Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 378/2023-T
Data da decisão: 2024-05-30  IRC  
Valor do pedido: € 441.691,21
Tema: IRC - Interpretação declarativa lata do antigo art. 30.º, n.º 5, do CFI no sentido de o conceito de aplicações financeiras “detidas” pelo contribuinte incluir o património não apenas da sua “propriedade” como outrossim o que seja “detido” ou “controlado” através de estrutura societária.
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CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º: 378/2023-T

Tema: Interpretação declarativa lata do antigo art. 30.º, n.º 5, do CFI no sentido de o conceito de aplicações financeiras “detidas” pelo contribuinte incluir o património não apenas da sua “propriedade” como outrossim o que seja “detido” ou “controlado” através de estrutura societária.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

     Em sede de IRC, as aplicações financeiras reinvestidas pelo contribuinte no património por si “detido” pode beneficiar da isenção prevista no antigo art. 30º, nº 5, do CFI – Código Fiscal de Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 162/2014, de 31 de outubro, com alterações posteriores, uma vez que aquele conceito deve ser interpretado num sentido declarativo lato, não havendo qualquer lacuna, quando se refere a bens que sejam “possuídos” ou “controlados” através de empresas, não sendo necessário que se trate de bens na sua detenção no sentido limitativo da sua estrita “propriedade”.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha (árbitro-presidente), Jorge Bacelar Gouveia (árbitro relator) e Jónatas Machado (árbitro vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 31 de julho de 2023, acordam no seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO

 

1. A A..., S. A., sociedade com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, titular do número de pessoa coletiva e de contribuinte ... (adiante também designada por “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbital, tendo por objeto os atos de Liquidação Adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2023..., datado de 11/01/2023, de Demonstração de Acerto de Contas n.º 2023... e de Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios n.º 2023..., referentes a 2019, nos termos dos quais foi apurado um montante de imposto a pagar de € 441.691,21.

 

2. No seu objeto de pedido de pronúncia arbitral, a Requerente referiu a invalidade da liquidação impugnada, solicitando a sua anulação, dado que sempre teria sido mais do que mera “detentora” dos imóveis em questão, assim podendo usufruir dos benefícios fiscais em causa no então art. 30º, nº 5, do CFI – Código Fiscal de Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 162/2024, de 31 de outubro, com alterações posteriores, com o qual poderia beneficiar de IRC na dedução a lucros e reservas reinvestidos naqueles imóveis.  

              Assim seria porque a A..., mesmo após a permuta realizada no ano de 2019, exercera, de forma efetiva, pública e de boa-fé, a posse sobre os mesmos, ao abrigo de um contrato de arrendamento, a que acresce o facto de se manter a exercer nos imóveis a anterior atividade de alojamento local, não podendo deixar de se entender que tal situação se enquadraria, no mínimo, na “ratio legis” do n.º 5 do artigo 30.º do CFI.

              Mais solicitou o reembolso do dinheiro indevidamente pago, com os correspondentes juros indemnizatórios devidos, no valor global de 441.691,21 euros.

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 26 de maio de 2023, e em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a Autoridade Tributária (AT).

 

4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do art. 6.º, n.º 1, e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, o Conselho Deontológico, em 13 de julho de 2023, designou os membros do presente Tribunal Arbitral, que comunicaram, no prazo legalmente estipulado, a aceitação dos respetivos encargos.

 

5. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º n.º 1, al. a) e b), do RJAT e arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

6. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 31 de julho de 2023, com base no disposto nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer na sua qualidade de Requerida.

 

7. A Requerida, chamada a pronunciar-se, sustentou, em 2 de outubro de 2023, a validade de todo o material probatório vertido na ação inspetiva realizada, o qual a requerente não teria logrado contrariar.

 

8. Por outro lado, a Requerida entendeu que, dada a natureza excecional dos benefícios fiscais, estes não seriam suscetíveis de integração analógica, nos termos da LGT, pelo que a situação alegada pela requerente, configurando uma lacuna de isenção de tributação, não seria suscetível de integração analógica.

