Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 415/2023-T
Data da decisão: 2024-04-16  IRC  
Valor do pedido: € 462.153,76
Tema: IRC – Diferença entre o saldo de caixa no registo contabilístico e o saldo de caixa na contagem física de notas e moedas.
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Sumário:

  1. As regras de contabilidade são normas obrigatórias quanto à forma de organizar a contabilidade e de elaborar as demonstrações financeiras e poderão gerar ilícitos pelo seu incumprimento. Mas os impostos não são sanções por falha no cumprimento de diretrizes contabilísticas pelo que o desrespeito das regras contabilísticas não pode gerar por si só uma obrigação de pagamento de imposto, mas antes de propiciar a aplicação de coimas, multas ou pena de prisão.
  2. Quando se verifique divergência entre o saldo da conta de caixa revelado pela contabilidade, em que este é de maior valor do que a contagem física dos valores em notas, moedas e afins correspondentes, não há que presumir, sem mais, que essa diferença é constituída por despesas não documentadas e tributá-las seguindo o regime das tributações autónomas, constante do artigo 88.º, n.º1 do CIRC.
  3. Quando a contabilidade do sujeito passivo apresente irregularidades notórias que não permitam determinar devidamente os rendimentos e gastos resultantes da divergência na contagem do saldo de caixa, deve determinar-se a correção do IRC a pagar nos termos das normas dos artigos 57.º e 59.º do CIRC e do regime da avaliação indireta regulado na LGT.

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

Os árbitros Carla Castelo Trindade (Presidente), Cristina Coisinha (adjunto) e Nuno Maldonado Sousa (adjunto relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 16-08-2023, decidem no processo acima identificado nos seguintes termos:

 

1  Relatório

A..., LDA., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., doravante designada por “Requerente” ou por “A...”, titular do número de identificação de pessoa coletiva..., requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e nos termos dos artigos 10.º, do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”).

A Requerente peticiona a título principal a anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletiva (“IRC”) do ano de 2021, com o n.º 2023... no valor de 477.185,65 € e das respetivas liquidações de juros compensatórios no valor de 9.690,23 € e de juros moratórios de 230,44 €.

A título subsidiário, para a situação do seu pedido principal não proceder, requer a anulação parcial do ato tributário identificado.

O seu pedido assenta na errónea aplicação que a AT faz do direito, nomeadamente do princípio constitucional da tributação das empresas de acordo com o seu rendimento real (109.º e 131.º) e da metodologia utilizada para apurar o imposto a pagar (93.º e 94.º), por assentar em presunções não admitidas na lei (99.º, 106.º, 108.º, 120.º e 124.º) e da repartição do ónus da prova no procedimento tributário (96.º e 112.º), por não respeitar o princípio da periodização (91.º, 92.º, 105.º, 108.º, 111.º, 116.º e 126.º-129.º) previsto no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), por utilizar como base de cálculo a informação contabilística da Requerente, que apresenta sinais de não ser fidedigna (84.º, 88.º, 117.º, 118.º, 120.º, 121.º e 136.º), por aplicar indevidamente o regime da tributação autónoma (82.º, 83.º, 95.º e 96.º) e por se furtar a aplicar a tributação através da avaliação indireta (101.º e 132.º) e por ignorar a regra do Código do Procedimento e do Processo Tributário (“CPPT”), que estatui a anulação dos atos tributários em caso de fundada dúvida (123.º). Assinala também o erro na apreciação dos pressupostos de facto (80.º, 82.º, 86.º, 87.º, 114.º, 125.º e 133.º)[1]

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada também pelas formas abreviadas “AT” ou “Requerida”, que sustenta as liquidações e afirma que estas foram feitas com base em diferenças verificadas no saldo da conta “caixa” encontradas entre a quantia resultado da contagem física dos valores e a quantia resultante dos documentos comprovativos de recebimentos/pagamentos. Considera que na presença de uma divergência na conta de caixa, uma vez que no dia da contagem física da mesma, o valor contado foi de 622,53 € e contabilisticamente, o saldo à mesma data era de 906.067,78 €, apura-se uma diferença em “caixa” de 905.445,25 € (906.067,78 € - 622,53 €). A estes factos considera aplicável a disciplina das normas combinadas do artigo 17º, n.º 3, alínea b) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”), que afirma a contabilidade deve refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se das restantes de modo a permitir o apuramento do lucro tributável. A falta de observância dessas normas no caso concreto, designadamente a divergência apurada na conta “caixa”, na ausência de justificação para a sua existência, esta deverá terá enquadramento em “despesas não documentadas”, uma vez que se desconhece o destino deste montante. Foi nesta linha de ação que foi emitida a liquidação adicional.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 05-06-2023 e aceite pelo Presidente do CAAD em 07-06-2023, que em 15-06-2023 o notificou à Requerida.

