Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 854/2023-T
Data da decisão: 2024-05-22  IRC  
Valor do pedido: € 207.062,50
Tema: IRC - Retenção na fonte sobre dividendos pagos a OIC não residente. Competência do Tribunal Arbitral.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

I – O art. 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

II – Essa interpretação do art. 63.º do TFUE é incompatível com o art. 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na redacção que lhe foi dada pelo DL 7/2015, de 13.01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros, Fernanda Maçãs (presidente), Mariana Vargas e Rui Marrana (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:

 

I – Relatório

1.A... (também designado B...), organismo de investimento colectivo (OIC) constituído e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, contribuinte fiscal português n.º ... e contribuinte fiscal francês n.º FC..., com sede em ..., ..., ... Paris, em França, representado pela sua entidade gestora  C... S.A., com sede em ...-..., ..., ... Paris, em França (doravante referido como Requerente), veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 57.º/1 e 5, e 95.º/2 d), da Lei Geral Tributária (LGT), 97.º/1 a), 99.º a) e 102.º/1 d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 137.º/1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), 10.º/1 a) e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre os indeferimentos tácitos da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa em referência e, bem assim, das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) por retenção na fonte ocorridas nos anos de 2019, 2020 e 2021, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português.

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 27 de Novembro de 2023 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT.

4.De acordo com o preceituado nos artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessas designações, não manifestaram vontade de as recusar.

5.O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Fevereiro de 2024.

6.Em 13 de Março de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e por impugnação, juntando o processo administrativo.

7.Em 16 de Março de 2024 o tribunal ordenou a notificação do Requerente para, querendo, exercer o contraditório em relação à matéria de excepção suscitada pela Requerida, tendo-se pronunciado aquela em 19 do mesmo mês.

8.Em 23 de Março de 2024 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, dispensando-se ainda a produção de alegações escritas – dado a questão ser essencialmente de direito se encontrar claramente exposta e desenvolvida nas peças processuais – seguindo o processo para julgamento.

Posição do Requerente

9.Não se conformando com os indeferimentos tácitos da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa apresentados em 28 de Abril de 2023, e, por via disso, das liquidações de IRC por retenção na fonte ocorridas em 2019, 2020 e 2021, aquando da colocação à sua disposição de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, o Requerente pretende que o Tribunal Arbitral se pronuncie sobre a ilegalidade e consequente anulabilidade de tal indeferimento, ex vi art. 163.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e, por via disso, das referidas liquidações de IRC por retenção na fonte.

10.O Requerente é um OIC constituído sob a forma de fond commun de placement e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, ao abrigo da Loi n.º 2010-1249 du 22 octobre 2010, de régulation bancaire et financière, que transpõe para a ordem jurídica francesa a Directiva 2009/65, de 13.7.2009, a qual harmoniza as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais respeitantes a alguns OIC.

11.O Requerente cumpre, no seu Estado de residência e constituição, exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OIC (a Lei 16/2015, de 24.2), também em transposição da referida Directiva.

12.O Requerente é administrado pela sociedade C... S.A., entidade igualmente com residência em França, nos termos e para os efeitos do art. 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e a República Francesa (CEDT Portugal/França).

13.Em 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 222.633,37 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

D...

9.5.2019

95.959,44

23.989,86

71.969,58

D...

10.9.2019

126.673,94

31.668,49

95.005,45

 

Totais

222.633,37

55.658,34

166.975,03

 

                   
 

 

14.Em 2020, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 353.622,86 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

E...

14.5.2020

189.677,95

47.419,49

142.258,46

D...

21.5.2020

163.944,91

40.986,23

122.958,68

 

Totais

353.622,86

88.405,72

265.217,14

 

 

15.Em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 251.993,77 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

E...

26.4.2021

251.993,77

62.998,44

188.995,33

 

 

16.As referidas retenções na fonte de IRC foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, não tendo o Requerente obtido qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às mesmas, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França, seja ao abrigo da lei interna francesa.

17.De facto, tendo os seus dividendos sido tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória, por aplicação do regime supra-referido, não lhe foi possível neutralizar a tributação dos referidos dividendos em Portugal através do crédito de imposto previsto no art. 24.º/2 da CEDT Portugal/França, uma vez que está isento do imposto francês sobre os rendimentos das pessoas colectivas.

