de ações da B... é atribuído a todos os colaboradores, sem exceção, incluindo todas as categorias profissionais, níveis hierárquicos e funções.
Assim sendo, a ora Requerente entende que o rendimento potencial declarado pela sua entidade empregadora, embora decorra da obrigação declarativa que lhe é imposta por força do n.º 3, alínea b) e subalínea 7) do artigo 2.º do Código do IRS, corresponde a um valor meramente potencial não realizado[20], razão pela qual, não tendo a ora Requerente convertido esse rendimento potencial em rendimento real, não deverá o mesmo ser parte da sua base tributável no período de tributação de 2021, na medida em que não contribuiu para qualquer incremento da sua capacidade contributiva, riqueza ou poder de pagar,
Devendo tal rendimento ser declarado na declaração de rendimentos do período em que a materialização daquele rendimento ocorra, ou seja, na data da venda de tais ações e sua conversão em rendimento efetivo, bem como tradução monetária da sua capacidade contributiva – e note-se, pode suceder que tal valor seja inclusivamente superior ao aqui declarado, se a cotação das ações for superior face à data de 18 de Maio.
No entanto, neste caso, a Requerente terá materializado o referido rendimento e possuirá os meios para pagamento do respetivo imposto com base na cotação à data da venda.
E continua a ora Requerente,
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O que aqui a Requerente salienta é, que o rendimento de trabalho dependente seja calculado com base na cotação da ação à data da sua venda, de forma a obter-se uma coincidência entre o valor tributável e a capacidade contributiva.
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A inclusão do valor tributável de € 18.074,75 na declaração de rendimentos referente a 2021, assenta na tributação de uma capacidade contributiva presumida ou potencial, no pressuposto de uma valorização não realizada, pelo que se revela contrária ao princípio da capacidade contributiva, como explanado.[21]
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Refere ainda a Requerente apontando agora para a Constituição da Republica Portuguesa (CRP) que, nos termos do artigo 104.º da CRP “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”.
Citando João Pedro Silva Rodrigues que, atendendo a uma interpretação mais extrema do princípio da capacidade contributiva, teremos que excluir a possibilidade da existência de uma tributação que “leve pressuposto, na sua configuração substancial, um conceito de rendimento potencial que determine, autoritária e apodicticamente” a imputação ao contribuinte de um rendimento que este, em situações normais, poderia ter obtido[22].
Referindo-se agora ao Principio da Igualdade, dispõe que este é transversal a todo o ordenamento jurídico, que ao nível do Direito Fiscal se expressa na obrigação universal de todos os cidadãos se encontrarem adstritos ao pagamento de impostos.
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Todavia, uma das dimensões do princípio da igualdade é a proibição do arbítrio, ou seja, deve ser tratada de forma igual as situações iguais, e de forma desigual as situações desiguais. Neste sentido, a obrigação do pagamento de impostos é mediada pela capacidade contributiva.
22. Assim, se na sua vertente de universalidade do dever de pagar impostos, o princípio da
igualdade tributária determina que todos os cidadãos devem ser chamados a contribuir para o financiamento das despesas públicas através de impostos (acórdão TC nº 590/2015, de 11-11-2015; acórdão TC nº 695/2014, de 15-10-2014), na sua vertente de uniformidade, o princípio da igualdade tributária determina que o encargo fiscal imposto aos cidadãos deve ser estabelecido em condições de igualdade.
No que toca à tempestividade do pedido de reclamação graciosa refere a ora Requerente, que no artigo 140.º do CIRS os sujeitos passivos deste imposto podem reclamar ou impugnar a respetiva liquidação, efetuada pelos serviços da administração fiscal, com os fundamentos e nos termos estabelecidos, nomeadamente, na LGT e no CPPT.
Neste âmbito, estipula o n.º 1 do artigo 70.º CPPT o prazo para apresentação de reclamação graciosa, podendo a mesma ser assim apresentada no prazo de 120 dias contados a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.
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A qual se enquadra na situação descrita na alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, isto é, “Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte”.
