Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 648/2023-T
Data da decisão: 2024-05-20  IRS  
Valor do pedido: € 78.316,00
Tema: IRS - Requisitos para aplicação do regime dos Residentes Não Habituais
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SUMÁRIO

I – Estando reunidos os requisitos legais, previstos no nº 8 do artigo 16º do CIRS deve ser aplicado aos sujeitos passivos o regime dos Residentes Não Habituais, independentemente da data em que foi solicitada, formalmente, a adesão a este regime.

II – Não resulta da lei que o registo do sujeito passivo como “residente não habitual”, seja um requisito substantivo para a aplicação desse regime em cada ano fiscal.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Carla Castelo Trindade, António Alberto Franco e João Marques Pinto, designados, em 03.11.2023, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 21.11.2023, acordam no seguinte:

 

1.1. Relatório

 

A..., NIF..., e B..., NIF ..., residentes na ..., ..., ...-... Lisboa, doravante identificados apenas por “Requerentes”, vieram, no dia 13.09.2023, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º e no artigo 10º do Decreto-Lei 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante identificado apenas pelas iniciais RJAT), requerer a constituição de TRIBUNAL ARBITRAL com designação dos Árbitros pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, para Pronúncia Arbitral contra o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa a que foi dado o nº ...2023..., e que tinha sido deduzida contra os actos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares com os nºs 2022... e 2022..., relativos ao ano de 2021, no montante global de € 78.316,00 (setenta e oito mil trezentos e dezasseis euros).

Os Requerentes vieram solicitar ao Tribunal Arbitral que julgue o pedido procedente e, em concreto, que:

  1. Seja declarada ilegal e anulada a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o nº ...2023...;
  2. Sejam anuladas as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares com os nºs 2022... e 2022...;
  3.  Seja ordenado o reembolso do montante de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares indevidamente pago;
  4.  Seja ordenado o pagamento dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos doa artigos 43º nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT).

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, quando for caso, identificada também pelas iniciais AT).

Os Requerentes optaram por não designar Árbitros.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 14.09.2023 e notificado à Requerida na mesma data.

Em 03.11.2023, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 7 do Artigo 11º do RJAT.

Desta forma, em face do disposto no nº 8 do artigo 11º do RJAT, decorrido o prazo estabelecido no nº 11, do mesmo artigo 11º, e sem que as Partes se pronunciassem, o Tribunal ficou devida e formalmente constituído em 21.11.2023, tendo, no dia 23.11.2023, sido emitido despacho a notificar a Requerida para apresentar resposta ao pedido formulado pela Requerente e juntar aos autos o processo administrativo.

A AT apresentou a sua resposta em 09.01.2024, invocando matéria de excepção e defendendo-se também por impugnação, requerendo a improcedência do pedido formulado pela Requerente, com as devidas e legais consequências.

Os Requerentes responderam à matéria de excepção invocada pela Requerida no dia 25.01.2024.

Em 29.02.2024, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:

DESPACHO

  1. Uma vez que não existe prova testemunhal que tenha de ser produzida, uma vez que os Requerentes já exerceram o contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida e uma vez que a matéria de excepção poderá ser apreciada na decisão final, dispensa-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT.
  2. No prazo de 15 (quinze) dias deverão os Requerentes proceder ao depósito da taxa arbitral subsequente e à junção aos autos do respectivo comprovativo.
  3. 3. A decisão final será proferida até ao dia 21 de Maio de 2024.

Notifique-se.

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4º e 10º nº 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março) e estão devida e correctamente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

O pedido de suspensão da instância e a excepção de litispendência serão apreciados em conjunto após a fixação da matéria de facto.

 

  1. Factos considerados provados

 

1º - Os Requerentes são residentes em Portugal, para efeitos fiscais, desde o ano de 2018.

2º - Em 30 de Junho de 2022, os Requerentes entregaram a sua declaração de IRS referente ao ano de 2021.

3º - Dessa declaração resultou uma liquidação de IRS, com o nº 2022..., no valor de € 127.433,91.

4º - Em 22 de Julho de 2022, os Requerentes entregaram uma declaração de substituição da declaração inicialmente entregue, a que foi dado o nº de ...-... -....

5º - Dessa declaração resultou uma liquidação de IRS, que recebeu o nº 2022... no valor de € 78.316,00, valor que foi pago pelos Requerentes.

