Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 121/2023-T
Data da decisão: 2024-05-09  IRC  
Valor do pedido: € 64.726,14
Tema: IRC - Imparidades; créditos de cobrança duvidosa; princípio da especialização de exercícios; princípio da justiça; equidade.
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SUMÁRIO

I - Os requisitos de dedução, para efeitos fiscais, de perdas por imparidade, são precisamente um dos casos de potencial correção a que se refere o artigo 17.º, n.º 1 do Código de IRC;

II - Serão fiscalmente dedutíveis as perdas por imparidades em créditos resultantes da atividade normal que, contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, possam ser considerados de cobrança duvidosa, definida como aquela em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, circunstância que se terá por certificada quando, cumulativamente, i) o crédito esteja em mora há mais de seis meses; ii) existam provas objetivas de imparidade; e iii) tenham sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

III – O artigo 28.º-B do Código do IRC não impõe que as empresas estejam obrigadas a reconhecer de forma automática a perda por imparidade decorrido o período de mora previsto na lei fiscal – esse reconhecimento deve ser feito depois de avaliado e medido o risco de incobrabilidade no caso concreto.

IV – De modo a respeitar o princípio da especialização de exercícios patente no artigo 18.º do Código do IRC, o reconhecimento da perda por imparidade por dívidas de clientes deve ser efetuado no exercício em que se formou a certeza ou convicção objetivamente fundada da difícil cobrabilidade do crédito, em obediência quer ao artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, quer, para efeitos contabilísticos, aos §23 e §24 (a) e (b) da NCRF 27.

V – Ainda que se apure que se verificavam provas objetivas de imparidade num determinado exercício, tendo o sujeito passivo registado a perda por imparidade apenas num exercício posterior, em violação do princípio da especialização de exercícios consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, as exigências derivadas do princípio da justiça consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa podem impor à Autoridade Tributária e aos tribunais que desconsiderem o incorreto reconhecimento e permitam a dedução daquela perda por imparidade ao sujeito passivo, designadamente quando a) se a mesma tivesse sido reconhecida tempestivamente, estivessem cumpridos os demais requisitos para a sua aceitação, ou seja, quando apenas a imputação temporal seja obstáculo ao reconhecimento daquela perda por imparidade, b) quando o incorreto reconhecimento não traduza comprovada intenção de diminuir ou atrasar o pagamento de imposto, e, c) não traga vantagens ao sujeito passivo nem prejuízo para o erário público.

VI – A aplicação do princípio da justiça consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da  Constituição decidindo que a Autoridade Tributária não agiu em conformidade com os cânones constitucionais que devem nortear a sua atuação, encontrando-se, por isso, o ato administrativo praticado inquinado, não equivale a decidir de acordo com a equidade, correspondendo, ao invés a uma decisão de acordo com o direito (constitucional) constituído, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT, porquanto os princípios constitucionais fazem parte do bloco de legalidade a que está sujeita a atuação do Estado-Administração e tribunais.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Rita Correia da Cunha (Árbitra Presidente), João Gonçalves da Silva e João Taborda da Gama (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 10 de maio de 2023, acordam no seguinte:

 

RELATÓRIO

A... S.A., titular do NIPC ..., com sede no..., ..., Alenquer, ...-... ..., freguesia de ... e ..., Concelho de Alenquer (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, 6.º, n.º 2 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral coletivo, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (doravante, “IRC”) com o n.º 2022..., relativo ao ano de 2018, e, bem assim, da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022... e Demonstração de Liquidação de Juros n.º 2022..., conexas com a referida liquidação de IRC (sendo a liquidação referida e as demonstrações com ela conexas em conjunto doravante referidas como a “Liquidação de IRC”), da qual resulta um montante a pagar de € 16.134,21, e bem assim, que se determine a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios na medida em que a Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado.

De acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a) e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 10 de maio de 2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 14 de junho de 2023, tendo junto o processo administrativo em 27 de junho.

A Requerente alega, em síntese, que, incorporando as conclusões do relatório de inspeção tributária (“RIT”) que lhe foi notificado, a Liquidação de IRC se encontra ferida de ilegalidade porquanto desconsidera, em violação dos artigos 28.º-A e 28.º-B do Código do IRC, a dedução contabilística e fiscal ao lucro tributável do exercício de 2018 de perdas por imparidades de dívidas de clientes, no valor de € 64.726,14, resultantes de faturas emitidas em 2014, sustentando, resumidamente, que aquelas dívidas apenas puderam considerar-se de cobrança duvidosa após a falta de resposta a uma carta de cobrança enviada  no ano de 2017, razão pela qual a perda por imparidade apenas foi refletida no resultado líquido do exercício de 2018 e que o princípio da especialização dos exercícios que decorre do Código do IRC tem de ser interpretado tendo em conta os desígnios do princípio da justiça, de raiz constitucional

Por seu turno, a Requerida alega que tal forma de contabilização da imparidade, e o seu reflexo no lucro tributável da Requerente, viola o princípio da especialização dos exercícios consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, encontrando-se em 2018 precludido o direito a refletir aquela perda por imparidade no lucro tributável da Requerente, uma vez que a mesma deveria ter sido refletida, no máximo, até ao exercício de 2016, na medida em que considera que o risco de incobrabilidade do crédito era conhecido, pelo menos desde 2014.

 

MATÉRIA DE FACTO

  1. Factos dados como provados

A Requerente foi constituída em 1986 e desenvolve a sua atividade no sector agropecuário, designadamente na produção e comercialização de suínos, bovinos e cereais.

No exercício de 2014, a Requerente emitiu, para o que releva nos autos, e na sequência da venda de diversos produtos à sociedade  B...Lda., de direito angolano, as seguintes faturas:

  1. FT 19/4 de 14-03-2014, no montante de € 44.726,95;
  2. FT 19/21 de 12-09-2014, no montante de € 19.999,19,

ambas doravante referidas como as “Faturas” (v. Processo Administrativo instrutor e Documento Um junto ao PPA).

 As Faturas foram emitidas com vencimento a 30 dias (v. Processo Administrativo instrutor), não tendo sido pagas.

A sociedade B... Lda. efetuou diversos pagamentos à Requerente entre 2014 e 31 de dezembro de 2016, conforme Documentos Um e Três juntos ao PPA, também constante dos anexos ao RIT que integra o Processo Administrativo.

Desde outubro de 2013 e pelo menos até 31 de janeiro de 2016, a empresa B... Lda., manteve relações comerciais com a Requerente, tendo sido efetuadas vendas pela Requerente até 2014 e efetuados pagamentos pela B... Lda. à Requerente até 31 de janeiro de 2016 – cfr. Documento Três junto ao PPA.

Em 20 de abril de 2017, a advogada da Requerente enviou, por correio registado com aviso de receção (registo RD...PT), à empresa B... Lda. uma carta de cobrança relativa às Faturas, da qual consta, entre o mais, que “[…] Caso V. Exa. pretenda evitar o recurso à via judicial, deverá, até ao próximo dia 15 de maio de 2017, proceder à regularização da dívida ou apresentar uma proposta para a resolução amigável da presente situação […]” – cfr. anexo 5 ao RIT incorporado no Processo Administrativo.

Não houve qualquer resposta por parte do cliente (cfr. §§16.º e 17.º do PPA) tendo a carta sido devolvida ao remetente.

No ano de 2018, a Requerente registou, na respetiva contabilidade, perdas por imparidade, no montante de € 64.726,14, as quais foram também consideradas pela Requerente como dedutíveis fiscalmente no mesmo exercício (facto incontroverso tendo em vista o §12.º do PPA e o RIT).

O montante daquelas perdas por imparidade (€ 64.726,14), registado na conta 6511– Perdas por Imparidade – Em dívidas a receber – Clientes, foi registado tendo por base a falta de pagamento das Faturas.

Em sede de inspeção tributária ao exercício de 2018, cujo relatório foi emitido em Outubro de 2022 (o “RIT”), a Requerida procedeu a diversas correções à matéria tributável para efeitos de IRC daquele exercício, tendo a Requerente regularizado imediatamente a maioria delas, com exceção da que deu origem à Liquidação de IRC impugnada e que está em causa nos presentes autos, relativa à dedução das referidas perdas por imparidade em dívidas de clientes – facto não controvertido e alegado na Resposta.