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A Requerente termina o seu PPA, requerendo ao abrigo do artigo 466.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável no processo tributária arbitral ex vi do artigo 29.º do RJAT, a audição de parte e prova testemunhal de F..., diretor jurídico da B... Portugal e, posteriormente, em 4 de outubro de 2023, este tribunal arbitral, em sequência de pedido da ora Requerente de 3 de outubro de 2023, e em nome dos princípios da tutela jurisdicional efetiva das partes, do princípio do contraditório e da autonomia do tribunal arbitral, concedeu a admissão de mais uma testemunha a G..., gerente da B... Unipessoal, Lda.
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.No dia 23 de outubro de 2023 foi efetuada a inquirição via Cisco Webex Meetings, respectivamente na sede do CAAD em Lisboa, tendo sido prestadas declarações pela Requerente e testemunhas por ela arroladas, na sede do CAAD no Porto.
A inquirição foi secretariada pelo Ex.mo jurista do CAAD, Dr. ... .
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Em sede de alegações finais a Requerente reitera que o está em discussão, é, imediatamente, o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa instaurada a 20 de setembro de 2021 (cfr. documento n.º 1, junto à Petição Arbitral) e, mediatamente, o ato de autoliquidação do IRS n.º 2022..., referente ao ano de 2021 (cfr. documento n.º 2 junto à Petição Arbitral).
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Em 27 de dezembro de 2023 deu entrada um Requerimento da ora Requerente com pedido de autorização de junção de documento (doc.1 junto ao Requerimento), o qual foi autorizado por este tribunal arbitral singular, e para o que agora interessa, reproduzimos uma pequena parte desse longo comunicado da empresa B..., Unipessoal, Lda., publicada no jornal Público de 21 de dezembro de 2023, dando conta dos difíceis factos que atingiram a empresa e cujas consequências, para o que interessa a este tribunal arbitral singular, é a seguinte:
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No dia 23 de outubro, teve lugar na sede do CAAD na se de Lisboa e no Porto a Inquirição onde foram produzidas pela Requerente Alegações orais em que em nada vieram alterar o que se acabou reproduzir em sede de descrição dos factos neste PPA, apenas destacar que a Requerente exercia funções na área fiscal e financeira na B..., Unipessoal, Lda.
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Posteriormente em sede de alegações finais a Requerente reitera o seguinte:
Que a B... (entidade empregadora da Requerente) comunicou à AT a atribuição das Ações pelo valor da cotação das Ações da D... Limited à data de 18 de maio de 2021.
O valor comunicado correspondeu ao número de 545 Ações multiplicado pela cotação de cada Ação à data de 18 de maio de 2021 e que se cifrava em USD 40,31/EUR 33,164, o que perfez o total de €18.074,75.
Da Requerida AT
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A Requerida AT, na sua Resposta começa por invocar a exceção dilatória de Inimpugnabilidade do ato em sindicância neste PPA, ao abrigo do artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea i) do CPTA e a extinção da instância por Inutilidade Superveniente, nos termos do artigo 95.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável ex vi da alínea d) do CPPT, ex vi do artigo 29.º do RJAT. Para tal invoca os seguintes argumentos jurídicos, que reproduzimos, em síntese:
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. Na declaração de rendimentos referente ao ano 2020 (liquidação n.º 2021... com valor a pagar de €13.787,89) a contribuinte declarou, entre outros, como rendimento de trabalho dependente o montante de €29.748,17, com o código 414 (“Rendimentos do Trabalho Dependente – Ganhos Derivados de planos de opções, de subscrição, de atribuição ou outros de efeito equivalente, sobre valores mobiliários ou direitos equiparados, criados em beneficio dos trabalhadores ou membros de órgãos sociais – anos 2019 e seguintes”).
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Na declaração de rendimentos referente ao ano 2021[23], consta do Anexo A, para além do montante de trabalho dependente com retenção na fonte (código 404), consta também um rendimento de trabalho dependente sem retenção na fonte, um montante que hoje está em discussão, o montante de € 18.074,75 com o código 414 (“Rendimentos do Trabalho Dependente – Ganhos Derivados de planos de opções, de subscrição, de atribuição ou outros de efeito equivalente, sobre valores mobiliários ou direitos equiparados, criados em beneficio dos trabalhadores ou membros de órgãos sociais – anos 2019 e seguintes”.
