Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 958/2023-T
Data da decisão: 2024-04-23  IRC  
Valor do pedido: € 229.622,05
Tema: IRC. Derrama municipal. Rendimentos obtidos fora de Portugal.
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Decisão Arbitral

 

 

          Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e Dr. Francisco Melo (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 20-02-2024, acordam no seguinte:

 

         

          1. Relatório

 

            A..., S.A., doravante abreviadamente designada por “A...” ou “REQUERENTE”), sociedade com o número único de pessoa coletiva..., com sede na ..., n.º ..., ...‐... Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários de liquidação de IRC dos períodos de 2020 e 2021, e o reembolso do montante global de € 229.622,05 referente ao somatório dos montantes de derrama municipal suportados excessivamente nos períodos de 2020 e 2021.

A Requerente pede ainda juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 11-12-2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 31-01-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 20-02-2024.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que suscitou a excepção de incompetência material do tribunal arbitral e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 03-04-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações, podendo a Requerente apresentar resposta à excepção, no prazo de 10 dias.

A Requerente não apresentou resposta à excepção no prazo fixado e foi indeferido o requerimento de prorrogação.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Importa apreciar prioritariamente  questões da incompetência, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

 

2. Questão da incompetência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação não precedidos de reclamação graciosa, mas de pedido de revisão oficiosa

 

São impugnados actos de autoliquidação de IRC e derramas, na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.

A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a questão da incompetência do Tribunal Arbitral porque, em suma, entende que a Portaria nº 112-A/2011, de 22/03, que estabelece a vinculação da administração tributária à jurisdição arbitral, exclui do âmbito desta vinculação, conforme alínea a) do seu artigo 2º, as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, o que não é o caso do pedido de revisão oficiosa previsto no artigo 78.º da LGT.

No entanto, é unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa ( [1] ).

Como se diz no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15 (reproduzindo a decisão arbitral proferida no processo n.º 630/2014-T):

 

Conforme resulta do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta [alínea a)] e a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais [alínea b)].

Por outro lado, a competência dos tribunais arbitrais depende dos termos da vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT. Com efeito, o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Nos termos da alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011 ficam excluídas do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

Considerando aqueles preceitos legais a decisão arbitral concluiu pela viabilidade de apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa, julgando não verificada a excepção de incompetência suscitada. Concordamos na íntegra com todo o discurso fundamentador da decisão arbitral, cuja fundamentação aqui transcrevermos apenas em parte:

 “A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.

(...)

Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.

Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».

No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.

Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.

Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [2] )

A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.

Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

(…)

A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.

Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.

Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [3] )

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.

Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.

E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a soluça mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”

 

De harmonia com esta jurisprudência, os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD são competentes para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação quando o pedido de pronúncia arbitral foi precedido de pedido de revisão oficiosa.

Aliás, no caso em apreço, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado dentro do prazo da «reclamação administrativa» que se refere na primeira parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, que é o de dois anos previsto no artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, pelo que o pedido de revisão oficiosa é equiparável a uma reclamação graciosa, como se refere, entre outros, nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, processo n.º 0402/06; de 14-11-2007, processo 0565/07; de 30-09-2009, processo n.º 0520/09; de 12-09-2012, processo n.º 0476/12. 

No que concerne às questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, deve ter-se em conta que a questão da constitucionalidade desta interpretação sobre o âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD já foi objecto de apreciação do Tribunal Constitucional que decidiu «não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD». ( [4] )

Nestes termos, aderindo à referida jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul e do Tribunal Constitucional, julga-se improcedente a excepção de incompetência invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto ao âmbito da sua vinculação.

 

