Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 819/2023-T
Data da decisão: 2024-05-14  IRC  
Valor do pedido: € 598.104,84
Tema: IRC. Benefício fiscal. Fundo de investimento não residente. Retenção na fonte. Liberdade de circulação de capitais.
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SUMÁRIO:

As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º  do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento colectivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, violam o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I – Relatório

 

1. No dia 16/11/2023, A..., organismo de investimento colectivo ("OIC") constituído e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, contribuinte fiscal português n.º ... e contribuinte fiscal francês n.º FCP..., com sede em ..., ... Paris, em França, representada pela sua entidade gestora B... S.A., com sede em..., ... Paris, em França (doravante "o Requerente"), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas ("IRC") por retenção na fonte ocorridas nos anos de 2019 e 2021, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

2. Foram designados para integrar o presente Tribunal Arbitral colectivo a Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs (presidente), o Professor Doutor Luís Menezes Leitão (relator) e o Dr. Pedro Guerra Alves.

3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para decidir o presente processo. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

4. Os fundamentos do pedido de pronúncia arbitral do requerente são, em síntese, os seguintes:

4.1. O Requerente é um OIC constituído sob a forma de fond commun de placement e a operar na República Francesa sob supervisão da Autorité des Marchés Financiers, com sede em 91 Boulevard Pasteur, 75015 Paris, em França, ao abrigo da Loi n.º 2010-1249 du 22 octobre 2010, de régulation bancaire et financière, que transpõe para a ordem jurídica francesa a Directiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC.

4.2. Tendo sido constituído e operando ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, o Requerente cumpre no seu Estado de residência e constituição exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a actividade dos OIC, também em transposição da referida Directiva – i.e., a Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro.

4.3. O Requerente é administrado pela sociedade B... S.A., entidade igualmente com residência em França, em ..., ... Paris, em França, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e a República Francesa ("CEDT Portugal/França").

4.4. Em Maio e Setembro de 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 1.740.772,43, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em EUR

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção
na fonte

Dividendo líquido

C...

09-05-2019

501.409,84

125.352,46

376.057,38

D...

15-05-2019

770.486,86

192.621,72

577.865,14

C...

10-09-2019

468.875,73

117.218,93

351.656,80

 

Totais:

1.740.772,43

435.193,11

1.305.579,32

 

4.5. Em Abril, Maio e Setembro de 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 651.646,90, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em EUR

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção
na fonte

Dividendo líquido

D...

26-04-2021

280.809,55

70.202,39

210.607,16

C...

20-05-2021

199.066,35

49.766,59

149.299,76

C...

16-09-2021

171.771,00

42.942,75

128.828,25

 

Totais:

651.646,90

162.911,73

488.735,17

 

4.6. As retenções na fonte de IRC referentes a 2019 em causa – no montante de EUR 435.193,11 - foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.os ... e ..., respectivamente de 21 de Junho e 20 de Outubro de 2019, pelo E..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal em Portugal ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC.

4.7. As retenções na fonte de IRC referentes a 2021 – no montante total de EUR 162.911,73 – foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.os... e ..., respectivamente de Maio e Junho de 2021, e ..., de 20 de Outubro de 2021, pelo E..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal em Portugal ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC.

4.8. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa em referência, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França, seja ao abrigo da lei interna francesa.

4.9. Não se conformando com a tributação por retenção na fonte de IRC que incidiu sobre os dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, no dia 24 de Abril de 2023, o Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de IRC acima identificadas, referentes aos anos de 2021, abrigo do disposto nos artigos 68.º e 131.º a 133.º do CPPT e 137.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRC.

4.10. No mesmo dia, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC acima identificadas, referentes ao ano de 2019 e 2020, abrigo do disposto nos artigos 78.º, n.º 1, e 137.º do CIRC.  

4.11. Em síntese, o Requerente sustentou em sede de reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais ("EBF"), sob pena de tal consubstanciar uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, contrária ao princípio da livre circulação de capitais ínsito no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ("TFUE") e, consequentemente, ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa ("CRP")

4.12. Na presente data, os referidos procedimentos de reclamação graciosa e de revisão oficiosa encontram-se pendentes junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob os n.os ...2023... e ...2023..., respectivamente.

