Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 32/2024-T
Data da decisão: 2024-05-22  IRC  
Valor do pedido: € 56.099,77
Tema: Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC)
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SUMÁRIO:

A derrama municipal das sociedades residentes em território nacional incide sobre a totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, incluindo os rendimentos obtidos fora do território nacional.

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

  1. A..., S.A., (doravante abreviadamente designada por “A...” ou “REQUERENTE”), com o número único de identificação de pessoa coletiva  ..., com sede na Rua ... n.º ..., ...-... Lisboa, veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” ou “RJAT”) e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer, a constituição de Tribunal Arbitral.
  2. A Requerente pretende que seja: a) declarada a ilegalidade e anulado o indeferimento da reclamação graciosa na medida em que a AT recusou a anulação de parte das autoliquidações de IRC (derrama municipal) respeitantes aos períodos de tributação de 2020 e 2021; b) declarada a ilegalidade parcial destas autoliquidações, no montante de € 22.076,65 (2020) e de € 34.023,12 (2021), no total de € 56.099,77; c) reconhecido o direito da Requerente ao reembolso de € 56.099,77, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde a data do pagamento do respetivo imposto.
  3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).
  4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 08-01-2024.
  5. A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 12-01-2024.
  6. Dado que o Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, foi o signatário designado como árbitro, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, tendo a nomeação sido aceite no prazo e termos legalmente previstos.
  7. Em 26-02-2024 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  8. Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 15-03-2024.
  9. A Requerida remeteu o processo administrativo e apresentou resposta em 21-04-2024, na qual se defende por impugnação, pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, pela absolvição da Requerida de todos os pedidos.
  10. Em 08-05-2024 este tribunal proferiu um despacho através do qual foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi também dispensada a produção de alegações finais.

 

II – SANEADOR

  1. A apresentação do pedido de pronúncia arbitral foi tempestiva.
  2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
  3. Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
  4. Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

III. MÉRITO

III. 1. MATÉRIA DE FACTO

§1.       Factos provados

  1. Consideram-se provados os seguintes factos:
  1. Em 9 de julho de 2021, a Requerente submeteu a declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22, com referência ao período de tributação de 2020, com o código de identificação n.º ...-...-...;
  2. Resultou da referida declaração um resultado fiscal positivo no montante de € 1.501.269,98 e, para o que aqui releva, uma derrama municipal no montante de € 22.076,65;
  3. No que concerne ao período de tributação de 2021, a Requerente apresentou no dia 26 de maio de 2022 a respetiva declaração periódica de rendimentos de IRC Modelo 22, com o código de identificação n.º ...-... -...;
  4. Resultou da referida declaração um resultado fiscal positivo no montante de € 2.325.381,00 e, para o que aqui releva, uma derrama municipal no montante de € 34.023,12;
  5. Em 6 de junho de 2023, a ora Requerente deduziu reclamação graciosa contra os atos de autoliquidação de IRC referente aos períodos de tributação de 2020 e de 2021, meio através do qual procurou ser ressarcida do montante das derramas municipais suportadas por si naqueles anos, correspondente a rendimentos obtidos no estrangeiro;
  6. A Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
  7. A Requerente optou por não exercer o respetivo direito de audição prévia, tendo sido notificada, em 25 de setembro de 2023, da respetiva decisão final de indeferimento, por despacho do Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) de 08 de setembro de 2023, ao abrigo de Subdelegação de competências, exarado sobre a Informação n.º 135-AIR1/2023, que aqui se dá como integralmente reproduzida.
  8. Em 04-01-2024, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

§2. Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, e considerando, ainda, as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

  1. Thema decidendum
  1. A questão principal a apreciar e decidir nos presentes autos é a que se prende com saber se a derrama municipal das sociedades residentes em território nacional incide sobre a totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, incluindo os rendimentos obtidos fora do território nacional.
  2. Em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral importará, ainda, apreciar e decidir acerca do direito a juros indemnizatórios invocado pela Requerente.