Dessa correção que subsistiu resultou a Liquidação de IRC impugnada, no valor total de € 16.134,21, que foi pago pela Requerente em 15 de dezembro de 2022 - – facto não controvertido e alegado na Resposta.

 

B.Factos dados como não provados

Não se provou que o risco de incobrabilidade dos créditos relativos às Faturas fosse manifestamente conhecido pela Requerente desde o ano de 2014 (alegado no §11 da Resposta).

Não existem outros factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

 

C.Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

 

DO DIREITO

  1. Questão a decidir

Nos presentes autos está em causa saber se a Liquidação de IRC objeto do presente processo se encontra ou não ferida do vício de violação de lei, concretamente da norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 23.º, n.º 2, alínea h), 28.º- A, n.º 1, alínea a) e 28.º-B, n.º 1, alínea c), do Código do IRC, na medida em que incorpora a decisão da Requerida, tomada no RIT, de desconsiderar como gasto dedutível, no exercício de 2018, a perda por imparidade registada pela Requerente nesse exercício, em função da contabilização no mesmo da dívida resultante das Faturas como sendo de cobrança duvidosa.

Assim enquadrado o tema genérico que nos cumpre apreciar, já se vê que o sentido decisório dependerá da resposta concreta a algumas questões levantadas pelas partes e da subsunção desses factos ao direito aplicável, tendo em conta a jurisprudência – relativamente vasta – já produzida, quer pelos tribunais administrativos e fiscais judiciais quer por diversos tribunais arbitrais tributários, nesta matéria.

E tais questões, de facto e de direito, que orientarão o percurso decisório que de seguida se expõe, são essencialmente as seguintes:

  1. O risco de incobrabilidade dos créditos em causa era manifestamente conhecido pela Requerente desde o ano de 2014, na medida em que o prazo de vencimento das Faturas em causa, que era de 30 dias, se encontrava largamente ultrapassado em 2015/2016?
  2. A Requerente devia – ao invés do que fez - ter imediatamente registado uma imparidade, por supostamente existir evidência objetiva, para efeitos do então §24 da NCRF 27, de que se estava diante uma quebra contratual, por força do não pagamento?
  3. Em que altura podia a Requerente considerar os mencionados créditos como de cobrança duvidosa, e portanto suscetíveis de constituir perda por imparidade ao abrigo do Código do IRC?
  4. Em geral, quando é que um crédito deve ser reconhecido como de cobrança duvidosa ou incobrável? Tal deve suceder quando tiver sido excedido o prazo de pagamento, ou seja, quando se verifique a situação de mora ou é necessário estabelecer-se o incumprimento definitivo? Ou, antes, tal reconhecimento deve ocorrer quando haja outros indícios objetivos de que o adquirente não pretende ou não conseguirá pagar?
  5. No presente caso, o registo da perda por imparidade pela Requerente em 2018 foi aleatório, teve em vista poupança de imposto ou verifica-se uma lógica subjacente a esta forma de contabilizar e de deduzir para efeitos fiscais?
  6. A considerar-se que aquela perda por imparidade não foi registada no exercício económico correto, o direito à respetiva dedução fica precludido por força do princípio da especialização de exercícios e por ser consequência de uma omissão voluntária?

Vejamos:

 

  1. Do enquadramento legal da questão genérica

Como é consabido, Portugal adotou um modelo de dependência parcial entre a contabilidade e a fiscalidade das empresas, plasmado no número 1, do artigo 17.º, do Código do IRC e nos termos do qual “[o] lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”, o que equivale a dizer, como referia o Professor J. L. Saldanha Sanches no seu manual de Direito Fiscal, que “temos, pois, o balanço fiscal como balanço comercial corrigido” (cfr. Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra, 2007, p. 372 e, sobre a questão em geral, a bibliografia mencionada nas páginas seguintes da mesma obra).

Ora, os requisitos de dedução, para efeitos fiscais, de perdas por imparidade são precisamente um dos casos de potencial correção nos termos deste Código.

Não são dedutíveis como gastos, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, alínea h), do Código do IRC, quaisquer perdas por imparidades, mas apenas as que puderem ser enquadradas no artigo 28.º-A do mesmo diploma, como o proémio do respetivo n.º 1 e a primeira parte do n.º 2 não deixam dúvidas: “1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:[…]; 2 - Podem também ser deduzidas, para efeitos de determinação do lucro tributável, as perdas por imparidade para risco de crédito, em títulos e em outras aplicações […]” (sublinhados dos signatários).

Ora, da alínea a) do citado número 1 resulta então que, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, poderão ser deduzidas para efeitos fiscais as perdas por imparidades “[…] relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, […] que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade” (destaques e sublinhados dos signatários).

Já o artigo 28.º-B (Imparidades em Créditos), n.º 1, alínea c), do Código do IRC estabelece que “1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos: […]

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento” (destaques dos signatários).

Ou seja, sintetizando a Lei, serão fiscalmente dedutíveis as perdas por imparidades em créditos resultantes da atividade normal que, contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, possam ser considerados de cobrança duvidosa, definida como aquela em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, circunstância que se terá por certificada quando, cumulativamente, i) o crédito esteja em mora há mais de seis meses; ii) existam provas objetivas de imparidade; e iii) tenham sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

 

  1. Do enquadramento legal e jurisprudencial do caso concreto
    1. Os créditos eram passíveis de ser qualificados como de cobrança duvidosa em 2014, 2015 ou 2016?

 No que ao presente caso diz respeito, é inequívoco que a Requerida não coloca em causa que os créditos da Requerente resultantes das dívidas da sociedade B... (única matéria em causa nos autos) sejam reais, que resultem da atividade normal da Requerente, nem que sejam suscetíveis de constituir imparidades para efeitos de qualificação contabilística.

Pelo contrário, como bem se retira quer do RIT constante do Processo Administrativo (v. em particular a p. 20 do Processo Administrativo), quer da Resposta (v. §6 a 10§ e §27 a 29), a AT entende que a Requerente devia reconhecer aquela perda por imparidade, porquanto o crédito seria de qualificar como de cobrança duvidosa, considerando, no entanto, que por tê-lo feito tardiamente (i.e. após 2014 ou, no limite, após 2016), num exercício económico distante dos que correspondiam às datas de vencimento das Faturas, esse seu direito a deduzir aquela perda por imparidade ficou precludido, tendo em conta o princípio da especialização de exercícios plasmado nos n.os 1 e 2 do artigo 18.º do Código do IRC.

O que significa que, antes de mais, atendendo à fundamentação constante do RIT que originou a Liquidação de IRC impugnada nos autos, cumpre cuidar de saber se os créditos originados pelas Faturas se tornaram, em 2014, de cobrança duvidosa ou se, pelo contrário, só passaram a merecer tal qualificação mais tarde, mormente em 2017 ou 2018.

Ora, qualificar como de cobrança duvidosa implica determinar, cumulativamente, (i) quando é que estes créditos passaram a estar em mora há mais de seis meses – e aqui não se afigura duvidoso que tal tenha sucedido, no caso da primeira Fatura (emitida em 14 de março de 2014, com vencimento no prazo de 30 dias), em 14 de outubro de 2014 e, no caso da segunda (emitida em 12 de setembro de 2014), em 12 de abril de 2015 –, (ii) se se verificavam provas objetivas de imparidade e (iii) se foram efetuadas diligências de cobrança.

Neste contexto é de salientar que ficou provado nos autos que, pelo menos até ao exercício de 2016, a sociedade devedora efetuou pagamentos à Requente, o que contraria a tese de que existissem, desde 2014, provas objetivas de imparidade posto que, como muito bem refere a AT a p. 17 e 18 do PA em que se inclui o RIT, “[o] reconhecimento da imparidade apenas deverá ser efetuado se existir uma evidência objetiva da mesma, ou seja, quando existam dúvidas na cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes”, sendo que “o parágrafo 24ª NCRF 27 estabelece alguns tipos de evidências objetivas para se verificar se existe necessidade, ou não, do reconhecimento da perda por imparidade como, por exemplo: significativa dificuldade financeira do devedor; não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida no prazo estabelecido contratualmente; probabilidade de o devedor entrar em falência (insolvência). Com a verificação destas evidências objetivas, a entidade passará a reconhecer a perda por imparidade, reduzindo, ou anulando na totalidade o valor do ativo, por contrapartida de gastos do período”.