18.Ora, sendo um OIC constituído e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, bastar-lhe-ia ter a sua residência fiscal em Portugal para que os referidos dividendos não tivessem sido sujeitos a retenção na fonte, nem tão-pouco a tributação em sede de IRC, nos termos do art. 22.º/1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios fiscais (EBF). Foi, portanto, objectivamente discriminado, em consequência do regime vigente em Portugal, mesmo se as condições em que operou eram as mesmas dos OIC residentes, ao abrigo da Directiva 2009/65, em clara violação do art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), aplicável por força do art. 8.º/4 da CRP (que implicitamente reconhece também o primado do Direito da União).

19.Em 28 de Abril de 2023 o Requerente apresentou uma reclamação graciosa das liquidações de IRC de 2021 e um pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC referentes aos anos de 2019 e 2020, sustentando que ao tributar, em sede de IRC, os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos nos termos do disposto no art. 22.º/1, 3 e 10, do EBF, estava a ser praticada uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, assim se contrariando o princípio da livre circulação de capitais ínsito no art. 63.º do TFUE e, consequentemente, o princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º/4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

20.Dessa reclamação graciosa (apresentada tempestivamente, nos termos do art. 137.º/1 a 3 do CIRC) e do pedido de revisão oficiosa (cuja tempestividade decorre do art. 78.º/1 da LGT), não foi o Requerente notificado, até ao pedido de pronúncia arbitral, pela Administração Tributária de decisões finais, verificando-se, assim, o indeferimento tácito dos mesmos (nos termos do art. 57.º da LGT).

21.Insiste, por isso, o Requerente em que os OIC não residentes são objecto de uma discriminação contrária ao TFUE, na medida em que o regime previsto no artigo 22.º/1, 3 e 10, do EBF é aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional – i.e., ao abrigo da Lei 16/2015 que transpõe a Directiva 2009/65 –, não permitindo o Estado português que os OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo dessa Directiva, acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa.

22.Assim, nos termos dos art. 4.º/2, 94.º/1 c), 3 b) e 5, e 87.º/4 do CIRC, os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória à taxa de 25% (a qual pode, no entanto, ser reduzida ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português).

23.Os actos de aplicação deste regime discriminatório que contraria o Direito da União ao Requerente devem, por isso, ser anulados com a consequente restituição do imposto indevidamente retido na fonte, no montante total de 207.062,50 € (144.064,06 €, correspondentes aos períodos de 2019 e 2020 e 62.998,44 € correspondentes ao período de 2021), ao abrigo do artigo 100.º da LGT.

24.A nulidade dos actos confere ao Requerente o direito ao ressarcimento do prejuízo resultante da indisponibilidade do montante pago com fundamento em erro imputável aos serviços da AT (art. 43.º/1 LGT e 61.º/5 da CPPT).

Posição da Requerida

25.A AT apresentou resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

26.A defesa por excepção assenta na incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria que é fundamentada, em síntese, nos termos seguintes.

27.A AT vinculou-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no art 2.º/1 do RJAT, com excepção de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (art. 2.º a) da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

28.Ora o Requerente – na qualidade de substituído tributário –, pede que o Tribunal Arbitral aprecie, pela primeira vez, as retenções na fonte efectuadas pelo substituto tributário, sem que tenha desencadeado procedimento de reclamação graciosa nos termos do art. 132.º do CPPT, situação esta que está fora da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

29.Acresce que o Requerente não recorreu, em tempo, à reclamação graciosa prevista no referido art. 132.º do CPPT, deixando, desse modo, precludir o prazo de 2 anos aí previsto.

30.O procedimento administrativo de revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa prevista no art. 132.º, do CPPT, ainda para mais quando o recurso ao mesmo é feito para além do prazo de dois anos previsto no n.º 1 daquele artigo.

