Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 362/2023-T
Data da decisão: 2024-05-31  IRC  
Valor do pedido: € 591.843,56
Tema: IRC – Gastos não dedutíveis: transação de bens não faturados; indemnização. RFAI – Inutilização total de veículo.
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SUMÁRIO

I. Uma fatura que não indique a data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente não cumpre o disposto no artigo 36.º, n.º 5, alínea f), do Código do IVA, não sendo o respetivo valor dedutível como gasto em sede de IRC, nos termos do artigo 23.º, n.ºs 3, 4, alínea e), e 6, do Código do IRC. A aplicação do princípio da justiça aludido no artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa tem como premissa-base a dedutibilidade do gasto para efeitos fiscais, o que, na situação em apreço, não sucede, ficando a apreciação do referido princípio prejudicada.

II. O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), previsto no artigo 22.º e seguintes do Código Fiscal do Investimento (CFI), tem por objetivo a promoção e desenvolvimento de sectores específicos. Nos termos da alínea c) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI, para beneficiarem dos incentivos fiscais do RFAI, os sujeitos passivos têm de preencher várias condições, entre as quais manter “na empresa e na região durante um período mínimo de três anos a contar da data dos investimentos, no caso de micro, pequenas e médias empresas tal como definidas na Recomendação n.º 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003, ou cinco anos nos restantes casos, os bens objeto do investimento ou, quando inferior, durante o respetivo período mínimo de vida útil, determinado nos termos do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de setembro, alterado pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 2/2014, de 16 de janeiro, ou até ao período em que se verifique o respetivo abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização, observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC. Todavia, negar ao sujeito passivo o direito ao benefício fiscal em apreço quando não há indícios quanto à ocorrência de qualquer atuação abusiva ou fraudulenta, por força do incumprimento de mera formalidade (a prevista no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC), seria onerá-lo injustificadamente, o que, em última instância, seria suscetível de bulir com o princípio da proporcionalidade.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha, Dra. Rosa Branca Areias e Dr. Hélder Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

I.  RELATÓRIO

A..., LDA., pessoa coletiva com o n.º..., com sede em ..., ..., ...-... ..., ... (doravante “Requerente”), veio, em 18-05-2023, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e juros compensatórios n.ºs 2023 ... e 2023 ... (relativos ao exercício de 2019); 2023 ... e 2023 ... (relativos ao exercício de 2020); e 2023 ... e 2023 ... (relativos ao exercício de 2021) (doravante “Liquidações Contestadas”).

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 22-05-2023. Em 11-07-2023, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 11-07-2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 31-07-2023, tendo sido proferido despacho arbitral em 31-07-2023 em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificando à AT para, querendo, apresentar Resposta.

A AT apresentou Resposta em 02-10-2023, tendo junto o processo administrativo em 28-09-2023.

Em 07-12-2023, teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas as testemunhas indicadas pela Requerente: Dra. B... (contabilista certificada da Requerente), Dra. C... (economista e administradora financeira do Grupo D...), Dr. E... (Revisor Oficial de Contas da Requerente) e Eng. F... (gerente da Requerente à data dos factos).

Em 22-12-2023 e 08-01-2024, as partes apresentaram alegações escritas, reiterando, no essencial, o argumentário expendido no PPA e na Resposta.

 

II. SANEAMENTO

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

 

III. QUESTÕES DECIDENDAS

No âmbito do presente litígio, o Tribunal Arbitral é chamado a pronunciar-se sobre três questões decidendas, a saber:

  1. Da natureza jurídica do gasto suportado pela Requerente, no montante de € 540.933,54, resultante do “memorando de entendimento” por si celebrado com a sociedade H..., e sua consequente dedutibilidade para efeitos fiscais, nos termos do artigo 23.º do Código do IRC;
  2. Do cumprimento pela Requerente do regime previsto no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do Código Fiscal do Investimento, face ao sinistro do veículo com matrícula ... ocorrido em maio de 2017;
  3. Da falta de fundamentação da liquidação de juros compensatórios.

 

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

Factos dados como provados

  1. Entre 2016 e 2019, a Requerente era detida pela G... SGPS S.A (“G...”) e tinha o seguinte objeto social: fabrico de outros produtos minerais não metálicos, nomeadamente, areias e britas; compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; a extração de argilas e caulino; prospeção, pesquisa, exploração, comércio, importação e exploração de depósitos minerais e os transportes rodoviários de mercadorias e serviços de logística (cf. Documento n.º 16 junto com o PPA, e cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  2. Em 06-10-2016, a G... e os titulares do capital da sociedade H..., S.A. (“H...”) celebraram um contrato promessa de compra e venda de ações, nos termos do qual a G... adquiriria as ações representativas da totalidade do capital social da H... (cf. Documento n.º 17 junto com o PPA).
  3. Após 06-10-2016, a Requerente e a H... passaram a ser geridas pela G... como uma única unidade, tendo em conta a identidade do ramo de negócio exercido por ambas e que o objetivo final seria a fusão entre ambas as sociedades (cf. Testemunhos da Dra. B..., Dra. C..., Dr. E... e Eng. F...).
  4. Em maio de 2017, um dos camiões utilizados pela Requerente para o transporte de matérias-primas (que havia sido adquirido em 09-06-2016 através de leasing) sofreu um sinistro, tendo a Requerente terminado o leasing, tendo o seguro considerado uma perda total, e desconhecendo a Requerente o destino dado ao veículo posteriormente (cf. Documentos n.ºs 24 e 25 juntos com o PPA e testemunhos da Dra. B... e Eng. F...).
  5. A Requerente não comunicou à AT o abate / inutilização do veículo referido na alínea anterior, nos termos do artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC (cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  6. Ainda em 2017, a Requerente adquiriu dois camiões em estado de uso com vista à substituição do veículo sinistrado (cf. Documentos n.ºs 26, 27, 28 e 29 juntos com o PPA).
  7. Em novembro de 2018, os titulares do capital da H... resolveram unilateralmente o contrato­promessa supra referido, originando um complexo litígio judicial no âmbito do qual a H... exigia que a Requerente assumisse, ressarcindo, os prejuízos provocados em virtude da exploração e comercialização pela Requerente dos inertes provenientes das instalações da H...  (cf. Documento n.º 18 junto com o PPA e testemunhos da Dra. B..., Dra. C..., Dr. E... Quaresma e Eng. F...).
  8. A Requerente registou na sua contabilidade relativa ao exercício de 2018, mais especificamente na rúbrica de “Outros créditos a receber”, o montante de € 661.132,08, correspondente ao saldo devedor imputado à H... (cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  9. Em janeiro de 2019, a Requerente iniciou um litígio judicial contra a H... com vista à cobrança dos créditos que detinha sobre esta sociedade, dando origem ao processo n.º .../18...YIPRT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 2).
  10. A Requerente registou, na sua contabilidade relativa ao exercício de 2019, uma perda por imparidade para fazer face ao risco de cobrança do crédito sobre a H..., por via de conta de resultados transitados (não afetando o resultado líquido contabilístico) (cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  11. Desde a resolução do contrato-promessa em apreço, em novembro de 2018, e durante todo o ano de 2019, deixaram de existir compras e vendas entre a Requerente e a H... (cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  12. Até 19-12-2019, a contabilidade da Requerente relativa ao exercício de 2019 não continha qualquer saldo credor em aberto sobre qualquer dívida da Requerente à H... (cf. referido no Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  13. No decorrer de 2019, a Requerente e a H... iniciaram um processo negocial que culminou, em 19-12-2019, num acordo global (denominado “memorando de entendimento”), que veio a colocar um ponto final em todos os processos judiciais existentes entre as partes, nos termos do qual:
  • A H... reconheceu dever à Requerente o montante de € 485.455,65;
  • A Requerente reconheceu dever à H... o montante de € 540.933,54, acrescido de IVA à taxa de 23% (perfazendo o montante total de € 665.348,25);
  • A H... emitiu uma fatura relativamente a areia e caulino, com o n.º FT 02/427, com a data de 19-12-2019, no montante total de € 665.348,25 (€ 540.933,54, mais IVA);

(cf. Documentos n.ºs 13, 19 e 21 juntos com o PPA e testemunhos do Eng. F..., Dra. C..., Dra. B... e Dr. E...).

  1. A Requerente registou a fatura emitida pela H... na sua contabilidade relativa ao exercício de 2019, deduzindo o respetivo valor como gasto e desreconhendo a perda por imparidade anteriormente registada, e deduziu o valor de € 661.132,08 ao resultado tributável na declaração Modelo 22 do IRC relativa ao exercício de 2019, na rubrica “Reversões de perdas por imparidade” (cf. relatório de contas de 2019, declaração Modelo 22 e Relatório Final de Inspeção Tributária juntos ao PPA como Documentos n.ºs 20, 14 e 13).
  2. Em cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI2022... de 21-09-2022, a Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção externa relativo ao exercício de 2019 (cf. Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).
  3. Em sede de ação de inspeção tributária e consequente Relatório Final de Inspeção Tributária (cf. Documento n.º 13 junto com o PPA), a AT invocou várias correções em sede de IRC e IVA, tendo a Requerente contestado duas correções em sede de IRC: (i) a correção aritmética à matéria tributável relativa à rúbrica V.1.1.1 – Gastos não dedutíveis relacionados com compras ao fornecedor H..., no montante de € 540.933,54, e (ii) a correção aritmética aos saldos em reporte de RFAI relativa à rubrica V.1.2.3 – RFAI – Ajustamentos e correção de saldos em reporte, no montante de € 29.125,00:

 

 

 

 

  1. Estas correções são fundamentadas no Relatório Final de Inspeção Tributária nos seguintes termos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(cf. Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o PPA como Documento n.º 13).

  1. Na sequência do Relatório Final de Inspeção Tributária, a AT emitiu as Liquidações Contestadas, cujo pagamento foi efetuado pela Requerente (cf. Documentos n.ºs 1 a 11 juntos com o PPA).
  2. Em 18-05-2023, a Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.

 

 

Factos dados como não provados

  1. Não resultou provado que a fatura emitida titulasse uma indemnização acordada entre as partes (Requerente e H...), resultante do memorando de entendimento celebrado, visando compensar a  H...por alegados danos provocados pela exploração e comercialização de areias e caulinos na sequência do contrato-promessa acima referido.
  2. Não resultou provado que a fatura emitida não titulasse qualquer transação de bens não faturada em exercícios anteriores a 2019.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas partes, bem como nos documentos juntos aos autos e na prova testemunhal produzida.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT, e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, testemunhal e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Quanto à dedutibilidade do gasto reconhecido contabilisticamente com base no “memorando de entendimento”, entende o Tribunal Arbitral que, quer da prova documental quer da prova testemunhal, não resultou que o referido montante (€ 540.933,54) tenha sido pago pela Requerente à sociedade H... a título ressarcitório, tendo visado indemnizá-la pela (pretensa) indevida exploração e comercialização de areias e caulinos, e, desse modo, permitido pôr cobro ao litígio judicial existente.

A posição do Tribunal Arbitral quanto a este ponto ancora-se sobretudo na prova documental carreada para os autos e nos depoimentos prestados, de forma segura, clara e serena, pelas testemunhas Dra. B..., Dra. C..., Dr. E... e, bem assim, pelo representante legal da Requerente Eng. F..., dos quais não foi possível inferir a referida natureza indemnizatória.

Por força da sua natureza, um contrato-promessa de compra e venda de ações não é juridicamente apto a titular a assunção de obrigações que a Requerente afirma dele resultar – no sentido de “ancorar” uma relação de domínio ou de grupo entre a Requerente e a H... e, concomitantemente, de legitimar a exploração não onerosa de inertes da H... pela Requerente. Nem tal é possível de inferir do seu clausulado. Mesmo numa relação intra-grupo – que não é o caso –, tal não poderia suceder, sob pena de preterição das regras de preços de transferência.

Ademais, não é crível que a Requerente pudesse considerar plausível explorar e alienar bens da H... sem uma contraprestação associada (i.e., sem ter de pagar por tais bens).

A narrativa preconizada pela Requerente na ação arbitral não é verosímil, revelando-se igualmente contraditória. De acordo com a Requerente, a exploração de inertes assumiu caráter gratuito. No entanto, a H... emitiu uma fatura que titula a sua alienação onerosa. Porém, pasme-se, afinal, a fatura não titula o que diz titular, refletindo antes uma indemnização pela exploração indevida dos referidos inertes.

O próprio “memorando de entendimento” não refere que o pagamento em questão (€ 540.933,54) assumiu natureza indemnizatória.

Do discurso da Requerente, o Tribunal Arbitral consegue extrair com segurança o seguinte:

•      A Requerente explorou e comercializou inertes (areias e caulinos) da H..., como a própria expressamente admitiu;

•      Não o fez no exercício de 2019, uma vez que nesse período de tributação as sociedades já estavam de relações cortadas, como denota a resolução do contrato-promessa ocorrida em 2018;

  • As referidas exploração e comercialização deram origem a acertos de contas entre a Requerente e a H..., tendo o pagamento do montante de € 540.933,54 sido realizado nesse contexto.

Pelo exposto, em conformidade com a posição perfilhada pela AT, o Tribunal Arbitral está convicto de que a fatura na origem da presente contenda reflete transações ocorridas entre a Requerente e a H... em exercícios anteriores a 2019.

 

 

V.  MATÉRIA DE DIREITO

Da dedutibilidade do gasto reconhecido contabilisticamente com base no “memorando de entendimento” celebrado entre a Requerente e a H..., no montante de € 540.933,54

A primeira questão a decidir é a de saber se a fatura com o n.º FT 02/427, emitida em 19-12-2019, com o montante de € 540.933,54, acrescido de IVA à taxa de 23%, corresponde a um gasto dedutível para efeitos do artigo 23.º do Código do IRC?

Posição das partes

No decurso do procedimento inspetivo, a Requerente alegou que está em causa uma indemnização e que, por isso, a formalidade das faturas não é necessária (não existe, designadamente, a obrigação de indicar a data da colocação à disposição dos bens faturados). No Relatório Final de Inspeção Tributária, a AT defendeu que o gasto não é dedutível por duas razões. Em primeiro lugar, a fatura emitida em 2019 não corresponde à compra de matérias-primas pela Requerente em 2019 porquanto (a) a Requerente e a H... cessaram relações comerciais em novembro de 2018 (aquando da resolução do contrato-promessa), e (b) a contabilidade da Requerente do exercício de 2019 (antes de 19-12-2019) não fazia qualquer referência a um saldo credor em aberto sobre qualquer dívida à H... . Se está em causa um gasto dos períodos anteriores, o mesmo não poderá ser deduzido em 2019, à luz do princípio da periodização económica constante do artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC. Em segundo lugar, a fatura não indica a data em que os bens foram colocados à disposição do adquirente, não cumprindo a formalidade prevista na alínea f) do n.º 5 do artigo 36.º do Código do IVA, e não sendo dedutível em sede de IRC, em face do disposto no artigo 23.º, n.ºs 3, 4, alínea e), e 6.

No PPA, a Requerente salienta que nunca retirou areias e caulinos das instalações da H... e que acordou pagar o montante de € 540.933,54 à H... para pôr termo ao litígio entre as sociedades, correspondendo tal montante a uma indemnização, e não a qualquer transação de bens não faturados antes de 2019 (como descrito literalmente na fatura emitida em 19-12-2019). Disse a Requerente que a indemnização visou compensar a H... pelos prejuízos provocados durante a exploração e gestão operacional da Requerente durante a vigência do contrato-promessa, em face das alterações verificadas na H... (incluindo uma reformulação da estrutura de negócio da H..., a realização de obras nas instalações desta última, a alteração da gestão dos seus clientes e respetivos fornecimentos). Tratando-se de uma indemnização que resultou do “memorando de entendimento” entre as partes, realizado em 19-12-2019, deve a mesma ser deduzida, como um gasto, em 2019. Além de que, consubstanciando uma indemnização, não se exigem as formalidades de uma fatura previstas no artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA e 23.º, n.º 4 do Código do IRC. Caso se entenda, por mera cautela de patrocínio, estarem em causa gastos de anos anteriores, a Requerente não obteve qualquer vantagem fiscal na omissão de tais gastos e não reconhecimento dos mesmos antes de 2019, nem o Estado qualquer prejuízo, importando aplicar o princípio da justiça, previsto no artigo 266.º da CRP e 55.º da LGT, e considerar a dedução dos gastos incorridos pela Requerente nos termos do artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC.

Em resposta, a AT mantém que o montante de € 540.933,54 representa uma “reposição” de transações comerciais ocorridas entre a Requerente e a H... referentes a períodos de tributação anteriores a 2019 (i.e., 2016, 2017 e 2018), e que a fatura em apreço não reúne os elementos legalmente exigidos no n.º 3 conjugado com a alínea e) do n.º 4 e n.º 6 todos do artigo 23.º do Código do IRC. Acresce que nada no “memorandum de entendimento” refere que tal montante era devido pela Requerente a título de indemnização, ou que tenha tido como objetivo compensar ou reparar perdas ou danos sofridos pela H..., nem a Requerente assim contabilizou o valor em causa. Pelo contrário, o que está em causa é antes a efetivação de transações comerciais que não foram oportunamente faturadas. A violação do princípio da periodização do lucro tributável previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC, num determinado ano, resulta na violação do princípio da tributação pelo lucro real em dois ou mais exercícios. Com efeito, o registo de gastos, rendimentos e componentes, positivas ou negativas, em anos diferentes do competente, determinam a violação do princípio da tributação pelo lucro real no ano competente e no(s) ano(s) em que foram registadas.

Apreciação do Tribunal Arbitral

Tal como referido supra, quanto à natureza jurídica do gasto suportado pela Requerente no exercício de 2019, no montante de € 540.933,54, resultante do “memorando de entendimento” por si celebrado, entende o Tribunal Arbitral que, quer da prova documental junta aos autos, quer da prova testemunhal produzida, mediante as quais pôde formar a sua convicção, não resulta que o montante de € 540.933,54 apenas tenha sido pago pela Requerente à H... a título ressarcitório, tendo visado indemnizá-la pela (pretensa) indevida exploração e comercialização de areias e caulinos. Assim sendo, o Tribunal Arbitral dissente dos efeitos jurídicos-tributários pretendidos pela Requerente no âmbito dos presentes autos – i.e., a dedutibilidade fiscal, a título de gasto, do montante de € 540.933,54, na aceção do artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, alínea m), do Código do IRC.

Acresce que, como bem sustenta a AT, a fatura em apreço não está conforme ao regime ínsito no artigo 23.º, n.ºs 3, 4, alínea e), e 6, do Código do IRC, omitindo, nomeadamente, a data em que os bens foram transacionados (i.e., «a data em que os bens foram colocados a disposição do adquirente», na aceção do artigo 36.º, n.º 5, alínea f), do Código do IVA, aplicável ex vi artigo 23.º, n.º 6, do Código do IRC). Também por este motivo não é dedutível, em sede de IRC, do gasto no valor de € 540.933,54.

A argumentação da Requerente relativa à aplicação do princípio da justiça mostra-se assim prejudicada, não carecendo, por isso, de análise por parte do Tribunal Arbitral. Com efeito, a aplicação do princípio da justiça tem como premissa-base a dedutibilidade para efeitos fiscais (em sede de IRC) do gasto, o que, na situação em apreço, não sucede.

Perante o exposto, entende o Tribunal Arbitral serem de manter na ordem jurídica as correções à matéria tributável de IRC, no montante € 540.933,54, apuradas no relatório final de inspeção e, nessa estrita medida, as Liquidações Contestadas, tudo com as demais consequências legais.

 

Do cumprimento do regime previsto no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do Código Fiscal do Investimento relativamente ao veículo sinistrado

A segunda questão a decidir é a de saber se se devem mantém as correções ao RFAI de 2016 realizadas pela AT, no montante de € 29.125,00, no que diz respeito ao veículo com a matrícula ...?

Posição das partes

No decorrer do processo inspetivo, a Requerente alegou que um camião adquirido no âmbito de um investimento RFAI ficou destruído na sequência de um sinistro em finais de 2017, juntando um documento do seguro certificando a “perda total” do veículo. Por sua vez, no Relatório Final de Inspeção Tributária, a AT rejeitou que o documento do seguro certificasse a inutilidade total do ativo, e sublinhou que o camião em causa não teve a sua matrícula cancelada, tendo passado por diferentes proprietários após 2017. Argumentou ainda a AT que a Requerente não cumpriu as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC, as quais implicariam que a Requerente tivesse comunicado à AT o abate / inutilização do camião previamente à ocorrência e registo do mesmo. Ora, a Requerente não fez qualquer comunicação à AT, o que a AT entendeu dever-se ao facto de a viatura não ter sido efetivamente inutilizada / abatida.

No PPA, a Requerente salientou que o veículo em apreço não cumpriu o período de 3 anos exigido no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI porque ocorreu um sinistro em 2017 que resultou na inutilização do mesmo. Disse a Requerente que, na sequência do sinistro, foi dado fim ao leasing em que estava abrangido o dito veículo, desconhecendo a Requerente o destino dado ao mesmo posteriormente. Concluiu a Requerente que, em face do princípio da substância sob a forma, deverá considerar-se, para todos os efeitos, como cumprido o exigido pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI, não obstante não terem sido cumpridas as formalidades do artigo 31.º-B do Código do IRC. Para a Requerente, com base na lógica deste princípio – segundo o qual deve prevalecer a substância dos factos, a realidade dos mesmos, sob a forma – no caso concreto, o que releva, é a efetiva inutilização do veículo, independentemente das regras do artigo 31.º-B do Código do IRC. Porquanto é precisamente a inutilização do investimento que justifica a manutenção do mesmo num período inferior ao legalmente exigido no caso de micro, pequenas e médias empresas, como no caso. Na perspectiva da Requerente, o objetivo do artigo 22.º, n.º 4, alínea c) do CFI – ao permitir que a condição do período mínimo exigível (no caso, 3 anos) se considere cumprida ainda que no período de manutenção inferior a 3 anos, caso se verifique o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização do equipamento – foi cumprido no caso em apreço.

Na sua Resposta, a AT observou que a viatura de matrícula ..., adquirida em 2016 por € 116.500,00, não preencheu o requisito mencionado no disposto da alínea c) do n.º 4 do artigo 22.º do CFI, referente ao benefício fiscal RFAI declarado pela Requerente, relativo ao período de tributação de 2016, porquanto deixou de fazer parte do ativo fixo tangível da Requerente antes de cumprir o prazo de permanência aí exigido de três anos. De facto, contrariamente ao alegado pela Requerente, a referida viatura, apesar de ter sofrido um sinistro em 2017, não viu a sua matrícula cancelada. Acresce que a própria Requerente reconhece não ter dado sequer cumprimento às regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC, conforme estabelecido na referida alínea c), in fine, do n.º 4 do artigo 22.º do CFI. Por último, relativamente à alegada substituição daquela viatura mediante a aquisição de “dois novos camiões”, embora se constate que estes equipamentos foram adquiridos no ano de 2017 e que se encontram registados na contabilidade da Requerente na rubrica do ativo fixo tangível - Equipamento de Transporte, como bem sabe a Requerente, os mesmos não poderão aproveitar do benefício fiscal RFAI, pois tratam-se de veículos adquiridos em estado de uso e, portanto, excluídos do beneficio fiscal RFAI, por força da a) do n.º 2 do artigo 22.º do CFI.

Apreciação do Tribunal Arbitral

Quanto ao cumprimento pela Requerente do regime previsto no artigo 22.º, n.º 4, do Código Fiscal do Investimento, face ao sinistro do veículo (matrícula...) em maio de 2017, tendo a Requerente cabalmente demonstrado no âmbito dos presentes autos o destino do veículo 24-RM-75 (inutilização, por força de sinistro) e a sua pronta substituição por dois novos veículos, entende o Tribunal Arbitral não claudicar o regime previsto no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do Código Fiscal do Investimento.

Negar à Requerente o direito ao benefício fiscal em apreço, por força do incumprimento de mera formalidade (a prevista no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC), sem que dos autos resulte a (ou sequer haja indícios quanto à) ocorrência de qualquer atuação abusiva ou fraudulenta por parte da Requerente, seria onerá-la injustificadamente, o que, em última instância, seria suscetível de bulir com o princípio da proporcionalidade.

Assim, demonstrada que fica a inexistência – à luz do artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do Código Fiscal do Investimento e do princípio da proporcionalidade – de fundamento para a posição sustentada pela AT, resulta evidente a ilegalidade das correções impostas pelos Serviços de Inspeção (“imposto em falta”), no montante de € 29.125,00, e, nessa estrita medida, a ilegalidade das Liquidações Contestadas, tudo com as demais consequências legais.

 

Da falta de fundamentação da liquidação de juros compensatórios

A terceira questão a decidir é a de saber se as liquidações de juros compensatórios são ilegais com fundamento na falta de fundamentação.

Posição das partes

Relativamente a esta questão, a Requerente defende no PPA que os juros compensatórios não são uma mera decorrência da dívida de imposto – embora, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 35.º da LGT, se integrem na própria dívida de imposto, com a qual são conjuntamente liquidados –, e carecem de fundamentação expressa, acessível e contextual, à semelhança de qualquer matéria objeto de correção na sequência de procedimento de AT. Pelo que, defende a Requerente, importa que o sujeito passivo destinatário da decisão fique minimamente ciente do iter volitivo da AT no que concerne à liquidação de juros compensatórios – não bastando referir que se deve a retardamento da liquidação de imposto –, pelo que, a violação destes requisitos da decisão implica a respetiva ilegalidade, fundamento para a sua anulação.

In casu, confirmando-se que a AT não fez qualquer menção à culpa da Requerente no suposto atraso na liquidação do imposto, e muito menos procedendo à demonstração dessa culpa, para promover a liquidação de juros compensatórios em apreço, impede a Requerente de conhecer, em toda a sua extensão, o porquê do encargo adicional que lhe é imposto, bem como de apreciar a sua legalidade. Ora, tal omissão não permite ao sujeito passivo perceber o iter cognoscitivo que conduziu à liquidação de juros compensatórios em apreço, sendo que a ausência de fundamentação constitui vício de forma que determina a anulabilidade do respetivo ato de liquidação.

Na Resposta, a AT argumentou que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a adequação do sujeito passivo, e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua adequação (a título de dolo ou negligência). Isto é, depende da existência de culpa, a qual consiste na omissão reprovável de um dever de diligência. Salientou também que, no caso em apreço, o Relatório de Inspeção Tributária contém a descrição dos factos imputados ao sujeito passivo e que suportaram as correções e que conduziram ao retardamento da liquidação, bem como a sua qualificação como um comportamento ilícito, não faltando sequer a referência ao seu enquadramento legal como ilícito contraordenacional (com o elenco das normas infringidas e artigos punitivos), pelo que os factos que fundamentam a atuação culposa do sujeito passivo resultam do Relatório de Inspeção Tributária. Por outro lado, o sujeito passivo participou no procedimento que precedeu a liquidação pelo que não desconhecia a situação fática violadora da lei. Conclui a AT que, atenta a factualidade, afigura-se serem devidos juros compensatórios porquanto houve retardamento daquela liquidação, existindo também um nexo de causalidade entre a atuação do sujeito passivo e as consequências devidas referidas, lesivas para o Estado, na sua veste de credor.

Apreciação do Tribunal Arbitral

No que respeita às liquidações de juros compensatórios, não colhe a posição adotada pela Requerente. Conforme resulta do profícuo argumentário exposto pela Requerente no PPA, a mesma percecionou bem os fundamentos (refletidos no relatório final de inspeção) na origem da prolação das liquidações de imposto e, concomitantemente, das correspetivas liquidações de juros compensatórios.

Ademais, não é verdade que o requisito atinente à culpa não se mostre preenchido. A conduta da Requerente – de dedução de gasto não aceite fiscalmente em IRC – afigura-se censurável (conforme exposto supra) e só à mesma pode ser imputada. Conclui-se, assim, que os requisitos previstos no artigo 35.º da LGT encontram-se preenchidos, não merecendo reparo a emissão pela AT das liquidações de juros compensatórios.

 

VI.  DECISÃO

Termos em que se decide neste Coletivo o seguinte:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita às correções, em sede de IRC, relativas à fatura n.º FT 02/427, emitida em 19-12-2019, com o montante de € 540.933,54, e, nessa estrita medida, manter na ordem jurídica as Liquidações Contestadas;
  2. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita ao vício de falta de fundamentação das liquidações de juros compensatórios;
  3. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral no que respeita às correções, em sede de IRC, relativas ao veículo com a matrícula ..., no montante de € 29.125,00, e, nessa estrita medida, declarar ilegais as Liquidações Contestadas;
  4. Na medida da procedência do pedido de pronúncia arbitral, condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, com fundamento em erro imputável aos seus serviços.

 

VII.  VALOR DA CAUSA

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do CPC, 97.º-A, n.º 1, alíneas a) e b), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor proposto pela Requerente e não contestado pela Requerida de € 591.843,56.

 

VIII.  CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.874,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem, ficando 95% do referido montante a cargo da Requerente, e 5% a cargo da Requerida, em razão do decaimento.

Notifique-se

 

CAAD, 31 de maio de 2024

 

(Rita Correia da Cunha, com declaração de voto em anexo)

 

(Rosa Branca Areias)

 

 

(Hélder Faustino)

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

A interpretação e aplicação do regime previsto no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI, relativamente ao sinistro do veículo com matrícula ... ocorrido em 2017, efetuada pela maioria do Tribunal Arbitral é, no meu entender, problemática face à proibição do recurso à equidade expressamente contida no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT (“Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”). Embora a Decisão Arbitral faça referência ao princípio da proporcionalidade, é claro e evidente que, tal como referido pelo Douto Supremo Tribunal Administrativo, o “princípio da proporcionalidade é um corolário do princípio da justiça” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-1997, processo n.º 041177).

O princípio da justiça ínsito no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa tem sido invocado pelo Supremo Tribunal Administrativo e por Tribunais Arbitrais com referência à aplicação do princípio da periodização económica, ou especialização dos exercícios, contido no artigo 18.º do Código do IRC (os ganhos e os gastos são contabilizados no exercício em que são obtidos ou suportados). Todavia, como melhor se explicitará infra, ao não aplicarem o princípio da especialização dos exercícios em função do princípio da justiça, tanto os Tribunais Arbitrais como o Supremo Tribunal Administrativo estão efetivamente a recorrer à equidade. Questiono-me se, relativamente aos Tribunais Arbitrais, tal será admissível à luz da proibição decorrente do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT?

Acresce que, no caso sub judice, o princípio da proporcionalidade, ou o princípio da justiça, não surge em conjugação do princípio da especialização dos exercícios contido no artigo 18.º do Código do IRC, mas para efeitos de dispensa do cumprimento, por parte do sujeito passivo, das formalidades previstas no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC. No PPA, a Requerente invocou também o princípio da substância sob a forma, que merece também algumas considerações. Por motivos de clareza, as observações que me parecem relevantes serão efetuadas pela seguinte ordem:

 

  • A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo relativa ao princípio da justiça
  • O princípio da justiça e o conceito de equidade
  • A admissibilidade do recurso à equidade ao abrigo do artigo 4.º, alínea a), do Código Civil
  • A proibição do recurso à equidade por Tribunais Arbitrais decorrente do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT
  • A possibilidade da dispensa das formalidades do artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC
  • O caso sub judice

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo relativa ao princípio da justiça

No Acórdão proferido em 25-01-2006, processo n.º 0830/05, o Douto Supremo Tribunal Administrativo admitiu a flexibilização do princípio da especialização de exercícios relativamente à contabilização de juros de mora, sem, no entanto, referir o princípio da justiça. O respetivo sumário diz o seguinte:

“I – O princípio de especialização de exercícios, porque se destina a tributar a riqueza gerada em cada exercício, impõe que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II – Porém, não ofende tal princípio a contabilização de juros de mora, referentes a uma acção judicial entretanto intentada, como proveito, em exercício posterior (quando tais proveitos forem efectivamente percebidos) se a não contabilização no exercício em que a acção foi proposta não resultou de omissão voluntária ou intencional.”

Pelo contrário, o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 02-04-2008, processo n.º 0807/07, refere expressamente o princípio da justiça:

“I - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II - Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

III - É o que acontece quando constituída uma provisão para crédito vencido, por lapso de contabilização, o sujeito passivo efectiva as reposições devidas pelos pagamentos parciais entretanto feitos, apenas e pela totalidade em determinado exercício e não, como era devido, de forma discriminada nos exercícios correspondentes em que esses pagamentos foram concretizados”.

O sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 25-06-2008, processo n.º 0291/08, também refere expressamente o princípio da justiça

“I - Em matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios – artigo 18.º do CIRC – traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis.

II - Não põe em causa tal princípio a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

III - Tal postulado é exigido pelo princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 50.º da LGT.

IV - Para efeitos do n.º 2 do mesmo dispositivo legal, “as componentes positivas ou negativas” não são “imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” quando a sua não consideração, no exercício a que respeitam, se deve a erro contabilístico ou outro, do próprio contribuinte, já que tal norma há-de interpretar-se no sentido de que tais pressupostos, para serem relevantes, hão-de decorrer de situações externas que aquele não pode controlar.”

No Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 27-10-2021, processo n.º 0610/15.1BELRA, pode ler-se:

“II - O princípio legal da especialização dos exercícios determina que a imputação das variações cambiais apenas pode ter lugar quando, e na medida em que, estas sejam efectivas, i. e., nos exercícios em que se produzam os respectivos efeitos económicos (ainda que os efeitos financeiros sejam diferidos para momento ulterior), e não anualmente, a título de meras variações cambiais potenciais, apuradas no balanço, o qual é elaborado com base nas regras da contabilidade;

III - O princípio da justiça deve ser interpretado e aplicado como elemento integrador da norma da periodização do lucro tributável, no sentido de garantir a sua efectividade, resultando daí, para a Administração Tributária, a obrigação de harmonização inter-exercícios do enquadramento temporal de um elemento integrante do facto tributário que tenha natureza comunicante (simétrica inter-exercícios).

IV - A AT deveria ter efetuado a correspectiva correcção quanto ao exercício de 2011, tanto mais que no momento a AT havia aberto ordem de serviço datada de 1/11/2013, de âmbito parcial em IRC e com incidência sobre o exercício de 2011, pelo que, ao não ter assim procedido a AT violou, com a sua conduta, o princípio da justiça, uma vez que poderia ter imputado essas imparidades na liquidação de IRC do exercício de 2011, para o qual até detinha ordem de serviço aberta, sendo que dessa imputação não adviria nenhum prejuízo para o Estado.”

O mesmo entendimento relativamente ao princípio da justiça consta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 25-11-2021, processo n.º 410/04.4BELSB, em cujo sumário se pode ler:

“I - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II – Contudo, esse princípio deve ser conciliado com o princípio da justiça, de modo a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios tendentes a manipulá-los.”

O mesmo se diga do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 07-09-2022, processo n.º 0304/15.8BELLE:

“I - A atuação e defesa do princípio da especialização dos exercícios/regime de periodização económica deve ser conciliada com a operância de outros primados, atuantes ao nível da disciplina jurídica global dos tributos, norteadores da atividade da autoridade tributária e aduaneira (AT), particularmente, os princípios da legalidade e da justiça, objetivando o melhor equilíbrio, possível, entre os respetivos domínios, de molde a obter um resultado justo, capaz de, por um lado, defender o interesse público da obtenção de receitas para satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades e, por outro, respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

II - Por razões de paridade, a atuação de cada sujeito passivo/contribuinte, no campo fiscal, tem de merecer o mesmo enquadramento/tratamento, com o desiderato de, casuisticamente, ser estabelecida e satisfeita/obtida a prestação tributária, legalmente, devida”.

Muito recentemente, veio o Douto Supremo Tribunal Administrativo reafirmar a mesma abordagem, referindo os quesitos da aplicação do princício da justiça no sumário do Acórdão de 10-04-2024, processo n.º 01382/14.2BEBRG 0528/17:

I – Nos termos do artigo 18.º do CIRC, os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica (n.º 1) e as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas (n.º 2).

II – Tendo ficado provado que a inscrição no exercício fiscal de 2009 de um valor a título de “custo de exercícios anteriores”, no caso, do exercício fiscal de 2006, constitui o resultado de uma actuação deliberada de manipulação das contas desenvolvida pelo sujeito passivo tendo em vista alcançar um melhor posicionamento em concursos de obras públicas, há que concluir que não se mostra verificada a hipótese legal prevista no n.º 2 do citado artigo 18.º do CIRC, isto é, que a transferência de resultados de exercício não foi determinada pela imprevisibilidade nem pelo desconhecimento das componentes ate à data de encerramento do ano fiscal a que alegadamente respeitam.

III – A prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização dos exercícios pressupõe que, cumulativamente, esteja apurado que do afastamento daquele último não resulte prejuízo para o erário público e que o erro cometido na contabilização dos proveitos e/ou custos não resultou de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar transferências de resultados entre exercícios.”

Na esteira desta jurisprudência, os Tribunais Arbitrais têm também vindo a afastar a aplicação do princípio da especialização dos exercícios ínsito no artigo 18.º do Código do IRC com fundamento no princípio da justiça (e.g., Decisões Arbitrais de 11-09-2020, processo n.º 874/2019-T; 04-10-2021, processo n.º 431/2020-T; 21-01-2022, processo n.º 244/2021-T).

Ora, ao não aplicarem o princípio da especialização dos exercícios em função do princípio da justiça, tanto os Tribunais Arbitrais como o Supremo Tribunal Administrativo estão efetivamente a recorrer à equidade.

Senão vejamos.

 

O princípio da justiça e o conceito de equidade

A definição de equidade como “justiça do caso concreto” remota à obra de Aristóteles intitulada Nichomachean Ethics. Sem entrar em considerações de natureza filosófica, é, no entanto, importante salientar que, no contexto judicial, recorrer a equidade significa resolver um litígio não com base na aplicação de normas gerais e abstratas ao caso concreto (direito constituído), mas com base na aplicação, ao caso concreto, de critérios de justiça.

Para além da vantagem óbvia do recurso à equidade (i.e., a resolução de litígios da forma mais adequada às especificidades do caso concreto), a equidade levanta questões importantes relativamente (a) ao princípio da certeza e segurança jurídicas (quando o juiz afasta a aplicação de normas gerais e abstratas, perde-se a previsibilidade decorrente da aplicação silogística das mesmas), (b) princípio da igualdade (já que situações semelhantes poderão acabar por receber uma resolução jurídica bastante diferente), e (c) à legitimidade dos juízes (não eleitos democraticamente) para desaplicarem a lei aprovada pelo legislador (eleito democraticamente).

Quanto a este último ponto, é importante salientar que o uso da equidade, necessariamente assente num princípio de justiça (do caso concreto), não se confunde com a interpretação de normas jurídicas. O Professor Castanheira Neves definiu interpretação jurídica como “o acto metodológico de determinação do sentido jurídico-normativo de uma fonte jurídica em ordem a obter dele um critério jurídico (um critério normativo de direito) no âmbito de uma problemática realização do direito e enquanto momento normativo-metodológico dessa mesma realização” (A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica: Problemas fundamentais, Coimbra Editora 1993, p. 83).

Interessa também, a título preliminar, distinguir o uso de equidade e a interpretação corretiva, correspondendo (i) o uso de equidade à aplicação ao caso concreto de critérios de justiça (implicando um afastamento do direito constituído), e (ii) a interpretação corretiva a uma interpretação de preceitos legais em face da respetiva ratio legis, interpretação esta que tem de ter um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme estabelece o artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil: “Não pode (...) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Das regras interpretativas constantes deste dispositivo do Código Civil resulta que a letra da lei constitui simultaneamente o ponto de partida e um limite à atividade interpretativa.

Feitas as necessárias distinções, interessa referir que, não obstante as desvantagens associadas à equidade enunciadas supra, a verdade é que o legislador português admite o uso de equidade em certas circunstâncias.

 

A admissibilidade do recurso à equidade ao abrigo do artigo 4.º, alínea a), do Código Civil

Nos termos do artigo 4.º do Código Civil, os tribunais só podem resolver segundo a equidade (a) quando haja disposição legal que o permita, (b) quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível, e (c) quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória. Para efeitos fiscais, dada a natureza não contratual da relação jurídico-tributária, a equidade apenas é admissível quando haja disposição legal que o permita.

Da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo supra referida resulta claro que o recurso à equidade nos casos referentes ao princípio da especialização de exercícios assenta no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa (“Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”).

Poderia questionar-se se o legislador constitucional, ao aprovar esta norma, pretendeu conferir à administração tributária o poder de se afastar do direito constituído, especialmente face ao princípio da legalidade fiscal constitucionalmente consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa?

Todavia, parece ser esta a resposta a que se chega pela análise da jurisprudência supra transcrita, o que levanta outra questão: não obstante a permissão do recurso à equidade contida no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa, podem os Tribunais Arbitrais recorrer à equidade em face do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT?

 

 

 

A proibição do recurso à equidade por Tribunais Arbitrais decorrente do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT

O artigo 2.º, n.º 2, do RJAT dispõe que “Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”. A propósito do conceito de equidade e da sua admissibilidade no processo arbitral, esclareceu o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 25-02-2021, processo n.º 49/17.4BCLSB: “O julgamento segundo critérios de equidade é aquele que confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis. É expressamente proibida pelo RJAT.

A letra do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT é clara. E é essa clareza que levanta dúvidas:

Qual o sentido útil da proibição do recurso à equidade pelos Tribunais Arbitrais, se o recurso à equidade é permitido pelo artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa?

Estamos perante um problema de conflito de normas que se resolve através a hierarquia das leis, reconhecendo à norma constitucional primazia sobre a norma de lei ordinária?

Estamos perante um problema de conflito de normas que se resolve através das regras de aplicação da lei no tempo, reconhecendo à norma mais recente (RJAT) preferência relativamente à norma mais antiga (CRP)?

Será razoável interpretar o artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa como permitindo aos Tribunais Arbitrais o recurso à equidade para além dos casos referentes ao princípio da especialização dos exercícios, ou estão os Tribunais Arbitrais limitados a recorrer à equidade apenas nos casos em que a mesma é exercida pelos Tribunais Superiores?

 

 

A possibilidade da dispensa das formalidades do artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC

Ao contrário do que sucede com a aplicação do princípio da especialização dos exercícios contido no artigo 18.º do Código do IRC, não existe jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores quanto à aplicação do princípio da justiça ínsito no artigo 266.º, n.º 1, da nossa Constituição para efeitos de dispensa das formalidades referidas no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC.

O artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI é claro no sentido de exigir que, caso os sujeitos passivos não mantenham na empresa, por um período de 3 ou 5 anos (conforme aplicável), os ativos nos quais se concretizou o investimento inicial, e se verifique o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos ativos, têm de ser observadas as regras previstas no artigo 31.º-B do Código do IRC.

Relativamente aos pressupostos materiais da aplicação do regime das perdas por imparidade previsto no artigo 31.º-B do Código do IRC (de cuja verificação e comprovação depende a aceitação, como gasto fiscal dedutível ao lucro tributável, de “desvalorizações excecionais” relativas a ativos não correntes), defende o Exmo. Juiz Conselheiro, Professor Doutor Gustavo Lopes Courinha que o dito artigo exige que se verifiquem cumulativamente os quatro pressupostos que se seguem:

  1. Em primeiro lugar, é necessário que tenha ocorrido um evento que tenha desencadeado a imparidade e que possa encontrar apoio na lista exemplificativa constante da lei: “desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excecionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal”;
  2. Em segundo lugar, é necessário que ocorra uma “desvalorização excecional” provocada por essa “causa anormal”, com a necessária demonstração da respetiva relação causal, a qual tem de ser submetida, para aceitação, à AT;
  3. Em terceiro lugar, a “causa anormal” necessita de originar uma das seguintes consequências quanto ao ativo em causa: abate físico, desmantelamento, inutilização ou abandono;
  4. Em quarto lugar, o abate físico, desmantelamento, inutilização ou abandono terão de ocorrer no mesmo período ou em período ulterior ao evento gerador da “desvalorização extraordinária”, e são feitos depender de uma intervenção da AT (v. Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Almedina, 2019, pp. 88-89).

Estas considerações preliminares são relevantes não só para apurar a ratio legis das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, como para avaliar em que circunstâncias as mesmas podem (ou devem) ser dispensadas pelo Tribunais Arbitrais ao abrigo do princípio da proporcionalidade, ou do princípio da justiça.

O n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC aplica-se quando os factos (ou “causa anormais”) que determinaram a desvalorização excecional dos ativos não correntes ocorrem no mesmo período de tributação em que tem lugar o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização do ativo. Nestas circunstâncias, o valor líquido fiscal dos ativos, corrigido de eventuais valores recuperáveis, pode ser aceite pela AT, desde que observadas as obrigações acessórias referidas nas alíneas a) a c) do referido n.º 3, que por sua vez exigem que:

  1. O sujeito passivo comprove o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos ativos, através do respetivo auto, assinado por duas testemunhas, acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal (cfr. alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC);
  2. O sujeito passivo identifique e comprove os factos que originaram as desvalorizações excecionais (cfr. alínea a) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC);
  3. O sujeito passivo comunique ao serviço de finanças da área do local onde os ativos se encontrem, com uma antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, do desmantelamento, do abandono ou da inutilização dos ativos, bem como o respetivo total do valor líquido fiscal (cfr. alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC).

A este respeito, Rui Marques (v. Código do IRC – Anotado e Comentado, 2ª edição, Almedina 2020, p. 341) refere o seguinte:

“(...) a referida aceitação está dependente de uma prévia comunicação à AT do local, da data e da hora do abate físico, do desmantelamento, do abandono ou da inutilização e do total do valor líquido fiscal dos ativos. Esta comunicação deverá ser endereçada ao serviço de finanças da área do local onde se encontrem os ativos, com uma antecedência mínima de 15 dias.

Posteriormente, o sujeito passivo deverá fazer a comprovação do abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respetivo auto. O auto, assinado por duas testemunhas, deverá conter a identificação e a comprovação dos factos que originaram as desvalorizações excepcionais, fazendo-se acompanhar de uma relação discriminativa dos elementos em causa com, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal.

Estas condições para a aceitação como gasto do período são cumulativas.”

Da leitura conjugada das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC com o n.º 1 do mesmo artigo, resulta que as obrigações acessórias em causa visam permitir à AT fiscalizar:

  1. A ocorrência de uma “causa anormal” que tenha resultado numa “desvalorização excecional” de um ativo não corrente,
  2. A ocorrência do abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização de um ativo não corrente, e
  3. A existência de valores recuperáveis, que devem ser deduzidos ao valor fiscal do ativo para efeitos de apuramento do valor da perda suportada pelo sujeito passivo.

Apurada a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias contidas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC, torna-se claro e evidente que é de rejeitar a conclusão de que a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias em causa foram observadas no caso sub judice. Por um lado, a AT contesta que o veículo tenha sido objeto de abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização (já que foi vendido posteriormente a terceiros), e a verdade é que a AT nunca teve oportunidade de fiscalizar se o veículo foi efetivamente objeto de abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização visto que a Requerente não cumpriu a obrigação formal de comunicação prévia prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC. Por outro lado, o incumprimento desta obrigação impediu que a AT verificasse e fiscalizasse a existência de valores recuperáveis que deveriam ser deduzidos ao valor fiscal do ativo para efeitos de apuramento do valor da perda sofrida pela Requerente.

Pelo exposto, parece-me que dispensar a Requerente do cumprimento das formalidades previstas no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC, com fundamento no princípio da proporcionalidade, não tem qualquer correspondência com a ratio legis do mesmo, como também não tem qualquer suporte na letra da lei, que é clara ao estabelecer que os requisitos contidos nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do CIRC são imperativos (“pode ser aceite como gasto do período, desde que...”). A este propósito, cumpre novamente salientar que o artigo 9.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil (para o qual o artigo 11.º, n.º 1, da LGT remete) estabelece que, da consideração da unidade do sistema jurídico, das circunstâncias em que a lei foi elaborada, e das condições específicas do tempo em que é aplicada, não pode resultar uma interpretação “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”.

A doutrina e jurisprudência portuguesas acolhem o princípio da preponderância da letra da lei na interpretação de normas legais, (i) aceitando a letra da lei não só como ponto de partida da interpretação, mas também como critério decisivo de exclusão e limite intransponível das possibilidades de interpretação, e (ii) reconhecendo à letra da lei uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos interpretativos que não tenham qualquer apoio ou ressonância nas palavras da lei (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.11.2011, proferido no processo n.º 0701/10; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.12.1998, proferido no processo n.º 032803; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7.11.1995, proferido no processo n.º 036487; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, de 2.6.2015; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 731/2021, de 22.9.2021; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 69/2009, de 11.9.2009; Professor Doutor Oliveira Ascensão: “a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação”, v. O Direito – Introdução e Teoria Geral, 6.ª edição, O Direito 1991, p. 3687); Professora Doutora Ana Paula Dourado: a “interpretação da lei fiscal tem como limite o sentido possível das palavras no contexto em que são utilizadas”, v. Direito Fiscal – Lições, 2.ª edição, Almedina 2017, p. 247).

Pelo exposto supra, tenho dúvidas que os Tribunais Arbitrais possam dispensar as formalidades definidas pelo legislador no artigo 31.º-B, n.º 3, do Código do IRC em nome do princípio da proporcionalidade, ou do princípio da justiça ínsito no artigo 266.º da nossa Constituição, ou com referência a uma interpretação teleológica dos preceitos em causa.

Parece-me ser também de rejeitar o argumento da Requerente com base no princípio da substância sob a forma, interpretado pela Requerente como permitindo apurar a efetiva realidade sobre a forma jurídica. A este propósito, lembre-se o disposto no artigo 11.º, n.º 3, da LGT: “Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários”. Esta regra interpretativa que tem sido utilizada pelos Tribunais Superiores para, havendo dúvida fundada sobre se uma norma fiscal recorre (i) a um conceito civilístico, ou a um conceito próprio de outro ramo do direito, ou (ii) a um conceito económico, ou a um conceito específico do direito fiscal, dar relevância a este último (v. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de março de 2003, processo n.º 01721/02; de 28 de maio de 2003, processo n.º 01968/02; de 3 de março de 2004, processo n.º 01774/03; de 24 de março de 2010, processo n.º 01241/09; de 23 de janeiro de 2013, processo n.º 01061/11).

Note-se que este princípio interpretativo não permite à AT ignorar ou re-caracterizar as transações dos sujeitos passivos. Para emitir uma liquidação com base numa prática abusiva, a AT tem de lançar mão da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que lhe permite “desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações sem fundamento económico, artificialmente construídas com propósitos essenciais de elisão fiscal”, observado o procedimento estatuído no artigo 63.º do CPPT (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 2925/04.5BELSB, de 30 de setembro de 2020). Note-se também que a cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT não é de aplicação oficiosa por Tribunais Judiciais e aos Tribunais Arbitrais (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 1550/15, de 5 de junho de 2019). No caso sub judice, entendo que não pode o Tribunal Arbitral recorrer a um princípio da substância sob a forma para dispensar formalidades expressamente exigidas pela lei.

A interpretação e aplicação do artigo 31.º-B, n.º 3, do CIRC subscrita na presente declaração de voto não viola o princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo seu rendimento real, contido no artigo 104.º, n.º 2, da CRP. Note-se que, deste princípio não resulta que os contribuintes não têm de cumprir obrigações acessórias que permitem à AT fiscalizar a verificação dos pressupostos materiais do reconhecimento de um gasto ou dedução fiscal. Tal como referido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 517/2015, de 14-10-2015, “a prevalência do princípio da tributação das empresas segundo o seu lucro real acarreta um aumento da intensidade da cooperação exigida ao contribuinte, que se traduz numa acrescida exigência dos seus deveres declarativos. Esta exigência poderá, porém, determinar a restrição ou condicionamento de direitos, imposta pela necessidade de fiscalizar o cumprimento de tais deveres”.

Conclusão

A decisão arbitral dispensou a Requerente de cumprir com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI e no artigo 31.º-B, n.º 3, alíneas a) a c), do Código do IRC com fundamento no princípio da proporcionalidade, aceitando como gasto o valor de um veículo que sofreu um sinistro e foi subsequentemente entregue pela Requerente à empresa de leasing.

Esta solução não resulta de uma jurisprudência consolidada relativamente ao princípio da proporcionalidade, ou ao princípio da justiça. Parece-me duvidoso que o recurso a estes princípios por Tribunais Arbitrais seja admissível em face da proibição expressa contida no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT.

Por último, entendo que a solução adotada pelo Coletivo relativamente ao artigo 22.º, n.º 4, alínea c), do CFI e às alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 31.º-B do Código do IRC não só não tem qualquer correspondência com a razão de ser, fim e intuito das obrigações acessórias em causa, como também não encontra um mínimo de correspondência verbal com a letra das disposições em causa, não sendo, por isso, uma construção de admitir nos termos do artigo 9.º do Código Civil, aplicável a normas tributárias por força do artigo 11.º, n.º 1, da LGT.

Pelo exposto, não poderia de deixar de expressar as minhas dúvidas em declaração de voto autónoma em relação à decisão arbitral, relativamente à qual não tenho qualquer outro reparo.

 

Rita Correia da Cunha