3. Matéria de facto

3.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. A A... é uma sociedade anónima, residente em território português, enquadrada para efeitos de IRC no regime geral de tributação;
  2. A Requerente tem como actividade principal os “SEGUROS NÃO VIDA” (CAE 65120) e como actividade secundária o “ARRENDAMENTO DE BENS IMOBILIÁRIOS” (CAE068200);
  3. Com referência ao período tributário de 2020, a Requerente apresentou, em 01-07-2021, a declaração individual de rendimentos Mod. 22, a qual ficou registada com o n.º ...-...-..., tendo dado origem à liquidação n.º 2021... que veio a ser cancelada (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Em 03-08-2021, submeteu uma declaração de substituição, registada com o n.º ...-...-..., que originou a liquidação n.º 2021 ... (compensação n.º 2021...), na qual apurou uma matéria coletável de €8.102.605,38 e autoliquidou imposto no montante de €1.659.528,64 (documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  5. A derrama municipal calculada relativa ao período de 2020 ascendeu a €400.332,58 (documento n.º 4);
  6. Relativamente ao período de 2021, submeteu, em 31-05-2022, a declaração de rendimentos Mod. 22, a qual ficou registada como documento n.º ...-...-..., dando origem à liquidação n.º 2022..., a qual foi cancelada (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. Em 09-09-2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação n.º 2022..., relativa ao período de 2021, em que foi apurada uma matéria coletável que ascendeu a €2.355.237,03 e um reembolso de imposto no valor de €1.583.340,51 (inclui €2.771,41 a título de juros indemnizatórios) (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  8. A derrama municipal calculada relativa ao período de 2021 ascendeu a €115.934,02;
  9. Em 05-07-2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações referidas, que consta do documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
  10. Em 06-09-2023, foi proferido despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, nos termos que constam do documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido,  em que se refere, além do mais, o seguinte:

6. A questão de direito a dirimir nos presentes autos prende-se com a desconsideração dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal.

17. Nos termos do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, a derrama municipal, cuja receita reverte a favor dos Municípios, tem como base de tributação o lucro tributável de entidades residentes, sujeitas e não isentas deste imposto, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como de entidades não residentes que exerçam a sua atividade em

território português através de um estabelecimento estável nele situado.

18. É, pois, um imposto acessório relativamente ao IRC e assentando a sua incidência real no lucro tributável sem que o referido regime possua regras especificas para a sua determinação, então, essas regras  serão as que estão consagradas no Código do IRC, cujo artigo 17.º, como é sabido, estabelece o apuramento através da soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos enunciados no Código a fim de serem tomados em consideração os objetivos e condicionalismos próprios da fiscalidade.

19. Tem-se, assim, que quer a derrama quer o IRC são determinados com recurso a uma base tributável comum – o lucro tributável. Como afirma Saldanha Sanches “(…) “A particularidade da derrama face aos demais impostos municipais reside, essencialmente, no facto de a determinação da sua base tributável não ser distinta de todos os demais, mas antes assentar precisamente na base tributável de um outro imposto – o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

Tal como sucede, por exemplo, na taxa de esgotos, ou, em alguns casos, no próprio IMT, há tributos que vão buscar a sua base de incidência aos valores patrimoniais apurados para efeitos do IMI. De acordo com a actual redacção da LFL de 2007, trata-se claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam apenas da lei (sujeito activo, margem de taxas), ou obedecem à intervenção da Autarquia Local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objectiva comum. Mesmo com este objecto comum, admite-se a possibilidade de adaptação dos critérios de imputação do rendimento colectável do sujeito passivo (em atenção às características especiais deste) ao município, bem como a criação de um regime especial de taxas para empresas com

baixos volumes de facturação. Existem, portanto, relações jurídico-fiscais claramente autónomas entre a derrama e o IRC, ao contrário do que se discutia nas anteriores LFLs, onde a derrama pressupunha a existência de uma colecta de IRC e donde, portanto, era legítimo concluir pela respectiva acessoriedade face a este imposto (…).”

E, de facto,

20. O n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013 estipula que “Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.”

21. Por sua vez, refere o n.º 13 que “Nos casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.”

22. Ainda de destacar o que consagram os seguintes números do mesmo artigo 18.º do RFALEI:

“21 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.

22 - A assembleia municipal pode, sob proposta da câmara municipal, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 16.º, deliberar a criação de isenções ou de taxas reduzidas de derrama.

23 - As isenções ou taxas reduzidas de derrama previstas no número anterior atendem, nos termos do regulamento previsto no n.º 2 do referido artigo 16.º, aos seguintes critérios:

a) Volume de negócios das empresas beneficiárias;

b) Setor de atividade em que as empresas beneficiárias operem no município;

c) Criação de emprego no município.

24 - Até à aprovação do regulamento referido no número anterior, a assembleia municipal pode, sob proposta da câmara municipal, deliberar lançar uma taxa reduzida de derrama para os sujeitos passivos com um volume de negócios no ano anterior que não ultrapasse (euro) 150 000.

25 - Os benefícios fiscais previstos nos números anteriores estão sujeitos às regras europeias aplicáveis em matéria de auxílios "de minimis.”

 Da análise ao regime que em parte se acaba de expor em nada resulta que para o cálculo da derrama municipal se possa “decepar” o lucro tributável, dele expurgando rendimentos que legalmente não estão excluídos da incidência real daquele tributo.

