Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 275/2023-T
Data da decisão: 2024-04-26  IRS  
Valor do pedido: € 32.037,25
Tema: IRS, Caducidade, Falta de fundamentação, Ampliação da Causa de Pedir
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Sumário:

 

1. A procedência de reclamação graciosa na sequência de liquidação oficiosa de IRS por omissão de declaração de rendimentos e em que os reclamantes apenas requeiram que seja considerada a opção de englobamento do rendimento e a tributação conjunta não importa caducidade do imposto que vier a ser determinado na procedência do pedido, devendo a liquidação oficiosa ser integrada pelo resultado da opção do sujeito passivo.

2. Nos casos em que a AT proceda à alteração dos elementos declarados, ex vi o disposto no artigo 65.º do Código do IRS, existe um dever específico de fundamentação desses atos, não se exigindo que o ato de liquidação posterior reitere os fundamentos de tais correções.

 

 

 Decisão Arbitral

 

 

 

I. Relatório

 

 

1. A..., com o número de identificação fiscal..., e B..., com o número de identificação fiscal..., casados, residentes em ..., ..., ..., ..., ..., Goa, Índia, vieram, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à pronúncia sobre a legalidade das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e respetivos juros compensatórios relativas aos períodos de 2017 (liquidação n.º 2021...) e 2018 (liquidação n.º 2022...), no valor global de € 32 037,25.

 

2. O pedido de constituição foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo seguido a sua normal tramitação.

O Tribunal foi constituído no dia 14 de abril de 2023.

A AT, respondeu, por impugnação, defendendo a improcedência do pedido.

Por despacho de 25 de novembro de 2023, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido determinada a apresentação de alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades, nem existindo obstáculo à apreciação do mérito da causa.

A cumulação de pedidos é admitida pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.

 

II. Fundamentação

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. Os Requerentes, de nacionalidade portuguesa, residiram em Portugal nos anos de 2017 e 2018, tendo o seu domicílio fiscal na ... n.º ..., ..., Portela, ...-... Portela LRS;

4.1.2. O Consulado-Geral de Portugal em Goa emitiu, em 11 de fevereiro de 2022, os certificados de inscrição consular n.os ... e..., nos quais se refere que os Requerentes entraram na Índia no dia 9 de outubro de 2019 e que aí têm residência em ..., ..., ..., ..., ..., Goa, Índia.

4.1.3. Através do sistema integrado de troca de informações entre Portugal e a Índia foi comunicado por aquele Estado o pagamento de rendimentos de capitais à Requerente A... no valor de € 32.612,12, relativos ao ano de 2017.

4.1.4. Tais rendimentos não foram declarados em Portugal dentro do prazo legal para o efeito.

4.1.5. A Requerente foi notificada pela comunicação da AT n.º GIC-..., de 23 de agosto, para apresentar a respetiva declaração modelo 3 de IRS, com o preenchimento do Anexo J.

4.1.6. Não tendo sido apresentada tal declaração, a AT procedeu à elaboração de “declaração oficiosa”, com a identificação ...-2017-..., e à consequente liquidação n.º 2021 ..., no valor de € 10.392,27, com data-limite de pagamento em 5 de janeiro de 2022.

4.1.7. Em 12 de janeiro de 2022 e 9 de fevereiro de 2022, a Requerente submeteu declaração modelo 3 de IRS, declarando no Anexo J o valor de € 32.612,12, tendo aí optado pela tributação conjunta e pelo englobamento dos rendimentos.

4.1.8. Em 27 de março de 2022, a Requerente A... apresentou reclamação graciosa nos termos seguintes:

“1. A Reclamante foi oficiosamente tributada pelos rendimentos de 2017 auferidos na Índia.

2. A R. é casada com B...– NIF ... .

3. A R. e o seu marido têm direito à tributação conjunta e englobada – artigo 13.º, n.º 2 e 3 do CIRS.

4. O marido da R. sempre trabalhou em Moçambique onde residiu até se aposentar. A R. e cônjuge nunca trabalharam no Portugal Europeu nem aqui auferiram rendimentos.

5. A R. e cônjuge têm nacionalidade e residência em Margão Índia onde ficam a maior parte do ano.

6. A tributação exclusiva da R. é inconstitucional e discriminatória – art. 13.º da CRP

Solicita-se que seja aceite a declaração Mod. 3 corretiva que apresentou e o imposto liquidado corretamente nos termos legais”.

