Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 917/2023-T
Data da decisão: 2024-05-08  IRC  
Valor do pedido: € 468.097,68
Tema: Artigo 63.º do TFUE. Dividendos distribuídos aos OIC não residentes.
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SUMÁRIO:

  1.  O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
  2. A retenção na fonte de IRC feita no desrespeito por esta jurisprudência europeia é anulável por erro sobre os pressupostos de facto e de Direito.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernando Araújo (Presidente), Augusto Vieira e Vasco António Branco Guimarães (relator), árbitros designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 12-02-2024, deliberam o seguinte:

 

           

1. Relatório

 

A... (e doravante designado por “Requerente”), com sede social em ..., ..., em França, conforme certificados de residência fiscal de que se juntam cópias sob a designação de Documento n.º 1, titular do número de identificação fiscal português ... (enquanto entidade não residente sujeita a retenção na fonte a título definitivo), representado pela B..., na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, vem solicitar a constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentou

 

PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL

 

o qual tem por objeto:

i)         o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada a 18 de maio de 2023, contra os atos tributários de retenção na fonte indevidamente suportados, melhor identificados infra, a título de IRC, que lhe foram efetuados, a título definitivo, sobre dividendos de fonte portuguesa, durante 2021 e 2022, no valor de € 468.097,68 (quatrocentos e sessenta e oito mil, noventa e sete euros e sessenta e oito cêntimos), devendo o Tribunal funcionar com um coletivo de três árbitros, atento o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º do RJAT,

ii)        O pagamento de juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.

 Termina solicitando ao Tribunal:

a. A dar como provada a presente ação arbitral e, consequentemente, anular o indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente;

b. Em consequência, anular os atos tributários de retenção na fonte indevida, a título de IRC, que foram efetuados a título definitivo, sobre os dividendos auferidos de fonte portuguesa, nos períodos de abril de 2021 e abril 2022, no valor global de € 468.097,68 (quatrocentos e sessenta e oito mil, noventa e sete euros e sessenta e oito cêntimos);

c. Ordenar o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT;

d. A título subsidiário, promover o reenvio prejudicial das questões referidas supra e/ou outras que entenda suscitar ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, se e na medida em que a matéria aqui em causa não seja clara para o Tribunal arbitral, não obstante a jurisprudência do TJUE já produzida em matéria idêntica (processo C-545/19).

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira na data de 04-12-2023.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os acima referidos, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 23-01-2024 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 12-02-2024.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu que os pedidos devem ser julgados improcedentes por impugnação dos fundamentos apresentados.

Por despacho de 27-03-2024, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e marcado o prazo de dez dias para alegações sucessivas.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

 

A.        A Requerente é uma pessoa coletiva de direito francês, concretamente um Organismo de Investimento Coletivo qualificado como um “Fonds Commum de Placement” (“FCP”), sob a forma contratual e não societária, supervisionado pela Authorité des Marchés Financiers (“AMF”), conforme declaração emitida por esta entidade, à qual se encontra anexado o Regulamento do Fundo, de que se junta cópia sob a designação de Documento n.º 4 sendo um sujeito passivo de IRC, titular do número de identificação fiscal português ..., não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável.

B.        No âmbito da sua atividade, o ora Requerente, nos exercícios de 2021 e 2022, na qualidade de acionista de sociedade residente em Portugal, auferiu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, no âmbito do regime legal da substituição tributária nos montantes de os períodos de abril de 2021 e abril de 2022, em particular, o Requerente auferiu dividendos no montante total (bruto) de € 1.872.390,72 (€ 859.558,29 [2021] +€ 1.012.832,43 [2022]), tendo sofrido retenções na fonte, a título definitivo, no montante total de € 468.097,68 (€ 214.889,57 [2021] + € 253.208,11 [2022]), em virtude da aplicação da taxa de 25% prevista no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC a que corresponderam as guias n.º ... e ..., pagas em 19.05.2021 e em 20.05.2022. respectivamente.

C.        As retenções na fonte em apreço foram efetuadas pelo C... enquanto entidade registadora dos títulos em apreço, conforme Declarações emitidas por esta entidade de que se juntam cópias sob a designação de Documento n.º 5.