 A derrama municipal calcula-se por aplicação de uma taxa máxima de 1,5% ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC. Ou seja, o que está legalmente consagrado é uma tributação incidente sobre rendimentos sujeitos a IRC e dele não isentos.

Aliás,

 Quanto a isenções e benefícios fiscais, conforme já atrás se deixou exposto, o RFALEI tem regras próprias.

 E, como se salientou, apenas é conferido à assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal, a possibilidade de reduzir a taxa da derrama para os sujeitos passivos com um volume de negócios no ano anterior que não ultrapasse € 150 000.

Ora,

 A possibilidade de alteração da base tributável, mormente por exclusão de rendimentos obtidos fora do território português, não é objeto de qualquer regulamentação no artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, nem em qualquer outra legislação avulsa, pelo que, dada a sua inexistência, será forçoso concluir pela impossibilidade legal de ser conferido tratamento especial a tais rendimentos.

 Nada na lei se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.

Contudo,

29. E, como alude a Requerente, a questão sub judice nos presentes autos foi já objeto de análise por tribunais judiciais e arbitrais, cujas decisões têm sido no sentido de que os rendimentos obtidos no estrangeiro, não sendo gerados na área geográfica do(s) município(s) da empresa não ficam sujeitos a derrama municipal.

30. Neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo (STA) no acórdão de 13 de janeiro de 2021, proferido no processo n.º 0924/17, tendo sido sentenciado que da base de incidência da derrama municipal devem ser eliminados os rendimentos que devam ser considerados obtidos fora do território nacional.

Porém,

31. No que tange a esta posição já se pronunciou em sentido divergente a Direção de Serviços do IRC (DSIRC) na informação produzida em resposta à questão sobre o assunto colocada por esta Unidade Orgânica, e que mereceu Despacho concordante da Subdiretora Geral de 04-11-2022.

32. Defende aquela Direção de Serviços que para a base de cálculo da Derrama Municipal concorrem todos os rendimentos quer os auferidos em território português quer os obtidos fora dele, entendendo, com o devido respeito, ter o Tribunal olvidado dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas.

Por um lado, quanto às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o lucro tributável obedece ao princípio da universalidade, (art.º 4.º, n.º 1 do CIRC), isto é, releva no seu cômputo todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua proveniência.

Por outro, esse mesmo lucro integra componentes de várias naturezas e resulta de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e os devidos ajustamentos positivos e/ou negativos, efetuados nos termos do Código do IRC.

Assim sendo,

33. Afirma a DSIRC que mantém o entendimento que sobre a matéria tem vindo a seguir, tanto mais que a decisão do STA produz efeitos apenas para o caso apreciado e decidido.

Logo,

34. Conclui que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira, componentes daquela grandeza.

35. Em defesa da sua tese a DSIRC articula que:

· Nos termos do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais é estabelecida a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território (artigo 18.º, n.º 1);

· A base de incidência da derrama municipal coincide com a do IRC, sendo a ela sujeitas as entidades residentes que exerçam, a título principal, uma atividade marcadamente económica e as não residentes com estabelecimento estável situado em território português;

· Daí que, quer quanto aos sujeitos passivos, quer quanto à respetiva base tributável, tenham de ser tomadas em consideração as disposições do Código do IRC, nomeadamente as regras contidas nos artigos 3.º - Base do imposto, 4.º - Extensão da obrigação do imposto e 17.º - Determinação do lucro tributável;

· Na legislação em vigor que disciplina a figura da derrama inexiste qualquer norma que disponha a exclusão da base tributável de rendimentos provenientes do exterior, o que impõe que não se possa inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, já que, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;

· Dessa mesma legislação não consta qualquer exclusão de tributação relativamente à parte do lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código do IRC estabelece a extensão da obrigação do imposto relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, consistindo no englobamento da totalidade dos rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território;

· A regra de caráter geral estabelecida no n.º 1 do artigo 18.º do diploma contempla a sujeição da derrama municipal à área da sede do sujeito passivo ou do estabelecimento estável, prevendo o n.º 2 do mesmo artigo uma regra especial, para a repartição da derrama municipal por diversos municípios, que apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superior a € 50 000,00, situação em que o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional;

· E, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição da derrama pelos diferentes municípios em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo.

36. Em consequência do exposto, entende-se que nenhum vício de ilegalidade é possível apontar ao apuramento da derrama municipal, devendo as autoliquidações processadas pela Requerente para os períodos de tributação de 2020 e 2021 ser mantidas na sua ordem jurídica e, nesta sequência, julgar improcedentes os pedidos apresentados.