Ora, foi nisso que a Requerente contestou a posição da Requerente na medida em que esta pretenderia fazer equivaler ao conceito de “propriedade” o conceito de “detenção” ou até de “controlo”, alargando indevidamente a previsão da norma de benefício fiscal em análise.

 

9. Destarte, não haveria lugar ao reembolso de qualquer quantia, muito menos o pagamento de quaisquer juros indemnizatórios peticionados, por nada ter sido indevidamente pago pela Requerente.

 

10. Tendo sido solicitada a produção de prova testemunhal perante o Tribunal Arbitral, em 7 de dezembro de 2023 procedeu-se à inquirição das testemunhas e da parte Requerente:

- Declarações de Parte: B...;

- Testemunhas: C... e D... .

 

11. A jurisdição do Tribunal foi prorrogada até 31 de maio de 2024.

 

 

  1. SANEAMENTO

 

12. O Tribunal foi regularmente constituído em 31 de julho de 2023, em conformidade com o preceituado na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

13. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

14. O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

            Cumpre apreciar e decidir.

 

  1. DOS FACTOS

 

15. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral e dos elementos remetidos aos autos, além da inquirição das testemunhas e da parte Requerente, fixa-se como segue:

 

  1. Factos Provados

 

16. A Requerente A..., S. A., é uma sociedade com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, titular do número de pessoa coletiva e de contribuinte ... .

 

17. Foi destinatária dos seguintes atos da Requerida referentes a 2019:

- da Liquidação Adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2023..., datado de 11/01/2023;

- da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2023...;

- da Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios n.º 2023....

 

18. Na sequência de tais atos, foi apurado como imposto a pagar o valor de € 441.691,21, o que foi pago.

 

            19. A Requerente A... é detentora de 100% do capital social da E..., tendo o mesmo Administrador Único, por essa via exercendo um controlo total sobre a vida e as decisões que são tomadas relativamente à E....

 

20. Os imóveis da praça ... e do Largo ..., aqui em causa, foram construídos pela A... e, desde o ano da sua conclusão (2016) até aos dias de hoje, encontram-se em regime de propriedade total.

 

21. Atualmente, tais imóveis encontram-se arrendados à A..., mediante contratos de arrendamento habitacional com prazo certo celebrados entre esta e a E..., destinados unicamente à exploração de unidades de alojamento local.

 

22. A inquirição das testemunhas, bem como o depoimento de parte, foi apreciada como concludente do ponto de vista da confirmação dos factos considerados provados pelo Tribunal Arbitral.

 

  1. Factos não provados

 

23. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

  1. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

25. Assim sendo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

 

26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.

 

 

  1. DO DIREITO

 

  1. O conceito de “detenção” para efeito de aplicação do antigo nº 5 do art. 30º do Código Fiscal de Investimento

 

27. Quanto ao Direito, o tema fundamental dos autos respeita a saber se o benefício fiscal em apreço pode ter a amplitude de previsão que a Requerente propõe, o que é contestado pela Requerida.

 

28. Na verdade, o art. 30.º, n.º 5, do CFI, dispunha o seguinte (norma que, entretanto, foi revogada): “5. As aplicações relevantes em que seja concretizado o reinvestimento dos lucros retidos devem ser detidas e contabilizadas de acordo com as regras que determinaram a sua elegibilidade, por um período mínimo de cinco anos”.

Tudo está em saber o significado do que se considera ser a detenção das aplicações relevantes, entendendo a Requerente que o conceito é amplo – incluindo a posse, além da propriedade, bem como o controlo económico societário, ao passo que a Requerida limita o seu alcance às aplicações feitas por entidades “proprietárias”.

 

29. Quer parecer-nos que este tema não pode deixar de ser resolvido pelo princípio da prevalência da substância sobre a forma na revelação das manifestações de riqueza que sejam relevantes.

Ao invés do que pretende a Requerida, não se trata de qualquer lacuna considerando que a situação económica sub iudice pode ser incluída numa interpretação mais ampla da letra daquele preceito legal, assim se alcançando a sua ratio legis.

Ora, a lacuna seria coisa diversa: a consideração de uma situação que não estivesse abrangida pela norma criada pelo legislador fiscal, embora do mesmo modo merecendo um tratamento jurídico-fiscal, e não sendo uma situação extrajurídica.

