Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 770/2023-T
Data da decisão: 2024-05-22  IUC  
Valor do pedido: € 3.179,58
Tema: Imposto Único de Circulação. Princípio da equivalência. Natureza e efeitos do registo. Sujeito passivo do imposto. Admissibilidade da ilisão da presunção revelada pelo registo sobre o sujeito passivo titular da propriedade do veículo automóvel. A validade do contrato e da fatura para titular a transmissão.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

Atento o princípio da equivalência, o imposto único de circulação (IUC) pretende onerar os contribuintes “na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, no sentido de tributar o efetivo proprietário do veículo responsável por aquele “custo” e não o contribuinte que apenas formalmente ou indevidamente seja considerado como tal no registo automóvel, mas sem essa responsabilidade. O sujeito passivo do imposto está ligado à propriedade efetiva e não meramente formal do veículo automóvel – cf. arts. 1.º, 3.º e 6.º do Código do Imposto Único de Circulação.

Esse princípio não seria observado no caso de prosseguirem liquidações contra contribuintes pelo simples facto de constarem no registo e contra a prova apresentada sobre a factualidade efetiva e relevante para efeitos tributários, ou seja, sobre os sujeitos passivos proprietários dos veículos, os quais efetivamente devem responder pelo “custo ambiental e viário”, enquanto fundamento para a tributação em IUC.

A figura do sujeito passivo do imposto previsto no n.º 1 do artigo 3.º do IUC deve ser interpretado e aplicada de acordo com a natureza e finalidade do registo automóvel, de mera publicidade, pelo que constitui uma presunção que pode ser ilidida, porquanto as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário - artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

Atentas a natureza e finalidade do registo (fato conhecido para firmar um facto desconhecido, o qual se visa tributar em IUC), este não reúne as condições de objetividade e certeza necessárias para dele poderem ser extraídas classificações e consequências tributárias diretas e definitivas.

Os contratos de locação com opção de compra e o contrato de compra e venda acompanhados da emissão de fatura na forma legal a titular a transmissão de veículos automóveis são válidas e produzem efeitos em diferentes tributos, pelo que constituem prova suficiente para comprovar a transmissão desses veículos sujeitos a registo para efeitos de IUC, não podendo ser afastados sem apresentação de prova em contrário.

Sendo julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral e estando o imposto pago, são devidos juros indemnizatórios a partir do momento em que a Administração Tributária, apesar de ter tido conhecimento do efetivo/s proprietário/s do/s veículo/s, não tenha procedido à correção das liquidações e/ou tenha indeferido pedido de reclamação.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

A A..., S.A. – Sucursal em Portugal, sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva..., com sede na Rua ..., ...– ...,  ...-... ..., doravante designada por “Requerente» ou “A...”, veio requerer pedido de pronúncia e constituição de Tribunal arbitral, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária («RJAT»), em conjugação com os artigos 1.º e 2.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), doravante designada por “Requerida” ou “AT”.

O pedido de pronúncia arbitral visa a declaração de ilegalidade de 29 (vinte e nove) atos de liquidação de imposto único de circulação “IUC”, relativos a igual número (vinte e nove) veículos automóveis, no montante global de € 3.179,58 (três mil cento e setenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), os quais identifica em listagem que junta como Anexo A e cujo conteúdo dá por integralmente reproduzido, na sequência do ato de indeferimento exarado na Reclamação Graciosa ...2023..., notificado através do ofício n.º DJT .../2023, de 26-09-2023, o qual junta como Anexo B e cujo conteúdo dá por integralmente reproduzido).

Na sequência do ato de designação do árbitro e audição das partes, em 11 de janeiro de 2024, por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular, em conformidade com o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT.

Em 12 de janeiro de 2024, foi emitido o despacho previsto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 17.º do RJAT. A resposta da Requerida foi recebida em 9 de fevereiro de 2024.