 

  1. Nos períodos de 2020 e 2021, a Requerente obteve rendimentos provenientes do estrangeiro, que foram incluídos na matéria tributável que serviu de base às liquidações;
  2. A Requerente pagou a quantia de € 1.659.528,64, relativa à autoliquidação referente ao ano de 2020 (liquidação que consta do documento n.º 4, linha 31);
  3. Em 10-12-2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

3.2. Factos não provados

 

Não se provou que os rendimentos obtidos no «estrangeiro» pela Requerente nos anos de 2020 e 2021 sejam nos montantes que são como tal indicados nos documentos n.ºs 10, 11 13 e 14, nem que a derrama a recuperar pela Requerente seja nos montantes que indica no pedido de pronúncia arbitral.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não aceita esses valores indicados pela Requerente e não são juntos elementos probatórios que permitam confirmar a origem dos rendimentos indicados.

 

3.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto, quanto aos factos que foram dados como provados.

 

4. Matéria de direito

 

3.1. Posições das Partes

 

A questão que é objecto do presente processo é a de saber se os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente devem ser excluídos no cálculo da Derrama Municipal, enquanto sociedade residente em território nacional, nos exercícios de 2020 e 2021.

A Requerente defende, em suma, que:

– a derrama municipal tem por objecto apenas os rendimentos que foram auferidos em determinado município, em virtude da força laboral que ali se reúna, o que resulta do n.º 2 do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais, que estabelece que “(…) sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município (…) o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional”;

–  a contrario, é forçoso concluir que sobre os rendimentos gerados fora da circunscrição geográfica de Portugal não deverá incidir qualquer derrama municipal;

–  n.º 13 do artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais, ao estabelecer que, “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera‐se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo”, não afecta aquela conclusão, pois reporta-se aos casos em que é gerada em território português a totalidade dos rendimentos.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende a posição assumida na decisão do pedido de revisão oficiosa, dizendo ainda, em suma, que:

– a derrama municipal recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e os gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro;

– a derrama é um imposto dependente do IRC;

– na determinação do lucro tributável de IRC não é feita distinção em relação a rendimentos obtidos no estrangeiro;

– no lucro tributável estão incluídos encargos subjacentes aos rendimentos obtidos no estrangeiro, o que conduz, no limite à dedução de gastos em montante superior ao devido e à não tributação de lucro tributável apurado relativamente aos rendimentos obtidos em território nacional, e consequentemente à violação das disposições legais vertidas na lei;

– se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque na base de cálculo da derrama estão incluídos não só sobre os rendimentos (e gastos) provenientes do território português, mas também os com origem no estrangeiro.

 

4.2. Apreciação da questão

 

A questão que é objecto do presente processo foi já decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo, num caso idêntico ao destes autos, no acórdão de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT, em que refere, além do mais, o seguinte:

“... o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede ...

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente ... certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e devem respeitar "os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material" (Artigo 5º da Lei Geral Tributária (LGT), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo...

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a "massa salarial", ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).

Obviamente, não é incorreto afirmar ...  que, na LFL, "nada se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas ..., a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do artº 4º, do CIRC”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável, (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, "relativamente ligeira"”.

 

Para além disso, como se refere na decisão arbitral proferida no processo n.º 211/2023-T:

A presente análise exige ainda o respetivo enquadramento constitucional, no quadro da autonomia financeira dos municípios (e das freguesias), enquanto vetor central da autonomia local (artigo 238.º CRP) estabelecendo-se que, “(…) As autarquias locais têm património e finanças próprios”, sendo que “(…) As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços», podendo «(…) dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.»

Desta forma, “o que legitima a atribuição de poderes tributários às autarquias locais é, fundamentalmente, o seu nível de estruturação política e administrativa, pois, tal como sucede com as regiões autónomas, elas têm como base uma representação directa dos cidadãos eleitores.[5] Pelo que, “Só assim se pode entender que a Lei das Finanças Locais possa atribuir às Assembleias Municipais algum espaço de decisão, alguma autonomia no sentido próprio de auto-governo, em matéria tributária quanto à criação de taxas e no lançamento de derramas.” [6]

Neste contexto, «(…), as derramas constituem uma manifestação tradicional do poder tributário dos órgãos do Poder Local, cuja origem se descobre nas antigas fintas que os concelhos podiam lançar para ocorrer aos encargos que excedessem as suas rendas (Ordenações, Livro I, Tít. 66, § 40). Este poder tributário permaneceu, com algumas oscilações, nos vários Códigos Administrativos que se sucederam, entre nós, desde o Código de 1836 ao Código de 1936-1940 (cfr. o artigo 781.º deste último Código, quanto à faculdade de lançamento de derramas pelas freguesias) e chegou até aos diplomas sobre finanças locais aprovados já no domínio da Constituição de 1976 (…)» [7].