4.13. Volvidos mais de quatro meses sobre a data de apresentação da referida reclamação graciosa e do referido pedido de revisão oficiosa, o Requerente não foi ainda notificado pela Administração Tributária de decisões finais em sede dos correspondentes procedimentos, verificando-se assim o indeferimento tácito dos mesmos.

4.14. Os OIC não residentes são objecto de uma discriminação contrária ao TFUE, na medida em que o regime previsto no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF é aplicável apenas aos OIC residentes em Portugal que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional – i.e., ao abrigo da Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpõe a Directiva 2009/65/CE –, não permitindo o Estado português que os OIC não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa.

4.15.É admissível a cumulação dos pedidos de anulação dos actos tributários objecto dos presentes autos de arbitragem em matéria tributária, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.

4.16. Considerando que a reclamação graciosa das liquidações acima identificadas é legítima, tempestiva e procedimentalmente adequada, impendia sobre a Administração Tributária o dever de anular os actos tributários objecto da mesma, nos termos dos artigos 56.º da LGT e 68.º, n.º 1, e 132.º do CPPT.

4.17. Perante a presunção de indeferimento tácito verificada no âmbito da reclamação graciosa apresentada, estão verificados os pressupostos para o Requerente apresentar o presente requerimento de constituição de Tribunal Arbitral.

4.18. Em face de todo o exposto, considerando que o pedido de revisão oficiosa das liquidações acima identificadas é legítimo, tempestivo e procedimentalmente adequado, impendia sobre a Administração Tributária o dever de proceder a essa revisão, nos termos dos artigos 56.º e 78.º, n.º 1, in fine, da LGT.

4.19. Assim, perante a presunção de indeferimento tácito verificada no âmbito do pedido de revisão oficiosa apresentado, estão verificados os pressupostos para o Requerente apresentar o presente requerimento de constituição de Tribunal Arbitral.

4.20. O Requerente considera ilegal a tributação em sede de IRC por si suportada, efectuada por retenção na fonte liberatória sobre os dividendos de fonte portuguesa acima referidos, auferidos pelo Requerente em 2019 e 2021, sustentando o seu entendimento no facto de apenas ter suportado a referida tributação em sede de IRC por se tratar de um OIC não residente em Portugal, não obstante ter sido constituído e operar na República Francesa em condições equivalentes aos OIC residentes em Portugal, cumprindo as exigências da Directiva 2009/65/CE.

4.21. Efectivamente, face ao teor literal do artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, o regime em referência não é aplicável aos dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC não residentes em Portugal, ainda que constituídos e a operar noutro Estado-Membro de acordo com a Directiva 2009/65/CE, ou seja, em condições equivalentes às aplicáveis aos OIC residentes em Portugal.

4.22. Neste contexto, nos termos dos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, e 87.º, n.º 4, do CIRC, os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC estabelecidos noutros Estados-Membros são tributados em sede de IRC, mediante retenção na fonte liberatória à taxa de 25%, a qual poderá ser reduzida ao abrigo de convenções para evitar a dupla tributação celebradas pelo Estado português.

 

4.23. Do regime supra exposto constata-se existir uma diferença de tratamento dos OIC, constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, residentes em Portugal, por comparação com os OIC não residentes em Portugal, constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, na medida em que os dividendos de fonte portuguesa pagos aos primeiros não são sujeitos a retenção na fonte nem tributados em sede de IRC, ao passo que os dividendos de fonte portuguesa pagos a OIC não residentes são tributados em sede de IRC mediante retenção na fonte liberatória.

4.24. Constata-se pois que o regime estabelecido no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, ao restringir a dispensa de retenção na fonte e a exclusão de tributação em sede de IRC aos dividendos auferidos por OIC residentes em Portugal, discrimina os OIC não residentes, residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, não obstante tais entidades não residentes serem constituídas e operarem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE.

4.25. Como tal, o tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, encontra-se em violação do TFUE, ao constituir uma restrição às liberdades fundamentais e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, facto que deverá determinar anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas e a consequente restituição do imposto indevidamente liquidado ao ora Requerente.

4.26. Cumpre referir que a situação pela qual um residente de um Estado-Membro recebe dividendos de uma participação no capital social de uma sociedade residente noutro Estado-Membro constitui uma operação intracomunitária que se encontra abrangida pelo TFUE, conforme foi já por diversas vezes afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente nos Acórdãos Verkooijen (Processo C -35/98), Manninen (Processo C-319/02), ACT 4 (Processo C-374/04) e Denkavit II (Processo
C-170/05).