D.        O n.º 10 do artigo 22.º do EBF determina que não incide qualquer retenção na fonte de IRC sobre os rendimentos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF.

E.        o n.º 1 do artigo 22.º do EBF estabelece que o mesmo só se aplica aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo, portanto, do âmbito desta exclusão de tributação / isenção os fundos de investimento que não foram constituídos ao abrigo do direito português – como o Requerente, que é um fundo de investimento constituído ao abrigo do direito francês – ainda que atuem de acordo com a legislação comunitária em situação comparável aos fundos residentes.

F.         Em 18.05.2023, a Requerente reclamou graciosamente.

G.        A Requerida não respondeu até 18.09.2023 à reclamação graciosa efetuada, presumindo-se a mesma indeferida.

H.        Em 02.12.2023 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral no CAAD que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo.

Não se retiram outros factos relevantes dos articulados por serem citações de textos legais, acórdãos ou posições de parte sem conteúdo fáctico.

 

3. Matéria de direito

 

As questões de mérito que são objeto deste processo são:

 

1.         Saber se os dividendos distribuídos de ações cuja detenção é registada em nome de OIC não residentes europeus estão obrigados à retenção na fonte liberatória conforme dispõe a norma aplicável em vigor.

2.         Decidir se esta retenção na fonte é conforme ao que dispõe o artigo 63.º do TFUE e não integra uma das exceções previstas no artigo 65.º do TFUE.

3.         Saber se a posição da Requerida de que - «está a cumprir a norma em vigor» - é sustentável face ao ordenamento português e qual a posição do Tribunal Constitucional perante a aplicação do artigo 63.º do TFUE pelos Tribunais nacionais.

 

3.1. Posições das Partes

 

A Requerente defende o seguinte, em suma:

 

Que a retenção na fonte, em sede de IRC, dos dividendos distribuídos aos OIC não residentes discrimina negativamente a Requerente porquanto estabelece uma regra de tributação exclusiva para os não residentes em Portugal favorecendo os aqui residentes contra as regras em vigor e expressas no artigo 63.º do TFUE.

Que a questão já foi objeto de julgamento no TJUE no processo C-545/19 que julgou tal norma contrária às regras definidas no artigo 63.º do TFUE.

           

A Requerida defende:

 

Que a lei que prevê a tributação dos dividendos distribuídos aos OIC está em vigor e que a distinção entre residentes e não residentes continua válida e em vigor pelo que há que aplicá-la, não estando vinculada às decisões do TJUE que se apliquem a outros casos.

 

3.2. Apreciação da questão.

 

3.2.1. Termos Gerais

 

A questão da aplicação do direito europeu no ordenamento jurídico português é relativamente pacífica em termos doutrinários e jurisprudenciais.

Reconhece-se, sem mais e porque isso resulta dos Tratados subscritos pela República Portuguesa os princípios estruturantes do direito europeu – o efeito direto e o primado.

A doutrina do Tribunal Constitucional está bem resumida no Acórdão n.º 198/2023 que, em resumo entende que «não compete ao TC controlar a adequação dos juízos acerca da conformidade entre normas de direito interno e as normas de direito primário da União Europeia, dada a natureza deste ordenamento e a sua específica forma de relacionamento com a ordem jurídica nacional».

O TC tem sim competência para apreciação da aplicação das normas do direito internacional que resultam de Convenções Internacionais não se incluindo nestas as que deram origem às instituições e regras Europeias.

Resulta deste non licet que a competência para a apreciação da aplicação dos princípios e regras europeias é dos tribunais de primeira instância, incluindo os Tribunais arbitrais.

No caso em análise dá-se a feliz circunstância de já ter sido julgado pelo TJUE um caso em tudo semelhante ao presente nos autos, que é o Caso C- 545/2019, de 17.03.2022, que resulta de um pedido de reenvio prejudicial feito pelo CAAD.

Aí se concluiu «O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».