Em 14 de fevereiro de 2024, foi proferido despacho arbitral para a Requerente se pronunciar sobre a resposta da Requerida e à invocada inutilidade da prova testemunhal apresentada. O requerimento da Requerente foi entregue em 20 de fevereiro de 2024.

Em 21 de fevereiro de 2024, foi emitido o despacho arbitral previsto no artigo 18.º do RJAT. Em 13 de março de 2024, decorreu a reunião das partes e a inquirição da testemunha apresentada pela Requerente.

Em 21 e a 27 de março de 2024, foram apresentadas alegações pela Requerente e pela Requerida, respetivamente, reafirmando, ambas, o essencial das posições já expressas.

II - SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

III - POSIÇÃO DAS PARTES

Da Requerente:

Preliminarmente, alega que apesar de alguns dos atos de liquidação terem sido dirigidos ao “B..., S.A.”, com o número de pessoa coletiva..., é a Requerente «A..., S.A. – Sucursal em Portugal»), com o número de pessoa coletiva ... que detém legitimidade para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral, porquanto em resultado de uma reorganização societária intra-grupo, o B... S.A., fundiu-se com a sociedade C... S.A., através de uma fusão sem liquidação, adquirindo, por sucessão universal, a totalidade dos seus direitos e obrigações, com efeitos a 01-10-2021.

Que a partir da referida data, passou a ser uma sucursal do D... Grupo E..,  ..., ... Madrid, Espanha, registada junto do Registo Mercantil de Madrid F. (hoja) M-..., L. (tomo) ..., F. (folio) 25, CIF A-..., e a utilizar a designação de A... S.A. - Sucursal em Portugal, com sede em Rua ..., ...-... ..., Portugal, com o NIPC..., registada no Banco de Portugal com o número ... e junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões com o número OV... .

Que os veículos automóveis catalogados no Anexo A, sem exceção, foram dados em contratos de aluguer de longa duração («ALD») ou de locação financeira («LSG») pela Requerente aos clientes ali melhor identificados – conforme resulta dos contratos que junta como Documentos n.os 1 a 29, - por referência à viatura automóvel a que se reportam no referido Anexo A.

Que quase a totalidade dos clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA – tal como atestam os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, faturas de venda), que junta como Documentos n.os 30 a 58 – com menção ao veículo a que se referem – no Anexo A junto.

Assim, que a propriedade de cada um dos veículos automóveis elencados no Anexo A, já junto, havia sido transmitida para os seus anteriores locatários.

Que a AT veio então exigir o pagamento dos IUC alegadamente em falta à Requerente, mesmo sabendo – ou devendo saber – que os veículos automóveis em apreço já não eram da propriedade da Requerente no momento (no ano, mais concretamente) em que os impostos deveriam ter sido pagos.

A Requerente afirma ainda que no ano a que se reportam os atos tributários em contenda, os veículos automóveis já tinham saído (há muito) da sua esfera jurídica, pertencendo a respetiva propriedade a outrem (devidamente discriminado no Anexo A, junto).

Assim, nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram estas liquidações, a Requerente já não era locadora e proprietária daqueles veículos automóveis e, por conseguinte, não pode assumir a qualidade de sujeito passivo dos impostos que lhe foram erroneamente liquidados.

Que o fundamento invocado pela AT nos procedimentos graciosos assenta, sinteticamente, na seguinte linha de argumentação: a de que – nos anos em que se tornaram exigíveis aqueles IUC – a propriedade dos veículos automóveis ainda estava registada na CRA em nome da Requerente, apesar de os mesmos já terem sido alvo de transmissão, e a de que a falta de registo dos novos proprietários dos veículos automóveis identificados no Anexo A, no momento da exigibilidade dos IUC, determina que estes sejam assacados à Requerente.