4.27. Conforme afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia nos Acórdãos Baars (Processo C-251/98), Cadbury Schweppes (Processo C-196/04), FII (Processo C-446/04) e ACT 4 (Processo C-374/04), a legislação nacional de um Estado-Membro que determina uma tributação dos dividendos distribuídos a accionistas residentes noutro Estado-Membro é susceptível de bulir, quer com a liberdade de estabelecimento constante do artigo 49.º do TFUE, quer com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.

4.28. Precisamente a propósito da comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes em Portugal que aufiram dividendos de fonte portuguesa, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais, nas Decisões de 23 de Julho de 2019 e de 27 de Dezembro de 2019, em sentido idêntico. Cfr. Decisão Arbitral de 23 de Julho de 2019 (Processo n.º 90/2019-T) e Decisão Arbitral de 27 de Dezembro de 2019 (Processo n.º 528/2019-T). No mesmo sentido, cfr. Decisão Arbitral de 6 de Novembro de 2020 (Processo n.º 11/2020-T).

4.29. Quaisquer dúvidas que, não obstante a referida jurisprudência, pudessem subsistir relativamente à comparabilidade entre os OIC residentes em território nacional e os OIC residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, foram definitivamente superadas por força do Acórdão AllianzGI-Fonds AEVN do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19).

4.30. Neste contexto, conclui-se que a aplicação do regime previsto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.os 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, se traduziu numa restrição à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, na medida em que implicou uma tributação por retenção na fonte sobre os dividendos pagos ao Requerente, a qual não ocorreria caso os mesmos tivessem sido pagos a um OIC residente em Portugal.

4.31. Contra tal conclusão não se argumente no sentido de a referida restrição poder eventualmente ser neutralizada pelo Estado da residência do Requerente, através do mecanismo de crédito de imposto previsto no artigo 24.º, n.º 2, da CEDT Portugal/França porque, estando o Requerente isento de tributação em sede de imposto francês sobre os rendimentos das pessoas colectivas, não poderá reclamar tal crédito de imposto no Estado da sua residência. Cfr. Decisão Arbitral de 19 de Outubro de 2020 (Processo
n.º 926/2019-T.

4.32. Inexistindo um nexo directo entre a vantagem fiscal consagrada no artigo 22.º, n.os 1, 3 e 10, do EBF, e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto sobre os OIC residentes, não poderá a discriminação sub judice ser justificada com a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal português.

4.33. Efectivamente, a partir do momento em que o Estado português optou por não tributar em sede de IRC os dividendos pagos a OIC residentes em Portugal, não poderá justificar a discriminação sub judice com fundamento na salvaguarda da repartição equilibrada do poder de tributação entre Estados-Membros.

4.34. Consequentemente, as liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas enfermam de vício de violação de lei consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, na violação do princípio do primado do Direito da União Europeia ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar a respectiva anulação, com a consequente restituição do imposto indevidamente retido na fonte, no montante total de €598.104,84 (€435.193,11, correspondentes ao período de 2019 e €162.911,73 correspondentes ao período de 2021), ao abrigo do artigo 100.º da LGT.

4.35. Justifica-se ainda a atribuição de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, por ser imputável aos Serviços a ilegalidade da liquidação em causa, integrando para este efeito o substituto tributário os Serviços da Administração Tributária.

5. Por sua vez, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta na qual se defendeu nos termos seguintes:

5.1. Como questão prévia, salienta-se que, tendo sido efectuado pedido de informação à DSRI, através da Comunicação GPS n.º ...2023... de 21.12.2023, referente a eventuais pedidos efectuados e quaisquer reembolsos relativos aos rendimentos em causa nos presentes autos, a mesma informou que “não foram encontrados quaisquer processos de pedido de reembolso instaurados em nome do contribuinte supra identificado, relativos aos rendimentos de dividendos de 2019 e 2021”.

5.2. Também se refere que da consulta às aplicações informáticas, se constatou que das declarações Modelo 30 submetidas pelo E..., pessoa coletiva n.º..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, referentes aos rendimentos pagos em abril, maio e setembro de 2021, identificados no § 7.º do pedido arbitral, não consta da relação dos beneficiários dos rendimentos a entidade aqui em causa, A..., com o número de identificação fiscal português n.º ...