4.1.9. Em 21de abril de 2022, foi deferida a reclamação graciosa, determinando-se a eliminação da declaração com a identificação ...-2017-... e recolha de documento de correção tipo 8 para a reclamante e o cônjuge com opção de tributação conjunta, incluindo os rendimentos de ambos”.

4.1.10. Em 29 de agosto de 2022, o Serviço de Finanças de Loures remeteu à Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (DSIRS), o “Documento de correção” n.º ... e “Declaração oficiosa”, contendo opção pela tributação conjunta e englobamento dos rendimentos.

4.1.11. Em 2 de novembro de 2022, foi promovida a anulação do valor de € 2.153,55, compreendendo a restituição de € 1.883,15 a título de imposto e de € 270,40 em dívida no processo de execução fiscal n.º ...2022... .

4.1.12. Os Requerentes não foram notificados de nenhuma liquidação de IRS relativa ao ano de 2017 para além da liquidação n.º 2021 ... .

4.1.13. Em 29 de março de 2022, os Requerentes apresentaram declaração de rendimentos relativos ao ano de 2018 (com a identificação n.º ...-2018-... -...), na qual foram declarados rendimentos de capitais obtidos na Índia pelo sujeito passivo B..., no valor de €32.566,96.

4.1.14. Através do sistema integrado de troca de informações entre Portugal e a Índia foi comunicado por aquele Estado o pagamento de rendimentos de capitais à Requerente A... no valor de € 36.115,49, relativos ao ano de 2018.

4.1.15. Por ofício de 16 de setembro de 2022, com o n.º..., a Direção de Finanças expediu notificação com o registo postal RH...PT, cujo teor se dá por reproduzido, e no qual consta a seguinte informação:

“A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) teve conhecimento, através da troca automática internacional de rendimentos financeiros a que se refere o Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de outubro, que, para o ano de 2018, obteve rendimentos de capitais provenientes da Índia.

Da análise à informação comunicada à AT, para aquele ano, constam os seguintes elementos:

I) Sujeito Passivo B (SPB) – A...

i) Natureza do rendimento: JUROS (E21);

Valor do rendimento: 66,62 € (5.312,00 INR – valor comunicado);

Número de conta...;

ii) Natureza do rendimento: JUROS (E21);

Valor do rendimento: 32.944,87 € (37.740,00 USD – valor comunicado);

Número de conta ...;

iii) Natureza do rendimento: JUROS (E21);

Valor do rendimento: 3.104,00 € (247.500,00 INR – valor comunicado);

Número de conta ...;

 

Entidade pagadora da totalidade dos rendimentos: STATE BANK OF INDIA.

Valor total dos rendimentos: 36.115,49 €.

 

Nos termos do artigo 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), os sujeitos passivos estão obrigados a apresentar uma declaração Modelo 3, “...relativa aos rendimentos do ano anterior e a outros elementos informativos relevantes para a sua concreta situação tributária... devendo ser-lhe juntos, fazendo dela parte integrante os anexos e outros documentos que para o efeito sejam mencionados no referido modelo com todos os rendimentos auferidos nesse ano”. Assim, conjugando o normativo atrás referido com o disposto no n.º 1 do artigo 15.º do CIRS, conclui-se que “sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território”.

Atendendo que em 2018 a contribuinte detinha o estatuto de residente em Portugal, conforme consta do seu cadastro fiscal e de acordo com a informação preenchida na declaração de rendimentos submetida com referência àquele ano, os rendimentos auferidos no estrangeiro deveriam ter sido declarados no respetivo Anexo J, contudo, os mesmos não foram adicionados à declaração.

Assim, verificando-se a omissão de rendimentos auferidos no estrangeiro, vimos apresentar o projeto de correções a efetuar à declaração de rendimentos, no sentido de adicionar o Anexo J (Sujeito Passivo B) à declaração, inscrevendo os rendimentos obtidos no estrangeiro no Quadro 8ª, de acordo com a informação comunicada à AT e acima discriminada.

Importa referir que os valores acima indicados foram apurados de acordo com as regras da conversão da moeda estrangeira para euros, conforme definidas no artigo 23.º do código do IRS, sendo que, desconhecendo a AT a data exata do pagamento ou a sua colocação à disposição dos sujeitos passivos, os mesmos foram apurados tendo em consideração a taxa de câmbio de referência utilizada em 31 de dezembro de 2018, de acordo com o disposto no n.º 2 daquele normativo.