Ora, se nos exercícios de 2014, 2015 e 2016 o cliente solveu pelo menos em parte os seus fornecimentos efetuados pela Requerente, afigura-se que em nenhum desses exercícios era evidente que a Requerente devesse dar por verificadas provas objetivas de imparidade.

Refira-se aliás que, no caso objeto do processo arbitral n.º 553/2020-T, com algumas similitudes ao presente (embora relativo a créditos/dívidas entre sociedades com idêntico corpo acionista e por isso tendo a sociedade credora um conhecimento mais profundo das condições económicas da sociedade devedora), a AT defendeu a posição contrária à que aqui pretende que obtenha vencimento. Com efeito, segundo se pode ler na fundamentação do acórdão proferido nesse processo arbitral n.º 553/2020-T, a AT fez constar do relatório de inspeção notificado à requerente daquele caso que “[t]omando por referência a decisão arbitral do CAAD de 14-05-2019, exarada sobre o processo n.º 666/2018-T, que refere que a constituição de perdas por imparidade depende da existência de provas objetivas de imparidade, não bastando, para tal, o seu mero reconhecimento com base na mora do pagamento. E continua considerando que a avaliação das possibilidades de cobrança dos créditos incumbe, em primeira linha, aos sujeitos passivos. Na verdade, prossegue, apesar do atraso no pagamento das faturas, inexistindo provas da incobrabilidade de toda ou parte da dívida, não deveria ser reconhecida a perda por imparidade. Aceitando […] o facto evidenciado pelos registos na conta corrente do cliente de vendas efetuadas, de forma continuada, ano após ano, mesmo depois de registadas sucessivas perdas por imparidade, está-se perante factos evidentes de confiança na honorabilidade da K... em fazer face, ainda que tardiamente, aos compromissos de pagamento assumidos, pelo que de outra forma não se justificaria o reiterado fornecimento de mercadoria. […] Nesta base, também os juízes do CAAD, no referido processo, consideram que «Se (...) apesar do atraso no pagamento das faturas, não tinha provas de incobrabilidade (...) da dívida, (...) não deveria reconhecer a perda por imparidade (...)» Continuam alegando que «Na verdade, o atraso no pagamento da dívida, só por si, não é prova de incobrabilidade, como decorre do facto de aquela alínea c) do n.º 1 do artigo 28.º-B exigir, para além do atraso no pagamento, provas objetivas de imparidade».” (destaques e sublinhados dos signatários).

Do mesmo modo, defende Helena Pegado Martins, no capítulo dedicado ao IRC na obra coletiva Lições de Fiscalidade, Vol I (Coord João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães), Almedina, Coimbra: 2015, 4.ª Ed., p. 306, que “o n.º 2 do artigo [28.º-B do Código do IRC] determina as percentagens máximas de perdas por imparidade acumulada que podem ser deduzidas fiscalmente, variando as mesmas em função do tempo de mora. Tal não significa que as empresas estejam obrigadas a reconhecer contabilisticamente a perda por imparidade decorrido o período de mora previsto na lei fiscal. Cabe-lhes, em função das circunstâncias do caso, avaliar se, findo esse período, existe ou não o risco de incobrabilidade e mensurar esse risco […]” (sublinhados dos signatários).

E idêntica posição tem sido defendida de forma constante nos tribunais superiores, como liminarmente se retira, por exemplo, do acórdão do TCA Sul de 28.10.2021, proferido no processo n.º 396/05.8BESNT (ainda que aplicando anterior regime), em cujo sumário se pode ler que “[c]onsiderando o princípio da especialização dos exercícios, no caso da constituição de provisões por créditos de cobrança duvidosa, estas só podem ser admitidas como custo fiscal do exercício no qual os créditos em causa foram considerados como sendo de cobrança duvidosa e como tal contabilizados, independentemente do momento em que o crédito entre em mora” (sublinhados dos signatários).

De todo o exposto, e acrescendo que a prova produzida nos autos apenas permite considerar a mora convertida em incumprimento definitivo a partir de 15 de maio de 2017 (data fixada na carta admonitória junta ao Processo Administrativo como prazo final para cumprimento da obrigação de pagamento por parte da sociedade B..., Lda.) nos termos do regime do artigo 808.º do Código Civil, e que foi nesse exercício de 2017 que foram encetadas efetivas diligências de cobrança, parecem não restar dúvidas de que, pelo menos até ao exercício de 2017, os créditos originados pelas Faturas não podiam ser considerados de cobrança duvidosa e, logo, não permitiam a sua dedução pela Requerente, como gasto, a título de perda por imparidade, ao contrário do que sustenta a Requerida.

 

  1. Os créditos eram passíveis de ser qualificados como de cobrança duvidosa (e portanto a perda por imparidade devia ter sido reconhecida) em 2017 ou em 2018?

Aqui chegados, cumpre resolver a questão de saber se, sendo a situação de facto como se expôs e sabendo que a mora se converteu em incumprimento definitivo em maio de 2017, devia ou não a mencionada perda por imparidade ter sido reconhecida nesse exercício de 2017 e não no exercício de 2018, como foi – o que é o mesmo que aferir quando é que se deve dar por justificado o risco de incobrabilidade e quando é que se devem dar por verificadas provas objetivas de imparidade.

E, quanto a este tema, mesmo admitindo que a justificação do risco de incobrabilidade não deixa de encerrar um certo grau de subjetividade por parte de quem concretiza os registos contabilísticos nem de assentar num certo juízo de normalidade (neste sentido cfr. decisão arbitral relativa ao processo n.º 284/2017-T), facto é que as normas contabilísticas fornecem guias de atuação que, em concretização dos princípios da prudência e da especialização de exercícios, parecem apontar para que o reconhecimento desta perda por imparidade, para efeitos contabilísticos e fiscais, devesse ter ocorrido no ano de 2017.

Vejamos:

  • Dos Documentos Um e Três juntos à P.I. resulta que o último pagamento feito à Requerente pela sociedade B... Lda. ocorreu em 31 de janeiro de 2016, tendo, no exercício de 2015 sido efetuado pelo menos um pagamento por trimestre, num total de 10 pagamentos entre 2014 e 2016;
  • Não obstante aquela sociedade ter passado praticamente a totalidade do exercício de 2016 em incumprimento (mas relembre-se, como se fez na decisão arbitral relativa ao processo n.º 431/202-T, que “não se pode ignorar neste domínio, entre outras, as circunstâncias económicas e culturais dos diversos países, dependendo das quais o significado de uma determinada mora pode ser diferente, num caso indiciador de risco de incobrabilidade e noutro de mero atraso no pagamento, em particular em jurisdições com as características de Angola e sujeitas a controlos cambiais”), a Requerente decidiu interpelar a B... Lda. para o pagamento em abril de 2017, determinando a data de 15 de maio de 2017 como a data a partir da qual se sentiria autorizada a intentar uma ação judicial de cobrança – ou seja, não havendo resposta até àquela data, era seguro ter o credor perdido o interesse na prestação, na terminologia do artigo 808.º do Código Civil.
  • A Lei (v.g. artigo 28.º-B do Código do IRC) só qualifica o crédito como sendo de cobrança duvidosa com a verificação de diligências de cobrança – que in casu ocorreu apenas em abril de 2017 e não antes;
  • Sucede que aquela carta de cobrança não foi sequer recebida pelo destinatário, pelo que não teve resposta dentro do prazo cominado (15 de maio de 2017), tendo sido devolvida ao remetente em 12 de julho de 2017 (cfr. p. 89 do Processo Administrativo);

Ou seja – e sem embargo de as diligências de cobrança terem apenas sucedido em abril de 2017, o que obsta ao reconhecimento da imparidade em qualquer exercício anterior, como vimos – não consta do processo que a devedora tenha dado qualquer sinal de que poderia vir a solver a dívida desde janeiro de 2016, pelo que, pelo menos desde a data de devolução da carta de interpelação (12 de julho de 2017) poderia a Requerente presumir, num juízo de normalidade, que dificilmente voltaria a ter contacto com a devedora, uma vez que nem para efeitos de mera interpelação conseguiu contactá-la.