5.3. Sendo o Requerente um organismo de investimento coletivo e um sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável, deverá o peticionado ser julgado improcedente.

5.4. Com efeito e recorrendo ao Acórdão Schumacker (processo C-279/03), o direito internacional admite que, em matéria de impostos diretos, as relações entre residentes e não residentes não são comparáveis, pois apresentam diferenças objectivas do ponto de vista do rendimento, da capacidade contributiva e da situação familiar ou pessoal.

5.5. Importa referir que a situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e que a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas.

5.6. Deste modo, tem o TJUE entendido que o facto de determinado Estado-membro não conceder a não residentes certos benefícios fiscais que concede a residentes, apenas pode ser discriminativo, na medida em que residentes e não residentes não se encontram numa situação comparável.

5.7. No mesmo sentido, está o Acórdão Truck Center (C-282/07, de 22-12-2008), “cuja conclusão foi a de que sujeitos passivos residentes e não residentes não se encontram numa situação objectivamente comparável”.

5.8. Pode assim dizer-se que, o princípio da não discriminação atende à necessidade de conferir tratamento igual ao que é igual e diferente àquilo que é diferente, na medida dessa diferença.

5.9. Por isso, no presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela requerente.

5.10. E ainda que o Fundo não consiga recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência, também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.

5.11. Ou seja, a aparente discriminação na forma de tributar os dividendos distribuídos por sociedades residentes a OIC não residentes, não pode levar a concluir, em nossa opinião, por uma menor carga fiscal dos OIC residentes, pois como se viu embora o regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos, seja por tributação autónoma (IRC), seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos noutros Estados Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.

5.12. E não sendo as situações comparáveis parece difícil de aceitar o argumento da requerente de que a legislação nacional e particularmente o artigo 22.º do EBF está em desconformidade e contrariaria o disposto no TFUE, nomeadamente, quanto à liberdade de circulação de capitais, tendo em apreço a proibição geral de discriminação face a uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 63.º do referido TFUE.

5.13. Não compete à Administração Tributária avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, não podendo aceitar de forma directa e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.

5.14. A administração tributária não pode deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, porquanto está a mesma adstrita ao princípio da legalidade positivada.

5.15. A administração tributária, como qualquer órgão da Administração Pública, encontra-se estritamente vinculada ao cumprimento da lei, de acordo com o artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável subsidiariamente às relações jurídico-tributárias [ex vi do artigo 2.º alínea c) da LGT.

5.16. A administração tributária tem que aplicar o disposto nos códigos fiscais que se encontram em vigor e as disposições deles constantes que regulam determinada relação jurídico-tributária, de acordo com o artigo 2.º alínea b) da LGT, in casu, as normas constantes do Código do IRC e do EBF acima citadas.

5.17. A jurisprudência do TJUE não autoriza o intérprete a extrair a conclusão, em abstrato, de que a mera existência de uma retenção na fonte de IRC incidindo apenas sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um Fundo de Investimento estabelecido noutro Estado-Membro constitui por si só uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital no espaço europeu, sem que seja feita uma apreciação global do regime fiscal aplicável aos Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos em Portugal.

5.18. Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objetivas dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, necessário se torna comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos.

5.19. Só deste modo será possível concluir se a desvantagem de cash-flow criada pela retenção na fonte de IRC, aos fundos de investimentos estabelecidos noutros Estados-Membros da UE, cria um obstáculo ao acesso ao mercado financeiro nacional, colocando-os numa situação desfavorável quando comparada com a situação tributária aplicada aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF.

5.20. Deste modo, reitera-se que se reputa de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto, se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo.

5.21. Assim, um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.

5.22. Inexistindo qualquer ilegalidade sobre os atos impugnados, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, sendo que, face à al. c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT, só seriam devidos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

6. Por despacho de 9/3/2024 foi o Requerente notificado para exercer, querendo, o contraditório em relação à questão prévia suscitada pela Requerida, na Resposta, no prazo de dez dias.

7. A 27/3/2024 respondeu o Requerente que a questão prévia assenta numa análise do sistema informático da Administração Tributária certamente circunscrito ao número de identificação fiscal português indicado por aquelas (...), que não teve em conta os que se encontravam referidos na declarações juntas aos autos como documentos n.ºs 6 e 7.

8. Por despacho de 2/4/2024 foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, tendo as partes sido notificadas para apresentação de alegações escritas.

