Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 371/2023-T
Data da decisão: 2024-04-29  IRS  
Valor do pedido: € 2.568,48
Tema: IRS; Residentes não habituais; Litispendência; juros indemnizatórios.
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 Decisão Arbitral

 

Sumário:

  1. O Tribunal Arbitral pode pronunciar-se sobre a legalidade de atos de liquidação de IRS, quando é suscitada a aplicação do regime dos residentes não habituais, independentemente de existir impugnação do indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, não ocorrendo a exceção de litispendência.
  2. Nos termos do artigo 16.º, n.º 8, do CIRS, são requisitos de aplicação do regime de residente não habitual que: (i) o sujeito passivo se torne fiscalmente residente em Portugal, em conformidade com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.os 1 e 2 do artigo 16º do CIRS e (ii)  que o sujeito passivo não tenha sido considerado residente em território nacional em qualquer dos cinco anos anteriores, não tendo a inscrição no registo de residentes não habituais natureza constitutiva do direito a ser tributado nos termos do regime legal.
  3. Sendo a liquidação de IRS efetuada com base nas declarações do contribuinte e havendo lugar a impugnação administrativa, o erro passará a ser imputável à Autoridade Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, sendo devidos juros indemnizatórios apenas a partir da data da decisão administrativa.

 

I. Relatório

 

1. A..., de nacionalidade alemã, portadora do cartão de identificação com o número ..., emitido na República Federal Alemã, titular do NIF..., residente na Rua..., n.o ..., apartamento ..., ...-... Vila Nova de Gaia, vem, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1, 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade da decisão final de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, convolada em Reclamação Graciosa, que fora deduzida com vista à apreciação do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2021..., de 19.06.2021, que apurou o valor a reembolsar de €2.885,13, e, consequentemente, visando a declaração da legalidade desta liquidação e o reembolso do montante indevidamente retido, acrescido dos juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo seguido a sua normal tramitação.

O Tribunal foi constituído no dia 31 de julho de 2023.

Por despacho do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, de 31 de agosto de 2023, foi determinada a substituição do árbitro inicialmente designado pelo signatário da decisão arbitral.

A AT, respondeu, por exceção e impugnação, pugnando pela absolvição da instância com fundamento em litispendência.

A Requerente, notificada para exercício do direito ao contraditório, argumentou no sentido da inexistência da exceção invocada.

Foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 10.º, n.º 1, do RJAT.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades, nem existindo obstáculo à apreciação do mérito da causa (v. infra).

 

II. Fundamentação

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. A Requerente é uma cidadã̃ de nacionalidade alemã, tendo residido na República Federal da Alemanha entre 1 de janeiro de 2015 e março de 2020.

4.1.2. Em 26 de março de 2020, a Requerente apresentou junto da autoridade administrativa alemã uma comunicação de mudança de residência, onde fez constar o dia 31 de março de 2020 como data de saída do país, tendo indicado como residência futura o concelho de Viana do Castelo, em Portugal.

4.1.3. Em 14 de abril de 2020, a Requerente procedeu à sua inscrição como residente em Portugal, declarando como domicílio fiscal a Rua ..., n.º ..., ..., em Viana do Castelo.

4.1.4. Também em 14 de abril de 2020, o Presidente da União das Freguesias de ... e ... emitiu um atestado de residência, confirmando que a Requerente residia no endereço referido no ponto anterior desde 28 de março de 2020.

4.1.5. A Requerente mudou-se para território português em virtude de ter celebrado um contrato de trabalho sem termo com a empresa denominada à data de B..., Lda., com número de identificação fiscal ... (atualmente denominada C..., Lda.), na qual desempenhava as funções inerentes à categoria profissional de Gestora da Área Operacional   

4.1.6. A Requerente é engenheira e exerce funções nessa qualidade em Portugal, desde 2020.

4.1.7. A Requerente apresentou a Modelo 3 de IRS de 2020, em 18.06.2021, tendo aí declarado como período a que respeita a declaração o compreendido entre 20 de abril de 2020 e 31 de dezembro de 2020, relativamente ao qual declarou rendimentos de Categoria A no valor de €41 427,33, não tendo apresentado o Anexo L.

4.1.8. Em 8 de outubro de 2021, a Requerente solicitou a sua inscrição como Residente Não Habitual (RNH), requerendo que os efeitos do regime se reportassem ao ano de 2021 e seguintes.

4.1.9. Em 15.10.2021, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia relativamente ao projeto de decisão de indeferimento do referido pedido, com base nos seguintes motivos:

Nº de resultados: 3

Motivo(s) Indeferimento

Ano(s):

Registado no cadastro da AT como residente em território português, n.º 8 do artigo 16.º do CIRS e alínea b) do ponto 1, da Circular nº 9/2012, no(s) ano(s).

2020,

Consta, como residente fiscal, em declaração de rendimentos de IRS, relativamente ao(s) ano(s).

2020,

Consta em declarações de terceiros (Mod. 10/DMR), como tendo obtido rendimentos em Portugal, enquanto residente, relativamente ao(s) ano(s).

2020,

 
 

4.1.10. A Requerente exerceu o seu direito de participação onde contextualizou os motivos pelos quais não requerera antecipadamente o Estatuto de residente não habitual, requerendo que o mesmo lhe fosse concedido.

4.1.11. A Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, na sequência do requerido em sede de audição prévia, procedeu à “alteração do objeto do pedido para a aplicação do início do regime, de 2021 para 2020” e concluiu que a Requerente não “procede[ra] ao pedido de inscrição de Residente N/ Habitual, dentro do prazo estabelecido por lei, propondo o “(...) indeferimento do novo pedido de inscrição da Contribuinte, no regime dos Residentes Não Habituais, agora no ano de 2020, e manter também o indeferimento do pedido inicial (2021)”.

4.1.12. Tal proposta de indeferimento teve despacho de concordância e consequente indeferimento por despacho do Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, datado de 18 de maio de 2022.

4.1.13. Em 24.06.2022, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, datada de 09.06.2022, proferida pelo Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes.

4.1.14. Em 16 de setembro de 2022, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa da liquidação de IRS de 2020.

4.1.15. Através de Despacho de 29/12/2022 da Chefe de Divisão da DSIRS foi a revisão oficiosa convolada em reclamação graciosa e remetida à Direção de Finanças do Porto (Informação nº 609/2022).

4.1.16. Em 2 de fevereiro de 2023, a Requerente foi notificada do projeto de decisão de indeferimento do pedido, no qual se fez constar que “[n]os termos do n.º 10 do art. 16.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), o sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato de inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território”.

4.1.17. A pretensão da Requerente foi objeto de indeferimento final, por despacho de 24/02/2023, rececionado em 01/03/2023 (Registo nº RF...PT).

4.1.18. A Requerente requereu pronuncia arbitral relativa ao IRS de 2021, tendo o seu pedido sido julgado procedente por decisão de 27 de fevereiro de 2023.

4.1.19. Em 22 de maio de 2023, a Requerente apresentou o requerimento de constituição de tribunal arbitral visando a anulação do IRS de 2020.

4.1.20. Encontra-se pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto o processo n.º 1807/22.3 BEPRT uma ação administrativa que tem por objeto “o despacho de indeferimento proferido pelo Exmo. Senhor Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, o Dr. ..., no âmbito do processo n.º ...2021..., notificado através do Ofício da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes com a identificação n.º ..., de 09.06.2022, relativamente ao pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual apresentado pela ora Autora, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 8, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)”.

 

4.2. Factos não provados

   4.2.1. Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

            4.3. Fundamentação da matéria de facto

  Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão do Requerente.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, junto pela Requerente e constantes do Processo Administrativo. Concomitantemente, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

5. Exceção de Litispendência e suspensão da instância

A Requerida suscitou a exceção da litispendência invocando que a Requerente interpôs junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma ação administrativa, a correr termos sob o n.º de processo 1807/22.3 BEPRT, e que tem como objeto “o despacho de indeferimento proferido pelo Exmo. Senhor Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, o Dr. ..., no âmbito do processo n.º ...2021..., notificado através do Ofício da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes com a identificação n.º..., de 09.06.2022, relativamente ao pedido de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual apresentado pela ora Autora, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 8, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)”. De acordo com a Requerida, e em suma, “a decisão a proferir no presente processo poderá colidir com o sentido da decisão do Tribunal Tributário, fazendo coexistir na ordem jurídica duas decisões jurisdicionais que produzem efeitos, sobre a mesma situação jurídica, irreconciliáveis e com sentidos opostos”, verificando-se “a coincidência de pedido ou causa de pedir porque no recurso contencioso o que se pretende é a anulação do pedido de RNH ao passo que no presente processo arbitral se pede a anulação de uma liquidação”.

Por seu turno, a Requerente, não negando a existência de uma relação entre o pedido formulado na ação administrativa e o pedido formulado nos presentes autos, afirma que “no presente pedido de pronúncia arbitral é defendido e demonstrado que não resulta da lei aplicável que o registo do sujeito passivo como “residente não habitual” seja uma condição sine qual non formal para a aplicação do regime em cada ano fiscal, sendo essa a interpretação que melhor se coaduna com o racional ínsito no próprio artigo 16.º, n.º 8, do Código do IRS”, pelo que, “atendendo que o registo como residente não habitual, tal como se reivindica na ação administrativa em curso, não se afigura prejudicial em relação à aplicação do regime dos residentes não habituais em cada ano fiscal – objeto do presente processo arbitral – é manifesto que não existe entre os dois pedidos nem a identidade nem sequer uma dependência tal que obste o conhecimento da causa, nos termos do no 1 do artigo 581.º CPC”.

Assiste razão à Requerente.

Com efeito, não se verifica a identidade de pedido e causas de pedir necessária para que estejamos perante a relação de identidade com base na qual possa afirmar-se a existência de uma repetição de uma causa.

Na ação administrativa impugna-se a decisão de recusa de inscrição da Requerente no registo dos residentes não habituais com fundamento na extemporaneidade do pedido, no presente processo arbitral contesta-se a legalidade de um ato de liquidação, alegando-se a inexistência de uma relação prejudicial entre aquela inscrição e aplicação do regime de residente não habitual independentemente daquele registo, por se considerar que: i) a Requerente se tornou fiscalmente residente em território português no ano relativamente ao qual pretende a sua tributação como residente não habitual; e ii) que não foi  considerada residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores (àquele ano em que se pretende a tributação como RNH). Nessa medida, não nos encontramos perante “causas repetidas” que possam dar origem a juízos contraditórios: o TAF do Porto não irá apreciar a legalidade da liquidação de IRS de 2020 e esta instância arbitral não irá decidir da inscrição da Requerente no registo de residentes não habituais.

Das diversas decisões arbitrais que se pronunciam em sentido análogo, deixou-se consignado no processo n.º 777/2020-T que “[s]e o “registo como residente não habitual” – objeto da ação anterior pendente – não se afigura prejudicial em relação à aplicação do regime do “residente não habitual” em cada ano fiscal – objeto do presente processo arbitral – não existe entre os dois pedidos nem a identidade a que se refere o nº 1 do art.º 581º CPC, como é manifesto, nem sequer uma interdependência tal que obste ao julgamento da presente causa”. E, num outro caso (processo n.º 487/2023-T), em que estava em causa a exceção do caso julgado por ter sido invocado o trânsito em julgado de decisão que julgara improcedente a ação administrativa, igualmente se considerou que  a “ação administrativa (...) não partilhava a mesma causa de pedir, o mesmo pedido e os mesmos fundamentos do presente processo arbitral, e esses são os requisitos legais da procedência da alegada exceção do caso julgado (artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT)”.

Consequentemente, conclui-se que o Tribunal Arbitral é competente para se pronunciar sobre os atos de liquidação de IRS, quando é suscitada a aplicação do regime dos residentes não habituais, independentemente de existir impugnação do indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual (cf. processos n.os 262/2018-T, 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T, 487/2023-T e 550/2022-T, este último em que se apreciou a legalidade da liquidação de IRS de 2021 da ora Requerente).

Improcede a exceção invocada e, por identidade de raciocínio, o pedido de suspensão da instância.

           

6. Matéria de direito

6.1. A questão a decidir refere-se à legalidade da liquidação do IRS relativo ao ano de 2020 perante a verificação dos pressupostos legais de que depende a aplicação do regime de tributação em IRS dos residentes não habituais.

A Requerente defende que para a Requerente seja considerada residente não habitual basta: i) ter-se tornado residente em Portugal no ano que pretende a aplicação do regime; e ii) não ter sido residente em Portugal nos cinco anos anteriores; considerando, consequentemente, que “a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual fora do prazo indicado não poderá implicar a recusa de aplicação do regime”. Por seu turno, a Requerida considera que, atento o disposto no artigo 16.º, n.º 10, do CIRS, não tendo a Requerente formulado o pedido de inscrição como residente não habitual até 31 de março de 2021, fica precludido o direito a ser tributada como tal, face ao carácter perentório do referido prazo.

 

6.2.  Considerando a questão decidenda, importa começar por traçar o enquadramento jurídico do regime fiscal dos residentes não habituais de modo a aferir quais os pressupostos de que depende a sua aplicação. Esse regime consta dos n.os 8 a 12 do artigo 16.º do CIRS, os quais têm a seguinte redação:

“Artigo 16.º - Residência

(...)

8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. 

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”

Relativamente à interpretação deste regime, a jurisprudência do CAAD vem defendendo que os únicos pressupostos para a aplicação do regime em causa são os constantes do n.º 8 do artigo 16.º, do CIRS, ou seja, que: (i) O sujeito passivo se torne fiscalmente residente em Portugal, em conformidade com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.os 1 e 2 do artigo 16º do CIRS e (ii)  o sujeito passivo não tenha sido considerado residente em território nacional em qualquer dos cinco anos anteriores. Relativamente ao dever de inscrição como residente não habitual até 31 de março do ano seguinte àquele em que se torne residente em Portugal, considera-se que se está perante uma obrigação declarativa, acessória, ad probationem, cujo incumprimento não prejudica a aplicação do regime, conquanto provados os pressupostos do n.º 8 do artigo 16.º, do CIRS.

De entre as várias decisões sobre a matéria – cf. os já referidos processos n.os 262/2018-T, 188/2020-T, 777/2020-T, 815/2021-T e 550/2022-T –, transcreve-se o juízo proferido no acórdão arbitral, de 19 de fevereiro de 2024, prolatado no processo n.º  487/2023-T:

“(...)

O regime do RNH foi inicialmente previsto no artigo 23.º do Código Fiscal do Investimento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, tendo criado o regime fiscal para o RNH em sede de IRS, tendo em vista atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado ou da propriedade intelectual, industrial ou know-how, bem como beneficiários de pensões obtidas no estrangeiro.

O regime jurídico do RNH é enformado por uma política fiscal de atração de investimento estrangeiro no âmbito da realidade económico-financeira que resulta da crise (financeira) que limitou o crescimento económico em Portugal no início do século XXI. Ou, dito de outro modo, pretende promover o crescimento económico através da formação de capital humano, da transferência de inovação tecnológica e know-how e, assim, o desenvolvimento das empresas no país recetor de residentes e da competitividade do tecido empresarial.

Esse regime exige, assim, o cumprimento dos seguintes requisitos: i) que o sujeito passivo se torne fiscalmente residente em território português, de acordo com qualquer um dos critérios estabelecidos nos números 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS, no ano relativamente ao qual se pretenda a tributação como residente não habitual; e ii) que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores (àquele ano em que se pretende a tributação como RNH).

O direito à tributação como RNH fica condicionado ao cumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS e, concomitantemente, “da inscrição como residente em território português”, e não da inscrição como RNH .

Iniciamos pela análise do regime fiscal aplicável à data dos factos (2019 a 2021), anos nos quais o regime do Estatuto do Residente não Habitual rege-se pela redação dos n.ºs 8 a 10 do Código do IRS, conforme segue:

8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

Constata-se assim que os critérios para ter o estatuto de RNH são definidos pelo n.º 8 do artigo 16.º CIRS, que estabelece um critério positivo e negativo.

  1. Critério positivo: tornarem-se fiscalmente residentes nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 16.º do Código do IRS (1.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS);
  2. Critério negativo: não terem sido residentes em território português nos cinco anos anteriores (2.ª parte do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS).

Por seu turno, o n.º 10 do mesmo artigo, refere que o contribuinte “deve” solicitar a sua inscrição até ao dia 31 de Março do ano seguinte em que se torne residente fiscal em Portugal. Trata-se de estabelecer como limite o dia anterior ao prazo do início da entrega do Modelo 3 do IRS (1 de Abril), previsto no artigo 60.º do CIRS, com vista a facilitar a tarefa de organização administrativa do cadastro, mormente com a liquidação do IRS dos beneficiários de tal estatuto.

Deste modo, do confronto dos números 8 a 10 do artigo 16.º do CIRS, dúvidas não restam de que os requisitos estão unicamente previstos no respectivo n.º 8.

Concluindo-se assim que a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, antes da data-limite prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, tem natureza exclusivamente declarativa, e não tem efeitos constitutivos do direito a ser tributado nos termos do respectivo regime.

Voltando ao caso dos autos, dúvidas não restam de que o Requerente não foi residente fiscal antes de 2012, e apenas nesse ano se tornou residente fiscal. Facto que, aliás, nem sequer é contestado pela Requerida.

Acresce que, pela entrega das respetivas declarações modelos 3 do IRS com o anexo L, e com o pedido de inscrição como residente não habitual, ainda que em data posterior, é inequívoco que pretende beneficiar de tal regime, dado que cumpre os respetivos requisitos de atribuição.

Acompanha-se a fundamentação da decisão arbitral do processo n.º 777/2020-T, no sentido de que vale “(…) a junção dos anexos L à declaração de rendimentos como pedido, dirigido à AT, para ser tributado pelo regime dos “residentes não habituais (…)”

E concorda-se igualmente com a mesma decisão arbitral na parte em que decidiu que:

“(…) o que interessa aferir nos presentes autos é apenas se o registo como “residente não habitual,” previsto no n.º 8 (à data dos factos) do art.º 16.º, constitui um requisito formal necessário para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime respetivo.

Atente-se na redação do n.º 7 do art.º 16º: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”

O direito a ser tributado como residente não habitual depende, portanto, e como se vê, apenas de o sujeito passivo “ser considerado residente não habitual”.

Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo, pelo contrário, o n.º 6 é inequívoco ao estabelecer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem os dois requisitos, positivo e negativo, a que já nos referimos; não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.

Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual seja requisito substancial, ou constitutivo, de aplicação do regime.

Acompanha-se igualmente a fundamentação do processo nº 188/2020-T:

“Não obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual – até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.”

 Deste modo, é patente a diferença de redacção com a anterior versão do n.º 2 do artigo 23.º Código Fiscal do Investimento, como bem se observa na decisão do processo n.º 705/2022-T:

“Esta interpretação mostra-se corroborada pelo confronto com a anterior regulação do regime dos residentes não habituais. Recorde-se que, na versão do Decreto-Lei n.º 249/2009, o art. 23.º, n.º 2 do Código Fiscal do Investimento dispunha que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI” e o então n.º 7 do art. 16.º do CIRS afirmava, do mesmo modo, que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos”. Como se observa, a ligação que então se fazia entre a inscrição da qualidade de residente não habitual no registo dos contribuintes e a aquisição do direito a ser tributado como tal desapareceu da regulação vigente, a qual apenas conexiona a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual à consideração como tal em atenção à factualidade de os sujeitos passivos se tornarem fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do art. 16.º do CIRS e não terem sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores, que são, pois, os únicos requisitos de que depende essa condição.”

Conclui-se assim que o Requerente cumpre com os requisitos previstos no nº 8 do artigo 16.º do CIRS, os quais, como já se viu, são os únicos requisitos exigidos por lei para que um sujeito passivo possa beneficiar do regime dos RNH.

Igualmente se conclui que, por seu turno, a inscrição no registo de residentes não habituais tem natureza exclusivamente declarativa, e não efeitos constitutivos do direito de ser tributado nos termos do respectivo regime.

O pedido de inscrição como residente não habitual, estabelecido no n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT), que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do beneficio fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição, e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos.

Sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como RNH.

Assim, considerando que se trata de um dever acessório, ao respetivo incumprimento pode corresponder uma contraordenação tributária (cfr. art. 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), mas isso não interfere com o direito à redução ou isenção tributária adveniente do regime do RNH, que assenta estritamente na satisfação das condições materiais legalmente previstas, e não pressupõe, como requisito substancial adicional, a inscrição cadastral.

Conclui-se, pois, que a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação de dois requisitos – de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores –, mas não depende da correspondente inscrição no cadastro.

Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.

(...)”.

 

Acolhendo a validade de tais argumentos, que aqui se reiteram, conclui-se que a apresentação extemporânea do pedido de registo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS não prejudica a aplicabilidade do regime dos residentes não habituais se estiverem verificados os pressupostos elencados no n.º 8 do artigo 16.º do CIRS.

Ora, in casu, considerando a matéria de facto dada como provada e que, ademais, se afigura pacífica, é patente que tais pressupostos se encontram preenchidos.

De facto, a Requerente estabeleceu-se como residente em território português em abril de 2020, tendo vindo para Portugal exercer funções profissionais ao abrigo de um contrato de trabalho, e nos cinco anos anteriores foi residente na República Federal Alemã, estado de que é nacional, o que faz com que esteja preenchido o critério da residência previsto no artigo 16.º, n.º 1, alínea a), do CIRS, relativamente ao ano de 2020, tendo como tal o direito a ser tributada como residente não habitual relativamente a esse ano (artigo 16.º, n.º 11, do CIRS), e, também, o requisito negativo da segunda parte do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS.

 

6.3. Juros indemnizatórios

A Requerente peticiona a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios por o valor de reembolso em sede de IRS ter sido inferior ao que seria devido por aplicação do regime dos residentes não habituais.

O artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, estabelece que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento Tributário”. Por seu turno, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, estabelece o direito a ser indemnizado pelo pagamento de juros indemnizatórios quando se determine em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que resultou pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Tendo a liquidação sido efetuada com base nos elementos declarados pela Requerente, que não entregou o Anexo L, importa apurar se existiu, ou não, um “erro imputável aos serviços”, na medida em que o direito aos juros indemnizatórios está dependente desse pressuposto.

Ora, se é verdade que a liquidação foi efetuada com base nos elementos declarados pela Requerente e que aqueles não permitiam à administração liquidar o imposto com base no regime dos residentes não habituais, não é menos exato que a partir do momento em que foi deduzido o pedido de revisão, posteriormente convolado em reclamação graciosa, a AT ficou a conhecer os motivos pelos quais seria de anular a liquidação e emitir uma outra em conformidade com a lei.

Nessa ótica, com o indeferimento da reclamação, a manutenção da liquidação desconforme à lei passa a ser imputada à administração, sendo responsável, a partir desse momento, pela obrigação de indemnizar nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

Como refere Jorge Lopes de Sousa, “[N]as situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (...), bem como naqueles em que o acto é praticado pela Administração Tributária com base em informações erradas prestadas pelo contribuinte e há lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos (...)” – Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado", 6ª edição, 2011, Lisboa, p. 537.

Nestes termos, a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios contados desde o dia 24 de fevereiro de 2023 até à data da emissão da respetiva nota de crédito.

 

7. Decisão

Destarte, atento o exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar improcedente a exceção de litispendência e indeferir o pedido de suspensão da instância;
  2. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  3. Julgar procedente o pedido de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos supra referidos; e, em consequência,
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas infra determinadas.

 

8. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 2.568,48.

 

9. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Lisboa, 29 de abril de 2024,

 

 

João Pedro Rodrigues