31.Não tendo o pedido de anulação das retenções na fonte sido precedido, em prazo, de reclamação graciosa necessária, o Tribunal Arbitral carece de competência para apreciar a eventual ilegalidade das mesmas, ainda que o Requerente tenha apresentado um pedido de revisão oficiosa no prazo de 4 anos. Isso decorre dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. art. 2.º e 111.º da CRP), bem como da legalidade (cf. art. 3.º/2 e 266.º/2 da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no art. 30.º/2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a actividade da AT.

32.Ainda que assim não se entenda, mantém-se a impossibilidade, por incompetência material, do Tribunal Arbitral para o conhecimento in casu, da eventual ilegalidade das retenções na fonte, que não foram efectuadas pela AT nem esta alguma vez se pronunciou sobre a sua eventual ilegalidade.

33.Estando-se perante um indeferimento tácito, sobre o qual a AT não tomou posição expressa, não se retira do pedido de revisão oficiosa que o Requerente tenha invocado erro de direito imputável à AT, ou que, tendo-o invocado, o comprove, invocando, designadamente, que as retenções na fonte se deveram a orientações ou instruções da AT.

34.O que se retira do pedido apresentado é que as retenções na fonte terão sido feitas conformes à lei e que o cumprimento desta importa, no entender do Requerente, uma restrição discriminatória ao princípio da livre circulação de capitais, contrária ao art. 63.º do TFUE.

35.Nos termos do art. 78.º da LGT, são diferentes os prazos e os fundamentos da revisão do acto tributário, consoante esta seja efectuada pelo sujeito passivo ou pela AT: no caso da revisão dos actos tributários ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, o pedido terá que ser apresentado no prazo da reclamação administrativa, sendo de quatro anos quando a iniciativa cabe à AT, servindo apenas para os casos de erro imputável aos serviços.

36.Assim, sempre que o contribuinte opte pelo pedido de revisão, como ocorre no caso presente, não tem quatro anos para o fazer, mas o prazo da reclamação graciosa.

37.Por outro lado, a decisão proferida em sede de procedimento de revisão pode, ou não, comportar a apreciação da legalidade do acto de liquidação e, no caso concreto, o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é um acto silente, na medida em que foi apenas por efeito da passagem do tempo que se ficcionou a existência de um indeferimento tácito, para efeitos de impugnação arbitral.

38.Ora, tal indeferimento pode consubstanciar e, no caso, teria obrigatoriamente de se reportar a um indeferimento por extemporaneidade.

39.O Tribunal Arbitral deve, assim, analisar dos pressupostos de aplicação do mecanismo da revisão oficiosa, uma vez que este não é interposto para a apreciação directa nem indirecta de uma liquidação adicional, mas apenas para a apreciação de um indeferimento de um pedido de revisão oficiosa.

40.A defesa da Requerida, por impugnação, assenta na recusa da existência de uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal (operada por via do art. 22º/1, 3 e 10, do EBF, em violação da livre circulação de capitais, prevista no art. 63º do TFUE e, consequentemente do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Interno, consagrado no art. 8º/4 da CRP).

41.Justifica a inexistência de qualquer discriminação no facto de a situação dos residentes não ser, por regra, comparável à dos não residentes (Ac. TJUE de 22.12.2008, Truck Center, C-282/07), apenas ocorrendo discriminação quando se esteja perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas.

42.Recorda, por outro lado, que um tratamento discriminatório de entidades não residentes pode justificar-se por razões de interesse geral e de coerência do sistema fiscal nacional (ac.s Bachman, C-204/90 e Comissão/Bélgica, C-300/90), podendo também a residência constituir um factor justificador das normas fiscais que implicam uma diferença de tratamento entre contribuintes residentes e não residentes (ac. Marks & Spencer, C-446/03). Além disso, o próprio STA referiu que [r]esulta da jurisprudência comunitária que embora da legislação nacional decorra, em abstracto, uma restrição à livre circulação de capitais não consentida pelo art. 56.º do Tratado da Comunidade Europeia (actual art. 63º TFUE), importa averiguar se essa restrição, consubstanciada em maior tributação de entidade não residente, será neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação.

43.Acontece que, com a reforma do regime de tributação dos OIC operada pelo DL 7/2015, de 13.1, estes, quando constituídos e a operar ao abrigo da legislação nacional, ficaram excluídos na determinação do seu lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais valias, e isentos das derramas municipal e estadual, mas em simultâneo foi criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o seu activo global líquido.