- A diferença entre a liquidação decorrente da entrega inicial e da entrega da declaração de substituição, no valor de € 49.117,91, foi objecto de anulação.

- Do acto de liquidação no valor de € 78.316,00, decorrente da entrega da declaração de substituição, foi deduzida reclamação graciosa, a que foi dado o nº ...2023... .

- O pedido constante dessa reclamação graciosa foi objecto de indeferimento, notificado aos Requerentes em 31.07.2023.

- Os Requerentes entregaram os seguintes pedidos de adesão ao regime dos Residentes Não Habituais (RNH):

  1. O Requerente A... apresentou um primeiro pedido em 28.09.2019, indeferido por despacho do Director de Serviços de Registo de Contribuintes (DSRC) datado de 17.08.2020;
  2. O mesmo Requerente apresentou um segundo pedido em 27.09.2022, igualmente indeferido por despacho do Director de Serviços de Registo de Contribuintes (DSRC) datado de 14.11.2022;
  3.  A Requerente B... apresentou um pedido em 27.09.2022 igualmente indeferido por despacho do Director de Serviços de Registo de Contribuintes (DSRC) datado de 14.11.2022.

10º - Destes actos de indeferimento, os Requerentes intentaram, junto do Tribunal Tributário, uma acção administrativa de impugnação, a que foi atribuído o número .../23...BELRS.

 

1.4. Fundamentação da decisão sobre matéria de facto

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelos Requerentes e no que consta do processo administrativo anexado pela Requerida.

 

2. Matéria de Direito

 

Fundamentos das posições das Partes

De uma forma resumida, as Partes vêm sustentar as respectivas posições com os seguintes argumentos:

 

2.1. Posição dos Requerentes

Os Requerentes sustentam que os actos de liquidação em crise são ilegais, por violarem as previsões constantes do artigo 16º nºs 8 e 9 do Código do IRS (CIRS).

De facto, de acordo com o entendimento dos Requerentes, estas duas normas indicam quem são os sujeitos passivos qualificados para aderir ao regime dos RNH (nº 8) e por quanto tempo podem beneficiar desse regime (nº 9).

A lei, em nenhum momento, determina que a violação/atraso no cumprimento desse dever, impõe a caducidade do direito dos sujeitos passivos beneficiarem do regime dos RNH, na medida em que o pedido de adesão é um dever meramente acessório, estabelecido por razões “meramente práticas”, como seja, por exemplo, a organização do cadastro.

Pelo que, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, o regime fiscal dos RNH e correspondentes benefícios, não poderiam caducar pelo mero incumprimento de uma formalidade acessória, incumprimento esse que seria, no limite, susceptível de aplicação de uma coima.

Ora, podendo a Requerida comprovar, no seu sistema de registo de contribuintes, que os Requerentes não eram residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, antes de 2018 e apenas se tornaram aqui residentes nesse mesmo ano, é inequívoco que os pressupostos materiais previstos no artigo 16º nº 8 do CIRS estão devidamente preenchidos.

Assim sendo, a liquidação objecto de impugnação no pedido de pronúncia arbitral, deve ser anulada e o imposto indevidamente pago, restituído, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

 

2. 2. Posição da Requerida

Na sua resposta ao pedido de pronúncia arbitral, a veio defender-se por excepção e por impugnação.

  1. Defesa por excepção – Litispendência e pedido de suspensão da instância

Como a AT referiu na sua resposta, os Requerentes apresentaram pedidos de adesão ao regime dos RNH, tendo todos esses pedidos, dois do Requerente A... e um da Requerente B..., sido objecto de indeferimento pelo DSRC, o que levou os Requerentes a interpor, junto do Tribunal Tributário de Lisboa (Proc. .../23...BELRS), uma acção administrativa de impugnação desses actos de indeferimento.

Entende a Requerida que, confrontando o presente pedido de pronúncia arbitral e o pedido formulado, na acção administrativa de impugnação dos actos de indeferimento dos pedidos de adesão ao regime dos RNH (processo nº .../23...BELRS), constata-se que as partes são as mesmas, quer no que se refere aos Autores (ora Requerentes), quer à Requerida, e que o pedido é totalmente idêntico, procedendo a pretensão deduzida nas duas acções do mesmo facto jurídico.