 

3.2.2. O art. 22º do EBF.

 

A questão a decidir no presente processo é idêntica a outras sobre as quais a arbitragem do CAAD tem sido chamada a pronunciar-se, e reconduz-se a saber se o art. 63º do TFUE deve, ou não, ser interpretado no sentido de vedar que a legislação de um Estado‑Membro imponha a retenção na fonte da tributação correspondente a dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não-residente, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

No centro da questão a apreciar situa-se o artigo 22.º do EBF: o n.º 1 desse artigo 22.º do EBF dispõe que “são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo, portanto, do âmbito do regime aí previsto os OIC como o Requerente, que não foram constituídos de acordo com a legislação nacional.

O art. 22.º do EBF estabelece um regime consideravelmente mais favorável do que o regime geral de tributação em IRC, visto que, nos termos do seu n.º 3, não considera os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – excepto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1, e a isenção de derramas, estadual e municipal. O n.°10 do mesmo artigo dispensa as empresas que distribuem dividendos aos OIC da obrigação de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.

Importa saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos, por sociedades residentes em Portugal, a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros da União Europeia (no caso, a França) – ao mesmo tempo que se isenta de tributação a distribuição de dividendos a OIC residentes em Portugal, e se sujeita os mesmos a tributação trimestral em IS, pela verba 29 da TGIS, e à eventual aplicação da tributação autónoma, designadamente a prevista no artigo 88º, 11 do CIRC – é conforme, ou não, com o art. 63º do TFUE.

Trata-se, em suma, de aferir da conformidade com este artigo, à data dos factos relevantes, das pertinentes normas do CIRC e do EBF respeitantes ao regime de tributação dos dividendos auferidos pela Requerente.

 

3.2.3. A liberdade de circulação de capitais

 

O art. 26º do TFUE estabelece uma conexão substantiva entre a criação do mercado interno e a liberdade de circulação de capitais, elevada esta, pelo art. 63º do TFUE, ao estatuto de liberdade fundamental do mercado interno, dotada de relevância constitucional no âmbito do Direito da União Europeia.

A mesma goza da primazia normativa sobre o direito interno dos Estados-Membros, cabendo aos tribunais nacionais, na sua qualidade de tribunais europeus em sentido amplo, assegurar a primazia de aplicação do direito da União Europeia, desaplicando o direito nacional de sentido contrário.

A criação de um mercado interno supõe, por definição, a gradual e efectiva abolição dos diferentes mercados nacionais, em favor de um único mercado interno, de forma a potenciar o crescimento económico à escala europeia, através da mais fácil disponibilização de capital. O objectivo dos OIC, cujo enquadramento jurídico é definido pela Directiva 2009/65/CE, consiste em facilitar a participação dos investidores privados num mercado de valores mobiliários, idealmente integrado a nível da UE.

O TJUE desempenha uma função interpretativa decisiva, nomeadamente em sede de acções por incumprimento e de reenvios prejudiciais, devendo os tribunais nacionais conformar-se com o entendimento sobre as normas dos Tratados que venha a ser vertido na jurisprudência daquele tribunal, sob pena de incumprimento do direito da União Europeia e de responsabilidade por parte do Estado-Membro.

A liberdade de circulação de capitais consagrada no art. 63º do TFUE implica a proibição de discriminação entre capitais de um dado Estado-Membro, e capitais provenientes de fora. Trata-se de uma norma directamente aplicável aos Estados-Membros, que devem abster-se de restringir o seu alcance por via legislativa, administrativa ou jurisdicional, embora isso não impeça os Estados-Membros de regularem em alguma medida a circulação de capitais, desde que o façam em termos compatíveis com o direito da União Europeia. 

A autonomia fiscal permite aos Estados‑Membros regularem soberanamente as condições de tributação aplicáveis, desde que o tratamento das situações transfronteiriças não seja discriminatório em comparação com o das situações nacionais. Não obstante a fiscalidade directa ser da competência dos Estados‑Membros, o respectivo regime jurídico deve respeitar o direito da União Europeia, sem qualquer discriminação em razão da nacionalidade ou da residência.

O TJUE tem sustentado que a existência de meras “divergências” entre os sistemas fiscais nacionais não é suficiente para declarar a existência de uma tal restrição.

Na ausência de harmonização no plano da União Europeia, as desvantagens que podem resultar do exercício paralelo de competências dos diferentes Estados‑Membros, desde que o exercício não seja discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação.