44.Esta reforma na tributação veio apenas a incidir sobre os OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF, dela ficando excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.

45.Acresce que está ainda prevista a tributação autónoma à taxa de 23%, nos termos do art. 88.º/11, do CIRC e do art. 22.º/8 do EBF, dos dividendos pagos a OIC com sede em Portugal, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

46.Estas diferenças de regime demonstram não se tratar de situações objectivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, nada indicando que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente.

47.Por outro lado, ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que esse imposto, não recuperado por este, não possa vir a ser recuperado pelos investidores.

48.Insiste complementarmente a AT no facto de não lhe competir avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma directa e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu,

49.Permanecendo, assim, adstrita ao princípio da legalidade positivada.

50.Questiona ainda, a AT, a aplicabilidade directa do art. 63.º TFUE, afirma que as liberdades fundamentais têm como principais destinatários os Estados-Membro, salienta a relação de complementaridade da livre circulação de capitais com as demais liberdades (circulação de trabalhadores, prestação de serviços e direito de estabelecimento) e lembra o progressivo reforço da livre circulação de capitais no quadro da União Económica e Monetária.

51.Neste enquadramento, entende que o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal por OIC não residentes apenas será menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo art. 22.º do EBF se tal diferenciação for susceptível de afectar o investimento em acções emitidas por sociedades residentes.

52.Mas, para se efectuar essa avaliação, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo – que incidem sobre os OIC residentes, impostos esses que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.

53.Insiste ainda a AT que o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera deste como na esfera dos investidores, cuja inexistência não ficou demonstrada.

54.Relativamente ao pedido de juros indemnizatórios, a AT recorda que nos termos do art. 43.º/3 c) da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

Posição do Requerente relativa à excepção invocada pela Requerida

55.O Requerente, em sede de pronúncia relativamente à excepção de incompetência do Tribunal Arbitral invocada pela AT, esclarece que a jurisprudência arbitral dominante na matéria converge muito amplamente com a posição por si defendida (sendo, portanto, ultrapassada e residual a posição defendida pela Requerida), para o que indica uma extensa lista de decisões.

56.Prossegue explicando ser o pedido de revisão oficiosa um meio de tutela dos direitos dos contribuintes análogo à reclamação graciosa, através do qual se garante a possibilidade de contestar a legalidade de actos tributários contrários a normas jurídicas nacionais ou comunitárias, residindo a diferença entre tais meios, no essencial, no órgão competente para a respectiva análise e para a reapreciação dos actos sindicados – conforme é pacífico na jurisprudência e doutrina dominante.

57.Tem, por isso, sido reiterado que, nos termos dos art. 2.º/1 a) do RJAT e 2.º a), da Portaria 112-A/2011, de 22.3, os tribunais arbitrais têm competência para apreciar a legalidade de actos tributários previamente contestados perante a Administração Tributária em sede de revisão oficiosa tacitamente indeferida.

58.Contesta ainda o Requerente, por total falta de fundamento, a afirmação da AT no sentido de que aquela não teria invocado e demonstrado a existência de erro imputável aos Serviços da AT no âmbito do pedido de revisão oficiosa em referência,

59.Até porque, não contestando a AT a competência dos tribunais arbitrais para se pronunciarem sobre o indeferimento expresso ou tácito de uma reclamação graciosa, jamais poderia sustentar que os mesmos tribunais não têm competência para se pronunciar sobre o indeferimento expresso ou tácito de um pedido de revisão oficiosa (tal como resulta da jurisprudência dos tribunais superiores – cf. ac. STA 9.11.2022, proc. 087/22.5BEAVR).