Invoca ainda a Requerida que a jurisprudência, conforme Acórdão do STA de 22.02.2018 (Proc. 0874/15), tem tido o entendimento que não deve obstar à verificação de uma situação de litispendência o facto de uma acção ser formalmente dirigida ao acto de indeferimento da reclamação graciosa e a outra ao acto de liquidação do imposto.

Desta forma, de acordo com o disposto nos artigos 580º e 591º do CPC, verifica-se uma situação de litispendência, que deverá determinar a absolvição da Requerida por extinção da instância nos presentes autos, pelo facto deste pedido de pronúncia arbitral ter sido instaurado em segundo lugar, e evitando-se, dessa forma, que este Tribunal possa contradizer uma decisão anterior.

Defendeu ainda a AT que a apreciação da legalidade do despacho que indeferiu os pedidos dos Requerentes deve ser prévia à análise das liquidações cuja anulação fundamenta o pedido de pronúncia junto deste Tribunal Arbitral, pelo que, nos termos do nº 2 do artigo 272º do Código do Processo Civil (CPC) ex vi artigo 29º nº 1 alínea e) do RJAT, deve determinar-se a suspensão desta instância até que o Tribunal Tributário se pronuncie sobre o pedido perante ele formulado pelos ora Requerentes.

 

2.2.2. Defesa por Impugnação

Na sua defesa por impugnação, a Requerida vem considerar que a previsão do nº 10 do artigo 16º do Código do IRS não pode, de forma alguma, ser objecto de desconsideração, uma vez que tal lhe retiraria qualquer sentido, tornando-a desnecessária e sem qualquer efeito legal.

Assim, entende a Requerida que para que o estatuto de RNH seja concedido e os respectivos benefícios fiscais aplicados, o sujeito passivo deve solicitar a sua inscrição dentro do prazo legalmente fixado.

Até porque este entendimento é sufragado pelos princípios legais que regem os benefícios fiscais.

Ora, o procedimento de reconhecimento administrativo previsto no artigo 16º do CIRS deve ser considerado essencial e indispensável para a aplicação dos benefícios fiscais associados ao regime dos RNH, o que significa que esses pressupostos, têm de se verificar, nos termos legalmente previstos, para que o sujeito passivo possa usufruir dos correspondentes benefícios fiscais.

Ou seja, a aplicação dos diferentes benefícios fiscais resultantes do regime dos RNH só pode concretizar-se, caso o sujeito passivo tenha obtido, a seu pedido, o reconhecimento administrativo da verificação prévia da aplicação dos pressupostos legalmente previstos, e que são (i) que a pessoa singular se tornou fiscalmente residente em território português, e (ii) que essa pessoa singular não foi residente neste território em qualquer dos cinco anos anteriores ao do ano de entrega do pedido.

Assim, não tendo sido apresentado qualquer pedido no anterior ao que respeitam as liquidações em crise, ou até 31 de Março desse próprio ano, não podem os Requerentes beneficiar da aplicação do regime dos RNH, pelo que devem ser mantidos os actos objecto de impugnação.

 

2.3. Resposta dos Requerentes à excepção

Quanto ao pedido de suspensão da instância e à invocação de uma situação de litispendência, entenderam os Requerentes que não estavam preenchidos os pressupostos invocados pela Requerida.

Na verdade, consideram os Requerentes que no pedido de pronúncia arbitral e na acção de impugnação dos actos de indeferimento do pedido de adesão ao RNH, se está perante dois pedidos (e causas de pedir) totalmente distintos e autónomos.

Um dos pedidos, aquele que foi submetido na acção administrativa que corre os seus termos junto do Tribunal Tributário de Lisboa, refere-se ao pedido de qualificação dos Requerentes como Residentes Não Habituais, ou seja, se estão, ou não, verificados os pressupostos da adesão a esse regime.

Por seu lado, o pedido formulado perante este Tribunal Arbitral, visa obter a declaração de ilegalidade das liquidações de IRS relativas ao ano de 2021 e de anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa que manteve essas liquidações na ordem jurídica.

Dicotomia de pedidos esta que, como invocam os Requerentes, tem sido o entendimento expresso pelo Tribunal Arbitral em muitas decisões tomadas sobre a mesma temática, de entre elas sendo de salientar as que foram proferidas no âmbito dos Processos nº 188/2020-T, 815/2021-T ou 796/2022-T.