 

30. O certo é que, daquilo que se percebe da factualidade produzida, as aplicações financeiras são o resultado de reinvestimentos feitos em imóveis sempre detidos ou controlados pelo sujeito passivo, que é o acionista das entidades a quem o imóvel em causa foi arrendado, sendo até essa a entidade que procedeu ao pagamento da sua renda.

À mesma conclusão se chega observando a intervenção acionista da Requerente, que controla, na maior parte dos casos a 100%, o capital social das outras sociedades mencionadas. 

 

31. Não se julga que seja adequado não avaliar a materialidade económica subjacente, até porque é isso que se percebe ter fundado a atribuição deste benefício fiscal: ajudar ao desenvolvimento da empresa, não importando tanto as formas jurídicas usados, desde que a atividade económica se posicionando no âmbito do mesmo contribuinte, reforçando o seu negócio.

 

32. Além do mais, é exatamente nesse caminho para que apontam as regras da Metodologia da Interpretação no Direito Fiscal, ao ler-se no art. 11º, nº 3, da LGT que se deve atender à situação económica inerente aos factos tributários: “3 – Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários”.

Quer isto dizer que o legislador fiscal dá a orientação geral da prevalência da substância sobre a forma, o que se afigura especialmente relevante em matéria de benefícios fiscais.

 

 

  1. A questão da intervenção prejudicial do TJUE

 

 

33. Da parte da Requerente, suscitou-se a necessidade da intervenção do TJUE, sendo certo que assim seria de lhe perguntar acerca do significado de uma norma que teria impacto no Direito Europeu.

 

34. Não se nega esse impacto, pois que os benefícios fiscais são pacificamente considerados como auxílios de Estado, com um regime peculiarmente restritivo no Direito da União Europeia.

 

35. Mas esse motivo não é suficiente para a intervenção prejudicial do TJUE porque ela também se deve fundar no facto de o significado não ser claro, o que se entende não ser o caso, após a explicação que houve por bem realizar, negando-se essa pretensão.

 

 

  1. Juros indemnizatórios

 

36. A Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “…é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, implicando o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

37. Julgando-se procedente o pedido, deve julgar-se procedente o pedido de juros indemnizatórios no valor correspondente ao pagamento indevido realizado pela Requerente.

 

 

 

  1. DECISÃO

 

38. Termos em que o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido da Requerente na parte que respeita à anulação do ato de liquidação em IRC que se consubstanciou no valor de 441.691,21 euros;
  2. Determinar o pagamento de juros indemnizatórios atinentes ao valor indevidamente pago pela Requerente; 
  3. Não proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE;
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

 

39. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 441.691,21 euros, constante na Demonstração de Liquidação de IRC nº 2023..., de 13 de janeiro de 2023, que é o valor do pedido de pronúncia arbitral e que não foi objeto de contestação nesses termos.

 

 

 

  1. CUSTAS

 

40. Calculadas de acordo com o art. 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, fixa-se o valor de € 7.038,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

CAAD, 30 de maio de 2024.

 

A Presidente do Tribunal Arbitral

 

Profª. Doutora Rita Correia da Cunha

(com declaração de voto em anexo)

 

O Árbitro-Relator

 

Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia

 

 

O Árbitro-Vogal

 

 

Prof. Doutor Jónatas Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Apesar de acompanhar globalmente a fundamentação contida na decisão arbitral proferida pela maioria do Coletivo relativamente à questão jurídica central neste processo, entendo que a decisão arbitral peca por não fazer referência às limitações que podem e devem existir quanto à interpretação lata que preconiza relativamente ao conceito de “detenção” de aplicações relevantes incluído no artigo 30.º, n.º 5, do CFI. Acresce que me parece que a parte da decisão arbitral relativa à matéria de facto não reflete a prova testemunhal produzida, cuja análise mereceria, na minha perspetiva, maior atenção.