Face ao exposto, fica(m) notificada(s) nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, para, querendo, exercer(em) por escrito o seu/vosso direito de audição prévia no prazo de 15 dias relativemente à efetivação de liquidação adicional que inclua os rendimentos antes mencionados.

Nesse mesmo prazo pode(m) regularizar a sua/vossa situação através da entrega duma declaração de substituição contemplando todos os elementos obtidos em 2018, ou seja, incluindo os de fonte estrangeira e que devem constar nos respetivos Anexos J dessa declaração, associados a cada um dos sujeitos passivos, a qual deve ser entregue via internet, no Portal das Finanças (...).

A resposta à presente notificação deverá ser enviada por escrito via correio, dentro do prazo acima indicado, dirigido à Divisão de Liquidação dos Impostos sobre o Rendimento e Despesa – DLIRD, sita na Alameda dos Oceanos, n.º 55, 1998-027 Lisboa, podendo também ser remetida para o e-mial: dflisboa-dlird@gov.pt.

Findo o prazo indicado, caso não exerça(m) o seu/vosso direito de participação e a situação não esteja regularizada, a AT irá proceder à alteração dos elementos declarados, com base nos elementos conhecidos, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 65.º do CIRS, apurando o imposto em falta”.

4.1.16. A notificação foi devolvida com a menção de “objeto não reclamado”.

4.1.17. Por ofício de 16 de setembro de 2022, com o n.º..., a Direção de Finanças expediu 2.ª notificação com o registo postal RH...PT.

4.1.18. Tal notificação foi igualmente devolvida com a menção de “objeto não reclamado”.

4.1.19. O Serviço de Finanças de Loures elaborou, em 28 de outubro de 2022, um documento de correção único (com a identificação n.º ...-2018-...), nele procedendo à inscrição dos rendimentos obtidos na Índia por ambos os Requerentes.

4.1.20. Na sequência, foi emitida, em 8 de novembro de 2022, a liquidação n.º 2022..., referente aos rendimentos de 2018, bem como a liquidação de juros compensatórios e demonstração de liquidação.

4.1.21. Em 9 de novembro de 2022, a liquidação de IRS e a liquidação de juros compensatórios foram expedidas, por correio registado, com os n.os RY...PT, e RY...PT, para a Av. ... n.º ..., ..., ..., ...-... Portela LRS, tendo sido aí rececionados no dia 10 de novembro de 2022.

4.1.22. Em 10 de novembro de 2022, foi expedida, por correio registado com o n.º RY...PT, a demonstração da liquidação, também para a ... n.º ..., ..., Portela, ...-... Portela LRS, tendo aí sido rececionada no dia 11 de novembro de 2022.

4.1.23. Em 18 de janeiro de 2023, o Requerente marido submeteu via e-balcão um pedido de esclarecimento sobre os preceitos legais e factos que sustentam a liquidação.

4.1.24. Em 19 de janeiro de 2023, a AT informou: “Poderá solicitar certidão com os fundamentos da liquidação nos termos do artigo 37.º do CPPT”.

 

 

4.2. Factos não provados

            4.2.1. Não se provou que os requerentes não foram notificados da liquidação de 2018 (artigo 13.º do Requerimento de Pronúncia Arbitral).

 

            4.3. Fundamentação da matéria de facto

  Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão do Requerente.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, junto pelos Requerentes e também pela Requerida.

Quanto ao facto não provado, o mesmo traduz o reflexo negativo da factualidade vertida em 4.1.21., na medida em que consta dos Autos a indicação do registo e entrega do mesmo.

 

5. Matéria de direito

5.1. Questão decidenda

Quanto ao IRS de 2017, os Requerentes sustentam que a procedência da reclamação graciosa determina a anulação total da liquidação e de todos os seus efeitos, “devendo o Tribunal Arbitral julgá-la inválida por violação dos pressupostos de facto e de direito da liquidação”; mais sustentam que a existir outra liquidação relativa ao ano de 2017, a mesma deve ser “declarada inválida, por caducidade do direito à liquidação”.

Na parte respeitante à liquidação de IRS sobre os rendimentos de 2018, os Requerentes suportam a sua pretensão na violação do direito à fundamentação dos atos tributários, considerando, para além desse alegação, que “devem ser formalmente notificados da liquidação de IRS de 2018, a fim de exercerem os direitos de defesa a que têm direito”.

É certo que, nas suas alegações, os Requerentes estribam a sua pretensão anulatória em novas causas de pedir relativas à legalidade das notificações efetuadas para o domicílio português e à violação do princípio do inquisitório por parte da AT, a caducidade da liquidação de IRS de 2018, e ainda à aplicação do regime da Convenção para eliminação da dupla tributação entre Portugal e Índia. Porém, é manifesto que as alegações “destinam-se a discutir a matéria de facto e as questões jurídicas que são já objeto do processo, o que torna, em princípio, inadmissível a invocação superveniente de novos vícios nessa peça processual”, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo nº 0895/13, de 25 de setembro de 2013. Também Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. II, 6.ª edição, 2011, Lisboa, p. 209, refere que a “indicação do pedido ou pedidos e dos factos em que se fundamentam, bem como a indicação dos vícios que o impugnante imputa ao acto impugnado deve ser feita na petição, não podendo posteriormente, em regra, formular-se novos pedidos ou invocados novos factos ou imputados outros vícios, designadamente nas alegações previstas no art. 120 .° do CPPT. [§] Este entendimento, que tem vindo a ser adoptado quase generalizadamente pelo STA, baseia-se no princípio da estabilidade da instância (art. 268.° do CPC), e no ónus imposto ao impugnante de expor na petição de impugnação os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido (n.°1 deste art. 108.º do CPPT). [§] Por outro lado, os vícios geradores de mera anulabilidade, só podem ser arguidos no prazo previsto na lei (art. 136.º, n.º 2, do CPA), pelo que se não forem imputados ao acto nesse prazo, o interessado perderá o direito de os arguir. [§] Assim, só em casos excepcionais, quando se esteja perante questões de conhecimento oficioso ou quando factos subjectivamente supervenientes para o impugnante lhe proporcionem a tomada de conhecimento de vícios de que não podia ter conhecimento no momento da apresentação da petição, será permitido ao impugnante invocar novos factos ou imputar novos vícios ao acto impugnado, o que está em sintonia com o preceituado nos art. 86.º e 91.º, n.º 5, do CPTA (e, para os processos anteriores a este diploma, no art. 506.° do CPC), sobre a admissibilidade de articulados supervenientes, que deve ser subsidiariamente aplicável, com adaptações, ao processo de impugnação judicial, por força do disposto na alínea c) do art. 2.º do CPPT”.

Consequentemente, devendo os Requerentes invocar os factos e as razões de direito que suportam a pretensão de anulação do ato de liquidação no requerimento de pronúncia arbitral e não sendo as questões alegadas posteriormente matéria de conhecimento superveniente dos Requerentes ou de conhecimento oficioso, não pode admitir-se a ampliação da causa de pedir em que se traduzem as alegações dos Requerentes, sob pena de se violar o princípio da estabilidade da instância.

Vejamos, então, as questões a decidir.

 

5.2. IRS de 2017

Como resulta da matéria de facto dada como provada, a liquidação em crise resultou de um procedimento de liquidação oficiosa porquanto os Requerentes, residentes em Portugal no ano a que se referem os rendimentos, não apresentaram a declaração de IRS dentro do prazo legalmente previsto, devendo fazê-lo na medida em que auferiram rendimentos de fonte estrangeira, sujeitos a tributação em território nacional (artigos 13.º, n.º 2, da LGT e 15.º, n.º 1, do CIRS).

No âmbito desse procedimento, a AT procedeu à notificação para a apresentação da Declaração Modelo 3 acompanhada do respetivo Anexo J e, posteriormente, à liquidação do imposto devido, tributando o titular dos rendimentos da categoria E, à taxa legalmente prevista de 28%.

Só após a notificação desta liquidação oficiosa é que os Requerentes vieram declarar a opção pela tributação conjunta e pelo englobamento dos rendimentos; primeiro, através de declaração de rendimentos; depois através do procedimento de reclamação graciosa, onde se peticionou que fosse “aceite a declaração Mod. 3 corretiva que apresentou e o imposto liquidado corretamente nos termos legais”.

Acolhendo a opção manifestada pelos Requerentes, a AT deferiu o pedido e determinou que se procedesse à eliminação da declaração oficiosa onde se seguiu a regra legal da tributação separada, com base na titularidade dos rendimentos, e autónoma, sem englobamento dos mesmos.

Relativamente às opções manifestadas pelos Requerentes em sede de reclamação graciosa, encontramo-nos perante situações em que o direito fiscal releva a autonomia da vontade dos sujeitos passivos, colocando nas mãos destes, a possibilidade de optar por um determinado regime tributário, produzindo-se os efeitos jurídicos de acordo com a escolha efetuada.

Como é óbvio, numa liquidação oficiosa e na ausência prévia dessa manifestação de vontade, o imposto não pode deixar de ser liquidado de acordo com as determinações legais: sendo os contribuintes casados, a regra é a da tributação separada (artigo 13.º, n.º 2, do CIRS) e os rendimentos de capitais não são sujeitos a englobamento (artigo 22.º, n.º 3, do CIRS).

Admitindo-se que, nos casos como o presente, essa opção venha apenas a concretizar-se em sede de reclamação graciosa, a consequência não poderá ser outra que não seja a conformação dos efeitos jurídicos da liquidação de acordo com a vontade aí manifestada. Porém, sendo a própria reclamação a via ou o meio através do qual se requer a alteração do regime, nem sequer nos encontramos perante uma pura “correção” no sentido de que a liquidação fosse ilegal a se, mas verdadeiramente perante a possibilidade de “substituir”, ex voluntate, elementos determinantes da liquidação do imposto que se reconfigura por sobreposição dessa opção. Neste caso, a reclamação não visa diretamente um erro nos pressupostos de facto ou de direito, nem uma ilegalidade que pudesse ser assacada em abstrato à liquidação administrativa – hoc sensu, que a AT tivesse violado a lei na determinação do imposto na inexistência de qualquer manifestação de vontade do sujeito passivo –, outrossim, permitir que o sujeito passivo forneça à administração os elementos declarativos necessários para que esta possa ajustar o imposto liquidado à petição do sujeito passivo.

Obviamente que tendo tais opções o ensejo de alterar o valor do imposto devido, e de forma coincidente com o que sucede no caso de uma liquidação corretiva, a determinação do imposto devido de acordo com a vontade do contribuinte não se configura, para efeitos de caducidade, como um novo ato tributário, mas como um ato que juridicamente titula a diferença de imposto resultante do exercício da opção que legalmente está fora do alcance da administração.

Entendimento diverso constituiria uma fratura sistemática, intencional e material no regime tributário aplicável em casos já por si patológicos e que abriria espaço para um intolerável venire contra factum proprium em que o sujeito passivo exercia uma opção, vedando à Autoridade Tributária a possibilidade de proceder à sua implementação.

Ora, o que vem alegado situa-se precisamente nesta linha argumentativa: em sede de procedimento de reclamação graciosa foi reconhecida a pretensão dos requerentes, não restando qualquer dúvida de que a declaração que originara a liquidação posta em crise foi “eliminada” no decurso do procedimento interno decorrente do deferimento da reclamação foi aquela substituída por outra integralmente correspondente ao peticionado pelos Requerentes no que concerne ao exercício pela tributação conjunta e pelo englobamento dos rendimentos da categoria E, tendo-se anulado, por força dessa alteração, o valor de € 2.153,55, entre imposto e juros e determinando-se a restituição do valor do imposto considerado erradamente pago.

Consequentemente, o Tribunal não tem que considerar inválida uma liquidação quando é manifesto que a mesma já foi alterada pela administração e os efeitos jurídicos que inicialmente se produziram na esfera dos Requerentes foram conformados por força do que peticionaram em sede de reclamação, determinando-se a restituição do valor pago em excesso.

Não se olvida que as operações de apuramento do imposto de acordo com a opção exercida pelos sujeitos passivos e que suportam a restituição do imposto lhes deve ser notificada para que estes possam sindicar a correção dos valores administrativamente apurados, contudo, trata-se de matéria que, tal como a relativa à exigibilidade do imposto, extravasa do âmbito deste processo, uma vez que não contende com matéria de legalidade, para além de que os Requerentes tão pouco controvertem os valores de reembolso.

 

5.3.  IRS 2018

Consideram os Requerentes que a liquidação de IRS relativa ao ano de 2018 “assente em ‘tributações autónomas’, continua por fundamentar e é, em consequência, inválida, não conseguindo os Requerentes discernir onde e porquê foram tributados naquelas quantias e com que base legal”.

Vejamos.