Um dos domínios do âmbito e do programa normativo da liberdade de circulação de capitais do art. 63º do TFUE diz especificamente respeito ao tratamento fiscal dos movimentos de capitais.

A densificação do âmbito normativo da liberdade de circulação de capitais tem sido levada a cabo pelo TJUE, acolhendo e sublinhando o valor enumerativo, mas não exaustivo, da Directiva n.º 88/361/CEE, de 24 de Junho de 1988, incluindo o respectivo Anexo I número IV, no qual se integra, no conceito de liberdade de circulação, um amplo conjunto de operações e transacções transfronteiriças sobre certificados de participação em organismos de investimento colectivo, nas quais se incluem as que estão em causa nos presentes autos: razão pela qual a distribuição de dividendos efectuada ao Requerente por sociedades residentes em Portugal deve ser qualificada como movimento de capital, na acepção do art. 63º do TFUE e da própria Directiva 88/361/CEE.

Aproveitando a fundamentação da Decisão do Processo (CAAD) nº 505/2022-T, de 9 de Março de 2023, esclareçamos que a questão do tratamento fiscal da distribuição de dividendos tem ocupado um lugar central na jurisprudência europeia, incluindo não apenas o TJUE, mas também o Tribunal EFTA[1].

Este último órgão, no caso Focus Bank[2], e o TJUE, em casos como, entre outros, ACT GLO[3], Denkavit[4], Amurta[5], Truck Center[6], Aberdeen Property[7], Comissão v. Países Baixos[8], Comissão v. Portugal[9], Santander Asset Management[10] e Sofina SA[11], a despeito das diferenças factuais e jurídicas nas respectivas decisões, apontam globalmente no sentido de dever considerar-se que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não-residentes – por exemplo imputando aos investidores residentes um crédito de imposto e sujeitando as entidades não-residentes a retenção de imposto sem imputação; retendo imposto sobre dividendos pagos a não-residentes e não retendo no caso de dividendos pagos a residentes – configura, em princípio, uma violação da liberdade de circulação de capitais, e nalguns casos também da liberdade de estabelecimento, pondo em causa o funcionamento do mercado interno.

Confirmando a existência de uma área apreciável de divergências interpretativas neste domínio, as conclusões da Advogada Geral (AG) Kokott, recentemente apresentadas a propósito de um reenvio prejudicial apresentado num processo arbitral do CAAD (Processo n.º 93/2019-T), envolvendo o regime fiscal também em causa no presente processo, vieram sustentar uma leitura menos “formalista” do art. 63º do TFUE, reconhecendo uma maior amplitude aos Estados-Membros na conformação do regime fiscal dos OIC residentes e não-residentes, concluindo que esse artigo não se opõe à aplicação de retenção na fonte aos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, quando esses dividendos sejam distribuídos a um OIC não-residente que não esteja sujeito ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no seu Estado de residência.

 

3.2.4. A decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN no TJUE

 

Os argumentos sustentados pela AG foram rebatidos na decisão do Processo (CAAD) n.º 166/2021-T, tendo sido posteriormente rejeitados pelo TJUE, na sua decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19), que entendeu, como já referimos, que

o artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Como esta decisão considerou expressamente o regime fiscal em causa no presente processo, e estando os tribunais nacionais juridicamente obrigados a seguir a jurisprudência do TJUE, impõe-se seguir a sua argumentação, e é o que faremos.

No caso AllianzGI-Fonds AEVN, o TJUE reiterou o seu entendimento de que, embora não estejam sempre numa situação comparável, residentes e não-residentes são colocados nessa posição a partir do momento em que um Estado-Membro, unilateralmente ou por convenção, opte por tributar os accionistas não-residentes de maneira menos favorável do que os residentes, relativamente aos dividendos que uns e outros recebam de sociedades residentes.

Especialmente relevante, em sede das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais – a liberdade que o TJUE entendeu ser pertinente neste caso –, é o facto de o tratamento fiscal menos favorável dos não-residentes os dissuadir, na qualidade de accionistas, de investirem no Estado da residência das empresas distribuidoras de dividendos, e constituir, igualmente, um obstáculo à obtenção de capital no exterior, por parte dessas empresas.