9. A 24/4/2024 e 8/5/2024 respectivamente Requerente e Requerida apresentaram as suas alegações onde reiteraram as posições expressas nos seus articulados.

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

10. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

10.1. O Requerente é uma pessoa colectiva de direito francês, na modalidade fond commun de placement, sendo consequentemente um Organismo de Investimento Colectivo.

10.2. O Requerente está sujeito a imposto sobre as pessoas coletivas no seu país de residência, tendo-lhe sido todavia concedida uma isenção, o que o impossibilita de recuperar a título de crédito por dupla tributação internacional ou formular qualquer pedido de reembolso dos impostos suportados ou pagos no estrangeiro

10.3. Em Maio e Setembro de 2019, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 1.740.772,43, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em EUR

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção
na fonte

Dividendo líquido

C...

09-05-2019

501.409,84

125.352,46

376.057,38

D...

15-05-2019

770.486,86

192.621,72

577.865,14

C...

10-09-2019

468.875,73

117.218,93

351.656,80

 

Totais:

1.740.772,43

435.193,11

1.305.579,32

 

10.4. Em Abril, Maio e Setembro de 2021, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante total de EUR 651.646,90, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos:

Valores em EUR

Entidade

Data

Dividendo bruto

Retenção
na fonte

Dividendo líquido

D...

26-04-2021

280.809,55

70.202,39

210.607,16

C...

20-05-2021

199.066,35

49.766,59

149.299,76

C...

16-09-2021

171.771,00

42.942,75

128.828,25

 

Totais:

651.646,90

162.911,73

488.735,17

 

10.5. As retenções na fonte de IRC referentes a 2019 em causa – no montante de EUR 435.193,11 - foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.os ...  e ..., respectivamente de 21 de Junho e 20 de Outubro de 2019, pelo E..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal em Portugal..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários.

10.6. As retenções na fonte de IRC referentes a 2021 – no montante total de EUR 162.911,73 – foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública, através das guias de retenção na fonte n.os ... e ...1, respectivamente de Maio e Junho de 2021, e..., de 20 de Outubro de 2021, pelo E..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal em Portugal 980 279 402, na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários.

10.7. O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às referidas retenções na fonte, seja ao abrigo da CEDT Portugal/França, seja ao abrigo da lei interna francesa.

10.8. O Requerente apresentou no dia 24 de Abril de 2023 reclamação graciosa das liquidações de IRC acima identificadas, referentes aos anos de 2021.

10.9. No mesmo dia, o Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das liquidações de IRC acima identificadas, referentes ao ano de 2019 e 2020.

10.10. Na presente data, os referidos procedimentos de reclamação graciosa e de revisão oficiosa encontram-se pendentes junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob os n.os ...2023... e ...2023..., respectivamente.

10.11. O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 16 de Novembro de 2023.

 

Factos não provados

 

11. Não há factos não provados que se considerem relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

 

12. O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição.

 

Matéria de direito

 

13. A questão em causa neste processo já foi objecto de decisão nos processos 91/2019-T e 734/2021-T, nos quais participou o actual relator. Seguir-se-á por isso a argumentação destas decisões.

Sustenta o Requerente que o regime especial de tributação aplicável aos fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º  do EBF, implicando a exclusão desse regime jurídico dos organismos equiparáveis que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa mas tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A Autoridade Tributária contrapõe que o artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias e uma isenção das derramas municipal e estadual, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC. Não podendo afirmar-se, neste condicionalismo, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos rendimentos de capitais opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os rendimentos de capitais auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os rendimentos de capitais auferidos em Portugal pela Requerente.

A questão que nestes termos vem colocada foi analisada no acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, o qual foi solicitado no âmbito do processo 93/2019-T, em que se extrai a seguinte conclusão:

"O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção".

O citado artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante  de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

  (…).

 

Como resulta, em especial, do disposto nos n.ºs 3 e 6, as entidades referidas no n.º 1, beneficiam de um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, porquanto não são considerados, para efeitos do apuramento do lucro tributável, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e mais-valias, além de que essas entidades estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.  Por outro lado, nos termos do transcrito n.º 1, o benefício fiscal assim estabelecido aplica-se aos organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, o que conduz a afastar, numa interpretação literal do preceito, os organismos equiparáveis que operem no território nacional segundo o direito interno, mas tenham sido constituídos segundo a legislação de um outro Estado-membro da União Europeia.