 

A principal questão de direito a decidir in casu é a de saber se, para efeitos da aplicação do já extinto regime da “dedução por lucros retidos e reinvestidos” (DLRR), que se encontrava regulado, à data dos factos (2019), nos artigos 27.º a 34.º do CFI, a Requerente pode transmitir imóveis utilizados para a obtenção do benefício fiscal do DLRR (as ditas “aplicações relevantes”), para uma subsidiária sua, no período de 5 anos a que aludem os artigos 30.º, n.º 5, e 34.º, alínea b), do CFI?

 

O benefício fiscal da DLRR era descrito no n.º 1 do artigo 29.º do CFI: “Os sujeitos passivos referidos no artigo anterior podem deduzir à coleta do IRC, nos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2014, até 10% dos lucros retidos que sejam reinvestidos em aplicações relevantes nos termos do artigo 30.º, no prazo de dois anos contado a partir do final do período de tributação a que correspondam os lucros retidos”.

 

No artigo 30.º, n.º 5, do CFI, na redação em vigor à data dos factos (2019), podia ler-se: “As aplicações relevantes em que seja concretizado o reinvestimento dos lucros retidos devem ser detidas e contabilizadas de acordo com as regras que determinaram a sua elegibilidade, por um período mínimo de cinco anos.

 

No artigo 34.º, alínea b), do CFI, na redação em vigor à data dos factos (2019), podia ler-se: “O incumprimento do disposto nos n.os 4, 5 ou 6 do artigo 30.º, implica a devolução do montante de imposto que deixou de ser liquidado na parte correspondente aos ativos relativamente aos quais não seja exercida a opção de compra ou que sejam transmitidos antes de decorrido o prazo de cinco anos, o qual é adicionado ao montante de imposto a pagar relativo ao período em que se verifiquem esses factos, acrescido dos correspondentes juros compensatórios majorados em 15 pontos percentuais.”

 

No caso sub judice, a sociedade que adquiriu os imóveis em apreço, e que pretende beneficiar da DLRR (a Requerente), transmitiu os imóveis para uma subsidiária antes de decorrido o prazo de 5 anos referido no artigo 30.º, n.º 5, do CFI. A Requerente defende que, não obstante tal transmissão, nunca deixou de deter os imóveis em apreço para efeitos do artigo 30.º, n.º 5, do CFI. A Requerida recusa a asserção da Requerente de que é ela a proprietária efetiva dos imóveis.

 

A interpretação vertida na decisão arbitral (no sentido de que a Requerente continuou a deter os imóveis, não obstante ter transmitido os mesmos para uma subsidiária), parece ser a que melhor se coaduna com a ratio legis da DLRR, “um regime de incentivos fiscais ao investimento em favor de micro, pequenas e médias empresas nos termos do RGIC” (cf. artigo 27.º do CFI, na redação em vigor à data dos factos). Note-se que esta interpretação é também conforme à letra da lei visto que se trata de um benefício fiscal concedido a “empresas”, ou seja, a unidades económicas que podem ser compostas por várias entidades jurídicas (sociedades) que desenvolvem uma atividade económica e se encontram unidas por vínculos económicos, organizacionais e jurídicos específicos e concretos. O artigo 27.º do CFI não fazia referência a “sociedades”, mas a “empresas”. Assim, não é possível defender que a interpretação subscrita na decisão arbitral não tem um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme exigido pelo artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil (“Não pode (...) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”), ou que está em causa uma interpretação analógica, ou uma interpretação que viola o princípio da legalidade, conforme alegado pela AT Requerida.

 

É também adequada a referência, na decisão arbitral, ao artigo 11.º, n.º 3, da LGT (“Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários”). Esta regra interpretativa que tem sido utilizada pelos Tribunais Superiores para, havendo dúvida fundada sobre se uma norma fiscal recorre (i) a um conceito civilístico, ou a um conceito próprio de outro ramo do direito, ou (ii) a um conceito económico, ou a um conceito específico do direito fiscal, dar relevância a este último (v. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de março de 2003, processo n.º 01721/02; de 28 de maio de 2003, processo n.º 01968/02; de 3 de março de 2004, processo n.º 01774/03; de 24 de março de 2010, processo n.º 01241/09; de 23 de janeiro de 2013, processo n.º 01061/11).