Para o TJUE, é significativo o facto de que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

No entender do TJUE, ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não-residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não-residentes, susceptível de dissuadir, por um lado, os OIC não-residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal, e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC, constituindo, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais – proibida, em princípio, pelo art. 63º do TFUE.

No entendimento do TJUE, o facto de o art. 65º, 1, a) do TFUE estabelecer que o disposto no art. 63º do TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência, ou ao lugar em que o seu capital é investido, não isenta um Estado-Membro de cumprir as suas obrigações jurídicas decorrentes das liberdades fundamentais do mercado interno, nem o exonera pela simples circunstância de esse Estado poder pensar que outro Estado-Membro se encarregará de compensar, de alguma maneira, o tratamento desfavorável gerado pela sua própria legislação[12].

É entendimento do TJUE, portanto, que as liberdades de circulação de capitais e de estabelecimento requerem a igualdade de tratamento fiscal dos dividendos pagos a residentes e não-residentes pelo Estado-Membro anfitrião, no caso de ambos estarem sujeitos a tributação de dividendos.

O TJUE tem sustentado que, quando se trata de interpretar e aplicar as liberdades fundamentais do mercado interno, prevalece o entendimento segundo o qual a liberdade é a regra, e as restrições à liberdade são a excepção: pelo que o art. 65º, 1, a) do TFUE, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita.

Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre contribuintes, em função do lugar em que residam, ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais, é automaticamente compatível com o TFUE.

Com efeito, a derrogação prevista no art. 65º, 1, a) do TFUE é, ela própria, limitada pelo disposto no nº 3 do mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o nº 1 desse artigo não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos: ou seja, as restrições têm como limite a garantia da própria liberdade de circulação de capitais[13].

No entender do TJUE, na decisão AllianzGI-Fonds AEVN, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo art. 65º, 1, a) do TFUE, das discriminações proibidas pelo nº 3 do mesmo artigo.

Para que o regime fiscal nacional possa ser considerado compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objectivamente comparáveis, ou que ela se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral.

Sobre a questão de saber se a situação dos fundos de investimento residentes e não residentes em Portugal é objetivamente comparável, o TJUE, depois de ponderados os argumentos do Estado Português (em tudo idênticos aos aqui expostos pela AT), reiterou o seu entendimento segundo o qual, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não-residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não-residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes.

No caso AllianzGI-Fonds AEVN, o TJUE considerou que a legislação nacional em causa no processo principal – o mesmo regime fiscal aqui em análise – não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os OIC não-residentes.

Por exemplo, no que respeita ao IS, o TJUE entendeu serem decisivos o facto de, por um lado, a sua matéria colectável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, sendo esse IS um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas; e, por outro lado, a legislação fiscal portuguesa distinguir, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido Imposto do Selo.

Com efeito, observa o TJUE, mesmo considerando que esse mesmo IS possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não-residente.

Quanto ao imposto específico previsto no art. 88º, 11 do CIRC, o TJUE, na decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, considerou significativo o facto de este imposto só incidir sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objecto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não-residentes.

Por conseguinte, a circunstância de os OIC não-residentes não estarem sujeitos ao IS e ao imposto específico previsto no art. 88º, 11 do CIRC não os coloca numa situação objectivamente diferente da situação dos OIC residentes, no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

Quanto à alegada necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, o TJUE, na decisão do caso AllianzGI-Fonds AEVN, entendeu que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro em causa deve ser examinada tendo em conta o objectivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas.

No caso em apreço, no que diz respeito ao objecto, ao conteúdo e ao objectivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, o TJUE entendeu que o referido regime foi concebido numa lógica de “tributação à saída”, ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando dele isentos os detentores de participações sociais não-residentes.

Para o TJUE, se se concluir que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa transferir essa tributação para a esfera dos detentores de participações sociais dos OIC, no intuito de não renunciar pura e simplesmente à tributação dos dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal, deve entender-se que, se o objectivo da legislação nacional em causa é comprovadamente o de deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o accionista desse veículo, são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos accionistas que devem ser consideradas determinantes, e não a técnica de tributação utilizada.