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Esta declaração deu origem à liquidação n.º 2022..., de 2022-07-06, no valor (a pagar) de € 6.467,74, a qual foi notificada à Requerente em 13-07-2022, com prazo de pagamento até 31-08-2023.
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Em 2022-09-20, a contribuinte apresentou reclamação graciosa, pretendendo a anulação desta liquidação de IRS, referente ao ano de 2021, na parte em que tributa como rendimento de trabalho dependente o valor referente às ações atribuídas pela entidade empregadora.
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Do exposto resulta que a liquidação do IRS n.º 2022..., ora impugnada, foi substituída pelo ato de liquidação de IRS n.º 2023..., de 2023-01-20, não se encontrando, por isso, aquele, a produzir efeitos na ordem jurídica.
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A razão de ser desta substituição deve-se ao facto da Requerente de ter alienado um imóvel que era a sua habitação permanente, em 2018, e optou por reinvestir o valor de realização em outro imóvel que destinou a habitação própria e permanente à luz do regime do reinvestimento previsto no artigo 10.º, n.º 5 a 7 do Código do IRS. Razão pela a Requerida AT liquidou a nova declaração de substituição, a que deu origem a uma nova liquidação do IRS com o n.º 2023..., de 2023-01-20, com o mesmo valor de 6.467,74€, e no mesmo dia em que se constituiu o indeferimento tácito da reclamação graciosa.
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Termos em que se verifica a inimpugnabilidade do ato administrativo, procedendo a exceção dilatória de inimpugnabilidade do ato em sindicância nos presentes autos, o que, por força do disposto no artigo 89.º, n.º 2 e n.º 4, alínea i) do CPTA (ex vi art. 29.º, n.º , al. c) do RJAT), obsta o conhecimento do mérito e importa a absolvição da Requerida da instância.
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Pelo que também quanto a este elemento do ppa se verifica a desnecessidade no prosseguimento da presente ação pelo facto da substituição da Declaração de Rendimentos anterior à propositura da ação, o que se reconduz à falta de um pressuposto processual, que é a falta de interesse em agir ou uma inutilidade originária, o qual constitui uma excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso (artigos 89.º, n.º 2. do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, n.º , al. c) do RJAT), conducente à absolvição da instância.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral Singular é competente e foi regularmente constituído em 20 de junho de 2023, em conformidade com o disposto no artigo 11.º n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro com a redação introduzida pelo artigo 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 e dezembro, Lei do OE para 2013.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legitimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria 11-A/2011, de 22 de março, atualizada pela Portaria 287/2019 de 3 de setembro.
O processo não padece de vícios que o invalidem.
III. FUNDAMENTAÇÃO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. n.º 1 do artigo 511.º do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III. 1. FACTOS PROVADOS
I - Dá-se como provado que a Requerente é desde 2019 trabalhadora na empresa a B..., Unipessoal, Lda., com contrato de trabalho por tempo indeterminado, mantendo atualmente esse vinculo laboral, vidé Requerimento junto ao processo pela Requerente, onde anexou como doc.1, um comunicado da entidade empregadora, assinado pelo CEO da empresa em Portugal, H..., publicado num jornal nacional em que onde se reitera a permanência dos trabalhadores, porém, agora, sem o prémio de desempenho, mas fazendo uma referência expressa ao pagamento dos inerentes impostos, como é a regra, e que incidiram sobre últimas ações distribuídas pela empresa aos trabalhadores, no ano de 2023, acrescentamos..
II - Com interesse para a decisão provou-se que neste PPA a Requerente, já depois de deduzir reclamação graciosa contra o ato de liquidação de IRS n.º 2022 ... de 2022-07-06 com o valor de 6.467,74€ veio submeter, posteriormente, em 2022-12-20, uma nova declaração de rendimentos, substituindo a anterior, ambas referentes ao mesmo ato de liquidação do ano 2021, a qual deu origem ao ato de liquidação de IRS n.º 2023..., de 2023-01-20 com o mesmo valor.
III – O pedido de pronúncia arbitral foi tempestivo, como se deixou dito antes.