60.Ficará, portanto, claro que:

  1. A retenção na fonte, assente numa norma de direito interno incompatível com o Direito da União Europeia, traduz-se numa ilegalidade qualificável como erro imputável aos serviços da AT;
  2. A AT tem o poder-dever de decidir, no prazo de quatro meses, os pedidos de revisão oficiosa de actos de retenção na fonte assentes em normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União Europeia que sejam apresentados no prazo de 4 anos, previsto no art. 78.º/1 da LGT;
  3. A falta de decisão dos pedidos de revisão oficiosa evidencia, para efeitos de tutela dos direitos do contribuinte, a posição silente da AT a (i)legalidade da retenção na fonte;
  4. Os erros praticados no acto de retenção são imputáveis à AT, para efeitos do disposto no artigo 78º/1 da LGT;
  5. Apesar de não ter sido deduzida reclamação graciosa, nos termos do art. 132.º do CPPT, o contribuinte pode pedir a revisão oficiosa de actos de retenção na fonte, dentro do prazo legal em que a AT a podia efectuar – i.e. 4 anos – e pode impugnar contenciosamente, em sede de arbitragem tributária, a decisão expressa ou tácita de indeferimento.

61.Assim sendo, porque os erros praticados no acto de retenção são imputáveis à AT para efeitos do disposto no art. 78º/1 da LGT, necessário será aceitar-se que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado tempestivamente pelo Requerente, concluindo-se pela competência do Tribunal Arbitral para conhecer da totalidade do pedido de impugnação arbitral subjacente aos presentes autos.

 

II. Saneamento

62.O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação de actos de indeferimento tácito da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC por retenção na fonte ocorridas nos anos de 2019, 2020 e 2021 e dos próprios actos de liquidação (v. art.os 2.º e 5.º do RJAT).

63.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º do RJAT.

64.  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

65.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento da excepção de incompetência para a análise da matéria de Direito.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

66.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

  1. O Requerente é um OIC constituído sob a forma de fond commun de placement e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, ao abrigo da Loi n.º 2010-1249 du 22 octobre 2010, de régulation bancaire et financière, que transpõe para a ordem jurídica francesa a Directiva 2009/65, de 13.7.2009, a qual coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC;
  2. O Requerente é representado pela sua entidade gestora C... S.A., com sede em ..., ..., ... Paris, em França;
  3. O Requerente cumpre, no seu Estado de residência e constituição, exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OIC, também em transposição da referida Directiva – a Lei 16/2015, de 24.2;
  4. Em 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 222.633,37 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante total de 55.658,34 €, conforme é indicado no quadro seguinte:
  5. Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

D...

9.5.2019

95.959,44

23.989,86

71.969,58

D...

10.9.2019

126.673,94

31.668,49

95.005,45

 

Totais

222.633,37

55.658,34

166.975,03

 

                   
 

 

  1. Em 2020, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 353.622,86 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante total de 88.405,72€, conforme é indicado no quadro seguinte:
  2. Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

E...

14.5.2020

189.677,95

47.419,49

142.258,46

D...

21.5.2020

163.944,91

40.986,23

122.958,68

 

Totais

353.622,86

88.405,72

265.217,14

 

 

  1. Em 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de 251.993,77 €, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, no montante total de 62.998,44€, conforme é indicado no quadro seguinte:
  2. Valores em euros

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção na fonte

Dividendo líquido

E...

26.4.2021

251.993,77

62.998,44

188.995,33

 

 

  1. As retenções na fonte de IRC foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, não tendo o Requerente obtido qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às mesmas, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França, seja ao abrigo da lei interna francesa;
  2. Em 3 de Maio de 2023 o Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de IRC por retenção na fonte em 2021;
  3. Em 3 de Maio de 2023 o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC por retenção na fonte em 2019 e 2020;
  4. À data da entrada do pedido de pronúncia arbitral (23.11.2023) o Requerente ainda não tinha sido notificado da decisão final dos procedimentos de revisão oficiosa e de reclamação graciosa das liquidações de IRC.

Factos não provados

67.Não existem factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

 

68.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

III. Matéria de Direito

69.O Tribunal Arbitral segue, na sua decisão, com a devida vénia, a doutrina expressa no acórdão do proc. 638/2023-T, cuja factualidade é, no essencial, idêntica.