Encontrando-se aqueles créditos em mora há mais de seis meses (i.e. desde outubro de 2014 e março de 2015 como referido, e não desde julho de 2017 como refere a Requerente nos artigos 37.º a 39.º do PPA[1]), julga-se terem ficado verificados os requisitos de justificação do risco e de comprovação objetiva da imparidade exigidos pelo artigo 28.º-B, n.º 1, alínea c) do Código do IRC, a partir do momento em que a interpelação admonitória foi devolvida .

Ora, se assim é, e existindo apenas um marco que objetivamente permite presumir a ausência de contactos e a perda de interesse do credor (a devolução da interpelação admonitória em 12 de julho de 2017, sem que a mesma alguma vez tenha chegado à devedora), por aplicação do princípio da especialização de exercícios consagrado no artigo 18.º do Código do IRC deveria ter sido reconhecida a perda por imparidade nesse exercício de 2017, no qual, num juízo de normalidade mas baseado em elementos objetivos, se formou essa certeza ou convicção da difícil cobrabilidade do crédito, em obediência quer ao artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, quer, para efeitos contabilísticos, aos §23 e §24 (a) e (b) da NCRF 27. Tal  reconhecimento deveria ter sido efetuado na percentagem de 100%, por comando do artigo 28.º-B, n.º 2, alínea d) do Código do IRC, uma vez que os créditos se encontravam em mora há mais de 24 meses, como vimos.

Demonstrado que está que a Requente registou a perda por imparidade, para efeitos contabilísticos e fiscais, no exercício de 2018, o que fez incorretamente, resultando, no entender deste tribunal, das regras constantes do Código do IRC aplicáveis que o deveria ter feito no exercício de 2017, impõe-se analisar quais as consequências desse erro, ou seja, se por força do mesmo ficou precludida a possibilidade de deduzir a perda por imparidade aqui em causa, ou se, por intervenção do princípio da justiça, deve relevar-se o mencionado erro e em consequência anular , a finale, a liquidação de IRC de 2018 impugnada.

  1. O princípio (legal) da especialização de exercícios e o princípio (constitucional) da justiça – sua aplicação ao caso concreto

Adiante-se já que, atenta a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais arbitrais que se têm dedicado a este assunto,[2] bem como os subsídios da doutrina que de há muito vem apontando a necessidade de flexibilizar a rigidez do princípio da especialização de exercícios,[3] afigura-se que esta é uma situação em que não pode deixar de reconhecer-se que o lapso contabilístico do contribuinte, aqui Requerente, não deve ter como resultado a impossibilidade de dedução ao lucro tributável de uma perda que AT reputa de real.

Com efeito, e em jeito de súmula da jurisprudência acima mencionada e que tem vindo a ser proferida sobre esta matéria, tem sido entendido que, ainda que se apure que se verificavam provas objetivas de imparidade num determinado exercício, tendo o sujeito passivo registado a perda por imparidade apenas num exercício posterior, em violação do princípio da especialização de exercícios consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, as exigências derivadas do princípio da justiça consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa podem impor à Autoridade Tributária e aos tribunais que desconsiderem o incorreto reconhecimento e permitam a dedução daquela perda por imparidade ao sujeito passivo.

Tal pode suceder, de acordo com a jurisprudência referida, designadamente a) quando, se a perda por imparidade tivesse sido reconhecida tempestivamente, fosse manifesto estarem cumpridos os demais requisitos para a sua aceitação, ou seja, quando apenas a imputação temporal seja obstáculo ao reconhecimento daquela perda por imparidade, b) quando o incorreto reconhecimento não traduza comprovada intenção de diminuir ou atrasar o pagamento de imposto, e, c) não traga vantagens ao sujeito passivo nem prejuízo para o erário público.

Estarão estes critérios presentes no caso que ora se julga? Este tribunal entende que sim, pelas seguintes razões:

  • A AT reconhece a veracidade do crédito/dívida, bem como a duvidosa cobrabilidade do mesmo, como resulta inequivocamente do Processo Administrativo (v. em particular a p. 20), e da Resposta (v. §6 a §10 e §27 a §29). Considera, contudo, que a perda deveria ter começado a ser reconhecida em 2014 sendo deduzida a última parte em 2016. Estamos, por isso, perante uma mera questão de alocação temporal;
  • A Requerida não alegou nem provou que esta potencialmente errada imputação temporal da perda por imparidade se devesse a qualquer intenção artificiosa ou enganadora que vise beneficiar a Requerente face ao Estado, nem foi por qualquer forma trazido aos autos qualquer indício nesse sentido;
  • Além disso, como resulta da análise contextual patente no RIT, o lucro tributável da Requerente em 2017 foi superior ao de 2018 – cfr. p. 11 do Processo Administrativo – o que significa que em termos de carga fiscal global até teria sido ligeiramente mais benéfico à Requerente deduzir esta perda por imparidade no exercício de 2017. Em consequência, para o erário público, este lapso contabilístico foi irrelevante ou, no limite, beneficiou-o; e,
  • Por fim, por aplicação do artigo 28.º-B, n.º 2, alínea d), do Código do IRC, a percentagem de perda por imparidade dedutível em 2018 e em 2017 seria a mesma, porquanto os créditos estavam em mora há mais de 24 meses, pelo que nem se trata de um modo de obter uma dedução superior pelo registo num determinado ano e não noutro

Por estas razões, parece-nos ser de acompanhar integralmente o decidido no acórdão arbitral proferido no processo n.º 202/2022-T, que damos por reproduzido, o qual é profusamente sustentado em jurisprudência judicial e arbitral, e no qual se pode ler, entre o mais, o seguinte:

“Está em causa uma questão profusamente analisada pelos tribunais: a eventual prevalência do princípio da justiça sobre o princípio da especialização de exercícios.

A este propósito, a esmagadora maioria da jurisprudência proferida tem considerado que o princípio da especialização dos exercícios deve ser conciliado com o princípio da justiça, de modo a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios tendentes a manipulá-los.[…]

[T]em-se registado, por parte dos tribunais, duas teses antagónicas em torno do princípio da especialização de exercícios.»

A esse propósito, assinala o mesmo acórdão do CAAD [334/2018-T] que vimos acompanhando:

«a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios; b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

[…]

A Jurisprudência consente, actualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição).

A tese actual (…) rompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…)»

Com efeito, constitui jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo  que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape.

E continua o aresto arbitral que vimos acompanhando (proferido no processo n.º 202/2022-T), citando o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 19/11/2008, no processo n.º 0325/08, no sentido de que “[n]a ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio”, tal como resulta de diversos outros arestos judiciais e arbitrais que alinham pelo mesmo diapasão.

Refere ainda a mencionada decisão arbitral, com relevância para o caso aqui em análise, que “[a] própria Administração Tributária há muito reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

«Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.»

Concluindo ainda o mesmo acórdão arbitral, por fim, que “[n]os casos em que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido que deva prevalecer o princípio da justiça sobre a legalidade estrita relativa ao princípio da especialização dos exercícios são situações em que da não observância desse princípio não advém qualquer prejuízo para o erário público, nomeadamente situações em que o sujeito passivo não obteve vantagens ou até foi prejudicado pelo erro que praticou na aplicação do princípio da especialização dos exercícios. Em situações desse tipo, não se pode justificar que seja infligida ao contribuinte uma maior oneração fiscal, em nome de um respeito fetichista e acrítico pela observância da legalidade e à margem de qualquer perspectiva de prossecução do interesse público, que é o dever primacial a observar pela Administração Pública, como decorre do n.º 1 do artigo 266.º da CRP.»” (cit., destaques e sublinhados dos signatários).

Ora, atenta a uniformidade jurisprudencial acima elencada e demonstrado que está que (i) a Requerente não obteve qualquer benefício pelo facto de ter registada a perda em 2018 e não em 2017, pelo contrário, e que (ii) desse lapso não resultou qualquer prejuízo para o erário público, in casu o princípio da especialização dos exercícios deve conformar-se e ser interpretado de acordo com os princípios da imparcialidade e da justiça, com consagração constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), pelo que deveria a Requerida ter-se abstido de proceder à correção que conduziu à Liquidação de IRC impugnada (a qual inclui os juros compensatórios) que, assim, se anula por estar ferida de vício de violação de lei, por erro de direito ao aplicar o artigo 18.º do Código do IRC ao arrepio da Constituição (máxime em violação dos princípios da constitucionalidade da atuação da administração, da imparcialidade e da justiça) e ainda por violação do artigo 23.º, n.º 1, alínea h), e 28.º-B, do Código do IRC.