 

Note-se que este princípio interpretativo não permite à AT ignorar ou re-caracterizar as transações dos sujeitos passivos. Para emitir uma liquidação com base numa prática abusiva, a AT tem de lançar mão da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que lhe permite “desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações sem fundamento económico, artificialmente construídas com propósitos essenciais de elisão fiscal”, observado o procedimento estatuído no artigo 63.º do CPPT (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 2925/04.5BELSB, de 30 de setembro de 2020). Note-se também que a cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT não é de aplicação oficiosa por tribunais judiciais e aos tribunais arbitrais (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 1550/15, de 5 de junho de 2019). No caso sub judice, não se trata de re-caracterizar as transações efetuadas pela Requerente, mas apenas de interpretar as normas da DLRR, mais especificamente o artigo 30.º, n.º 5, do CFI.

 

Parece-me que onde a decisão arbitral peca é na conjugação do artigo 30.º, n.º 5, do CFI com outras disposições do DLRR. Por exemplo, o artigo 28.º do CFI dispunha:

 

“Podem beneficiar da DLRR os sujeitos passivos de IRC residentes em território português, bem como os sujeitos passivos não residentes com estabelecimento estável neste território, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, que preencham, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Sejam micro, pequenas e médias empresas, tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003;

b) Disponham de contabilidade regularmente organizada, de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade;

c) O seu lucro tributável não seja determinado por métodos indiretos;

d) Tenham a situação fiscal e contributiva regularizada”.

 

Com certeza que a AT verificou que estes requisitos se encontravam reunidos em relação à Requerente, mas não sabemos relativamente à subsidiária. A interpretação lata, não qualificada, do conceito de “detenção” de aplicações relevantes (para efeitos do artigo 30.º, n.º 5, do CFI) subscrita na decisão arbitral permite, por exemplo, a uma sociedade que cumpre os requisitos do artigo 28.º do CFI transmitir “aplicações relevantes” (in casu, imóveis) para uma subsidiária que não cumpre os ditos requisitos.

 

No caso em apreço, os imóveis em causa foram construídos pela Requerente e explorados pela Requerente como hotéis e alojamento local. A Requerente transmitiu os imóveis em causa para uma subsidiária, que por sua vez arrendou os mesmos à Requerente. No seu depoimento, o administrador da Requerente não avançou uma razão económica específica para a transmissão dos imóveis, salientando que toda a exploração dos imóveis se manteve igual após a transmissão. Dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente resultou que a subsidiária da Requerente tem a forma de fundo (SIC) e que estaria isenta de imposto (IRC) relativamente às rendas pagas pela Requerente. A ser verdade, isto significa que estamos perante um caso de tributação assimétrica, ou “arbitragem fiscal” (tax arbitrage): as rendas pagas pela Requerente são dedutíveis, em sede de IRC, para a Requerente, mas a subsidiária que recebe as rendas não é tributada, em sede de IRC, em relação às mesmas. Isto significa também que (a) se não tivesse transmitido os imóveis para a subsidiária (fundo), a Requerente seria tributada com referência aos proveitos derivados da exploração dos imóveis, e (b) como transmitiu os imóveis para a subsidiária (fundo), a Requerente passou a ser tributada com referência aos proveitos derivados da exploração dos imóveis, deduzindo a tais proveitos o valor das rendas pagas à subsidiária. Este aspeto foi salientado, com pertinência, pela AT Requerida em sede de alegações finais, mas não no Relatório de Inspeção Tributária ou na Resposta que apresentou ao abrigo do artigo 17.º do RJAT. Fica por esclarecer se, objetivamente, a única vantagem decorrente da transmissão de imóveis em causa foi uma vantagem fiscal.

 

Fica também por responder a questão de saber se o benefício fiscal da DLRR poderá ou deverá ser negado quando se apure que a transmissão das “aplicações relevantes” entre sociedades que compõem a mesma “empresa” não foi realizada por razões económicas válidas, ou quando se determine que a mesma teve, como finalidade principal ou uma das

 

finalidades principais, a obtenção de uma vantagem fiscal. Seria essa a intenção do legislador?

 

Rita Correia da Cunha