  1. A excepção de incompetência do Tribunal Arbitral

70.Conforme se referiu supra (§ 25 ss.), AT alegou a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciação da legalidade das retenções na fonte em sede de liquidação de IRC, invocando o disposto no art. 2.º a) da Portaria 112-A/2011 de 22.3, nos termos do qual a AT se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais das questões que tenham por objecto a apreciação de pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, referidas no art. 2.º/1 do RJAT, com excepção de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

71.Mais defende a AT que, ainda que assim se não entenda, tendo o presente pedido de pronúncia arbitral sido apresentado na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa das referidas liquidações de IRC, sempre caberá invocar a intempestividade do pedido de revisão oficiosa desencadeado pelo Requerente, após o decurso do prazo de reclamação, previsto nos artigos 131.º a 133.º do CPPT.

72.Nesta controvérsia convergimos com a doutrina expressa no proc. 124/2018-T, considerando que a interpretação do art. 2.º a) da Portaria 112-A/2011 com base nos critérios previstos no art. 9.º do Código Civil - aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no art. 11.º/1 da LGT - viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de retenção na fonte que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

73.De facto, quando a referida norma exclui dessa competência as pretensões que não tenham previamente sido precedidas de recurso à via administrativa refere-se apenas aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa. Isto porque não faria sentido que, sendo desnecessária essa impugnação se o seu fundamento for exclusivamente de Direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela AT (ar. 113.º/3 CPPT), se afastasse a jurisdição arbitral por falta dessa mesma impugnação julgada desnecessária.

74.Parece claro que a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT. Assim, embora aquela norma não refira expressamente tais actos, o facto é que a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação (como é o indeferimento de pedido de revisão do acto tributário), incorporando a sua ilegalidade.

75.Acresce que a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão se afigura como a solução mais acertada, por ser a mais coerente com o desígnio legislativo de reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes manifestado no art. 124.º/2 da Lei 3-B/2010, de 28.4.

76.Deve, por isso, considerar-se que expressão abrangente recurso à via administrativa (na qual cabe a revisão do acto tributário), encontra no texto o mínimo de correspondência verbal (ainda que imperfeitamente expresso), exigido pelo art. 9.º/3 do Código Civil para efeitos de determinação da interpretação que consagre a solução mais acertada.

77.Improcede, portanto, a excepção de incompetência por não ter sido apresentada reclamação graciosa dos actos de retenção na fonte.

78.Salienta ainda a Requerida que, no caso concreto, não poderá o Tribunal Arbitral pronunciar-se sobre eventual ilegalidade das retenções na fonte, por estas não terem sido efectuadas pela AT, nem esta alguma vez se ter pronunciado sobre essa questão.

79.De facto, tratando-se de um indeferimento tácito sobre o qual a AT não tomou posição expressa, o mero pedido de revisão oficiosa não equivalerá à invocação de erro de direito imputável à AT, ou que, havendo invocação, o mesmo se comprove pelo facto de as retenções na fonte se deverem a orientações ou instruções da AT.

80.Sobre este aspecto vale a doutrina do acórdão do STA de 9.11.2022 (proc. 087/22.5BEAVR) na qual se assume expressamente que os erros praticados no acto de retenção [por elementos indicados pelo sujeito passivo] sejam imputáveis à Administração Tributária, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 78º da LGT, pois se afigura inviável responsabilizar o contribuinte pela actuação do substituto, sob pena de violação dos seus direitos garantísticos.

81.Assim, no caso em apreço, estamos perante uma situação de substituição tributária, concretizada através de retenção na fonte a título definitivo, em que não houve intervenção do Requerente, mas de um seu substituto que actuou por imposição legal, devendo o erro na retenção na fonte ser imputado aos serviços.

82.Forçoso será, portanto, concluir pela admissibilidade do pedido de revisão oficiosa da retenção na fonte das liquidações de IRC, independentemente de tal pedido ter sido expressa ou tacitamente indeferido, bem como pela arbitrabilidade da pretensão do Requerente e consequentemente, pela improcedência da excepção da incompetência deste Tribunal Arbitral para dirimir o litígio em análise, invocada pela Requerida.