A questão carece de ser analisada, nestes termos, à luz da alegada violação do princípio da proibição da liberdade de circulação de capitais.

 

No caso, como resulta da matéria de facto tida como assente, o Requerente é um organismo de investimento colectivo constituído segundo o direito francês, efectuando a angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado que os OIC constituídos de acordo com o direito português.

 

Alega o Requerente, neste contexto, que a norma do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF, se torna incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

Conforme tem sido entendimento comum, o princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia apenas deve ser objeto de aplicação autónoma quando esse mesmo princípio se não encontre concretizado em disposições específicas do Tratado relativas às liberdades de circulação. E, nesse sentido, pode dizer-se que o princípio da não discriminação se realiza, designadamente, por via do direito à livre circulação de movimentos de capitais a que se refere o artigo 63.º do Tratado (cfr. Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Coimbra, 2011, pág. 254).

 

O artigo 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, bem como todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. O artigo 65.º consigna, todavia, que o artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (n.º 1), esclarecendo o n.º 3, em todo o caso, que essa possibilidade não deve constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Em relação à liberdade de circulação de capitais, o citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, de 10 de Abril de 2014, desencadeado pelo Requerente esclarece o âmbito de aplicação desse princípio, formulando, na parte que mais interessa reter, os seguintes considerandos:

"36.      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (-).

37.      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38.     Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE.

40      Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41.      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (-).

42.      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral".

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que o “critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes” (considerando 73), havendo de entender-se que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis” (considerando 74).

E não há motivo para que o Tribunal Arbitral, face aos elementos factuais conhecidos, deva dissentir do entendimento formulado, quanto a esta matéria, em sede de reenvio prejudicial. A situação é tanto mais aplicável quanto está em causa a mesma questão relativa à tributação dos dividendos através de retenção na fonte.

Em relação à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o Tribunal de Justiça declarou que, para esse efeito, “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Concluindo que, no caso, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” e a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional (…)” (considerandos 80 e 81).

Em todo este contexto, a doutrina fixada pelo TJUE, que é aplicável à tributação dos dividendos pagos a organismos de investimento colectivo não residentes através de retenção na fonte, é, como se referiu, a seguinte:

"O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção".

É assim claro que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento imobiliário que constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional, mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.

 

Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de Fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).

 

De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu. A Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem em consequência decidido pacificamente no sentido da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno, como pode ver-se pelos acórdãos de 01-07-2015, proferido no processo n.º 0188/15, 17-06-2015, proferido no processo n.º 0187/15, e de 25-06-2015, proferido no processo n.º 0464/15.

 

Recentemente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 7/2024, proferido no passado dia 26 de Fevereiro de 2024, uniformizou a jurisprudência sobre esta questão pela forma seguinte:

 

"1 - Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;

2 - O art.º 63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;

3 - A interpretação do art.º 63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o art.º 22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia".

 

Os actos de retenção da fonte de IRC impugnados e o indeferimento tácito da reclamação graciosa e do pedido de revisão contra eles apresentadas são assim ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.

 

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

14. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação dos actos tributários, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Já em relação aos juros indemnizatórios, estabelece o art. 43º, nº3 c), LGT estabelece que os mesmos são devidos "quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária".

 

O Ac. STA n.º 4/2023, de 16 de Novembro, uniformizou a Jurisprudência nos seguintes termos: "Só são devidos juros indemnizatórios decorrido um ano após o pedido de promoção da revisão oficiosa e até à data da emissão das respetivas notas de crédito a favor da Recorrida".

 

Neste caso,

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e dos actos de retenção, ao pagamento de juros indemnizatórios desde 24 de Abril de 2024, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 3, c) da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

III - Decisão

Termos em que se decide:

a)  Julgar procedente o pedido arbitral e anular as liquidações de IRC por retenção na fonte de impugnadas, no montante global de €598.104,84, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa e do pedido de revisão oficiosa contra eles deduzida;

b) Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde 24 de Abril de 2024 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de €598.104,84, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor económico do pedido, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 8.874,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14 de Maio de 2024

  

 

Os Árbitros

 

 

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

 

 

 

(Luís Menezes Leitão

 

 

 

(Pedro Guerra Alves)