Não se justifica, desta forma, o pedido de suspensão da instância formulado pela Requerida, dada a total distinção entre os pedidos formulados pelos Requerentes.

De igual forma, não tem sustentação jurídica a invocação de uma situação de litispendência pois tal só ocorreria se, nas acções em confronto, interviessem as mesmas partes, sob a mesma qualidade jurídica, com o propósito de obter, nessas acções, o mesmo efeito jurídico e que esse efeito tivesse por causa o mesmo facto jurídico.

Consideram os Requerentes que, tirando o facto de nas duas acções haver intervenção das mesmas partes sob a mesma qualidade jurídica, o “efeito jurídico pretendido e o facto jurídico que dá origem a esse facto são totalmente distintos, ....” pelo que a excepção invocada pela Requerida deve ser julgada improcedente.

 

  1. Apreciação das questões

 

3.1. Da excepção invocada pela Requerida e do pedido de suspensão da instância

 

Como referido no ponto 2.2. supra, a Requerida defendeu que estando em curso uma acção que impugnou o indeferimento do pedido de adesão dos Requerentes ao regime dos RNH, estão preenchidos os requisitos previstos para a verificação da excepção dilatória de litispendência.

Esta posição foi já invocada pela Requerida noutros processos interpostos junto do CAAD, tendo este Tribunal, por exemplo, no Processo 815/2022-T, assumido a seguinte posição:

Para a doutrina há litispendência:

 “[q]uando se instaura um processo, estando pendente, no mesmo ou em tribunal diferente, outro processo entre os mesmos sujeitos, tendo o mesmo objeto, fundado na mesma causa de pedir. A litispendência, como exceção dilatória, pressupõe assim a repetição da ação em dois processos diferentes.

Para sabermos se há ou não repetição da ação, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem a ação) fixado e desenvolvido no artigo 498.º, mas também à diretriz substancia traçada no n.º 2 do artigo 497.º, onde se afirma que a exceção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”

A litispendência tem, assim, subjacente a ideia da proibição da repetição e (da proibição) de contradição entre decisões judiciais, visa, por conseguinte, evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, circunstância que contenderia com a força do caso julgado.

        O artigo 581.º, n.º 1 do CPC exige, cumulativamente, para a verificação da exceção dilatória de litispendência: a identidade de sujeitos, a identidade do pedido e a identidade da causa de pedir.

Vejamos, então, se se verifica, em particular, a identidade da causa de pedir e do pedido formulado em cada um dos processos.

O pedido arbitral tem por objeto a liquidação de IRS do ano de 2020 e não o ato de indeferimento da inscrição dos Requerentes como “residentes não habituais”. Ou, dito de outro modo, o que está em causa, no presente processo, é determinar se a liquidação é ilegal e não qualquer outra decisão como a Requerida defende.

Assim, se o pedido – principal – dos Requerentes consiste na declaração de ilegalidade (parcial) da liquidação de IRS do ano de 2020 e na ação anterior os Requerentes peticionam a anulação do ato de inscrição como “residentes não habituais”, o pedido não é idêntico.

Não se ignora, no entanto, que existe uma relação entre os pedidos, contudo, à correlação entre os dois (pedidos) subjaz um juízo relativamente ao mérito do pedido, a natureza prejudicial do registo como “residentes não habituais” para a aplicação, anual, na liquidação de IRS.

Sucede que, como infra se demonstrará, não resulta da lei, que o registo do sujeito passivo como “residente não habitual”, seja um requisito substantivo para a aplicação do regime em cada ano fiscal.

Se o registo como “residentes não habituais” – objeto da ação administrativa especial n.º 62/21.7BELRS não é prejudicial relativamente à aplicação do regime de “residente não habitual” em cada ano fiscal (ano de 2020, no presente processo arbitral) não existe identidade quanto ao pedido e à causa de pedir, nem interdependência que obste à apreciação do mérito deste processo arbitral.

Conclui-se, assim, pela improcedência da exceção dilatória de litispendência, como também pela inexistência de causa prejudicial que determine a obrigação de suspensão da instância.

A situação de facto, a questão da litispendência suscitada perante este Tribunal e a posição assumida pelas duas Partes, são, em tudo, semelhantes à da decisão parcialmente transcrita nos parágrafos anteriores.