  1. A questão decidenda

83.Na presente acção arbitral está em causa na aferir da compatibilidade com o art. 63.º do TFUE, (que consagra a liberdade de circulação de capitais), dos normativos nacionais que, nos termos do art. 22.º do EBF, isentam de tributação, em sede de IRC, os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC com sede em Portugal, constituídos e a operar de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que tributam à taxa de 25%, por retenção na fonte a título definitivo - nos termos dos art. 3.º/1 d), 4.º/2 e 3 c), 87.º/4 e 94.º/1 c), 3 b), 5 e 6, todos do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) - os dividendos distribuídos por entidades residentes a OIC não constituídos de acordo com a legislação nacional, nomeadamente aqueles que têm sede em outro Estado Membro da União Europeia, como é o caso, em França.

84.O Requerente defende que do regime previsto no artigo 22.º do EBF resulta um tratamento discriminatório para os OIC não residentes em relação aos residentes, o qual é incompatível com o art. 63.º do TFUE.

85.A Requerida considera não existir qualquer discriminação por não serem comparáveis as situações dos OIC residentes e não residentes, desde logo por estes estarem sujeitos a uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o seu activo global líquido e ainda por estar prevista a tributação autónoma à taxa de 23%  (art. 88.º/11, do CIRC e art. 22.º/8 do EBF), dos seus dividendos pagos se as partes sociais a que respeitam os lucros não tiverem permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não forem mantidas durante o tempo necessário para completar esse período.

86.A AT recorda subsidiariamente que razões de interesse geral e de coerência do sistema fiscal nacional poderão sempre justificar um tratamento diferenciado (embora não especifique ou identifique qualquer uma), salientando também que deverá conferir-se se o eventual efeito discriminatório não será neutralizado pela aplicação da convenção celebrada entre Portugal e a França para evitar a dupla tributação.

87.Conferida a situação, mostra-se evidente que o regime estabelecido pelo art. 22.º do EBF, aplicável à situação dos autos, estabelece um regime claramente mais favorável para os OIC com sede em Portugal (constituídos e a operar de acordo com a legislação portuguesa) face ao regime geral de tributação em IRC, aplicável aos OIC não residentes. Isto porque, nos termos do seu n.º 3, aquele artigo não considera os rendimentos referidos nos art. 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) para efeitos do apuramento do lucro tributável – excepto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças –, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no art. 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1, e a isenção de derramas, estadual e municipal. Acresce que o n.° 10 do mesmo artigo 22.º dispensa as empresas que distribuem dividendos aos OIC residentes da obrigação de reter e de entregar esse imposto à Fazenda Pública.

88.A questão da desconformidade do regime de tributação aplicável aos OIC não residentes, sujeitos a retenção na fonte liberatória, com o Direito da União, já foi, por diversas vezes, trazida à apreciação dos tribunais arbitrais, sendo também objecto de reenvio prejudicial sobre o qual o TJUE se pronunciou em 17.3.2022, (proc. C-545/19) afirmando expressamente que [o] artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

89.O entendimento do TJUE - que se impõe aos tribunais portugueses por ser a instância com competência definitiva em matéria de interpretação do direito da União (art. 267.º TFUE) - não deixa margem para dúvidas, tendo os seus precisos termos sido repetidos no n.º 2 do acórdão de uniformização de jurisprudência 7/2024 do STA, concluindo o n.º 3 afirmando expressamente que [a] interpretação do art. 63.º do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art. 22.º do EBF, na redacção que lhe foi dada pelo DL 7/2015, de 13.01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.

90.Perante tais decisões – cuja aplicabilidade e definitividade no caso em apreço se tem por inquestionável – desnecessário será percorrer os argumentos da Requerida (que são, aliás, explicitamente contrariados no acórdão do TJUE).

91.Concluindo-se pela incompatibilidade do art. 22.º/1 do EBF, na redacção que lhe foi dada pelo DL 7/2015, de 13.1, com o disposto no art. 63.º do TFUE, impõe-se a não aplicação do referido normativo nacional à situação objecto dos presentes autos (em tudo similar à que foi tratada no processo C-545/19), bem como a declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, dos actos de retenção na fonte objecto do pedido de pronúncia arbitral, com a sua consequente anulação, nos termos do art. 163.º/1, do CPA, subsidiariamente aplicável, ex vi art. 29.º/1 d) do RJAT.

  1. Dos pedidos de juros indemnizatórios

92.Nos termos do art. 24.º/1 b) do RJAT, em consequência da procedência do pedido de anulação dos actos de retenção na fonte, fica a AT vinculada, até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, o que inclui, para além da restituição do indevido, o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.