Os fundos da Requerente podem ter investidores estrangeiros, incluindo portugueses, e os fundos fiscalmente residentes em Portugal podem ter investidores estrangeiros, incluindo franceses.

A presente acção não foi intentada pelos investidores, nem os mesmos são partes nela, nem é lícito chamar à colação a posição dos referidos investidores.

Por seu lado, o art. 22º do EBF não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC, residentes ou não residentes, e a situação fiscal dos seus detentores de participações.

Da mesma forma, a AT não afere da posição dos investidores em OIC residentes para efeitos fiscais em Portugal, para reconhecer a estes o regime fiscal previsto no art. 22º do EBF.

Seria administrativamente impraticável, excessivamente oneroso, proceder-se a uma determinação caso a caso, totalmente particularizada, para cada OIC não-residente, ou investidor individual, com o único fito de aumentar as receitas tributárias dos Estados-Membros.

Tanto os fundos residentes em Portugal, como os não-residentes, podem ter accionistas institucionais e individuais de todos os Estados da União Europeia e de terceiros Estados.

Será, portanto, administrativamente praticável, muito menos oneroso, circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não-residentes a quem são distribuídos dividendos, obtendo-se a informação relevante numa única determinação, sem necessidade de particularizar as situações de benefício económico último.

Por outras palavras: considerando que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não-residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem, o que deve relevar é o impacto directo que as normas tributárias têm na atividade dos fundos, e não na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, o que deve ser considerado normal, até porque os investimentos transfronteiriços são um dos objetivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais no âmbito da União Europeia.

Em suma, o rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo, e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu país de domicílio, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais.

Regressando ao plano dos Fundos: a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não-residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia.

Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa, que tem por critério o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objectiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não-residentes.

Logo, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não-residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.

Por outro lado, como reconheceu o TJUE no caso caso AllianzGI-Fonds AEVN, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objectivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objectivo, sendo tais razões, por um lado, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, e, por outro, a de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e outro Estado-Membro da EU, como a França.

Quanto à primeira razão, sempre se poderia alegar que essa coerência só seria garantida se a entidade gestora do OIC não-residente operasse em Portugal através de um estabelecimento estável, de modo a que essa entidade pudesse concretizar as retenções na fonte necessárias junto dos detentores de participações sociais residentes, bem como, em certos casos excepcionais, orientados por considerações ligadas ao facto de evitar o planeamento fiscal, junto dos detentores de participações sociais não-residentes.

Contudo, para que um argumento baseado nessa justificação pudesse ser acolhido, seria necessário que estivesse demonstrada a existência de uma relação directa entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal.

Ora, a garantia da coerência do sistema fiscal português também não pode ser invocada para justificar a diferenciação de regime da retenção, visto que a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes, e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte; não se podendo, pois, falar de uma relação directa, na acepção da jurisprudência do TJUE, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.

No tocante ao objectivo de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e outro Estado-Membro da EU, como a França, o mesmo só pode ser admitido quando o regime em causa vise prevenir comportamentos susceptíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às actividades realizadas no seu próprio território, pelo que, se Portugal optou por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não-residentes beneficiários desses rendimentos.

 

3.2.5. A posição consolidada no TJUE (recapitulação).

 

Recapitulando:

  1. De acordo com a respectiva fundamentação e, no seguimento da jurisprudência constante dos Acórdãos de 2 de Junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e de 30 de Janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49, decidiu o TJUE que,

Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes”, que “pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida).”.

  1. Averiguou também o TJUE da possibilidade de uma eventual derrogação ao disposto no artigo 63.º, do TFUE, tendo em conta que, nos termos do artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE, aquele não prejudica o direito de os Estados Membros

Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido”.

  1. A este propósito, lembrou o TJUE que, de acordo com a jurisprudência firmada,

a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (…)”

e que

para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida]”.

  1. Quanto à comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, bem como dos detentores das respectivas participações sociais, concluiu o TJUE que

Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).” (parágrafo 49).