Que a vexata quaestio subjacente ao presente pedido de pronúncia arbitral reside, essencialmente, em saber se a circunstância de a transmissão dos veículos automóveis descritos no Anexo A aos seus anteriores locatários, findo o contrato de ALD ou LSG, não ter sido registada junto da CRA, torna essa transmissão inoponível à AT, sobretudo, para efeitos de cobrança do imposto ao seu anterior proprietário, em concreto, à sua anterior entidade locadora.

Posição abundantemente assumida pela AT no ato de indeferimento da reclamação graciosa, junta como Anexo B e que motivou a apresentação do pedido pela Requerente, a qual continua, ainda, a sua posição nos termos seguintes.

Em primeiro lugar, um dos argumentos aduzidos a favor da presunção ilidível parte da realidade jurídico-civil subjacente a este artigo 3.º do Código do IUC, notando que o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.

Em segundo lugar, e socorrendo-nos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no atual e novo quadro da tributação automóvel – decorre daí que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

Em terceiro lugar, através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a observação preliminar de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, o legislador consagrou (ou sempre quis consagrar) a presunção (segundo cremos, ilidível) dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.

Em quarto lugar, e recortando conceptualmente as presunções, o artigo 349.º do CC define-as como «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».

E o artigo 73.º da LGT ao prever que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis – «admitem sempre prova em contrário» –, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível.

Em quinto lugar, a conjugação do n.º 1 do artigo 3.º com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIUC, nos termos do qual «[o] facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional»

Em sexto lugar, o artigo 215.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2015, que veio aditar o artigo 17.º-A do CIUC sob a epígrafe «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade», apenas aplicável às transmissões de veículos automóveis ocorridas em ou após o dia 1 de Janeiro de 2015, mais não são do que uma «clarificação» das normas de incidência subjetiva do IUC.

Em sétimo lugar, e como que sintetizando o que vem dito na jurisprudência arbitral, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção ilidível.

Termos em que, subsequentemente, requer o reembolso do montante 3.179,58 € (três mil cento e setenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), relativo ao imposto indevidamente pago, bem como o pagamento de juros indemnizatórios, pela privação daquele montante, nos termos do artigo 43.º da LGT, calculados à taxa legal e contados desde a data de pagamento das liquidações.

Da Requerida:

Na resposta ao pedido de pronúncia arbitral, a Requerida, no essencial, vem afirmar o seguinte:

Em sede arbitral suscita e reitera os argumentos por si aduzidos na fase graciosa, evidenciando nas suas alegações que o artigo 3.º, n.º 1 do CIUC, consagra uma presunção ilidível, sustentada não só no registo automóvel, mas também no princípio da equivalência.

Considerando o pedido, resulta que o cerne da questão aqui a ser resolvido subsume-se à determinação do âmbito da incidência subjetiva do IUC.

Que a não atualização desse registo, que é obrigatório nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera do sujeito passivo de IUC, e apenas nela.

A AT entende que com a nova redação do art.º 3.º do CIUC de que: “são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”, o legislador procurou definitivamente afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados, clarificando que o sujeito passivo do imposto é a pessoa em nome de quem está registado o veículo automóvel.

Consequentemente, entende a Requerida, ter sido afastada a presunção de propriedade do veículo decorrente do registo automóvel ou qualquer presunção de incidência subjetiva na determinação do sujeito passivo do IUC, sendo o registo de propriedade automóvel que define a incidência subjetiva do IUC e identifica o sujeito passivo, independentemente da identidade ou da pessoa que tem a propriedade efetiva.

Termos em que deixou de ser relevante a determinação da propriedade ou posse da viatura, não mais se colocando a dicotomia entre a propriedade real e presumida (ou publicitada via direito registal). Com efeito a alteração normativa data de 2016, não foi atribuída natureza de lei interpretativa (pese embora tal constasse da lei habilitante), opera uma modificação substancial com vigência ex nunc e aplicável ao ano em apreço (2020).

Em suma, afirma que não estamos, como na vigência da redação anterior, perante uma presunção ilidível, mas antes na presença de uma opção legislativa diversa da anterior, sobre a relevância da inscrição no registo automóvel para a definição da sujeição subjetiva ao IUC.