 

Sendo assim certo que «a derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. E que, “(…) a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (…)»[8], os poderes tributários locais são, por natureza, limitados, não podendo ser exercidos para além do âmbito de interesses locais da própria representação e legitimação democrático-representativa subjacente.

 

Assim, como se refere no citado acórdão do STA de 13-01-2021:

 “Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”.

 

Na linha desta jurisprudência, a que se adere, é de concluir que a Requerente tem razão ao defender que sobre o lucro tributável que resulte de rendimentos obtidos fora do território português não deve incidir derrama municipal.

Consequentemente, é de concluir que as autoliquidações de IRC e derramas relativas aos exercícios de 2020 e 2021 enfermam de ilegalidades que justificam a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa enferma dos mesmos vícios.

 

5. Pedido de restituição de quantias pagas com juros indemnizatórios

 

A Requerente pede reembolso da quantia de € 229.622,15, acrescida de juros indemnizatórios.

 

5.1. Pedido de restituição de quantias pagas

 

Como se refere no ponto 3.2. não se provou que os rendimentos obtidos no «estrangeiro» pela Requerente nos anos de 2020 e 2021 sejam nos montantes que são como tal indicados nos documentos n.ºs 10, 11, 13 e 14, nem que a derrama a recuperar pela Requerente seja nos montantes que indica no pedido de pronúncia arbitral.

Por isso, o pedido de restituição dever ser julgado procedente quanto ao valor que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

5.2. Juros indemnizatórios

 

O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.

O pedido de revisão do acto tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere nos citados acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, processo n.º 0402/06; de 14-11-2007, processo 0565/07; de 30-09-2009, processo n.º 0520/09; de 12-09-2012, processo n.º 0476/12. 

A decisão do pedido de revisão oficiosa (equiparado a reclamação graciosa) deveria ter atendido a pretensão da Requerente, pelo que enferma de erro que é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 Esta situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la, deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção. ( [9] )

Neste sentido tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos:

– de 28-10-2009, proferido no processo n.º 601/09;

 – de 18-11-2020, proferido no processo n.º 2342/12.3BELRS;

 – de 28-04-2021, proferido no processo n.º 16/10.9BELRS 0884/17;

 – de 09-12-2021, proferido no processo n.º 1098/16.5BELRS;

 – do Pleno de 29-06-2022, proferido no processo n.º 93/21.7BALSB;

 – de 13-07-2022, proferido no processo n.º 1693/09.9BELRS.

 

No caso em apreço, a reclamação graciosa foi indeferida em 06-09-2023, dentro do prazo legal previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT, pelo que a partir desta data, começam a contar-se juros indemnizatórios, calculados sobre a quantia a reembolsar que for determinada em execução desta decisão arbitral.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde 06-09-2023 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

 

            6. Decisão     

 

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular parcialmente as autoliquidações de IRC relativas aos exercícios de 2020 e 2021, nas partes em que não nelas não foram desconsiderados os rendimentos provenientes de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal;
  3. Julgar procedente o pedido de restituição de quantias pagas que for determinado em execução da presente decisão arbitral e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a fazer o respectivo pagamento à Requerente;
  4. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 5.2. desta decisão arbitral.

 

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 229.622,05, indicado pelo Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 23-04-2024

 

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(relator)

 

(Manuel Lopes da Silva Faustino)

 

 

(Francisco Melo)



[1] Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB; de 11-03-2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB; de 26-o05-2022, processo n.º 97/16.6BCLS; de 12-05-2022, processo n.º 96/17.6BCLSB.

[2] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.

[3] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.

[4] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244/18, de 11-05-2018, processo n.º 636/17.

[5]    Saldanha Sanches, J.L., Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2002, p. 40.

[6]    Ibidem.

[7]    Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, Processo n.º 405/88, de 16 e fevereiro de 1995.

[8]    Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013, Processo n.º 602/12, de 9 e abril de 2013.

( [9] )        ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, página 528:

«A omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omis­são é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano».