SUMÁRIO:
A aceitação plena, e sem reservas, da anulação parcial das liquidações de IRC referentes a 2019 e 2020 e da manutenção da liquidação de IRC referente a 2018, só pode corresponder a uma desistência de pedido como causa de extinção da instância, para os efeitos dos artigos 277.º, alínea d), 283.º, n.º 1 e 290.º, n.º 1 "in fine" do Código de Processo Civil (CPC).
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Fernando Araújo (Presidente), Alexandra Iglésias (Vogal e Relatora) e Jorge Bacelar Gouveia (Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral coletivo, acordam no seguinte:
I – Relatório
1. A..., residente no ..., ..., ..., ..., Angola, com o número de identificação fiscal ... e. B..., residente em Rua ..., n.º ..., Ap.-..., Luanda, Angola, com o número de identificação fiscal ... (doravante Requerentes), na qualidade de Gerentes revertidos da Sociedade C..., LDA, contribuinte fiscal ..., vêm requerer a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime da Arbitragem em Matéria Tributária doravante RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, para apreciar a legalidade da decisão de indeferimento de reclamação graciosa, datada de 31-07-2022, e dos atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) respetivamente n.ºs ...2021..., ...2021... e ...2022..., no valor total de 526.118,22 (quinhentos e vinte e seis mil cento e dezoito euros e vinte e dois cêntimos), relativos ao período de tributação de 2018, 2019 e 2020, enquanto objeto daquela reclamação graciosa.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído, em 11-01-2024.
A Autoridade Tributária foi notificada, em 11-01-2024, para responder e, por requerimento de 25-01-2024, veio informar do despacho de 17-01-2024, da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, que “revogara” parcialmente as liquidações objeto do pedido.
Notificada por despacho arbitral, de 29-01-2024, para se pronunciar quanto à anulação administrativa e as consequências processuais daí resultantes, a Requerente, por requerimento de 09-02-2024, veio declarar e requerer o seguinte:
“-Aceitar a Manutenção do indeferimento relativamente ao ato tributário de liquidação oficiosa de IRC de 2018, n.º 2020..., da qual resultou um valor a pagar de € 175.706,99, bem como de juros compensatórios emitidos ao sujeito passivo com referência àquele exercício.
-A Anulação da decisão e consequentemente anulação dos atos tributários de liquidações oficiosas de IRC de 2019 e 2020, com os n.ºs 2020 ... e 2022..., dos quais tinham resultado os montantes totais a pagar de € 175.066,47 e de € 175.344,76, respetivamente.
- Por forma a agilizar o processo, vêm também pelo presente solicitar que seja emitida e disponibilizada a guia de pagamento para os montantes em dívida em relação à liquidação oficiosa de IRC de 2018.”
Face às declarações que antecedem, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, de 19-02-2024, nos termos abaixo:
“Notifique-se os Requerentes para, no prazo de dez dias, esclarecerem o sentido do seu requerimento de 9 de Fevereiro de 2024, na parte em que declaram “aceitar a manutenção do indeferimento relativamente ao ato tributário de liquidação oficiosa de IRC de 2018, n.º 2020..., da qual resultou um valor a pagar de € 175.706,99, bem como de juros compensatórios emitidos ao sujeito passivo com referência àquele exercício”.
Dado que a formulação acima transcrita pode prestar-se a equívocos, que há interesse em desfazer antes de qualquer tomada de decisão pelo tribunal, impõe-se remover quaisquer dúvidas de que os Requerentes desistem do pedido, ou seja, não têm interesse em prosseguir com o processo na parte não abrangida pela anulação parcial, desistindo de manter o pedido de anulação da liquidação de IRC relativa ao exercício de 2018.”
Ao que os Requerentes responderam por requerimento, datado de 27-02-2024, o seguinte:
“Em relação à declaração contida no referido requerimento, na qual expressamos a aceitação da manutenção do indeferimento relativo ao ato tributário de liquidação oficiosa de IRC de 2018, n.º 2020..., juntamente com os juros compensatórios associados, gostaríamos de esclarecer que não estamos a desistir do processo. Pelo contrário, estamos a aderir à proposta de decisão apresentada pela Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.