Que a falta de registo em nome do novo adquirente (a impulso deste ou do alienante, cf. DL n.º 177/2014) faz com que a incidência subjetiva do IUC se mantenha no titular do direito de propriedade inscrito na Conservatória do Registo Automóvel e seja este o responsável pela liquidação e pagamento do IUC, independentemente da sua alienação, fundamentos pelos quais não se acolhe a pretensão por si apresentada.

Que o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veiculo, tal como atestado pela matrícula ou registo em território nacional, cf. art.º 6.º do CIUC, e estabelecendo o legislador de forma inequívoca e clara, que os sujeitos passivos são os proprietários dos veículos, em nome das quais os mesmos se encontram registados, conforme o disposto no n.º 1 do art.º 3.º do CIUC, não restava outra alternativa à AT senão liquidar o imposto em causa, pois é na ora Requerente que se verifica o facto gerador do imposto e os elementos de incidência objetiva e subjetiva (artigos 2.º, 3.º e 6.º, n.º 1 do CIUC).

Alega ainda que a prova documental junta pela Requerente que consiste quer no anexo A, que se trata de um documento elaborado pela própria em formato excel, quer nos restantes documentos, que consistem em contratos celebrados pela Requerente com os clientes e algumas faturas, não provam que à data da exigibilidade do imposto, as viaturas não eram propriedade (registadas) em nome da Requerente na Conservatória do Registo Automóvel.

Que o contrato apenas prova que entre a Requerente e um cliente (pessoa singular ou coletiva) foi celebrado um contrato, que foi emitida uma fatura, desconhecendo-se, porque não foi feita prova, que a mesma foi paga. Mas, mesmo que todos os contratos e pagamentos tenham sido cumpridos, esse facto não equivale à transferência de propriedade.

Face ao exposto, também não estão preenchidos os requisitos para que sejam atribuídos juros indemnizatórios à Requerente.

Realça que o princípio da equivalência, que a Requerente invoca para afastar a incidência subjetiva sobre si, não tem a amplitude que aquela pretende, tratando-se de uma norma de carácter programático e referencial.

Conclui, a Requerida, pela improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, pela manutenção na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e, pela sua subsequente, absolvição do pedido.

 

IV- MATÉRIA DE FACTO

Observa-se que o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, em conformidade com o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e os n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º, do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para a decisão da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito - cf. artigo 596.º do CPC.

IV - 1. Factos Provados

Atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados e à prova documental e testemunhal apresentadas pela Requerente e pela Requerida, com relevo para a o mérito decisão, julgam-se provados os factos seguintes:

A Requerente é uma instituição de crédito que opera no financiamento ao sector automóvel, sendo que uma parte substancial da sua atividade se reconduz à celebração de contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

Esses contratos obedecem, de forma geral, a um guião comum, em que a Requerente, depois de contactada pelo cliente que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características e preço, adquire o veículo ao fornecedor indicado pelo próprio cliente, e, de seguida, procede à sua entrega ao cliente, assumindo este a qualidade de locatário.

Durante o período estipulado no contrato, o locatário restitui o financiamento em prestações mensais, na forma de rendas, tendo o direito, no final do contrato, de adquirir o veículo, mediante o pagamento de um valor residual, acrescido de despesas e IVA.

A Requerente celebrou contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira para os veículos indicados em documento não contestado pela Requerida, tendo os locatários, no final desses contratos e nos respetivos termos, adquirido os veículos.

A Requerente emitiu, por conseguinte, as respetivas faturas de venda.

Essas faturas constituem prova bastante da respetiva transação, inclusive, para efeitos de liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado sobre a venda dos veículos e, subsequente, obrigatoriedade do imposto.

Os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, faturas de venda), que a Requerente junta como Documentos n.os 30 a 58, demonstram que a quase totalidade dos clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA.