  1. A este respeito, não obstante as alegações do Governo português, de que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de OIC (residentes e não-residentes) é regulada por diferentes técnicas de tributação – sujeitos a IRC, por retenção na fonte, quando pagos a um OIC não-residente e a imposto do selo e à tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC, se pagos a um OIC residente, e que, ficando os dividendos distribuídos pelos OIC residentes a detentores das suas participações sociais, pessoas singulares residentes ou não-residentes com estabelecimento estável, sujeitos a IRS à taxa de 28%, e, no caso das pessoas colectivas residentes a IRC à taxa de 25%, enquanto os dividendos pagos a detentores de participações sociais não-residentes no território português, e que não tenham estabelecimento estável neste último, estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, o que leva a uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais, imprescindível à coerência do sistema tributário –, sem esquecer a situação de transparência fiscal da Requerente, que livremente optou por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável e cujos detentores de participações sociais podem imputar ou creditar o imposto retido na fonte em Portugal ao imposto por eles devido no país da sua residência, o TJUE concluiu que um OIC não residente se encontra numa situação objectivamente comparável à de um OIC residente em Portugal.
  2. Quanto ao argumento da tributação dos dividendos pagos por sociedades nacionais a OIC residentes e a OIC não-residentes por técnicas de tributação diferentes, considerou o TJUE que a legislação em causa no processo principal não se limitava a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas previa, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onerava apenas os organismos não-residentes.
  3. Salientava ainda que embora o imposto do selo, de natureza patrimonial, incidente sobre o rendimento do capital acumulado, pudesse ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente sempre poderia escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, possibilidade que não está aberta a um OIC não-residente.
  4. Por outro lado, a tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC apenas incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição, e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período, só ocorre em casos limitados, não podendo ser equiparado ao imposto geral de que são objecto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não-residentes, não colocando estes numa situação objectivamente diferente da dos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
  5. Ora, apesar de os OIC residentes poderem ser tributados em sede de imposto do selo, caso optem pela não distribuição de lucros aos titulares das respectivas UP, mas antes pela sua acumulação, bem como pela tributação autónoma prevista no n.º 11 do artigo 88.º, do CIRC, apenas se reunidas as condições ali indicadas, impostos a que não estão sujeitos os OIC não-residentes, estes estão sempre sujeitos a IRC, por retenção na fonte a título definitivo, sem possibilidade de beneficiar de qualquer isenção deste imposto.
  6. Considerou ainda o TJUE que

o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes” (parágrafo 66)

e que

Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal” (parágrafo 67).

  1. Relativamente à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, entendeu o Tribunal de Justiça, na esteira dos Acórdãos de 8 de Novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10 e de 13 de Novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, que

para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (parágrafo 78).

  • Como não estava a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes

sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte”,

não se verificava

uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo

que permitisse invocar a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional como justificação para a restrição à liberdade de circulação de capitais.

  1. Por outro lado, entendeu também o TJUE que não é de acolher a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre Portugal e o Estado da residência, pois, tal como já decidido, entre outros, no seu Acórdão de 21 de Junho de 2018, Fidelity Funds, C‑480/16,

quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos.”.

 

3.2.6. Corolário

 

Como corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE, as decisões do TJUE têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, ao permitirem a uniformidade na aplicação do direito da União no território dos Estados-Membros em aplicação do princípio do primado ou prevalência do direito da União sobre o direito nacional, acolhido pelo n.º 4 do artigo 8.º, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.

Face aos factos dados como provados e ao Direito aplicável dúvidas parecem não existir quanto à aplicabilidade desta jurisprudência ao caso em concreto pelo que, sem mais, passamos à decisão. A criação do Mercado Único pretende a consagração de igualdade de oportunidades e liberdade de circulação dos factores de produção que criam riqueza.

Deixa-se consagrado que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT).

 

3.3 – Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios

 

Na sequência da ilegalidade das retenções na fonte e da decisão presumida que incidiu sobre a reclamação graciosa, há lugar a reembolso das quantias indevidamente retidas, como consequência da anulação daquelas, por força dos referidos artigos 24º, nº 1, alínea b), do RJAT e 100º da LGT.

O Pleno do Supremo Tribunal Administrativo uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão de 29-06-2022, processo n.º 93/21.7BALSB, nos seguintes termos: “Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs. 1 e 3, da L.G.T”.