ii) Posição das Partes

  1. A Requerente entende que os rendimentos obtidos fora do território nacional devem ser excluídos no cálculo da derrama municipal das sociedades residentes em território nacional, subtraindo-os ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, em linha com o decidido no Acórdão do STA de 13-01-2021, proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17.
  2. Alega, ainda, a Requerente que outro entendimento configuraria uma violação do disposto no artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais, bem como uma violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
  3. A Requerida sustenta que a derrama municipal recai também sobre o lucro tributável apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro, uma vez que se aplica a regra do artigo 4.º, n.º 1, do CIRC, que determina que a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, incluindo os rendimentos provenientes do estrangeiro, e atendendo a que não exige qualquer norma legal que exclusa esses rendimentos para efeito de derrama municipal.
  4. A Requerida manifesta a sua discordância com o sentido do acórdão do STA de 13-01-2021, proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, por entender que o mesmo “olvidou dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas”.
  5. Alega, ainda, a Requerida que “se para determinar a base de cálculo da derrama municipal forem excluídos apenas os rendimentos obtidos no estrangeiro, como advoga a Requerente, os gastos suportados para a obtenção de tais rendimentos seriam considerados no cálculo da base de incidência da derrama municipal (componente negativa da mesma base de incidência) resultando numa dupla redução do valor da derrama municipal calculada naqueles termos, o que constitui uma clara violação da lei”.
  6. Entende, ainda, a Requerida que a Requerente não cumpriu o ónus da prova, que lhe competia, do lucro tributável obtido em resultado dos rendimentos com origem no estrangeiro, o que deveria ser feito através de “documentos externos”.

iii) Apreciação

  1. O n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, que estabelece o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais, dispõe o seguinte:

1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território”.

  1. O n.º 2 do mesmo artigo, por seu lado, estabelece o seguinte:

2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

  1. E o n.º 13 do mesmo artigo estipula o seguinte:

13 - Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade”.

  1. Questão semelhante à que é objeto dos presentes autos foi já objeto de um Acórdão do STA, no qual é manifestado o entendimento de que “[o] lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)” (Acórdão do STA de 13-01-2021, proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17).
  2. Na fundamentação deste acórdão do STA pode ler-se o seguinte:

“[…] o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar “o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município” envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se “o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede …

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais.

[…]”.

  1. A jurisprudência arbitral tem aderido a este entendimento, designadamente nas decisões arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.ºs 554/2021-T, 720/2021-T, 234/2022-T e 211/2023.
  2. Todavia, é outro o entendimento deste tribunal. Vejamos.
  3. A derrama municipal consiste num imposto com a natureza de adicionamento ao IRC.
  4. Conforme refere o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 197/2013, de 9 de abril de 2013, “tendo a derrama passado a ser calculada a partir do lucro tributável – e não já a partir da coleta – há que concluir que a mesma se converteu, de uma perspetiva jurídico-financeira, num adicionamento ao IRC, perdendo a sua natureza de adicional (Sérgio Vasques, ‘O sistema de tributação local e a derrama’, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 121; Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, ‘As derramas municipais e o conceito de estabelecimento estável’, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 854)”.
  5. Incidindo a derrama “sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas” (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), as regras para a determinação do lucro tributável são as previstas no CIRC.
  6.  De acordo com o disposto no artigo 17.º, n.º 1, do CIRC, “[o] lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º [entidades que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola] é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”.
  7. O artigo 3.º do CIRC, sobre a base do imposto, no que releva para os autos, estabelece que:

1 — O IRC incide sobre:

a) O lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas colectivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam​​, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola;

[…]

2 — Para efeitos do disposto no número anterior, o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código.

[…]”

  1. E o artigo 4.º, n.º 1, do CIRC, relativo à extensão da obrigação de imposto, determina que “[r]elativamente às pessoas colectivas e outras entidades com sede ou direcção efectiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território”.
  2. Decorre dos preceitos citados a necessária inclusão, na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira.
  3. Não existindo norma legal que excecione a consideração dos rendimentos obtidos no estrangeiro para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, como bem refere a Requerida.
  4. Alega a Requerente que os rendimentos obtidos no estrangeiro não são gerados no município. Todavia, o artigo n.º 13 do artigo 18.º, da Lei n.º 73/2013, é claro ao determinar que “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo […]”.
  5. A lei não afirma que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direção efetiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos, pelo que não pode o intérprete chegar a um resultado interpretativo que desconsidera o que a lei diz e que valoriza o que a lei não diz.
  6. O artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, veda ao intérprete a possibilidade de considerar “o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
  7. E, conforme dispõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, “[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
  8. Assim, considera-se que a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direção efetiva do sujeito passivo.
  9. E compreende-se bem que assim seja, por razões que se prendem com os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), os quais, ao invés de serem violados com esta interpretação, estão-lhe subjacentes, como demonstraremos de seguida.
  10. O n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013 atribui a cada município competência para deliberar lançar uma derrama municipal sobre a parcela do lucro tributável gerado na respetiva circunscrição territorial. A formulação utilizada pelo legislador visa abranger a universalidade dos municípios, mas delimitar o âmbito da respetiva competência à circunscrição territorial de cada um, daí que o legislador empregue a expressão “que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica”, não resultando da mesma qualquer exclusão de rendimentos de fonte estrangeira.
  11. Nem tal exclusão pode ser extraída da redação do n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, porquanto este preceito se limita a definir a regra de repartição do lucro tributável imputável a cada município, no caso de o sujeito passivo possuir estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a € 50 000.
  12.  A norma contida no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013 não define a base de incidência da derrama municipal.
  13. A admitir-se a exclusão dos rendimentos de fonte estrangeira para efeitos de derrama municipal, estar-se-ia a tratar de modo injustificadamente diferente as entidades que desenvolvem uma atividade exclusivamente no território nacional e as que desenvolvem atividade também fora desse território, em benefício destas.
  14. Com efeito, no caso de uma entidade com sede num determinado município nacional, mas cuja atividade seja desenvolvida em todo o território nacional, deverá o respetivo lucro tributável, para efeitos de derrama municipal, ser imputável ao município onde se situa a sua sede ou direção efetiva, conforme decorre do disposto nos n.ºs 1 e 13 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro.
  15. Não faria sentido, nem resulta da lei, que tenha de se fazer a segregação dos rendimentos pelos diversos municípios onde os rendimentos foram pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo, a menos que em algum (ou alguns) o sujeito passivo tenha estabelecimento estável ou representação local (e o sujeito passivo tenha matéria coletável superior a €50 000) a que devam ser imputados os rendimentos gerados na respetiva circunscrição territorial, sendo então aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013.
  16. Não se vislumbra qualquer fundamento para que o legislador adotasse solução diferente quando os rendimentos são pagos fora do território nacional. E a verdade é que não adotou, em respeito pelos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
  17. Se assim não fosse, no caso de duas entidades com sede no mesmo município e com o mesmo lucro tributável, mas em que os rendimentos de uma resultassem exclusivamente de atividade desenvolvida em território nacional e os rendimentos de outra fossem parcialmente obtidos com atividade desenvolvida também fora do país, esta pagaria menos derrama municipal do que a primeira, uma vez que os rendimentos pagos fora do território nacional seriam excluídos. Tal hipótese configuraria uma violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, uma vez que duas entidades com idêntica capacidade contributiva seriam tributadas de modo injustificadamente diferente em sede de derrama municipal.
  18. E, por conseguinte, compreende-se bem a solução normativa contida no n.º 13 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, no sentido em que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo.
  19. O critério legal de imputação do lucro tributável a um município é, portanto, o do local em que o mesmo é gerado ou, dito de outro modo, o local a partir do qual é gerado – o local da sede ou direção efetiva do sujeito passivo.
  20. Esta solução normativa e a interpretação e aplicação feitas pela Requerida não configuram, pois, qualquer desrespeito pelos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
  21. É claro que sempre se poderá invocar o problema da potencial dupla tributação jurídica, no caso de os rendimentos em causa terem sido tributados no país da fonte.
  22. Mas este é mais um argumento em favor da interpretação que temos vindo a expor.
  23. Veja-se, a este respeito, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, 11 de novembro de 2020, no âmbito do processo n.º 172/20, que decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, na redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, segundo a qual a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da “fração do IRC”, aí prevista, para efeitos de eliminação da dupla tributação internacional, independentemente de os rendimentos serem obtidos em países com os quais Portugal tenha celebrado uma convenção para eliminar a dupla tributação”, e no qual se afirma o seguinte:

O artigo 91.º do Código do IRC regula a aplicação do método escolhido pelo legislador para, no âmbito deste imposto, eliminar a dupla tributação que pode incidir sobre os respetivos sujeitos passivos que desenvolvam a sua atividade económica (também) no estrangeiro.

Segundo uma lógica de neutralidade na exportação de capitais (capital export neutrality), considera o legislador português que o tratamento fiscal dos sujeitos passivos que obtenham rendimentos noutros Estado deve ser similar ao aplicável àqueles cujos rendimentos sejam obtidos exclusivamente em Portugal (cfr. o acórdão de 2 de dezembro de 2018). Ou seja, e conforme se salienta na doutrina, pretende-se que a tributação nacional – no caso vertente, o IRC – não influencie a decisão do sujeito passivo de investir em Portugal ou no estrangeiro, devendo, tanto quanto possível, ser pago o mesmo montante total de imposto (incluindo o imposto nacional e o imposto estrangeiro), independentemente de o rendimento ser percebido a partir de fontes domésticas ou de fontes estrangeiras (cfr. PAULA ROSADO PEREIRA in JOÃO RICARDO CATARINO e VASCO BRANCO GUIMARÃES (Coord.), Lições de Fiscalidade, vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 212). A neutralidade na exportação de capitais tem «a vantagem de incentivar a tomada de decisões de investimento baseadas fundamentalmente em razões económicas e comerciais, contribuindo para reduzir a evasão fiscal e a concorrência fiscal internacional» (cfr. idem, ibidem, p. 213). A mesma visa, por isso, assegurar a igualdade fiscal entre sujeitos passivos residentes no mesmo Estado, independentemente do Estado onde aqueles sujeitos tenham decidido realizar os respetivos investimentos.

[…]

Mais importante ainda, do ponto de vista da autonomia financeira dos municípios, é a caracterização da derrama municipal como imposto acessório do IRC, e não apenas dele dependente: a sua existência pressupões a efetiva sujeição ao imposto principal (cfr. o 18.º, n.º 1, do citado Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais; cfr., quanto à evolução a este respeito daquele regime jurídico, além do já mencionado Acórdão n.º 275/98, n.º 5, também a apreciação crítica deste aspeto feita por CASALTA NABAIS, ob. cit., pp. 77 e 78).

De todo o modo, e conforme referido, a interpretação dos dados normativos infraconstitucionais – no que ora releva, a caracterização da derrama municipal prevista naquele artigo 18.º como um adicionamento ao IRC – constitui o ponto de partida da apreciação da constitucionalidade a realizar por este Tribunal em sede de fiscalização concreta (cfr. supra o n.º 4), sendo certo, para mais, que o objeto material do presente recurso se cinge ao artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC. Nesta perspetiva, a integração da coleta da derrama municipal na “fração do IRC” ora em apreciação é uma consequência necessária da sua caracterização como adicionamento àquele imposto, a que, de resto, e como aludido, nem sequer a argumentação da recorrente, designadamente a propósito das situações em que exista CDT, escapa.

[…]

Com efeito, nos termos dos artigos 14, alínea c), e 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, o produto da cobrança das derramas municipais que o Estado deve entregar aos municípios, a título de receita municipal, é, desde logo, pré-determinado pelo montante de imposto legalmente devido ao Estado pelos sujeitos passivos de IRC, o qual resulta não apenas da aplicação da taxa pertinente ao lucro tributável (incluindo a taxa concreta fixada por cada município), mas também das deduções legalmente devidas (cfr. o artigo 90.º do Código do IRC). Esta é uma condição necessária, pois só assim se garante que, nos termos da presente configuração legal da derrama municipal, todo o lucro tributável a ela sujeito se encontre também sujeito ao IRC, de modo a que a coleta da primeira corresponda, na proporção fixada por cada município nos limites da lei, à coleta do segundo.” [sublinhados acrescentados].