Foram realizados 29 (vinte e nove) atos de liquidação de imposto único de circulação “IUC”, relativos a igual número (vinte e nove) veículos automóveis, no montante global de € 3.179,58 (três mil cento e setenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), identificados em listagem junta como Anexo A e cujo conteúdo se dá integralmente reproduzido, os quais também não foram contestados pela Requerida.

Alguns dos atos de liquidação foram dirigidos ao “B..., S.A.”, com o número de pessoa coletiva..., mas a Requerente «A..., S.A. – Sucursal em Portugal»), com o número de pessoa coletiva  detém legitimidade para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral, porquanto em resultado de uma reorganização societária intra-grupo, o B... S.A., fundiu-se com a sociedade C... S.A., legitimidade não contestada pela Requerida.

À data do facto gerador daquelas liquidações, a Requerente já tinha emitido as faturas de venda relativas aos veículos automóveis em causa nos presentes autos.

À data daquele facto gerador, todos os veículos automóveis se encontravam ainda registados no nome da Requerente.

A Requerente pagou os montantes de imposto liquidados no montante global de € 3.179,58, montante não contestado pela Requerida.

Em 26 de setembro de 2023, a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa daquelas liquidações de imposto – RG n.º ...2023... .

Em 27 de outubro de 2023, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral, nos termos suprarreferidos.

IV - 2. Factos não provados

Não foram julgados não provados factos relevantes para a decisão da causa.

IV - 3. Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados relevaram os documentos juntos aos autos e prova testemunhal, os quais se mostraram idóneos sobre os factos em discussão nos presentes autos, os quais resultam e revelam a prática habitual dos atos comerciais e dos contratos realizados nesse âmbito.

As faturas emitidas produzem efeitos tributários, não podendo ser afastada a sua validade sem prova em contrário – v.g. arts.º 8.º, 16.º e 36.º do IVA e arts. 23.º/6 e 125.º do IRC – documento de suporte que igualmente deve ser aceite para efeito de IUC, maxime, face à informalidade associada às inerentes transmissões de propriedade de veículos automóveis.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram apurados e recortados em função da sua natureza e relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que se considere relevante para a correta composição da lide processual.

Acresce que face ao exposto e por razões de economia e celeridade processual não se verificou necessário demais atos de instrução, bem como os factos estão documentalmente comprovados e essa prova não foi objeto de controvérsia substantiva e material entre a Requerente e a Requerida.

V - MATÉRIA DE DIREITO

Compulsadas as posições das partes e os factos dado como provados, cumpre apreciar e decidir, atento o ordenamento jurídico aplicável.

O registo automóvel constitui uma presunção de que o direito registado, na amplitude e com o conteúdo concreto, existe na titularidade do sujeito que consta do registo - cf. art.º 7.º do Código do Registo Predial (CRP), aplicável supletivamente por força do art.º 29.º do Código de Registo Automóvel (CRA).

Essa presunção é ilidível, podendo o facto inscrito ser ilidido mediante prova em contrário, podendo ser ilidida em sede própria e/ou a jusante no domínio tributário.

No presente processo apresenta-se relevante a questão de concluir se as liquidações efetuadas à Requerente referentes a 29 veículos que se encontravam registados em seu nome, mas cuja titularidade do direito de propriedade fora já transferido para outra entidade/contribuinte, como comprovado nos autos, enferma de vício de violação de lei.

Atentas as normas vigentes à data dos factos e quanto à incidência subjetiva, estabelece-se que: “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. – cf. n.º 1 do art.º 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC).

Nos termos da lei, na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos fatos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis e persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários - cf. art.º 7.º do D.L. n.º 398/98, de 17 de dezembro, diploma que aprova a Lei Geral Tributária (LGT).

O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional, sendo os sujeitos passivos do imposto, naturalmente, os proprietários dos veículos, considerados (presumindo-se) como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da respetiva liquidação – cf. arts. 1.º, 3.º e 6.º do CIUC.

Encontrando-se os veículos automóveis sujeitos a registo, este sem efeitos constitutivos e com finalidade de mera publicidade, a forma simples que foi definida para conhecer os proprietários desses veículos consiste em consultar o registo automóvel, o qual tem como finalidade facultar e facilitar esse conhecimento por parte de todos os interessados.

O registo de veículos automóveis tem por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos, tendo em vista a segurança do comércio jurídico, bem como são aplicáveis ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial. - Cf. arts. 1.º e 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, diploma que regula o sistema de registo automóvel.

Atenta a natureza e finalidade do registo, o qual apenas confere publicidade ao ato registado, a sua validade depende da existência e regularidade do respetivo ato constitutivo a montante, pelo que é sempre possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efetivo titular do direito registado. Este postulado é válido em diferentes ordenamentos jurídicos, incluindo no direito tributário.

Termos em que em sede de incidência subjetiva de imposto, igualmente, os elementos do registo podem ser contrariados e atribuir-se prevalência ao ato constitutivo do direito sobre o ato registado.

O legislador em sede de IUC, por motivo de facilidade, pretendeu criar um automatismo na liquidação do imposto e inverter o ónus da prova para o sujeito passivo, porquanto o procedimento tributário instituído não é, por si só, suscetível de subverter as finalidades do registo.

Caso assim não fosse, os contribuintes após venderem os seus automóveis e que por motivos imprevistos ou que nem lhe pudessem ser imputáveis, não procedessem à alteração do registo seriam sempre confrontados com a liquidação para pagamento deste imposto por automóveis de que já não eram proprietários, sem nada poderem fazer, sem prejuízo do vendedor poder igualmente proceder à atualização desse registo.

Relativamente à invocada autorização legislativa prevista no art.º 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento de Estado 2016), nos termos seguintes : “Fica o Governo autorizado a introduzir alterações no Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão: a) Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º”.

Apesar de se pretender fixar o sentido correto de um ato normativo anterior, em contraposição à lei inovadora, o legislador no uso dessa autorização, concretizada pelo D.L. n.º 41/2016, de 1 de agosto, não veio a atribuir-lhe esse carácter interpretativo.

Essa opção revela, ainda, que o legislador privilegiou o princípio da substância sobre a forma e materializou no cIUC esse postulado fundamental em várias áreas do direito. Igualmente, na hodierna interpretação e aplicação da lei, o julgador deve valorizar a substância das questões em detrimento das formalidades, ou seja, na análise e resolução das questões controvertidas deve privilegiar o mérito da causa, a materialidade, em vez de se ater em questões formais, as quais tendem a ser valorizadas para efeitos de maior facilidade administrativa e/ou burocrática, mas que não podem prevalecer e/ou colidir com os princípios e o ordenamento jurídico em que as respetivas disposições legais se inserem.

Acresce que face à natureza e à informalidade associada à transmissão da propriedade automóvel, o registo automóvel visa apenas dar publicidade, termos em que o registo não reúne os requisitos necessários para efeitos de tributação, designadamente não contém os elementos demonstrativos da efetiva titularidade do bem sujeito a tributação, constituindo uma mera presunção iuris tantum.

Termos em que demonstrada a efetiva titularidade sobre os veículos automóveis, essa prova sobre o novo proprietário passa a ser relevante para efeitos tributários e sobrepõe-se aos elementos do registo, afastando a respetiva presunção.

A natureza e finalidade do registo consiste na mera publicidade dos atos e, enquanto procedimento formal e ao estabelecer uma presunção ilidível, não reúne os elementos de substância, materialidade e integridade que permitam aferir a efetiva existência e validade dos subjacentes factos/atos reais suscetíveis de tributação, a qual não pode assentar em registos meramente formais, os quais até podem encerrar erros e/ou imprecisões.

Atento o princípio da equivalência e procurando o IUC onerar os contribuintes na medida do “custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (art. 1.º do CIUC), não se apresentaria consistente, nem seria observado esse princípio caso fosse permitido onerar um contribuinte pelo simples facto de constar no registo automóvel, sem que o mesmo, à data do facto tributário, tivesse qualquer relação com o bem suscetível de provocar o referido “custo ambiental”.

A pretender prosseguir-se com as liquidações de IUC contra o contribuinte que figura no registo sem que o mesmo tenha qualquer relação com o bem e provocado qualquer “custo ambiental e viário”, o contribuinte que efetivamente provoca esse “custo” seria indevida e ilegalmente desobrigado de uma obrigação tributária que sob ele impende, em clara violação do referido princípio da equivalência e da igualdade tributária.

Assim, esse princípio não seria observado no caso de prosseguirem liquidações contra contribuintes pelo simples facto de constarem (v.g.: até indevidamente) em registo e contra a prova apresentada sobre a factualidade efetiva e relevante para efeitos tributários em sede de IUC.

Ora, não sendo a Recorrente proprietária do veículo ao tempo dos factos, não se lhe pode imputar qualquer responsabilidade pelo “custo ambiental e viário” que fundamenta a tributação em IUC – o qual procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”, sendo o “facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo” - cf. arts. 1.º e 3.º do CIUC.

Por sua vez, pretender-se que uma norma legal imponha uma responsabilidade a contribuinte, independentemente da sua real participação nos factos tributáveis e da prova que sobre isso for feita, mesmo em processo judicial/arbitral, implicaria, ainda, que o Tribunal não pudesse efetuar qualquer apreciação, valoração ou relevar qualquer prova sobre a efetiva factualidade e respetiva imputação para efeitos tributários, em suma, ser aplicado o direito e, maxime, ser realizada a justiça.

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, observa-se que a Requerida liquidou o imposto de acordo com os elementos de registo e da presunção sobre o titular da propriedade do veículo, em cumprimento da lei. No momento das liquidações não disponha de elementos que lhe permitissem conhecer o efetivo titular da propriedade, sujeito passivo e devedor do imposto, pelo que não existiu erro ou ilegalidade imputáveis à Requerida.

Porém, a partir da apresentação da reclamação graciosa pela Requerente, a AT passou a reunir os elementos de facto necessários e relevantes para efeito das liquidações do IUC, porquanto a prova apresentada permitia ilidir a presunção legal decorrente do registo e confirmar os efetivos proprietários e sujeitos passivos de IUC, enquanto contribuintes responsáveis pelo “custo ambiental e viário” que o esse imposto visa compensar.

Assim, a partir da data do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, até ao reembolso do imposto pago pela Requerente, são devidos juros indemnizatórios – Cf. art.º 43.º do D.L. n.º 398/98, de 17 de dezembro, diploma que aprova a LGT, art.º 61.º do D.L. n.º 433/99, de 26 de outubro, diploma que aprova o CPPT, art.º 559.º do D.L. n.º 47344/66, de 25 de novembro, diploma que aprova o CC e Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.

 

VI - DECISÃO

Termos em que se decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  • Anular a decisão que incidiu sobre a reclamação graciosa apresentada pela Requerente.
  • Anular as liquidações de IUC identificadas no valor total de € 3.179,58 (três mil cento e setenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos).
  •  Condenar a Requerida na restituição das quantias pagas pela Requerente, acrescidas de juros indemnizatórios contados, à taxa legal, desde a decisão de indeferimento da reclamação graciosa até àquela reparação.
  • Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo arbitral.

VII – VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 3.179,58, em conformidade com o disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, no artigo 32.º do CPTA, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do CPC, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e no n.º 2 do artigo 3.º do RCPAT.

VIII – CUSTAS

Fixa-se o valor das custas em € 612, a cargo da Requerida, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem tributária, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 22 de maio de 2024.

O Árbitro,

Vítor Braz