Tratando-se de jurisprudência uniformizada, ela deve ser acatada, pelo que é de concluir que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios desde a data em que se formou o indeferimento tácito da reclamação graciosa.

Dispõe o art. 24º, b) do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

É hoje consensual que os tribunais arbitrais abarcam nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, até porque o processo arbitral foi desenhado como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Por sua vez, o processo de impugnação admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do teor do art. 43.º, 1 da LGT, em que se dispõe que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do art. 61º, 4 do CPPT, que estabelece que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.

Igualmente o art. 24, 5º do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser interpretado e aplicado como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, a AT aplicou as normas jurídicas nacionais em vigor, a despeito de as mesmas violarem o direito da União Europeia tal como ele tem sido interpretado pelo TJUE.

Sendo a primazia do direito da União Europeia relativamente ao direito nacional uma primazia de aplicação e não uma primazia de validade, cabe ao presente Tribunal Arbitral desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União Europeia, declarando a respectiva ilegalidade.

Nos termos dos artigos 61º do CPPT e 43º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando, anulados os actos por vício de violação de lei, se apure que a culpa do erro subjacente à anulação do ato é imputável aos serviços da Administração Tributária, ou, em bom rigor, não é imputável ao contribuinte.

Uma vez verificado o erro, e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente retidos, a Requerente tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores (ilegalmente retidos) até integral restituição, sendo indiferente, ao reconhecimento desse direito, que o erro decorra especialmente da violação de normas da União Europeia e não apenas de normas nacionais.

Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, para efeitos da aplicação art. 43º da LGT. Atendendo ao estabelecido no art. 61º do CPPT, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal.

A reclamação graciosa foi apresentada em 18-05-2023, pelo que o indeferimento tácito se formou em 18-09-2023, findo o prazo de quatro meses, de harmonia com o preceituado nos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.

Por isso, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios calculados sobre a quantia que deve ser reembolsada de € 468.097,68.

Os juros indemnizatórios devem ser contados, com base no valor de € 468.097,68, desde a data em que se formou indeferimento tácito (18-09-2023), até integral reembolso à Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

4. Decisão.

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, determinando a anulação do acto de indeferimento presumido da reclamação graciosa que se formou em 18.09.2023 e das liquidações impugnadas de IRC constantes das guias de entrega n.ºs ... e ..., com o consequente reembolso da importância indevidamente cobrada acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados desde 18.09.2023 até efetivo pagamento.

 

Valor do processo: Fixa-se o valor do processo em € 468.097,68 (quatrocentos e sessenta e oito mil, noventa e sete euros e sessenta e oito cêntimos) nos termos do artigo 97.º -A, n.º 1, alínea a do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e artigo n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas: Vai a AT condenada em custas por ser sua a responsabilidade da ilegalidade existente, sendo o seu montante fixado em € 7.344,00 (sete mil, trezentos e quarenta e quatro euros).

 

Lisboa, 8 de Maio de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo (Presidente)

 

 

 

Augusto Vieira

 

 

Vasco António Branco Guimarães (Relator)

 



[1] Cfr., sobre esta matéria, Christiana Hji Panayi, European Union Corporate Tax Law, Cambridge, 2013, 253 ss.

[2] Case E – 1/04, Focus Bank ASA v. The Norwegian State,  23.11.2004. 

[3] C-374/04 - Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, 12.12.2006.

[4] C-170/05, Denkavit, 14.12.2006.

[5] C-379/05, Amurta SGPS, 08.11.2007.

[6] C-282/07, Belgian State - SPF Finances v Truck Center SA., 22.12.2008.

[7] C-282/07, Aberdeen Property Fininvest Alpha, 18.06.2009.

[8]C-521/07, Comissão v. Países Baixos, 11.06.2009.

[9] C- 493/09, Comissão v. Portugal, 06.10.2011.

[10] C‑338/11 a C‑347/11, Santander Asset Management SGIIC SA, 10.05.2012.

[11] C-575/17, Sofina, Rebelco e Sidro, 22.11.2018.

[12] Case E – 1/04, Focus Bank ASA v. The Norwegian State, 23.11.2004.

[13] C-358/93, C-416/93, Bordessa, 23-02-1995.