IV –A razão de ser desta substituição deve-se ao facto da Requerente de ter alienado um imóvel que era a sua habitação permanente, em 2018, e optou por reinvestir o valor de realização em outro imóvel que destinou a habitação própria e permanente à luz do regime do reinvestimento previsto no artigo 10.º, n.º 5 a 7 do Código do IRS. Razão pela a Requerida AT liquidou a nova declaração de substituição, a que deu origem a uma nova liquidação do IRS com o n.º 2023..., de 2023-01-20, com o mesmo valor de 6.467,74€, e no mesmo dia em que se constituiu o indeferimento tácito da reclamação graciosa.
III.2 – FACTOS NÃO PROVADOS
Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.
IV – DO DIREITO
Delimitação do objeto
Com o presente PPA, pretende a ora Requerente que o tribunal se pronuncie imediatamente contra o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa instaurada e, mediatamente, contra o ato de liquidação do IRS n.º 2022... .
Questão prévia
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No caso em apreço, o facto que deu origem à apresentação da Reclamação Graciosa junto da Direção de Finanças do Porto ..., em 20 de setembro 2022, foi a notificação da liquidação do IRS n.º 2022..., em 13 de agosto de 2022, em referência ao período de tributação de 2021, com prazo de pagamento a 31 de agosto de 2022, (vide Documento n.º 1) e com o número de liquidação citado.
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Na introdução do PPA a Requerente vem,
ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), deduzir imediatamente contra o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa instaurada e, mediatamente, contra o ato de liquidação do IRS n.º 2022 ... do qual resultou o valor a pagar de €6.467,74.
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Independentemente de se prosseguir, com a análise do PPA, temos de tomar posição sobre o pedido de pronúncia arbitral, imediatamente contra um ato de indeferimento tácito e mediatamente contra o ato ilegal.
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Carla Castelo Trindade, refere sobre este tema no Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Anotado, Almedina, 2016, página 68 e seguintes:
Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objeto do processo arbitral é o ato de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta.
«…» o legislador arbitral foi ao que se crê, claro ao compartimentar questões de competência e questões de prazos.
Quanto à competência, ou âmbito material o objeto da arbitragem é, como se concluiu, a apreciação da ilegalidade dos actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamento por conta. – os tais de primeiro grau. Esta resposta encontra-se no artigo 2.º do RJAT.
Quanto ao prazo, o contribuinte pode recorrer à arbitragem logo aquando da notificação dos actos de liquidação de tributos, após a notificação da decisão de indeferimento ou da formação de indeferimento tácito. Esta resposta encontra-se, por seu turno, no artigo 10.º. «…». É uma norma que respeita portanto ao momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo para solicitar o pedido de constituição do tribunal arbitral.
……..
O objeto do pedido de pronúncia arbitral será então a ilegalidade do acto tributário de primeiro grau, independentemente de o sujeito passivo apontar como objeto da sua acção arbitral (o ato de primeiro grau) ou do segundo, isto sempre, desde que o segundo aprecie a (i)legalidade do acto de primeiro grau. Julga-se ainda que mesmo que o contribuinte no objeto da acção arbitral ou no pedido indique erradamente o segundo acto em vez do primeiro, cabe ao tribunal corrigir oficiosamente esta incorreção designadamente por imposição principio da boa fé processual e da cooperação a que se refere o artigo 16.º, alinea f).
…..
Na medida em que o acto de indeferimento tácito consiste apenas numa ficção de ato de primeiro grau, aquela apreciação de ilegalidade do acto primário não existe – de facto – nestes casos. Em rigor presume-se. Aqui entra-se na última temática que se elencou. Naquela que irá responder à questão de saber se se inclui ou não no âmbito material da arbitragem a apreciação do ato de indeferimento tácito.
A resposta é sim. Todavia a admissibilidade de submissão à jurisdição arbitral de um ato de liquidação, de autoliquidação, e de retenção na fonte ou de pagamento por conta, quando ocorra indeferimento tácito, deve partir de um outro raciocínio.