  1. Sobre esta questão, o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 04-05-2022, proferido no âmbito do processo n.º 0848/16.4BEPNF, decidiu no sentido de que a derrama municipal (tal como a derrama estadual) integra o cálculo da "fracção do IRC” referida no artigo 91.º, n.º 1, al. b), do CIRC, devendo ser considerada para efeitos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, nos termos que de seguida se sintetizam:

No que diz respeito à exegese do artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, desde logo, se deve chamar à colação o elemento histórico de interpretação, tal como a própria letra da lei (enquanto limite de interpretação da norma - cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil), atentando na evolução do texto da norma, ou seja, na utilização, pelo legislador da expressão "fracção do IRC". Ora, esta expressão permanece inalterada no texto legal desde a primitiva redação do Código do I.R.C. (cfr.artº.73, al.b), do C.I.R.C., na versão aprovada pelo dec.lei 442-B/88, de 30/11). O que assume particular relevo interpretativo, porquanto, inicialmente, o crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional apenas era conferido aos rendimentos oriundos de países com os quais Portugal tivesse em vigor uma CDT.

Ou seja, na redacção inicial da norma, a expressão "fracção do IRC" tinha, necessariamente e em todos os casos, que ser interpretada em conformidade com os textos convencionais, sendo que a própria Convenção Modelo da OCDE (cfr.artº.2, nº.1, com a epígrafe "impostos visados"), independentemente da formulação em concreto utilizada, abrange a derrama municipal.

[…]

Com estes pressupostos, deve concluir-se, contrariamente ao Tribunal "a quo", que o artº.91, nº.1, al.b), do C.I.R.C., na redacção em vigor no ano de 2012, não distingue as situações em que existe ou não CDT, sob pena de se postergar o princípio da igualdade tributária, na correcção ao cálculo do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, pelo que a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da "fracção do IRC" aí prevista, mais se devendo mencionar em defesa desta perspectiva hermenêutica da norma a jurisprudência deste Tribunal e do Tribunal Constitucional e a doutrina (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/11/2021, rec.255/17.1BESNT; ac.Tribunal Constitucional 603/2020, 11/11/2020, proc.172/20; Rui Marques, Código do IRC anotado e comentado, Almedina, 2019, pág.762, em anotação ao artº.91, do C.I.R.C.).” [sublinhados acrescentados]

  1.  O Acórdão citado teve um voto de vencido, do Juiz Conselheiro Gustavo Lopes Courinha, cuja declaração de voto, ainda assim, refere expressamente que “… para efeitos de uma Convenção de Dupla Tributação (a existir), a derrama configurar, em nossa opinião, um imposto claramente abrangido pela mesma”.
  2. Ora a derrama municipal só poderá estar abrangida por uma Convenção de Dupla Tributação e o crédito por dupla tributação internacional só poderá ser deduzido à fração do IRC que inclua a derrama municipal se, na base de cálculo da derrama municipal, estiveram também incluídos os rendimentos de fonte estrangeira.
  3. Entende-se, portanto, que nenhum vício de ilegalidade é possível apontar ao apuramento da derrama municipal objeto dos presentes autos, nem ao ato de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela ora Requerente.
  4. Pelos fundamentos expostos, conclui-se pela improcedência do pedido de declaração da ilegalidade e de anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa e de anulação parcial das autoliquidações de IRC respeitantes aos períodos de tributação de 2020 e 2021.
  5. Em razão da improcedência do pedido principal, indefere-se o pedido de reconhecimento do direito ao reembolso e fica prejudicado o conhecimento do pedido relativo ao direito a juros indemnizatórios.

 

IV – DECISÃO

Termos em que este tribunal decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida de todos os pedidos.

 

V- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 56.099,77.

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2 142.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de maio de 2024    

 

 

O Árbitro

 

(Paulo Nogueira da Costa)