93.De igual modo, o art. 100.º/1 da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no art. 29.º/1 a) do RJAT, estabelece que [a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

94.O regime dos juros indemnizatórios consta do art. 43.º da LGT, que fixa o momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.os 1 e 2) ou por outras circunstâncias (n.º 3), bem como a respectiva taxa (n.º 4) e a consequência do atraso na execução da sentença transitada em julgado (n.º 5).

95.O Requerente, invocando a ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte em referência, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º/4 da CRP pede que lhe sejam pagos juros indemnizatórios:

  1. relativamente às retenções na fonte dos anos de 2019 e 2020 (144.064,06 €) ao abrigo do disposto no art. 43.º/3 d) da LGT e 100.º da LGT, a computar desde que esteja decorrido um ano após o pedido do Requerente;
  2. relativamente às retenções na fonte do ano de 2021 (62.998,44 €), desde a data das retenções, nos termos do art. 43.º/1 e 100.º da LGT e 61.º/5 do CPPT;

96.A Requerida contrapõe que, em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, os juros indemnizatórios não serão devidos face ao disposto no art. 43.º/3 c), da LGT.

97.Relativamente às retenções na fonte do ano de 2021, o entendimento a seguir nestas circunstâncias é o definido pelo STA, nos termos do qual [em] caso de retenção na fonte e havendo lugar a reclamação graciosa do acto tributário em causa, o erro passa a ser imputável à AT depois do indeferimento tácito ou, se anterior, do indeferimento expresso do mesmo procedimento gracioso, sendo a partir da data desse indeferimento que se contam os juros indemnizatórios que sejam devidos, nos termos do art. 43.º, n.ºs 1 e 3, da LGT (ac. de 22.11.2023 do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, proc. 0125/23.4BALSB).

98.Assim sendo, por aplicação da doutrina do acórdão referido, os juros indemnizatórios deverão contar-se a partir do indeferimento tácito (4.9.2023), ou seja, decorridos quatro meses sobre a apresentação da reclamação graciosa (art. 57.º LGT).

99.Relativamente às retenções na fonte dos anos de 2019 e 2020 serão devidos juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º/3 d) da LGT (por haver decisão judicial transitada em julgado que declare […] a […] ilegalidade da norma legislativa [..] em que se fundou a liquidação da prestação tributária). Mas, esses juros apenas começarão a ser contados depois de decorrido um ano sobre o pedido de revisão oficiosa, nos termos da alínea c) do mesmo artigo da LGT. Isto porque, havendo revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte, só haverá lugar à contagem de juros indemnizatórios se essa revisão ocorrer mais de um ano depois – o que implica, portanto, ser necessário aguardar pelo decurso deste prazo para iniciar a contagem dos juros (nesse sentido v. ac. 11.12.2019 do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA, proc. 058/19.9BALSB).

100.Será, aparentemente essa, a ressalva da AT, quando invoca o art. 43.º/3 c) da LGT. Acontece que, de facto, esse prazo já decorreu, pelo que, também relativamente às retenções na fonte de 2019 e 2020 terá o Requerente direito a juros indemnizatórios depois de decorrido um ano sobre essa data (ou seja, a contar depois de 4 de Maio de 2024). Nos termos que são, afinal, peticionados pelo Requerente.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de nulidade das liquidações de IRC por retenção na fonte por violação do art. 63.º do TFUE, com a consequente obrigação de devolução dos respectivos montantes;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios:
  1. a contar desde 4.5.2024 relativamente aos montantes retidos indevidamente na fonte em 2019 e 2020 (144.064,06 €) e
  2. a contar desde 4.9.2023 relativamente aos montantes retidos indevidamente na fonte em 2021 (62.998,44 €);
  1. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 207.062,50 € (duzentos e sete mil e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 4.284 € (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 22 de Maio de 2024

 

 

Os Árbitros

 

Fernanda Maçãs (Presidente)

 

 

 

Mariana Vargas (Vogal)

 

 

Rui Marrana (Vogal, relator)

 

Texto elaborado em computador.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.