Entendemos que a formulação anteriormente utilizada possa ter sido ambígua e, por isso, gostaríamos de dissipar quaisquer equívocos.
Confirmando o nosso interesse em prosseguir em aderir à decisão proposta supra referida e no âmbito deste processo prosseguir com os trâmites legais, até porque, também se solicita que a AT proceda à emissão das respetivas guias.” (destaques no original)
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A sociedade que deu lugar à reversão contra os ora Requerentes, é uma sociedade por quotas de direito português, a C..., LDA., tendo o número de identificação fiscal..., que teve por atividade principal Serviços de Automação Bancária, Desenvolvimento e Certificação de Produtos, correspondente ao CAE 74900, encontrando-se enquadrada, para efeitos de IRC, no regime geral.
A sociedade C..., LDA faturou, em 2018, à sociedade D..., o valor de € 1.964.000,00 (um milhão novecentos e sessenta e quatro euros), tendo sido posteriormente emitida uma nota de crédito, no montante de € 867.000,00 (oitocentos e sessenta e sete mil euros), perfazendo o remanescente um valor líquido de € 1.097.000,00 (um milhão e noventa e sete mil euros).
Segundo os Requerentes, a Sociedade não teve qualquer atividade nos anos de 2019 e 2020.
No pedido de pronúncia arbitral (PPA), estes peticionam que sejam anulados os atos de liquidação oficiosa de IRC referentes aos períodos de tributação de 2018, 2019 e 2020, por vício de violação de lei resultante de erro nos pressupostos, e que seja aceite a declaração de rendimentos Modelo 22 entregue pelo sujeito passivo para o ano de 2018 e consequentemente, que o valor de IRC a pagar para aquele exercício seja de € 22.569,21, requerendo que a AT proceda à emissão da respetiva guia de pagamento, devendo ainda ser nulas as liquidações de IRC para os períodos de tributação de 2019 e 2020.
O pedido tem por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa instaurada com o n.º ...2023..., deduzida pelos Requerentes contra as liquidações oficiosas de IRC dos exercícios de 2018, 2019 e 2020.
Como resulta do requerimento junto pela AT aos autos, em 25-01-2024, as liquidações objeto do pedido foram parcialmente “revogadas” (liquidações oficiosas de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020), pelo que subsistiu pendente de apreciação a liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 2018.
Refere a AT que, confrontada a parca informação contabilística disponibilizada pelos Requerentes com a que consta das declarações da IES, bem como das Modelo 22, submetidas pela sociedade “C... LDA” e consideradas como não liquidáveis pela AT, foram detetadas diferenças a apontar em 2018 (ao contrário do que aconteceu em relação aos períodos tributários de 2019 e 2020).
Na sequência do despacho da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, de 17-012024, que procedeu à dita “revogação” das liquidações oficiosas de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, recorda-se que os Requerentes declararam a coberto de requerimento, de 09-02-2024:
“-Aceitar a Manutenção do indeferimento relativamente ao ato tributário de liquidação oficiosa de IRC de 2018, n.º 2020..., da qual resultou um valor a pagar de € 175.706,99, bem como de juros compensatórios emitidos ao sujeito passivo com referência àquele exercício.
-A Anulação da decisão e consequentemente anulação dos atos tributários de liquidações oficiosas de IRC de 2019 e 2020, com os n.ºs 2020... e 2022..., dos quais tinham resultado os montantes totais a pagar de € 175.066,47 e de € 175.344,76, respetivamente.
- Por forma a agilizar o processo, vêm também pelo presente solicitar que seja emitida e disponibilizada a guia de pagamento para os montantes em dívida em relação à liquidação oficiosa de IRC de 2018.” (destaques no original)
Cabe analisar os efeitos processuais das referidas declarações.
No que concerne às liquidações oficiosas de IRC de 2019 e 2020, importa preliminarmente referir que o Código de Procedimento Administrativo (doravante CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, em vigor, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória.
De acordo com o seu artigo 165.º, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, distinguindo-se da anulação administrativa como “ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”.
A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1, do CPA), sendo que a anulação administrativa, por sua vez, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis possui, de uma maneira geral, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3, do CPA).