A posição deste Tribunal é de total concordância com a argumentação constante do Acórdão acima transcrito, nomeadamente com a conclusão vertida no seu último parágrafo, pelo que vem expressamente determinar que:

  1.  A excepção de litispendência invocada pela Requerida não deve proceder;
  2. A causa prejudicial que poderia determinar a suspensão da instância não se verifica.

 

  1. Dos pedidos efectuados pelos Requerentes

 

Julgada improcedente a excepção invocada pela Requerida, cabe ao Tribunal apreciar as questões de fundo suscitadas pelos Requerentes.

Dessa forma, considera o Tribunal que essas questões são, basicamente, as seguintes:

  1. Se a inscrição no registo dos RNH tem uma natureza constitutiva do direito a ser tributado segundo este regime, ou se, pelo contrário, essa inscrição tem um efeito meramente declarativo;
  2. Se os Requerentes têm direito ao reembolso do imposto pago;
  3. Se os Requerentes têm direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

A questão em apreciação tem sido analisada e objecto de apreciação em diversas decisões arbitrais, como, por exemplo, nos Acórdãos proferidos nos Processos 188/2020-T, 815/2021-T e 664/2022-T, que devem aqui ser tidos em consideração a fim de se garantir uma interpretação e aplicação uniformes do direito, tal qual resulta do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.

Veja-se, a este propósito, a análise feita a esta questão no primeiro dos citados Acórdãos:

A questão fundamental em causa no presente processo arbitral prende-se com a aferição da legalidade dos actos tributários que constituem o seu objecto, à luz dos fundamentos que lhe servem de suporte.

Concretizando, em causa está apurar se aos rendimentos obtidos pelo Requerente nos anos de 2014 e 2015, seria aplicável o regime de tributação dos residentes não habituais. 

O regime fiscal do residente não habitual, em sede de IRS, foi introduzido no ordenamento jurídico português pelos artigos 23º a 25º do Decreto-Lei n.º 249/2009 de 23 de setembro, que aprovou o Código Fiscal do Investimento. Posteriormente, através da Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º e 81.º do Código do IRS.

Dispunha o artigo 16.º do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”

        E previa, o artigo 72.º, n.º 6 do Código do IRS, com a redacção em vigor à data dos factos, o seguinte: 

“6 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %”.

Sustenta o Requerente que o regime do residente não habitual se trata de um benefício automático que opera quando as meras condições objectivas de residência e de tempo de permanência no exterior, imediatamente reconhecíveis pela AT, estão preenchidas, pelo que não se pode denegar esse estatuto com base no incumprimento do prazo para requerer a inscrição como residente não habitual.

Mais sustenta a Requerente que aquando da emissão dos actos de liquidação, a AT já tinha conhecimento de que o Requerente queria exercer a faculdade de tributação como residente não habitual, para os anos de 2014 e 2015 e, portanto, não pode invocar o seu desconhecimento como fundamento para se opor à aplicação do estatuto nesses anos.

Por sua vez, entende a Requerida que o regime do residente não habitual é um benefício fiscal sujeito a reconhecimento, tratando-se, portanto, de um direito subjectivo, porquanto o seu gozo se encontra na exclusiva disposição e impulso do sujeito passivo.

Para a Requerida, o prazo fixado no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a inscrição como residente não habitual é um prazo peremptório para o exercício do direito, o qual, não sendo exercido atempadamente determina a caducidade do mesmo.

Conclui, assim, a Requerida que “não tendo [o Requerente] requerido a sua inscrição como residente não habitual, tempestivamente, no prazo legalmente fixado para tal, essa opção tardia nunca pode produzir efeitos quanto ao período de tributação de 2012, nem sequer quanto aos períodos de tributação de 2013 a 2021”. 

Vejamos:

Nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do CIRS que acima transcrevemos, “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”.

Mais referido o n.º 8 do referido normativo que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Considerando o quadro legal à data dos factos, a tributação de acordo com o regime do residente não habitual, depende do preenchimento de dois pressupostos cumulativos:

a)      Que se torne fiscalmente residente em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do Código do IRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual;

b)      Que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos 5 anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual.

Resulta, portanto, que o benefício do regime dos residentes não habituais depende apenas do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, e da inscrição como residente em território português, e não da inscrição como residente não habitual.

A inscrição como residente não habitual prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS trata-se de uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito.

Como resulta do ponto 17 dos factos provados, o Requerente apenas em 11-07-2014, entregou o pedido de inscrição como residente não habitual, entrega essa que não ocorreu, no prazo estipulado no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, pelo que, como sustenta a Requerida, lhe estaria vedada a possibilidade de beneficiar daquele regime.

Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.

Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.

*

Por seu lado, no Processo 664/2022-T, o Tribunal concluiu da seguinte forma:

Ora, contrariamente ao entendimento sufragado pela AT, o pedido de inscrição como RNH não tem efeitos constitutivos do direito a ser considerado como RNH e a beneficiar do respetivo regime fiscal, consubstanciando-se como uma mera formalidade para operar o benefício fiscal. Com efeito, é nosso entendimento que a inscrição como residente não habitual não é constitutiva do direito à tributação como residente não habitual, revestindo mera natureza declarativa.

 

Sendo certo que o Requerente A... apresentou o primeiro pedido em 17.08.2020, pedido esse repetido em 14.11.2022 (dado o indeferimento do 1º pedido) e que a Requerente B... entregou o seu pedido em 14.11.2022, o facto de estes pedidos não terem sido efectuados até à data em que mudaram a sua residência fiscal para Portugal (ou até 31 de Março do ano subsequente), comprovadamente no ano de 2018, não os deve impedir de beneficiar do regime dos RNH, tal qual resulta dos processos arbitrais anteriormente citados.

Assim sendo, entende o Tribunal que se encontram reunidos os requisitos legais, previstos no nº 8 do artigo 16º do CIRS para que aos Requerentes seja aplicado o regime dos RNH e que sejam tributados como tal, ou seja, em conformidade com o nº 9 do citado artigo 16º do CIRS e independentemente da data em que foi solicitada a adesão a este regime.

Deve, pois, concluir-se que, estando verificados os pressupostos materiais da sua aplicação, os Requerentes devem poder beneficiar, de pleno direito, do regime dos RNH a contar do ano em que mudaram a sua residência fiscal para Portugal – 2018 - e durante o período de 10 anos legalmente previsto.

Pelo exposto, julga-se procedente o pedido formulado pelos Requerentes, impondo-se a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, bem como a anulação parcial dos actos de liquidação aqui contestados na concreta medida em que não consideraram a qualidade de RNH dos Requerentes, remetendo-se para execução de julgado o concreto montante a reembolsar.

 

3.3. Do pedido de juros indemnizatórios

 

O artigo 24.º, n.º 5 do RJAT determina que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no âmbito de um processo arbitral.

O direito a juros indemnizatórios está regulado no artigo 43.º da LGT que determina o seguinte:

 

“Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas”.

 

Tendo ficado provado nos presentes autos que o erro na liquidação é imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, pois foi esta que não aceitou a aplicação aos Requerentes do regime dos RNH.

Como consequência desse erro, os Requerentes foram objecto de uma liquidação de IRS que se mostrou não ser devido.

Determina o artigo 100.º da Lei Geral Tributária, aplicável por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que “... a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

Nos presentes autos conclui-se que foi liquidado aos Requerentes imposto em excesso, em resultado da não aplicação do regime dos RNH, razão pela qual são devidos juros indemnizatórios, que devem ser contados, a partir da data em que foi efectuado o pagamento, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, remetendo-se para execução de julgado o apuramento do concreto montante a pagar pela Requerida.

 

4. Decisão

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente a excepção dilatória de litispendência invocada pela Requerida;
  2. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, e em consequência, declarada ilegal e anular a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o nº ...2023...;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, e em consequência, anular parcialmente as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares com os nºs 2022... e 2022..., nos termos acima descritos;
  4.  Ordenar o reembolso do montante de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares indevidamente pago pelos Requerentes, a apurar em execução de julgado;
  5.  Ordenar o pagamento, pela Requerida, dos juros indemnizatórios que se mostrem devidos nos termos do artigo 43º nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT), a apurar em execução de julgado;
  6. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

5. Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 78.316,00 (setenta e oito mil trezentos e dezasseis euros), que não foi contestado pela Requerida, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

6. Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2 448.00, que fica a cargo da Requerida.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 20 de Maio de 2024

 

O Tribunal Arbitral

 

 

Prof.ª Doutora Carla Castelo Trindade (Presidente)

 

 

Dr. António Alberto Franco (Vogal)

 

 

Dr. João Marques Pinto (Vogal e relator)