Estaremos a decidir com base na equidade e, portanto, em violação do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT? Entendemos que não.

Com efeito, o mencionado artigo 2.º, n.º 2, do RJAT veda o recurso à equidade como critério de decisão em sede de arbitragem tributária (contrariamente ao que sucede na generalidade das arbitragens voluntárias), em atenção ao princípio da indisponibilidade dos créditos tributários (previsto no artigo 30.º n.º 2 da LGT e que se tem entendido decorrer dos princípios constitucionais da legalidade e igualdade que devem pautar os atos da Autoridade Tributária em relação aos contribuintes).[4]

Literalmente, aquele n.º 2 comanda que “[o]s tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”.

Ora, a operação exegética efetuada na presente decisão reconduz-se à subsunção dos factos ao direito atendendo à globalidade do bloco jurídico (legal e constitucional) aplicável à situação, em vez de se atender simplesmente à letra de determinadas normas do Código do IRC – é uma interpretação de índole eminentemente sistemática.

Com efeito, tanto é direito constituído (e na verdade, positivado) a norma ínsita no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que impõe que o Estado-Administração atue de acordo com o (e limitado pelo) princípio da justiça, como a norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 18.º, 28.º-A e 28.º-B  do Código do IRC – podendo o agente decisor escolher aplicar ou não o princípio da justiça ao caso dos autos mas sendo metodologicamente incorreto excluí-lo à partida do leque de normas aplicáveis à situação.[5]

Como se aponta no Acórdão do TCA Sul de 25 de fevereiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 49/17.4BCLSB, “o julgamento segundo critérios de equidade é aquele que confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis” (destaques dos signatários).

Ora, como se viu pela fundamentação acima elencada, não é o que sucede na decisão que aqui toma este Tribunal Arbitral (nem foi o que sucedeu na decisão sob recurso no mencionado aresto do TCA Sul): aqui, como ali, não se afastam normas legais para atingir um resultado fáctico que o tribunal entenda ser mais justo no caso concreto; trata-se, na realidade, de interpretar a norma resultante do artigo 18.º do Código do IRC (e, bem assim os artigos 23.º, n.º 1, alínea h), e 28.º-B), compatibilizando aquela regra legal com os princípios da constitucionalidade da atuação da administração, da imparcialidade e da justiça, consagrados no artigo 266.º, n.º 2 da Lei Fundamental, que devem conformar a atuação da administração pública, em particular da Autoridade Tributária, em atenção aos elementos sistemáticos que não podem deixar de ser tidos em conta na interpretação e aplicação de normas jurídicas.[6]

É que, como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “apesar de, em princípio, não haver administração sem mediação legal e de, em regra, a Administração não poder desaplicar uma lei dando prevalência à Constituição (a não ser em casos de necessidade, cfr. art. 271.º/3), ainda assim o princípio da constitucionalidade da administração não deixa de ter alcance e valor específico. Além de, nos termos estritos abaixo expostos, poder justificar a desaplicação da lei inconstitucional, ele exige que a Administração: (a) não viole autonomamente a Constituição; (b) se paute pelos valores constitucionais no exercício dos poderes discricionários que a lei lhe deixe; (c) interprete e aplique as leis no sentido mais conforme à Constituição. Serão inválidos, podendo ser declarados nulos ou ser anulados (conforme os casos), os actos administrativos que violem directamente a Constituição. O princípio da constitucionalidade é ainda relevante para efeitos de densificação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (cfr. infra)”.[7]

No que se refere ao princípio da justiça, sublinham aqueles Ilustres Autores que este “aponta para a necessidade de a Administração pautar a sua actividade por certos critérios materiais ou de valor, constitucionalmente plasmados, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º), o princípio da efectividade dos direitos fundamentais (art. 2.º), sem esquecer o princípio da igualdade e da proporcionalidade. A observância destes princípios materiais de justiça permitirá à Administração a obtenção de uma «solução justa» relativamente aos problemas concretos que lhe cabe decidir” e, relativamente ao princípio da imparcialidade, defendem que um dos seus aspetos fundamentais “consiste em que, no conflito entre o interesse público e os interesses particulares, a Administração deve proceder com isenção na determinação da prevalência do interesse público, de modo a não sacrificar desnecessária e desproporcionadamente os interesses particulares (imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade”.[8]

E é desta base conceptual que parte este Tribunal para entender que, ao recusar a dedutibilidade das perdas por imparidade registadas pela Requerente no exercício de 2018 em relação às Faturas, aplicando cegamente o disposto no artigo 18.º e no artigo 28.º-B, n.º 2, alínea d), ambos do Código do IRC, a Requerida atuou em violação dos princípios da constitucionalidade da atuação da administração, da justiça e da imparcialidade previstos no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição – ou seja, ao desconsiderar que, ao negar essa dedutibilidade, estaria a impedir a Requerente de deduzir perdas que a própria Requerida reconhecia como dedutíveis e sem que qualquer razão de interesse público impusesse essa atuação (na medida em que a aceitação dessa perda não se traduzia em qualquer prejuízo para o erário público), tudo por meras razões formais e sem atender à materialidade da situação, a Requerida violou as regras constitucionais que regulam expressamente a sua atuação.

O que é dizer que defende este Tribunal que o próprio ato de liquidação que consubstancia a decisão de recusar a dedutibilidade da perda por força do artigo 18.º do Código do IRC se encontra ferido de vício de violação de lei constitucional, qual seja, dos princípios da constitucionalidade da atuação da administração, da imparcialidade e da justiça, mais se traduzindo esse erro de direito na violação do artigo 23.º, n.º 1, alínea h), e 28.º-B, do Código do IRC.

Tal entendimento, assentando na compatibilização de todo o bloco de legalidade (ordinário e constitucional) passível de lograr aplicação ao caso, é substancialmente diferente de uma potencial decisão que se baseasse na equidade, e que pressuporia um afastamento expresso – pelo tribunal arbitral – das soluções possíveis ao abrigo do direito constituído, por conduzirem a um resultado que os árbitros considerassem injusto no caso concreto.

É que, saliente-se, dada a redação do artigo 4.º do Código Civil, a possibilidade de recurso à equidade para qualquer decisão em matéria fiscal, mesmo pelos tribunais judiciais, superiores ou não, será muitíssimo limitada, senão mesmo impossível em matéria fiscal. Com efeito, daquele artigo, com epígrafe “Valor da Equidade”, resulta o seguinte:

Os tribunais podem resolver segundo a equidade:

a) Quando haja disposição legal que o permita; [como sucede, por exemplo, com o artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil]

b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível; [dado o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, que visa precisamente impedir a transação no contexto jus-tributário,[9] afigura-se que esta disposição afasta definitivamente a equidade deste tipo de matéria]

c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória”.

Afigura-se assim, face ao estatuído no artigo 209.º, n.º 2, da Constituição, no citado artigo 4.º e no preâmbulo do RJAT, que devem ser reconhecidos aos tribunais arbitrais tributários poderes de aplicação do Direito constituído (designadamente para recorrer aos princípios que norteiam o sistema jurídico na adoção de decisões) iguais aos de qualquer outro tribunal (não arbitral) que julgue em matéria tributária, não se vislumbrando qualquer base legal para entendimento contrário.

É que, como defende Diogo Freitas do Amaral, “[a] equidade é um modo jurídico de resolver litígios suscitados na vida real — mas um modo alternativo ao da aplicação do direito estrito, modo esse que se caracteriza pela atribuição ao órgão jurisdicional competente de dois poderes que ele em regra não tem:

a) O poder de não aplicar, no todo ou em parte, as normas legais que de outro modo seriam aplicáveis por si mesmas àquele caso concreto;

b) O poder de decidir, pelos seus próprios critérios, o caso concreto que tem para solucionar”.[10]

E, por outro lado, ainda que as decisões contra legem baseadas na equidade (quando permitidas) devam considerar-se tomadas dentro do sistema jurídico (designadamente porque existe uma norma, positiva, que permite esse recurso à equidade), não há dúvida de que “[a]tendendo à lição que se extrai da Constituição e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos sobre o papel da equidade na limitação dos efeitos decorrentes de uma aplicação rígida da normatividade jurídico-positiva […], verifica-se que a equidade pode também em sede de arbitragem administrativa, e desde que as circunstâncias do caso concreto o justifiquem, limitar ou suavizar os efeitos de um julgamento envolvendo uma aplicação integral da lei. Os tribunais arbitrais ao apreciarem a legalidade de uma conduta administrativa, apesar de vinculados à normatividade para aferir se a conduta é válida ou inválida, nunca lhes sendo legítimo concluir pela validade quando a conduta é desconforme com a legalidade, encontram-se habilitados, todavia, se puderem julgar segundo a equidade, a limitar os eleitos de um juízo de invalidade do contrato ou do acto administrativo e, neste sentido, a proferirem uma decisão final cujo conteúdo envolva a produção de efeitos contra legem” – cfr. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, Coimbra: 2003, pp. 1065-1067 (destaques dos signatários). Não é o que se passa na jurisdição tributária comum ou arbitral.

Ou seja, onde há aplicação integral da lei, como se faz in casu, em que se recorre à aplicação do regime jurídico global enquanto sistema composto por normas ordinárias e de cariz constitucional, não há recurso à equidade: há aplicação de direito constituído.

Sustentar que os tribunais arbitrais tributários estariam a recorrer à equidade quando decidissem com base em operações interpretativas assentes na compatibilização de diversos princípios e regras jurídicas igualmente aplicáveis a um caso (e não há dúvida, tendo em vista a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, que é de uma operação de compatibilização que se trata, como bem se vê, exemplificativamente, no acórdão do STA de 14 de março de 2018, relativo ao processo n.º 0716/13) parece exceder muitíssimo a ratio do artigo 2.º, n.º 2 do RJAT numa interpretação conforme ao artigo 209.º, n.º 2, da Lei Fundamental e, além disso, afigura-se não ter respaldo nas regras e jurisprudência relativas à interpretação jurídica,[11] conferindo mesmo à Autoridade Tributária ou aos Contribuintes, num cenário extremo, a possibilidade de impugnar com sucesso quaisquer decisões arbitrais que sejam baseadas na compatibilização entre princípios constitucionais e  a lei ordinária. Em matéria fiscal, o recurso à equidade é vedada tanto aos tribunais arbitrais que funcionam no âmbito do CAAD, quanto aos tribunais tributários da jurisdição administrativa e fiscal (de primeira instância ou superiores) – estão todos sujeitos ao mesmo arsenal metodológico e de fontes de direito. Se a compatibilização que se faz do princípio da especialização de exercícios nesta decisão for considerada julgamento por equidade, também têm de o ser os mesmos exercícios metodológicos realizados por tribunais tributários não arbitrais – o que nos parece incorreto.

Por todo o exposto, procede assim integralmente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao invocado vício de violação de lei que resulta na anulação da Liquidação de IRC impugnada, fica prejudicada, por ser inútil, a apreciação das restantes questões colocadas, designadamente quanto à irrepetibilidade dos procedimentos inspetivos e caducidade do direito à liquidação nos exercícios de 2014 a 2016.

 

  1. Do pedido de anulação do Relatório de Inspeção

Uma última nota nesta matéria para referir que, ao abrigo do princípio da impugnação unitária consagrado na norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 54.º, do CPPT e 66.º, n.º 2, da LGT, e tal como decidido no acórdão do STA de 13 de novembro de 2013, proferido no processo n.º 0897/13,[12]o RIT que serviu de base a um concreto ato de liquidação não é autonomamente impugnável, não sendo por isso, ele mesmo, anulável, conquanto não produza efeitos lesivos diretos para o contribuinte além dos produzidos pelo ato de liquidação que fundamenta (e daí que a inadequada fundamentação patente em relatórios de inspeção tributária possa acarretar vício de forma por falta de fundamentação dos atos de liquidação de imposto baseados nos mesmos).

Ora, assim sendo, não tem este tribunal competência, em razão da matéria, para determinar “a anulação […] do Relatório de Inspeção, exarado ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2022...” (cfr. parte final do §1) do petitório, pelo que, quanto a esse pedido, é de absolver a Requerida da instância.

 

  1. Do reembolso e direito a juros indemnizatórios

Em consequência da anulação da Liquidação de IRC impugnada, nos termos do artigo 100.º da LGT, e tendo ficado provado que a Requerente procedeu ao pagamento do valor adicionalmente liquidado, incluindo juros compensatórios, deve o montante indevidamente pago pela Requerente ser-lhe integralmente restituído pela Requerida, acrescido de juros indemnizatórios, tal como pedido.

Com efeito, como bem se esclareceu no acórdão arbitral relativo ao processo n.º 431/2020-T, proferido em 4 de outubro de 2021, que nesta parte acompanhamos na íntegra, “[o] direito a juros indemnizatórios alicerça-se no princípio da responsabilidade das entidades públicas (cfr. artigo 22.º da Constituição)  e depende, como dispõe o mencionado artigo 43.º, n.º 1, da LGT, da ocorrência de erro imputável aos serviços do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida. Na situação vertente, está em causa a errada interpretação e aplicação pela Requerida de normas de incidência tributária e ficou demonstrado que a liquidação de IRC e juros compensatórios em discussão padece de erros substantivos imputáveis à AT, para os quais a Requerente em nada contribuiu.

A jurisprudência arbitral do CAAD tem reiteradamente afirmado a competência dos Tribunais Arbitrais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do preceituado nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT. Assim, havendo decisão a favor do sujeito passivo, postula-se o restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

Deste modo, a anulação da liquidação de IRC e juros compensatórios inerentes constitui na esfera da Requerente o direito ao recebimento de juros indemnizatórios que a visam ressarcir da ilegal privação desta quantia pelo período de tempo que perdurar, procedendo o pedido da Requerente também neste segmento”.

Termos em que também nesta parte procede o pedido da Requerente.

 

DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido de anulação do Relatório de Inspeção Tributária notificado à Requerente e emitido ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2022... e julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC n.º 2022..., e respetivas demonstração de Acerto de Contas n.º 2022 ... e de Liquidação de Juros n.º 2022...,  relativas ao exercício de 2018, no montante total de € 16.134,21 e, em consequência:

  1. Absolver a Requerida da instância quanto ao pedido de anulação do relatório de inspeção tributária, por incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de tal pedido;
  2. Anular a mencionada liquidação de IRC e juros compensatórios impugnada;
  3. Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente no montante de € 16.134,21;
  4. Condenar a Requerida a pagar à Requerente juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 15 de dezembro de 2022 até ao seu efetivo pagamento; e,
  5. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 64.726,14 nos termos do artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e artigos 97.º-A, n.º 1, alíneas a) e b), do CPPT e 527.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis por força das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

 

CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 9 de maio de 2024

 

Os Árbitros,

 

 

Rita Correia da Cunha

(Presidente, com declaração de voto em anexo)

 

 

 

João Gonçalves da Silva

(Árbitro Adjunto)

 

 

 

João Taborda da Gama

(Árbitro Adjunto)

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

A Decisão do Tribunal Arbitral segue a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo relativamente à aplicação do princípio da periodização económica, ou especialização dos exercícios, contido no artigo 18.º do Código do IRC (os ganhos e os gastos são contabilizados no exercício em que são obtidos ou suportados), à luz do princípio da justiça ínsito no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa. Não há, assim, dúvida quanto à correção da Decisão Arbitral neste sentido, à luz do disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil (“Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”). Parece-me, no entanto, uma abordagem problemática à luz da proibição do recurso à equidade expressamente contida no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT (“Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”).

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo

No Acórdão proferido em 25-01-2006, processo n.º 0830/05, o Douto Supremo Tribunal Administrativo admitiu a flexibilização do princípio da especialização de exercícios relativamente à contabilização de juros de mora, sem, no entanto, referir o princípio da justiça. O respetivo sumário diz o seguinte:

I – O princípio de especialização de exercícios, porque se destina a tributar a riqueza gerada em cada exercício, impõe que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II – Porém, não ofende tal princípio a contabilização de juros de mora, referentes a uma acção judicial entretanto intentada, como proveito, em exercício posterior (quando tais proveitos forem efectivamente percebidos) se a não contabilização no exercício em que a acção foi proposta não resultou de omissão voluntária ou intencional.”

O sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 02-04-2008, processo n.º 0807/07, refere expressamente o princípio da justiça:

“I - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II - Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

III - É o que acontece quando constituída uma provisão para crédito vencido, por lapso de contabilização, o sujeito passivo efectiva as reposições devidas pelos pagamentos parciais entretanto feitos, apenas e pela totalidade em determinado exercício e não, como era devido, de forma discriminada nos exercícios correspondentes em que esses pagamentos foram concretizados”.

O sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 25-06-2008, processo n.º 0291/08, também refere expressamente o princípio da justiça

“I - Em matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios – artigo 18.º do CIRC – traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis.

II - Não põe em causa tal princípio a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

III - Tal postulado é exigido pelo princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 50.º da LGT.

IV - Para efeitos do n.º 2 do mesmo dispositivo legal, “as componentes positivas ou negativas” não são “imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” quando a sua não consideração, no exercício a que respeitam, se deve a erro contabilístico ou outro, do próprio contribuinte, já que tal norma há-de interpretar-se no sentido de que tais pressupostos, para serem relevantes, hão-de decorrer de situações externas que aquele não pode controlar.”

O mesmo se diga do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 07-09-2022, processo n.º 0304/15.8BELLE:

“I - A atuação e defesa do princípio da especialização dos exercícios/regime de periodização económica deve ser conciliada com a operância de outros primados, atuantes ao nível da disciplina jurídica global dos tributos, norteadores da atividade da autoridade tributária e aduaneira (AT), particularmente, os princípios da legalidade e da justiça, objetivando o melhor equilíbrio, possível, entre os respetivos domínios, de molde a obter um resultado justo, capaz de, por um lado, defender o interesse público da obtenção de receitas para satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades e, por outro, respeitar os direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

II - Por razões de paridade, a atuação de cada sujeito passivo/contribuinte, no campo fiscal, tem de merecer o mesmo enquadramento/tratamento, com o desiderato de, casuisticamente, ser estabelecida e satisfeita/obtida a prestação tributária, legalmente, devida”.

Da leitura do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 27-10-2021, processo n.º 0610/15.1BELRA, resulta claro que a admissibilidade da dedução de perdas por imparidade em “créditos de cobrança duvidosa”, após o término do período de tributação em que os créditos passaram a ser considerados como “créditos de cobrança duvidosa”, assenta no princípio da justiça, e não numa qualquer interpretação corretiva do artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC:

“I - O princípio constitucional da tributação do rendimento empresarial pelo lucro real, que está na base do princípio da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade, determina ou conduz a soluções diferentes conforme se trate de externalizar de forma padronizada (tendo em vista a comparabilidade) a situação financeira de uma entidade económica (a empresa) – sendo essa a finalidade a que se destinam as normas de contabilidade e relato; ou antes de apurar o rendimento líquido do exercício, ou seja, aquilo que expressa a efectiva capacidade contributiva do sujeito passivo.

II - O princípio legal da especialização dos exercícios determina que a imputação das variações cambiais apenas pode ter lugar quando, e na medida em que, estas sejam efectivas, i. e., nos exercícios em que se produzam os respectivos efeitos económicos (ainda que os efeitos financeiros sejam diferidos para momento ulterior), e não anualmente, a título de meras variações cambiais potenciais, apuradas no balanço, o qual é elaborado com base nas regras da contabilidade;

III - O princípio da justiça deve ser interpretado e aplicado como elemento integrador da norma da periodização do lucro tributável, no sentido de garantir a sua efectividade, resultando daí, para a Administração Tributária, a obrigação de harmonização inter-exercícios do enquadramento temporal de um elemento integrante do facto tributário que tenha natureza comunicante (simétrica inter-exercícios).

IV - A AT deveria ter efetuado a correspectiva correcção quanto ao exercício de 2011, tanto mais que no momento a AT havia aberto ordem de serviço datada de 1/11/2013, de âmbito parcial em IRC e com incidência sobre o exercício de 2011, pelo que, ao não ter assim procedido a AT violou, com a sua conduta, o princípio da justiça, uma vez que poderia ter imputado essas imparidades na liquidação de IRC do exercício de 2011, para o qual até detinha ordem de serviço aberta, sendo que dessa imputação não adviria nenhum prejuízo para o Estado.”

O mesmo entendimento relativamente ao princípio da justiça consta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 25-11-2021, processo n.º 410/04.4BELSB, em cujo sumário se pode ler:

“I - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

II – Contudo, esse princípio deve ser conciliado com o princípio da justiça, de modo a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios tendentes a manipulá-los.”

Na esteira desta jurisprudência, os Tribunais Arbitrais têm também vindo a afastar a aplicação do princípio da especialização dos exercícios ínsito no artigo 18.º do Código do IRC com fundamento no princípio da justiça (e.g., Decisões Arbitrais de 11-09-2020, processo n.º 874/2019-T; 04-10-2021, processo n.º 431/2020-T; 21-01-2022, processo n.º 244/2021-T).

Ora, ao não aplicarem o princípio da especialização dos exercícios em função do princípio da justiça, tanto os tribunais arbitrais como o Supremo Tribunal Administrativo estão efetivamente a recorrer à equidade. Senão vejamos.

 

O princípio da justiça e o conceito de equidade

A definição de equidade como “justiça do caso concreto” remota à obra de Aristóteles intitulada Nichomachean Ethics. Sem entrar em considerações de natureza mais filosófica, é, no entanto, importante salientar que, no contexto judicial, recorrer a equidade significa resolver um litígio não com base na aplicação de normas gerais e abstratas ao caso concreto (direito constituído), mas com base na aplicação, ao caso concreto, de critérios de justiça.

Para além da vantagem óbvia do uso de equidade (i.e., a resolução de litígios da forma mais adequada às especificidades do caso concreto), a equidade levanta questões importantes relativamente (a) ao princípio da certeza e segurança jurídicas (quando o juiz afasta a aplicação de normas gerais e abstratas, perde-se a previsibilidade decorrente da aplicação silogística das mesmas), (b) princípio da igualdade (já que situações semelhantes poderão acabar por receber uma resolução jurídica bastante diferente), e (c) à legitimidade dos juízes (não eleitos democraticamente) para desaplicarem a lei aprovada pelo legislador (eleito democraticamente).

Quanto a este último ponto, é importante salientar que o uso da equidade, necessariamente assente num princípio de justiça (do caso concreto), não se confunde com a interpretação de normas jurídicas. O Professor Castanheira Neves definiu interpretação jurídica como “o acto metodológico de determinação do sentido jurídico-normativo de uma fonte jurídica em ordem a obter dele um critério jurídico (um critério normativo de direito) no âmbito de uma problemática realização do direito e enquanto momento normativo-metodológico dessa mesma realização” (A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica: Problemas fundamentais, Coimbra Editora 1993, p. 83).

Interessa também, a título preliminar, distinguir o uso de equidade e a interpretação corretiva, correspondendo (i) o uso de equidade à aplicação ao caso concreto de critérios de justiça (implicando um afastamento do direito constituído), e (ii) a interpretação corretiva a uma interpretação de preceitos legais em face da respetiva ratio legis, interpretação esta que tem de ter um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, conforme estabelece o artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil: “Não pode (...) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Das regras interpretativas constantes deste dispositivo do Código Civil resulta que a letra da lei constitui simultaneamente o ponto de partida e um limite à atividade interpretativa.

Feitas as necessárias distinções, interessa referir que, não obstante as desvantagens associadas à equidade enunciadas supra, a verdade é que o legislador português admite o uso de equidade em certas circunstâncias.

 

A admissibilidade do recurso à equidade ao abrigo do artigo 4.º, alínea a), do Código Civil

Nos termos do artigo 4.º do Código Civil, os tribunais só podem resolver segundo a equidade (a) quando haja disposição legal que o permita, (b) quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível, e (c) quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória. Para efeitos fiscais, dada a natureza não contratual da relação jurídico-tributária, a equidade apenas é admissível quando haja disposição legal que o permita.

Da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e arbitral supra referida resulta claro que o recurso à equidade nos casos referentes ao princípio da especialização de exercícios assenta no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa (“Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”).