No caso em análise, e não obstante a utilização da terminologia anteriormente aplicável, a AT entendeu “revogar” o ato tributário com fundamento em considerações de legalidade e não de mera discricionariedade, praticando um ato de verdadeira anulação administrativa.
Por sua vez, não está vedado à Administração operar a anulação administrativa do ato impugnado já na pendência do processo arbitral.
O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.
Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.
Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária informou a prática do ato anulatório ainda dentro do prazo para apresentação de Resposta, e ainda antes de qualquer novo desenvolvimento processual, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.
In casu, a Administração limitou-se a anular o ato impugnado sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica.
A questão que cabe de seguida analisar prende-se com a aceitação, por parte dos Requerentes, do “[i]ndeferimento relativamente ao ato tributário de liquidação oficiosa de IRC de 2018, n.º 2020 8310007843, da qual resultou um valor a pagar de € 175.706,99, bem como de juros compensatórios emitidos ao sujeito passivo com referência àquele exercício.”
Ora, considera este Tribunal Arbitral estar-se aqui perante uma verdadeira e própria desistência do pedido.
Se as palavras imprecisas, também do ponto de vista técnico-jurídico, formuladas pelos Requerentes, e alguma ambivalência com que se expressam, poderiam suscitar dúvidas quanto às suas reais intenções, a verdade é que, numa análise mais fina, verificamos que, quanto ao IRC do ano de 2018, os Requerentes estão implicitamente a reconhecer que a sua própria pretensão é infundada, com os efeitos processuais daí decorrentes.
É a conclusão a retirar da aceitação plena, e sem reservas, da anulação parcial das liquidações referentes a 2019 e 2020 e da manutenção da liquidação referente a 2018, que só pode corresponder a uma desistência de pedido como causa de extinção da instância, para os efeitos dos artigos 277.º, alínea d), 283.º, n.º 1 e 290.º, n.º 1 "in fine" do Código de Processo Civil (CPC).
A aceitação da liquidação referente a 2018, a única matéria que subsistiria após as anulações das liquidações de 2019 e 2020, é de tal modo incondicional que, no Requerimento de 9/2/2024, os Requerentes referem que “Por forma a agilizar o processo, vêm também pelo presente solicitar que seja emitida e disponibilizada a guia de pagamento para os montantes em dívida em relação à liquidação oficiosa de IRC de 2018”; e concluem o Requerimento de 27/2/2024 com a menção de que “também se solicita que a AT proceda à emissão das respetivas guias”.
A insistência dos Requerentes no pagamento total, e célere, da quantia remanescente após as anulações das liquidações de 2019 e 2020 reforça a conclusão de que se trata, para todos os efeitos, de uma verdadeira e própria desistência do pedido, como acima foi dito.
III – Decisão
Considerando as posições assumidas por ambas as partes, a anulação parcial das liquidações em crise, e o disposto nos artigos 277.º, alínea d), 283.º, n.º 1 e 290.º, n.º 1 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, decide este Tribunal Arbitral coletivo o seguinte:
-
Homologar a desistência do pedido apresentado pelos Requerentes em relação à decisão de indeferimento que recaiu sobre o pedido de reclamação graciosa deduzida contra a liquidação de IRC do exercício de 2018, no valor de € 175.706,99;
-
Extinguir a instância, e o direito que os Requerentes pretendiam fazer valer;
-
Condenar os Requerentes e a Requerida nas custas do processo, em proporção dos respetivos decaimentos em relação às suas posições no momento da apresentação do pedido de pronúncia.
IV – Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 526.118,22 (quinhentos e vinte e seis mil cento e dezoito euros e vinte e dois cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada.
V – Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem, nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, em € 8.262,00, repartidos da seguinte forma: € 2.759,51 a cargo dos Requerentes (33,4%), e € 5.502,49 a cargo da Requerida (66,6%).
Lisboa, 13 de maio de 2024
O Árbitro Presidente
(Fernando Araújo)
A Árbitra Vogal
(Alexandra Iglésias-Relatora)
O Árbitro Vogal
(Jorge Bacelar Gouveia)
Notifique-se.
Texto elaborado em computador.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990