Antes de mais, o acto de indeferimento tácito, enquanto presunção de acto/ficçãode acto não é, em si mesmo, objeto de acção arbitral. Porém não há qualquer dúvida que não se pode negar a arbitrabilidade de actos de primeiro grau – os tais porque subsumíveis artigo 2.º - só porque houve pedido de apreciação administrativa sem decisão expressa, o que é, de resto, confirmado pelo artigo 10.º, quando permite apresentação de pedido de pronuncia arbitral até 90 dias contados, e.g.,, do termo do prazo legal da decisão de recurso hierárquico, cf. n.º 1, alínea a) do artigo 10.º.
Contudo, e porque se trata de um ato de indeferimento tácito, para que o tribunal arbitral possa aferir se o pedido de constituição de tribunal arbitral foi realizado dentro do prazo de caducidade do direito de acção, o próprio tribunal arbitral terá de apreciar se o pedido de reclamação graciosa cumpre os pressupostos de admissibilidade legalmente exigidos para o conhecimento do mérito da pretensão – desde logo, se foi, ele próprio, apresentado dentro do prazo.
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Aqui chegados podemos, sem mais delongas, concluir que o PPA foi entregue tempestivamente, em 10 de abril de 2023, cumprindo o prazo para a impugnação judicial, prevista no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT razão pela qual conheceremos de este PPA.
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CONHECENDO
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O que está em causa, é o ato o ato liquidação do IRS n.º 2022 ... do qual resultou o valor a pagar de €6.467, com PPA em 6 de abril de 2023.
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No entanto, é necessário salientar que em 20 de janeiro de 2023, a Requerente liquidou uma nova declaração de substituição, pelo facto da Requerente de ter alienado um imóvel que era a sua habitação permanente, em 2018, e que tendo optado por reinvestir o valor de realização sobrante em outro imóvel que destinou a habitação própria e permanente à luz do regime do reinvestimento previsto no artigo 10.º, n.º 5 a 7 do Código do IRS.
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Razão pela qual a Requerida AT liquidou, como devia, nova declaração de substituição, a que deu origem a uma nova liquidação do IRS com o n.º 2023...., de 20 de janeiro de 2023, com o mesmo valor de 6.467,74€, aliás no mesmo dia em que se constituiu o indeferimento tácito da reclamação graciosa. Isto é cinco (5) anos depois de ter efetuado o referido reinvestimento.
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O presente PPA deu entrada no CAAD, como já se referiu, em 6 de abril de 2023, pelo que o ato de liquidação que está em vigor na data do Pedido é o ato de liquidação substituto, com o n.º 2023..., de 20 de janeiro de 2023, pelo que deveria ser este e não o ato de liquidação invocado neste PPA.
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Este tribunal arbitral neste PPA, está em consonância com a posição assumida pela neste PPA, considerando que a liquidação substituída pelo novo ato de liquidação, não se encontra produzir efeitos na ordem jurídica o ato substituto, pelo que se verifica a Inimpugnabilidade do ato em sindicância nos presentes autos, o que, por força do disposto no n.º 2 e n.º 4 alínea i) do artigo 89.º do Código do Processo nos Tribunais administrativos, obsta ao conhecimento do mérito e importa a absolvição da Requerida AT.
DECISÃO
Termos em que se decide neste tribunal arbitral singular:
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Julgar procedente a exceção de Inimpugnabilidade do ato aqui impugnado;
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B) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira – Autoridade Tributária;
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Condenar a Requerente nas custas do processo;
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Considerar prejudicadas a apreciação de todas as questões suscitadas neste litigio.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 6.467,74€ de harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e alínea a) do artigo 97-A do CPPT, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) e B9 do RJAT.
CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 612,00€, nos termos da Tabela I do Regulamento Das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º n.º 2 e artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento de custas do citado.
Notifique-se
Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
A Árbitro singular
Maria Alexandra Mesquita
[1] RUI PINTO, Os meios reclamatórios comuns da decisão civil, (artigos 613.º a 617.º do CPC), JULGAR Online, maio de 2020, página 19.
[2] Acórdo do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.01.2022, processo n.º 1292/20.4TBFAR-A.E1.S1.
[3] Cfr. J.L. SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA, “O Regime Atual das Stock Options”, em Revista Fiscalidade, Ano: julho e outubro de 2021.
[4] Ricardo Rodrigues Pereira, “A tributação em sede de IRS dos planos de opção, de subscrição ou de aquisição de ações estabelecidos em benefício dos trabalhadores ou membros sociais”, in Revista Fiscal, Março/Abril, 2010, p. 22.
[5] J.L. SALDANHA SANCHES e RUI BARREIRA, “O Regime Atual das Stock Options”, em Revista Fiscalidade, Ano: julho e outubro de 2001.
[6] JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007.
[7] SARA MARGARIDA VASCONCELOS MAIA, “A Tributação das Stock Options no Ordenamento Jurídico Português”, Faculdade de Direito | Escola do Porto 2017, p. 34.
[8] JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, p. 95.
[9] A Requerente instaurou Reclamação Graciosa em 20 de setembro de 2022, junto da Direção de Finanças do Porto, tendo em vista a anulação de IRS com numero de liquidação 2022 ... referente ao ano de 2021. Não tendo havido resposta da parte da administração tributária findo o prazo para a mesma, gerou-se o indeferimento tácito da reclamação graciosa em 20 de janeiro de 2023, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da Lei Geral Tributária (LGT). Pelo que a ora Requerente, faz o presente pedido de pronúncia arbitral (PPA) no Centro de Arbitragem Administrativa, (CAAD) dispondo de um prazo procedimental, de três meses, cf. artigo 102.º do CPPT, ex vi do artigo 29.º do RJAT, a partir da formação do referido indeferimento tácito. Assim,
nos termos previstos na alínea a) do n.º 1) do artigo 10.º do RJAT, o PPA deu entrada no CAAD, em 6 de abril de 2023, pelo que é o mesmo tempestivo.
[11] Apresentação, fundamentos e prazo da reclamação graciosa, por Impugnação.
[12] Prémio de desempenho, sem retenção na fonte, de acordo com posição pública tomada pelo CEO da empresa, que mais adiante se averiguará.
[13] Cf. artigo 58-A, n.º 2 do CIRS.
[14] Os sublinhados são nossos.
[15] Prémio de Desempenho, como mais adiante se verá.
[16] Atribuídas como Prémio de Desempenho, como se verá adiante.
[17] No entanto, a ora Requerente não procedeu à venda dessas ações, por opção própria, detendo-as até à data da propositura do presente PPA, em 24 de março de 2023.
[18]Premio de Desempenho sob a forma de títulos convertíveis em ações, ver Doc.1, junto ao Requerimento que deu entrada no processo, em 27 de dezembro de 2023.
[19] Remete-se para a leitura da nota de rodapé seguinte, n.º 12.
[20] Na interpretação da letra da lei deste artigo, número e alíneas do CIRS, não se descortina a possibilidade de se interpretar como valor meramente potencial, não realizado - sendo certo que a entidade patronal o refere como Prémio de Desempenho - cf. artigo, artigo 9.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil, ex vi do artigo 29.º do RJAT.
[21] O artigo. º2 do CIRS, n.º 1, alínea a) e n.º 3) e n.7, deste mesmo artigo, onde sobre o conceito de Rendimento de trabalho dependente expressamente refere que,
1. Consideram-se rendimentos de trabalho dependente, todas as remunerações pagas ou posta à disposição do seu titular provenientes de;
a) Trabalho por conta de outrem ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele igualmente equiparado;
n.º 3 Consideram-se ainda rendimentos de trabalho dependente:
b) As Remunerações acessórias, nela se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respetivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente:
……………………..
n.7) Os ganhos derivados de planos de ações, de subscrição, de atribuição ou outros de efeito equivalente.
Nas normas citadas não se encontra menção a remunerações presumidas ou potenciais, cf. artigo 9.º do Código Civil, ex vi do artigo 29.º do RJAT.
[22] Esta remuneração tratou-se de um Prémio de Desempenho, sem retenção na fonte da qual a Requerente foi informada pela DMR que aqui se deixou transcrita e dada a conhecer obrigatoriamente pela entidade empregadora em maio ade 2021.
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