Poderia questionar-se se o legislador constitucional, ao aprovar esta norma, pretendeu conferir à administração tributária o poder de se afastar do direito constituído, especialmente face ao princípio da legalidade fiscal constitucionalmente consagrado no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa?

Todavia, parece ser esta a resposta a que se chega pela análise da jurisprudência supra transcrita, o que levanta outra questão: não obstante a permissão do recurso à equidade contida no artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa, podem os tribunais arbitrais recorrer à equidade em face do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT?

 

A proibição decorrente do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT

O artigo 2.º, n.º 2, do RJAT dispõe que “Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”. A propósito do conceito de equidade e da sua admissibilidade no processo arbitral, esclareceu o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 25-02-2021, processo n.º 49/17.4BCLSB: “O julgamento segundo critérios de equidade é aquele que confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis. É expressamente proibida pelo RJAT.”

A letra do artigo 2.º, n.º 2, do RJAT é clara. E é essa clareza que levanta dúvidas:

Qual o sentido útil da proibição do recurso à equidade pelos tribunais arbitrais, se o recurso à equidade é permitido pelo artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa?

Estamos perante um problema de conflito de normas que se resolve através a hierarquia das leis, reconhecendo à norma constitucional primazia sobre a norma de lei ordinária?

Estamos perante um problema de conflito de normas que se resolve através das regras de aplicação da lei no tempo, reconhecendo à norma mais recente (RJAT) preferência relativamente à norma mais antiga (CRP)?

Será razoável interpretar o artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa como permitindo aos tribunais arbitrais o recurso à equidade para além dos casos referentes ao princípio da especialização dos exercícios, ou estão os tribunais arbitrais limitados a recorrer à equidade apenas nos casos em que a mesma é exercida pelos Tribunais Superiores?

 

O caso sub judice

In casu, a questão decidenda gira em torno do disposto no artigo 28.º-A (Perdas por imparidade em dívidas a receber”), n.º 1, alínea a), do Código do IRC, no qual se pode ler:

1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:

  1. As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade; (sublinhado nosso)

Deste preceito retira-se que (1) créditos resultantes da atividade normal da empresa podem ser deduzidos no período de tributação em que possam ser considerados de cobrança duvidosa, e que (2) créditos resultantes da atividade normal da empresa não podem ser deduzidos nos períodos de tributação posteriores ao período de tributação em que possam ser considerados de cobrança duvidosa.

Do artigo 28.º-B (“Perdas por imparidade em créditos”), n.º 1, alínea c), do Código do IRC resulta que os créditos resultantes da atividade normal passam a ser considerados como “créditos de cobrança duvidosa”, quando (i) estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento, e (ii) existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

No caso sub judice, o crédito em análise passou a ser considerado como “crédito de cobrança duvidosa”, nos termos do artigo 28.º-B, n.º 1, alínea c), do Código do IRC, no exercício de 2017, pelo que, nos termos do artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, deveria ter sido deduzido ao lucro tributável da Requerente no período de tributação de 2017 (e não no período de tributação de 2018).

Esta é a conclusão a que se chega em face do direito constituído.

Todavia, tal como referido supra, com base no princípio da justiça, os Tribunais Superiores têm admitido a dedutibilidade de perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa, ao abrigo do artigo 28.º-A, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, em períodos de tributação posteriores ao período de tributação em que os créditos passaram a ser considerados como “créditos de cobrança duvidosa”.

A Decisão Arbitral aqui em apreço segue este entendimento, assentando num juízo de equidade. Se, por um lado, não tenho qualquer dúvida que a Decisão Arbitral cumpre o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, por outro lado, parece-se duvidoso que o recurso a juízos de equidade por tribunais arbitrais seja admissível em face da proibição expressa contida no artigo 2.º, n.º 2, do RJAT. E não poderia de deixar de expressar esta dúvida em declaração de voto autónoma em relação à Decisão Arbitral, relativamente à qual não tenho qualquer outro reparo.

 

Rita Correia da Cunha

 

 



[1] Uma vez que essa é a data em que os créditos – que eram dívida de prazo certo para efeitos do artigo 805.º, n.º 2, alínea a) do Código Civil – entraram em incumprimento definitivo na sequência da conversão da mora.

[2] V., por exemplo, o acórdão do STA de 25 de junho de 2008, tirado no processo n.º 0291/08 e o acórdão do TCA Sul de 25 de novembro de 2021, proferido no processo n.º 410/04.4BELSB, bem como as decisões arbitrais proferidas nos processos n.os 202/2022-T, 431/2020-T,; 874/2019-T; 327/2019-T;334/2018-T; e 588/2015-T.

[3] V., por exemplo, Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, Coimbra: 2007, p. 71 e Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes De Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Encontro da Escrita, 4.ª Ed., Lisboa: 2012, pp. 453-454.

[4] Neste sentido, cfr. Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, Coimbra: 2016, p. 127.

[5] Neste sentido, e com maiores desenvolvimentos, v. Robert Alexy, El concepto y la validez del Derecho, Editorial Gedisa, Barcelona: 1997, 2.ª Ed, (tradução de Jorge M. de Sena) pp. 165 se 174, do qual destacamos a seguinte passagem da p. 165, em retroversão livre de língua espanhola para portuguesa: “Os princípios são normas que ou são válidas ou não são válidas. O problema do seu conhecimento é um problema do conhecimento das normas; o da sua aplicação é um problema da aplicação das normas”.

[6] Sobre a adotada metodologia de compatibilização de normas derivadas de princípios com as derivadas de outros tipos de enunciação positiva, v. Castanheira Neves, «Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais» in Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA, 1, Coimbra Editora, Coimbra: 1993, pp. 189-191.

[7] Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª Ed., Coimbra: 2010, p.798 (destaques dos signatários).

[8] Op. cit., p. 802 (destaques dos signatários).

[9] O árbitro relator da presente decisão já por diversas vezes apontou não dever ter-se este princípio da indisponibilidade dos créditos tributários como um princípio absoluto, designadamente nos textos «Contrato de Transacção no Direito Administrativo e Fiscal», in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. V – Direito Público e Vária (Separata), Almedina, Coimbra: 2003, em especial pp. 667 e ss. e «Acordo Transaccional Parcial no Procedimento Tributário» in Fiscalidade, 12 (2002), pp. 6 e ss. Não obstante, tal princípio – incluindo o seu respaldo constitucional – é aceite pela doutrina maioritária, pelo que, no plano do direito constituído, não se colocam dúvidas sobre a respetiva vigência, estando o mesmo a ser aplicado nesta decisão na sua formulação corrente.

[10] Cfr. Manual de Introdução ao Direito, Vol I. (reimpressão), Almedina, Coimbra: 2017, p. 127.

[11] Como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tirado em 10 de dezembro de 2019, no processo n.º 1087/14.4T8CHV.G1.S1, “considerar a equidade como fonte do direito, de per si, não é tecnicamente rigoroso. É que, e ainda que não se saiba com exatidão o que seja a equidade, é certo que ela não necessita de elevar-se à formulação de regras, ela não dita um critério material a aplicar na solução de questões jurídicas. Ela traduz, no nosso sistema jurídico, um método facultativo que o julgador tem ao seu dispor para que possa decidir sem aplicação de regras formais, ainda que essa decisão tenha de ser tomada «à luz de directrizes jurídicas dimanadas pelas normas positivas estritas»” (sublinhados dos signatários).

[12] No mencionado acórdão pode ler-se “[…] tal acto [o relatório de inspeção] não é imediatamente lesivo, por não ser susceptível de provocar, por si, efeitos jurídicos negativos imediatos na esfera jurídica da impugnante. A fixação de rendimentos referente a um determinado ano constitui o acto propulsor do procedimento tributário tendente à determinação da colecta e à liquidação do imposto, isto é, constitui o acto impulsionador e preparatório desse procedimento tributário, pelo que as suas vicissitudes não afectam, em princípio, de forma imediata, a esfera jurídica do contribuinte, a qual só será atingida com o acto final de liquidação do imposto. Com efeito, os eventuais vícios ocorridos no acto que fixou os rendimentos só se cristalizam no acto de liquidação onde produzirão, então, a verificar-se, efeitos negativos sobre a esfera jurídica da impugnante […]”.