As exigências de fundamentação dos atos e decisões tributárias constam do artigo 77.º da LGT, que corresponde a uma densificação normativa da injunção constitucional proclamada no art.º 268.º, n.º 3 da CRP, sendo de acentuar que a fundamentação, na sua expressão nuclear, tem de ser “expressa e acessível quando afete(m) direitos e interesses legalmente protegidos”. É pela função que cumpre, ou pelos objetivos que deve satisfazer, que se afere, em cada tipo de situação jurídico-factual, a exigência e grau de densidade da “enunciação contextual, expressa, dos motivos de facto e de direito com base nos quais a administração se decidiu praticar o concreto ato administrativo nos precisos termos em que o fez” e a sua apreensibilidade cognitiva por parte do titular dos direitos afetados (Cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 594/2008, disponível no respetivo website).

A fundamentação é consubstanciada pelo discurso verbalizado pela administração como suporte constituinte da decisão administrativa. Nesta perspetiva, estamos perante uma externação formal das razões de facto e de direito ser contemporâneas ou coetâneas da decisão administrativa e constituintes da mesma, não podendo considerar-se como legítimas todas aquelas que, ainda que porventura, com um propósito integrador do sentido da sua anterior declaração, apenas sejam produzidas e invocadas posteriormente. Numa formulação que traduz apenas a síntese do que a doutrina mais autorizada escreveu sobre a matéria, pode repetir-se que a fundamentação se consubstancia num discurso funcional externado pela administração, expresso, formal, explícito, contextual, com capacidade para dar a um destinatário normal, colocado na situação concreta do destinatário do ato as razões “justificantes” e “justificativas” - sob o ponto de vista formal - da concreta decisão administrativa.

            In casu, importa notar que a liquidação em causa surge como consequência da correção oficiosa da declaração de IRS, traduzida inclusão dos rendimentos de capitais auferidos pela Requerente A... na Índia e que não tinham sido declarados pelos Requerentes na declaração Modelo 3 de IRS que apresentaram.

            Ora, nos casos em que a AT proceda à alteração dos elementos declarados, ex vi o disposto no artigo 65.º do Código do IRS, existe uma disposição legal específica que impõe a fundamentação desses atos de alteração. Nesse sentido, dispõe-se no artigo 66.º, n.º 2, do Código do IRS, que tal fundamentação deve ser expressa através de exposição, ainda que sucinta, das razões de facto e de direito da decisão, equivalendo à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a sua motivação. Essa fundamentação existiu. Com efeito as correções em causa encontram-se justificadas, na medida em que se explicitam as razões que justificam o agir administrativo. Dos ofícios que remeteu aos Requerentes, constam referências expressas ao regime legal que autoriza a AT a promover alterações às declarações de IRS e, bem assim, os motivos pelos quais se procedeu às referidas correções, designadamente: o estatuto fiscal de residente à data a que se reportam os rendimentos, o valor dos rendimentos comunicados pela administração fiscal da Índia, a taxa de câmbio de referência utilizada e a indicação de que, caso não seja exercido o direito de audição, a AT “irá proceder à alteração dos elementos declarados, com base nos elementos conhecidos, nos termos dos n.os 1 e 4 do artigo 65.º do CIRS, apurando o imposto em falta.

            Encontrando-se justificadas as alterações oficiosamente introduzidas na declaração de rendimentos apresentada pelo sujeito passivo, compreende-se que a liquidação subsequente possa sintetizar-se na apresentação dos valores do imposto a pagar, nos termos de uma nota demonstrativa da liquidação de IRS, como a que foi emitida pela administração.

Assim, improcede o vício de falta de fundamentação imputado às liquidações de IRS.

Por fim, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, designadamente que foi expedida por correio registado e rececionada a correspondência relativa à liquidação de IRS de 2018, soçobra a alegação dos Requerentes quanto à falta de notificação desse ato tributário. Ainda assim, sempre se poderia dizer que os mesmos confessaram ter conhecimento da liquidação em causa e tiveram possibilidade de reagir ao seu conteúdo, como, aliás, resulta da exposição antecedente relativa à falta de fundamentação dessa liquidação.

           

 

6. Decisão

 

Atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

  1. julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral; 
  2. Condenar os Requerentes nas custas processuais infra determinadas.

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária atribui-se ao processo o valor de € 32 037,25.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.836,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.

 

 

Coimbra, 26 de abril de 2024,

 

 

 

João Pedro Rodrigues