Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 723/2023-T
Data da decisão: 2024-04-26  IRC  
Valor do pedido: € 148.294,44
Tema: Artigos 64.º e 139.º do CIRC.
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Sumário:

I – Existe “erro evidenciado na declaração”, para efeitos do n.º 2 do artigo 45.º da LGT, quando esteja em causa um erro detetável pela AT pela mera análise da coerência dos elementos da declaração, o que não sucede nas hipóteses em que só mediante o cruzamento de dados e de outras informações já na posse da AT pode esta detetar a ocorrência de erro ou de omissão.

II – A presunção de rendimento estabelecida no n.º 2 do artigo 64 do CIRC é aplicável a uma situação como a do presente processo, em que está em causa um contrato de compra e venda de um imóvel entre uma sociedade comercial e uma empresa municipal sob a forma societária, concluído num momento em que já tinha sido aprovada a resolução de expropriar por parte da entidade expropriante, mas antes da prática do ato de declaração de utilidade pública.

III – Não errou a AT ao considerar aplicável à situação da Requerente o procedimento probatório regulado pelo artigo 139 do CIRC, nem estão as normas daquele preceito, na interpretação normativa assim acolhida, feridas de inconstitucionalidade, por violação do princípio da capacidade contributiva (artigo 13 da CRP) ou do princípio da tributação das empresas pelo rendimento real (artigo 104, n.º 2 da CRP).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em Tribunal Arbitral

 

I. Relatório

1. A... SA, titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal na Rua..., ...-... ... (doravante, Requerente), apresentou, em 11-10-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2023..., bem como dos juros compensatórios liquidados pela Administração Tributária;

(ii) a declaração de extinção do procedimento contraordenacional instaurado pela Autoridade Tributária;

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. Em 10-10-2023, o pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, al. a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 05-12-2023, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 27-12-2023.

 

7. Em 03-01-2024, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, notificado na mesma data, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17 do RJAT).

 

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 05-02-2023, remetendo o Processo Administrativo. Considerando o PPA e a Resposta oferecida pela Requerente, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, em 09-02-2024, dispensando a reunião a que alude o artigo 18 do RJAT, por não haver exceções ou outras questões a debater nesse âmbito, e conferindo às partes o prazo de 20 dias para a apresentação de alegações finais escritas.

 

9. O que veio a acontecer, com os requerimentos apresentados em 11-03-2024 (Requerente) e 12-03-2024 (Requerida).

 

10. Compulsado o PPA, a resposta e as alegações, a posição das partes é, em síntese, a seguinte:

(a) A Requerente peticiona a anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2023... e respetivos juros compensatórios. Argumenta, por um lado, que o mencionado ato de liquidação está ferido com um vício de violação de lei, por caducidade do direito de liquidar. Estando o erro evidenciado na liquidação de IRC submetida pela Requerente com referência ao ano de 2019 (data da alienação do imóvel), o prazo de caducidade aplicável é o prazo especial de 3 anos, previsto no n.º 2 do artigo 45 da LGT. De onde resulta que o prazo de caducidade começou a contar no dia 01-01-2020 (a partir do termo do ano em que ocorreu o facto tributário) e terminou em 31-12-2022, antes, portanto, do desencadeamento do procedimento de inspeção que culminou na liquidação impugnada (Ordem de Serviço n.º OI2023... de 16-03-2023).

(b) Argumenta, por outro lado, que a liquidação de IRC assenta numa errada interpretação dos artigos 64 e 139 do CIRC. Entende a Requerente que o procedimento probatório previsto no artigo 139 do CIRC, que é o modo legalmente previsto para a ilisão da presunção da norma de incidência instituída pelo artigo 64 do mesmo Código, não é aplicável à situação em apreço, porquanto o preço de venda do imóvel “foi validado por uma instância superior” (o Tribunal de Contas). Ademais, admitindo aquele procedimento a possibilidade de a administração tributária aceder à informação bancária, tal implicaria, no presente caso, a assunção pela AT da prática de crime pelo Município de ... e pela empresa municipal adquirente do imóvel. Outra interpretação consubstanciaria uma violação dos princípios da capacidade contributiva (artigo 13 da CRP) e da neutralidade fiscal. 

 

(c) A Requerente avança, finalmente, que, atentas as semelhanças entre o contrato de compra e venda do imóvel e um ato de expropriação por utilidade pública, sempre seria de afastar, no caso concreto, a aplicação da presunção constante do artigo 64, n.º 2 do CIRC, em linha com um princípio de prevalência da substância sobre a forma. O âmbito de aplicação deste normativo compreende as situações de transmissão onerosa de imóveis, ao qual não são subsumíveis atos de expropriação por utilidade pública, conforme jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo.

 

(d) A Requerida alega, por seu turno, que o prazo de caducidade aplicável é o prazo geral de 4 anos, previsto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT, por não estar em causa um erro evidenciado na declaração do sujeito passivo, antes uma omissão declarativa.

 

(e) A AT rejeita, igualmente, que o contrato de compra e venda concluído entre a empresa municipal “B...” e o sujeito passivo deva ser tratado, do ponto de vista tributário, como um ato de expropriação por utilidade pública, não detetando quaisquer óbices à aplicação da presunção vertida no artigo 64 do CIRC ao caso em apreço. Não tendo a Requerente lançado mão do procedimento probatório regulado no artigo 139 do CIRC, não logrou demonstrar que o valor da transmissão onerosa do imóvel foi efetivamente inferior ao valor patrimonial tributário (VPT). E tão-pouco pode fazê-lo agora, em sede de impugnação arbitral, porquanto, conforme resulta do n.º 6 do artigo 139 do CIRC, cujo sentido vem sendo confirmado por jurisprudência constante dos tribunais superiores, o recurso àquele procedimento probatório é condição de procedibilidade da impugnação judicial da liquidação de imposto.

 

II – Saneamento

11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2, n.º 1, a) e 5 do RJAT).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, al. a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

12. O processo não enferma de nulidades.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

III – Matéria de facto

§1. Factos provados

13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - A Requerente é uma sociedade anónima cuja atividade compreende, entre outras, a compra e venda de bens imobiliários.

2.º - Em 16-05-2018, a Câmara de ... adotou uma deliberação contendo uma resolução de expropriar a parcela de terreno da Requerente, identificada sob o artigo matricial urbano ...  da freguesia ... – Distrito de Lisboa, Concelho de ..., Freguesia de ..., tida como necessária para a expansão e modernização do ... ... .

3.º - O prédio supramencionado é contíguo ao ..., administrado pela empresa municipal B... E.M, S.A. (doravante, “B... E.M, S.A”)., 

4.º - A Resolução de expropriar acima referida vinha acompanhada de um relatório de avaliação elaborado por perita da lista oficial, com data de 14-05-2018, que atribuiu à parcela a expropriar o valor total da indemnização de € 1 368 312.

5.º - Tanto antes como depois da adoção desta deliberação decorreram negociações entre a B... E.M, S.A e a Requerente no sentido de viabilizar a aquisição do imóvel pela via do direito privado, algo a que a Requerente não se opôs conquanto que a alienação se processasse com base num valor idêntico ao VPT.

6.º - Em 24-05-2019, a Requerente alienou o artigo matricial urbano ... da freguesia ... – Distrito de Lisboa, Concelho de ..., Freguesia de ..., pelo montante de € 1.375.000,00, valor esse inferior ao Valor Patrimonial Tributário (VPT), que era de € 2 300 710, 65.

7.º - O Tribunal de Contas concedeu, no âmbito do procedimento de fiscalização prévia 217/2019, visto à celebração do contrato de compra e venda entre a Requerente e a b... E.M, S.A.

8.º - Na declaração de IRC relativa ao ano de 2019, a Requerente não acresceu na Linha 745 do Quadro 07, o montante de € 925.710,65, diferença positiva entre o VPT e o valor do contrato de compra e venda do terreno alienado.

9.º - De harmonia com o artigo 13.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), foi desencadeada uma ação inspetiva ao abrigo da Ordem de Serviço n.º 2023... de 16-03-2023, emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ..., incidente sobre o IRC de 2019 da Requerente.

10.º - No decurso desse procedimento inspetivo, foram solicitados, por via do Ofício n.º-..., de 03-02-2022, diversos documentos e esclarecimentos à Requerente, que os remeteu em resposta enviada por correio eletrónico no mesmo dia.

11.º - Devidamente notificada, a Requerente exerceu o seu direito de audição através de pronúncia remetida no dia 13-04-2023.

12.º - Na sequência do Relatório final do procedimento inspetivo, concluído a 18-05-2023, a AT procedeu à liquidação de IRC ora impugnada (liquidação de IRC n.º 2023...).

 

§2. Factos não provados

14. Não ficou provado que a Requerente tenha feito depender a celebração do contrato de compra e venda do terreno pelo valor de € 1 375 000,00 da condição de que a Câmara Municipal de ... procedesse à retificação do VPT, nem que esta tenha assumido qualquer obrigação nesse sentido.

 

§3. Fundamentação da matéria de facto

15. Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123, n.º 2, do CPPT e do artigo 607, n.º 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 29, n.º 1, als. a) e e), do RJAT. Assim sendo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre da aplicação conjugada do artigo 596, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29, n.º 1, e), do RJAT.

 

16. Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, em especial os elementos constantes do processo administrativo consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

O Tribunal arbitral não considera provado que a Requerente, ao contrário do que alega, tenha feito depender a celebração do contrato de compra e venda do terreno pelo valor de € 1 375 000 da condição de que a Câmara Municipal de ... procedesse à retificação do VPT, nem que esta tenha assumido qualquer obrigação nesse sentido. Efetivamente, nem os documentos trazidos aos autos pela Requerente, nem os elementos constantes do processo administrativo conferem respaldo probatório a tal asserção, pelo que, recaindo sobre a Requerente o ónus de demonstrar o facto que invoca nos pontos 8.º e 9.º do PPA (artigo 74, n.º 1 da LGT), não pode o Tribunal arbitral deixar de o dar como não provado.

 

IV – Fundamentação de direito

17. Compulsados o PPA, a Resposta e as alegações remetidas pelas partes, resulta serem fundamentalmente duas as questões de direito a decidir. Em primeiro lugar, a questão de saber se o ato impugnado foi praticado num momento em que já se verificara a caducidade do direito de liquidar, a que corresponde um vício de violação de lei, gerador de anulabilidade. Em segundo lugar, a questão de saber se, como alega a Requerente, a liquidação de IRC promovida pela AT tem subjacente uma interpretação errada das normas contidas nos artigos 64 e 139 do CIRC, também ela geradora de um vício de violação de lei e de anulabilidade.

 

  1. Da caducidade do direito de liquidar por força da aplicação do prazo especial do artigo 45, n.º 2 da LGT

 

18. A Requerente argumenta que o prazo de caducidade aplicável é o prazo especial de 3 anos previsto no n.º 2 do artigo 45 da LGT, por estar em causa uma situação de “erro evidenciado na declaração” de IRC. Conforme sintetiza no ponto 34.º do PPA:

«(...)

34. Ora é por demais evidente a verificação inequívoca da caducidade da liquidação porquanto (i) os valores constantes foram efetivamente declarados no âmbito da Modelo 22 de IRC (confessado no âmbito do Documento n.º 3 do relatório de inspecção), (ii) a Autoridade Tributária e Aduaneira já tinha conhecimento deste mesmo facto antes do despacho que determinou a ordem de inspeção, iniciado só após os 3 anos (confessado no âmbito do Documento n.º 3 do relatório de inspecção) e se (iii) conclui pela total ausência de recurso a terceiros para efetuar cruzamento de dados e descortinar eventuais valores não declarados.

(...)»

Pelo que, aplicando o preceituado no n.º 4 do artigo 45 da LGT, o prazo de caducidade começaria a contar, no caso de um imposto periódico como o IRC, “a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário”, ou seja, em 01-01-2020, e terminaria a 31-12-2022. Antes, portanto, do desencadeamento do processo inspetivo e da notificação à Requerente da respetiva ordem de serviço (ordem de serviço n.º 012023..., de 16-03-2023).

A AT alega, por seu turno, que o prazo de caducidade aplicável é o prazo geral previsto no n.º 1 do artigo 45 da LGT (4 anos), louvando-se na interpretação que os tribunais superiores vêm fazendo do segmento normativo “erro evidenciado na declaração”.

 

19. O Tribunal arbitral entende que o prazo de caducidade a aplicar é o prazo geral de caducidade (4 anos) a que alude o artigo 45, n.º 1 da LGT. Em linha com a jurisprudência estabilizada dos tribunais superiores, o “erro evidenciado na declaração” é o erro detetável mediante simples análise dessa declaração, isto é, o erro que a AT logre detetar por um mero exame de coerência dos seus elementos, sem recurso a qualquer outra documentação externa (cf. acórdão do TCA-S de 14-01-2020, processo n.º 523/05.5BECTB). Trata-se, por conseguinte, de um erro imediatamente percetível, sem necessidade de atender a outros elementos complementares, ainda que esses elementos estejam em poder da AT ou tenham sido obtidos por intermédio de inspeção interna ou externa ou por meios de qualquer outra natureza (cf. acórdão do STA de 24-05-2016, processo n.º 0991/15).

 

20. Olhando ao caso concreto, salta à evidência que a falta de preenchimento, pelo sujeito passivo, do campo 745 do Quadro 07 da declaração de IRC de 2019 – ou seja, a existência, naquela declaração, de um campo que o sujeito passivo deveria ter preenchido, mas não preencheu – não é um erro evidenciado na declaração, detetável pela AT pela mera análise da coerência dos seus elementos. Independentemente de haver erro – entendido este enquanto divergência entre o declarado e a vontade real do sujeito passivo – ou, como alega a AT, uma omissão declarativa de rendimentos, sempre se diria que a AT só adquiriu conhecimento daquela falha mediante o cruzamento com outros dados, declarados pelo próprio ou por outros sujeitos passivos, designadamente através da declaração de IMT submetida pela adquirente do imóvel, B... E.M., S.A. e de elementos da contabilidade do sujeito passivo. 

 

21. Em síntese, a análise da declaração de IRC referente ao ano de 2019 não permitiria à AT, em singelo, extrair as conclusões que fundaram a liquidação impugnada. Tanto basta para que se conclua que é de aplicar o prazo normal de caducidade de 4 anos e que tanto o procedimento inspetivo como a emissão do ato de liquidação ocorreram antes do seu esgotamento.

 

  1. Da errada interpretação e aplicação dos artigos 64 e 139 do CIRC ao caso em apreço

 

22. As alegações da Requerente seguem, neste ponto, duas linhas argumentativas.

 

23. A primeira pretende evidenciar que à liquidação impugnada esteve subjacente uma errada interpretação do artigo 139 do CIRC. Na verdade, no entender da Requerente, o procedimento probatório previsto naquele normativo, instituído com vista a permitir a ilisão da presunção de rendimento constante do n.º 2 do artigo 64 do CIRC, não seria aplicável in casu. O procedimento tributário do artigo 139 do CIRC, que a lei configura como condição de procedibilidade da impugnação judicial da liquidação, constitui uma exceção à garantia constitucional de impugnabilidade dos atos lesivos dos direitos dos administrados. A previsão deste mecanismo tem, pois, de se fundar numa justificação objetiva, mormente na intenção de evitar a discussão nos tribunais de uma questão técnica como é a da fixação da matéria coletável (ponto 64.º do PPA). Segundo a Requerente, o artigo 139 do CIRC não é aplicável in casu, por várias ordens de razões, desde logo porque está em causa uma avaliação direta (e não indireta) da matéria coletável, fundada exclusivamente em prova documental, não restando quaisquer dúvidas sobre o preço a que efetivamente foi transacionado o imóvel, atenta a fiscalização prévia do Tribunal de Contas (ponto 88.º do PPA). A aplicação do procedimento do artigo 139 do CIRC ao caso em apreço constitui, no entender da Requerente, um formalismo procedimental desproporcionado, que tem como efeito converter uma presunção ilidível numa presunção inilidível de rendimento, em violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação das empresas pelo rendimento real e da neutralidade fiscal (ponto 89.º do PPA e ponto 26.º das alegações escritas). Mais, uma vez que o n.º 6 do artigo 139 do CIRC permite que a AT aceda, no quadro daquele procedimento tributário, à informação bancária da Requerente, tal consubstanciaria, no presente caso, a assunção de um crime por parte da entidade pública, o município de ... e a B... E.M, S.A (ponto 101.º do PPA).

 

24. Já a AT sustenta que foi correta a interpretação e aplicação do artigo 139 do CIRC ao caso concreto. Com efeito, tendo os serviços verificado que a Requerente não procedera à correção a que alude a al. a) do n.º 3 do artigo 64 do CIRC, e que, concomitantemente, não lançara mão do procedimento de ilisão da presunção especificamente criado pelo legislador, outra coisa não poderiam ter feito que não passasse pela emissão da liquidação impugnada. Daqui não emerge violação do princípio da tributação das empresas pelo rendimento real, consagrado no artigo 104, n.º 2 da CRP, que, enquanto norma-princípio, tem de ser conjugado e ponderado com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

 

25. Também neste ponto assiste razão à AT. O artigo 64 do CIRC [Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis], introduzido aquando da reforma da tributação do património (Decreto-lei n.º 287/2003, de 12 de novembro), contém uma norma especial anti abuso. Atento o crónico risco de abuso e de negócio simulado quanto ao valor da transação, aquela norma estabelece uma presunção de rendimentos, ou seja, presume que o valor a considerar para efeitos de determinação do lucro tributável em sede de IRC é o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, nas hipóteses em que este se quede acima do valor constante do ato ou contrato (artigo 64, n.º 2 do CIRC). Este recorte teleológico é confirmado pelo preâmbulo do supramencionado Decreto-lei n.º 287/2003, de 12 de novembro: “os valores patrimoniais tributários que serviram de base à liquidação de IMT passam a constituir o valor mínimo para a determinação do lucro tributável, quer de IRS, rendimentos empresariais, quer de IRC” (cf. acórdão do STA de 06-11-2019, processo n.º 0264/09.4BELRA 0806/15).

 

26. A presunção de rendimentos é estabelecida pelo n.º 2 do artigo 64 do CIRC: “Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável”. E opera através da al. a), do n.º 3 do artigo 64 do CIRC, que dispõe que “[O] sujeito passivo alienante deve efetuar uma correção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato”.

 

27. O artigo 139 do CIRC [Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis] prevê um procedimento especial para a ilisão da presunção de rendimento instituída pelo n.º 2 do artigo 64 do CIRC. A lei prevê que o procedimento ilisivo da presunção seja instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado (artigo 139, n.º 3 CIRC). O procedimento rege-se pelas regras enunciadas nos artigo 91 e 92 da LGT, com as necessárias adaptações, ou seja, de acordo com as regras que regulam o pedido de revisão pelo sujeito passivo da matéria tributável fixada por métodos indiretos (artigo 139, n.º 5 CIRC). A AT tem a faculdade de aceder à informação bancária do contribuinte referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior (artigo 139, n.º 6 CIRC).

 

28. O legislador determina, ainda, que a impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar da correção efetuada por aplicação da presunção do n.º 2 do artigo 64 do CIRC depende de “prévia apresentação do pedido previsto no n.º 3, não havendo lugar a reclamação graciosa” (artigo 139, n.º 7 CIRC). Disposição que vem sendo interpretada pela jurisprudência do STA nos seguintes termos: “o procedimento previsto no n.º 3 do art. 129.º do CIRC, que visa a demonstração pelo sujeito passivo de que o preço efectivamente praticado foi inferior ao VPT, constitui um condição de procedibilidade da impugnação quando nesta se pretenda discutir o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis” (cf., entre outros, o acórdão do STA de 21-11-2019, processo n.º 0816/08.0BECBR 0558/17). 

 

29. É neste quadro normativo que há-de ser apreciada a argumentação da Requerente no sentido de que a situação em apreço, pelas suas particularidades, constitui uma “exceção evidente” à aplicação do artigo 139 do CIRC e do procedimento probatório nele disciplinado (pontos 62.º e ss. do PPA). Segundo a Requerente, a presunção do artigo 64, n.º 2 do CIRC poderia ter sido ilidida, como foi, em sede de esclarecimentos e do direito de audição prévia no âmbito do procedimento inspeção tributária. O artigo 139 do CIRC deve, pois, ser interpretado de molde a excluir a situação sob juízo do seu âmbito de aplicação.

30. De acordo com o disposto no artigo 11, n.º 1 da LGT, as normas fiscais são interpretadas de acordo com as técnicas ou cânones interpretativos usados no direito civil. Aplicando a teoria tradicional, isso significa, por um lado, atribuir relevância negativa ao elemento gramatical, excluindo os significados que não tenham na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, e, por outro, uma função coadjuvante aos elementos histórico, sistemático e teleológico (artigo 9 do Código Civil). Estando excluído o recurso à analogia para a integração de lacunas, em linha com o princípio da legalidade fiscal (na sua vertente material ou de tipicidade), mostram-se admissíveis os resultados interpretativos que se contenham dentro dos limites gramaticais, como a interpretação extensiva ou restritiva (sobre este ponto, cf. o acórdão n.º 182/2020, processo n.º 868/2018, do Tribunal Constitucional). A técnica da interpretação em conformidade com a Constituição ou com os princípios não tolera a possibilidade de uma interpretação contra legem, isto é, não tolera que, para extrair da norma um sentido conforme com a Constituição ou com os princípios fundamentais, se contrarie o sentido literal ou o sentido objetivo claramente cognoscível da lei. Assim, se a Constituição não impõe o chamado princípio da interpretação literal da lei fiscal, nem por isso confere “carta branca” ao intérprete para chegar a sentidos contra legem, que impliquem sacrifício absoluto do elemento literal.

31. A associação entre os artigos 64 e 139 do CIRC – e a relação que entre eles se desenvolve – é conclusão que não merece contestação. Basta atentar no disposto no n.º 1 do artigo 139 CIRC: “O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova (...)”. Mesmo concebendo que aquilo que a Requerente ambiciona é, no fundo, uma interpretação restritiva do artigo 139 do CIRC, ainda cabível no elemento gramatical das suas prescrições, a verdade é que nenhum dos argumentos veiculados se mostra capaz de produzir o resultado hermenêutico visado.

32. O artigo 139 do CIRC, remetendo – com as necessárias adaptações – para os artigos 91 e 92 da LGT e para o procedimento de revisão da matéria coletável neles previsto, não restringe as vias pelas quais o sujeito passivo pode fazer prova de que o valor do ato ou contrato corresponde ao valor efetivamente praticado nas transmissões onerosas de imóveis. É o que decorre da leitura do n.º 2 do artigo 139 do CIRC e do emprego do advérbio de modo “designadamente”, podendo o sujeito passivo instruir o seu requerimento com cópia das escrituras públicas, notas de lançamento, extratos contabilísticos, cópias de cheques, etc.

33. Depois, ao contrário do que sugere a Requerente, a lei não impõe que, no âmbito do procedimento em causa, a AT aceda à informação bancária da Requerente (artigo 139, n.º 6 do CIRC), antes lhe confere tal faculdade, a exercer em linha com o princípio da proporcionalidade, quando isso se revele necessário para assegurar a verdade fiscal (“a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente”). Mas sobre a indispensabilidade desse acesso no presente caso não tem o Tribunal arbitral de se pronunciar, uma vez que, por erro ou lapso, a Requerente prescindiu de lançar mão do procedimento previsto no artigo 139 do CIRC.[1]

 

34. Enquanto pressuposto da tributação, o princípio da capacidade contributiva, extraído do artigo 13 da CRP e da igualdade enquanto princípio fundamental do Estado de Direito (artigo 2 da CRP), reclama que os impostos incidam sobre factos tributários, ou seja, sobre factos reveladores da força económica do contribuinte. Exige-se, destarte, uma “efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto”, como destacou o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 348/97 (processo n.º 63/96).

 

35. Por razões de praticabilidade, de eficiência e de combate a práticas abusivas (seja sob a forma de evasão fiscal, seja sob a forma de elisão fiscal), o legislador socorre-se amiúde de presunções legais. O princípio da capacidade contributiva, não obstando ao recurso a este meio probatório, reclama, porém, que as presunções estabelecidas pelo legislador em normas de incidência sejam ilidíveis, isto é, suscetíveis de prova em contrário. O artigo 73 da LGT corresponde, na sua finalidade, a uma concretização destas exigências jurídico-constitucionais em matéria de tributação. Se o legislador definir a matéria coletável sem dar ao contribuinte a chance efetiva de demonstrar que essa definição não corresponde à realidade, corre-se o risco de a tributação incidir sobre o “vazio”, ou, o que é o mesmo, sobre uma manifestação de capacidade contributiva inexistente (cf. o acórdão n.º 211/2017, processo n.º 285/15, do Tribunal Constitucional: “a fixação da matéria coletável através do recurso a métodos presuntivos, sem possibilidade de ilisão, pelo contribuinte, da presunção estabelecida na lei, terá como consequência possível (e plausível) a tributação de ganhos (mais-valias) não efetivamente auferidos pelo contribuinte (...) Ora, se o ganho fortuito não existir ou, existindo, ficar muito aquém do estimado, a tributação não será devida. Pelo menos, à luz do princípio da capacidade contributiva ínsito na Constituição portuguesa”).

36. Qualquer tipificação, embora servindo os interesses do princípio da igualdade tributária, acarreta desconsideração das caraterísticas individuais do caso (cf. Ana Paula Dourado, Direito Fiscal, Almedina, 2015, pp. 286-287). Vale isto para dizer que a presunção de abuso constante do artigo 64, n.º 2 do CIRC vale tanto para as situações em que há risco sério de abuso, como para situações em que tal risco é menor, por nelas ter estado envolvida, por exemplo, uma empresa municipal, ou por ter havido fiscalização prévia do Tribunal de Contas. Mister é que a presunção de rendimento, assente num juízo sobre a probabilidade do abuso, possa ser ilidida.

37. O facto de a lei impor um procedimento específico para a ilisão de uma presunção de rendimento – fazendo, inclusivamente, do recurso a esse procedimento condição para a abertura da via contenciosa – não constitui violação do princípio da capacidade contributiva (artigo 13 da CRP). Ao fixar aquele requisito processual, o legislador não retira ao sujeito passivo chance efetiva de ilisão da presunção. Entendeu, contudo, que atenta a complexidade técnica de que normalmente se reveste a fixação do valor dos prédios, se justificava a previsão de um procedimento específico, aplicável sempre que operasse a presunção do artigo 64, n.º 2 do CIRC (cf., sobre esta justificação, acórdão n.º 505/2022, processo n.º 89/2020, do Tribunal Constitucional, embora sobre o prisma do direito a uma tutela jurisdicional efetiva). Uma vez mais, a moldura procedimental montada pelo legislador poderá ter maior ou menor justificação consoante as particularidades do caso concreto, mas isso não faz dela inconstitucional, porque o direito fiscal é um direito de atos-massa, assente no princípio da praticabilidade e na ideia de igualdade baseada na situação média.

38. Tão-pouco se apreende uma qualquer violação do princípio de tributação das empresas pelo rendimento real, inscrito no n.º 2 do artigo 104 da CRP (“A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”). Decorre daquele princípio que as empresas devem, tendencialmente e na medida do possível, ser tributadas pelo rendimento efetivamente auferido, dado pela diferença entre proveitos e gastos, e não pelos lucros presumível ou normalmente realizados, em condições normais de mercado. Constituindo a tributação pelo rendimento real uma refração do princípio da capacidade contributiva no domínio da tributação das empresas, valem plenamente as considerações expendidas supra. Ademais, como amiúde sublinhado pelo Tribunal Constitucional e pela doutrina, as exigências associadas ao princípio da tributação das empresas segundo o lucro real determinam um aumento da intensidade da cooperação exigida ao contribuinte (cf. acórdão n.º 517/2015, processo n.º 418/2013, do Tribunal Constitucional). Obviamente que, não tendo a Requerente lançado mão do artigo 139 do CIRC, acabou por ser tributada, em sede de IRC, em termos que poderão não coincidir com o seu rendimento real. Contudo, isso aconteceu, não por qualquer deficiência imputável ao legislador, mas porque a Requerente prescindiu de cooperar com a AT nos exatos termos definidos na lei tributária.

39. Como a jurisprudência assinala, “a consideração do VPT para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC, quando o valor constante do contrato seja inferior, constitui uma presunção de rendimentos. Essa presunção, se assumisse a natureza inilidível, aliás expressamente vedada pelo artigo 73.º da LGT, poderia suscitar problemas quanto à sua conformidade constitucional, designadamente, por violação do princípio da tributação do rendimento real consagrado no art. 104.º, n.º 2, da Constituição da República” (cf. acórdão do STA de 21-11-2019, processo n.º 0816/08.0BECBR 0558/17). “Neste preciso sentido, o artigo 139.º do Código do IRC é uma manifestação da prevalência da obrigação fundamental de tributar as empresas pelo respectivo rendimento real, presente no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição, e com prejuízo dos valores meramente presumidos” (cf. acórdão do STA de 06-03-2024, processo n.º 0170/13.8BECBR).

40. Assim, não errou a AT ao considerar aplicável à situação da Requerente o procedimento probatório regulado pelo artigo 139 do CIRC, nem estão as normas daquele preceito, na interpretação normativa assim acolhida, feridas de inconstitucionalidade, por violação do princípio da capacidade contributiva (artigo 13 da CRP) ou do princípio da tributação das empresas pelo rendimento real (artigo 104, n.º 2 da CRP).

41. Numa segunda linha de argumentos, a Requerente contesta a aplicação da presunção do artigo 64, n.º 2 do CIRC à situação em apreço, alegando que a transmissão do imóvel, por ser em tudo semelhante à de uma expropriação, não deve ser subsumida ao segmento “transmissão onerosa de imóveis” para efeitos daquele normativo do CIRC. A AT reage argumentando que a transação em causa se tratou, inequivocamente, de uma transmissão onerosa de um imóvel entre duas sociedades comerciais, reentrando, portanto, no âmbito de aplicação do artigo 64, n.º 2 do CIRC (ponto 72.º da Resposta).

42. É indesmentível que a alienação do imóvel teve por base um contrato de compra e venda, conforme atestado pela escritura pública constante do processo administrativo. Todavia, a Requerente alega que o artigo 64 do CIRC não se aplica a transmissões materialmente semelhantes a uma expropriação, em obediência ao princípio da prevalência da substância sobre a forma (pontos 102.º e ss. do PPA). À partida, uma transmissão como a que está em causa no presente processo será enquadrável no conceito de transmissão onerosa de imóveis previsto no artigo 64, n.º 2 do CIRC. E das demais orientações metodológicas fornecidas pelo artigo 11 da LGT, em conjugação com o artigo 9 do Código Civil, não resultam, como se verá, elementos que apontem para conclusão distinta. Vejamos.

43. A resolução de expropriar, prevista no artigo 10 do Código das Expropriações (na redação dada pela Lei n.º 56/2008, de 04 de setembro, aplicável in casu), insere-se no procedimento administrativo de expropriação por utilidade pública com a natureza de ato preparatório desta, integrando o chamado pré-procedimento expropriativo. É o momento em que a entidade expropriante exterioriza a vontade de expropriar, identifica os bens a expropriar e a causa de utilidade pública que sustenta a expropriação e prevê os montantes e encargos a suportar com a expropriação com base no Relatório elaborado por um perito. A resolução é notificada ao expropriado e demais interessados. Antes de requerer a declaração por utilidade pública, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a entidade expropriante deve diligenciar no sentido de adquirir os bens pela via do direito privado, razão pela qual se prevê que a notificação da resolução suprarreferida contenha uma proposta de aquisição, que terá como referência o valor constante do Relatório do perito (artigo 11, n.ºs 1 e 2 do Código das Expropriações). Só uma vez esgotados estes esforços de aquisição pela via do direito privado poderá haver lugar a requerimento de declaração por utilidade pública (artigos 14 e 15 do Código das Expropriações), promovendo-se, a partir daí, a expropriação amigável (quando exista acordo sobre o valor da indemnização), ou a expropriação litigiosa, na falta deste (artigos 33 ss. do Código das Expropriações).

44. Existe jurisprudência do STA que, para efeitos do exercício do direito de reversão dos bens expropriados (artigo 5 do Código das Expropriações), equipara a expropriação propriamente dita ao negócio de direito privado, formalizado por escritura pública de compra e venda, realizado após a declaração de utilidade pública. “O contrato de compra e venda, para além de inserido no processo expropriatório, seja ato de execução, seja negócio substitutivo, não descarateriza a expropriação, a menos que as partes declarem expressamente que desistem dela” (cf. acórdão do STA de 02-06-2004, processo n.º 030256). Este aresto parte, portanto, de uma equiparação entre a expropriação amigável e o contrato de compra e venda substitutivo da expropriação, desconsiderando eventuais diferenças entre estes dois institutos para efeitos do exercício do direito de reversão. Tal linha jurisprudencial não reúne consenso. Noutro entendimento, enfatiza-se que a declaração de utilidade pública não opera a expropriação imediata do prédio, nem veda aos expropriados (ainda que com maiores dificuldades) a possibilidade de o alienarem, só podendo o referido contrato de compra e venda valer como expropriação amigável “se as circunstâncias formais e a vontade real das partes impuserem tal qualificação. Isso não acontecendo, impõe-se a imediata sugestão de que a relação de expropriação, iniciada embora, não chegou a ser ultimada” (cf. acórdão do STA de 05-03-2002, processo n.º 035532).

45. Seja qual for o entendimento que se adote sobre esta questão, que releva apenas lateralmente para o thema decidendum, sempre haveria que concluir que a eventual equiparação entre a expropriação e o negócio de direito privado concluído em lugar desta leva pressuposta a prática do ato de declaração de utilidade pública, enquanto “ato constitutivo ou ato-chave do procedimento expropriativo” (cf. F. Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. 2, Almedina, Coimbra, 2010, p. 382). In casu, a Câmara Municipal emitiu a resolução de expropriar a que alude o artigo 10 do Código das Expropriações, conforme demonstrado no processo administrativo. Porém, tendo sido possível adquirir o imóvel pela via do direito privado, não houve necessidade de avançar para a declaração de utilidade pública nem, consequentemente, para a expropriação, amigável ou litigiosa. A aquisição pela via do direito privado operou como um meio de obstar à expropriação, ocorrendo antes de se iniciar o procedimento expropriativo propriamente dito.

46. Tanto basta para afastar a alegada semelhança entre a expropriação e o contrato de compra e venda do imóvel. E tanto basta para concluir que o artigo 64, n.º 2 do CIRC, no segmento normativo em que se refere a “transmissões onerosas de imóveis”, deve ser interpretado no sentido de que abrange transações como a que está em causa nos autos, ou seja, uma transmissão onerosa de um imóvel efetuada entre uma sociedade comercial e uma empresa municipal sob a forma societária, concluído num momento em que já era conhecida a intenção de expropriar por parte do município de ... .

47. A apoiar esta asserção poderia ainda afiançar-se um outro argumento de ordem sistemática. Dispõe o artigo 12, n.º 1 do CIMT que “[O] IMT incidirá sobre o valor constante do ato ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior”. O n.º 4 prevê algumas exceções a esta regra, entre elas a regra 17.º, onde se prevê que “[O] valor dos bens expropriados por utilidade pública é o montante da indemnização, salvo se esta for estabelecida por acordo ou transação, caso em que se aplica o n.º 1”. Esta norma releva por dois motivos. Primeiro, o STA já admitiu que, quando o valor a considerar para efeitos de liquidação de IMT seja apurado com base numa das exceções previstas no n.º 4 do artigo 12 do CIMT, não será de aplicar a presunção inscrita no artigo 64, n.º 2 do CIRC (cf. acórdão do STA de 21-11-2019, processo n.º 0816/08.0BECBR 0558/17). Segundo, daquela norma resulta que a regra geral de cálculo do IMT com base no VPT (artigo 12, n.º 1 do CIMT) se aplica mesmo nos casos em que haja expropriação, desde que as partes tenham chegado a um acordo sobre o valor da indemnização. Ora, se é assim quando haja expropriação (amigável), assim terá de ser, a fortiori, nos casos em que haja um contrato de compra e venda concluído na fase do pré-procedimento expropriativo, antes, portanto, da prática do ato constitutivo da expropriação, como acontece no caso sub judice. A prevalência da substância sobre a forma não coonesta a interpretação sufragada pela Requerente.

48. Em síntese, entende o Tribunal arbitral que a liquidação de IRC não está ferida de ilegalidade, porquanto a AT interpretou e aplicou corretamente os artigos 64 e 139 do CIRC. De facto, não tendo a Requerente lançado mão – como deveria – do procedimento probatório regulado no artigo 139 do CIRC, não logrou ilidir, de acordo com os pressupostos processuais legalmente definidos para esse efeito, a presunção de rendimentos estabelecida pelo n.º 2 do artigo 64 do CIRC, à qual também se achava sujeita.

49. Sublinhe-se, finalmente, que a Requerente não lançou mão da presente ação arbitral para discutir a questão de facto relacionada com o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis. As questões sob escrutínio são as duas questões de direito previamente examinadas, ou seja, a questão relacionada com a caducidade do direito liquidar, por um lado, e a questão da interpretação e aplicação dos artigos 64 e 139 do CIRC, por outro. Trata-se de questões que, sem prejuízo de a Requerente não ter lançado mão do procedimento probatório que a lei define como condição necessária para a abertura da via contenciosa (artigo 139, n.º 7 do CIRC), este Tribunal arbitral é plenamente competente para ajuizar, por estarem em causa vícios relativamente aos quais a condição de procedibilidade não opera (cf., neste sentido, o acórdão do STA de 26-06-2013, processo n.º 01216/13).

50. Em face do que vem de ser dito, mostra-se prejudicado o conhecimento do pedido relativo à extinção do procedimento contraordenacional instaurado pela Autoridade Tributária.

 

V – Decisão

Termos em que o Tribunal Arbitral coletivo decide:

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo na ordem jurídica o ato de liquidação impugnado;

b) Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

VI – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em € 148 294,44, sem contestação pela Autoridade Tributária.

 

VII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 3 060,00, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de abril de 2024

 

 

 

 

José Poças Falcão

(Presidente do Tribunal Arbitral)

 

Sérgio Santos Pereira

(Árbitro adjunto)

   

 

 

Marta Vicente

(Árbitro adjunta Relatora)

 

 



[1] Note-se que no acórdão n.º 392/2022, processo n.º 1175/2021, o Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional a norma do artigo 139, n.º 7 do CIRC, quando interpretada no sentido de que o pedido de demonstração do preço efetivo de transmissão de imóveis deve ser indeferido se o sujeito passivo, devidamente notificado para o efeito, não apresentar os documentos de autorização do acesso à informação bancária dos administradores.