Os árbitros identificados e signatários deste acórdão, manifestaram a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 28-07-2023 as partes foram notificadas da designação dos árbitros para constituir o Tribunal Arbitral e não manifestaram intenção de os recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 16-08-2023 e o prazo para a decisão foi prorrogado por dois meses, por despacho fundamentado de 07-02-2024.

A Requerida apresentou resposta (“R-AT”) em 02-10-2023, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, por não provado e a AT absolvida de todos os pedidos.

Foi junto o processo administrativo (“PA”) e, a convite do Tribunal foram juntos documentos de natureza probatória pelas Partes, que apresentaram alegações escritas.

 

2  Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, e é competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado em 05-06-2023, antes do termo do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do já referido regime, considerando que a data-limite para pagamento dos atos sub judicio foi fixado para 09-03-2023.

As partes estão devidamente patrocinadas e a Requerida goza de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.

 

3  Decisão da matéria de facto

3.1 Matéria de facto assente

 

Para decidir a ação considera-se assente:

 

A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação adicional de IRC n.º 2023 ... do ano de 2021, no valor a pagar de 477.185,65 € e das respetivas liquidações de juros compensatórios no valor de 9.690,23 € e de juros moratórios de 230,44 € e da demonstração de acerto de contas, onde foi apurado o saldo a pagar de 462.153,76 €. (PPA[2], 1.º e 2.º: docs. 1 e 2).

O IRC que se refere em “A” foi liquidado na sequência da correção decorrente da ação inspetiva de que a aqui Requerente foi objeto, realizada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º. 012022..., que se iniciou em 25-10-2022. (PPA, 3.º: doc. 3; PA, pp.9-13)

No Relatório de Inspeção Tributária que foi notificado à Requerente, para além de tudo o mais que dele consta, pode ler-se: (PA, pp. 129-135)

IV.1. Caracterização do sujeito passivo/atividade

O sujeito passivo (adiante designado por SP ou A...), desenvolve a atividade principal de “Restaurantes tipo tradicional”, CAE 56101, desde 30.01.2015. Esta atividade é desenvolvida em dois restaurantes distintos, nomeadamente o restaurante “B...” e o C...”, ambos sitos na ...

O restaurante “O B... está aberto o ano todo e o “C...”, funciona apenas no período de verão. Através da análise efetuada aos ficheiros SAFT (PT) da faturação, verifica-se que, no exercício de 2021, o restaurante “C...”, emitir faturas entre 21.05.2021 e 15.11.2021.

Além dos restaurantes o SP dedica-se também a cultura de produtos hortícolas e ao comércio destes, numa banca sita no mercado de  ... .

IV.2. Declaração modelo 22 entregue

No exercício de 2021, o sujeito passivo declarou o volume negócios de 1.407.571,97 € e o lucro tributável de 319.215,74 €.

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

V.1. Descrição dos factos

No âmbito do despacho número DI2021..., procedeu-se a contagem da caixa do restaurante “B...”, no dia 10.12.2021 pelas 13h20 tendo-se apurado que na mesma constava um montante de 251,43 €, (…)

Foi também exibido o livro de atas do SP tente verificado que durante o ano de 2021, não tinha sido elaborada qualquer deliberação de distribuição de lucros ou de pagamento dos mesmos a título de adiantamento.

(…)

Conforme referido pela representante do SP, nesse mesmo dia pelas 10h50, e no âmbito despacho número DI2021... tinha-se procedido também à contagem da caixa da banca sita no Mercado de ..., tendo-se verificado que constava na mesma o montante de 371,10 €.

(…)

De modo a apurar-se a veracidade dos valores contados em caixa no dia 10.12.2021 tornou-se necessário aguardar que o SP procedesse ao encerramento da contabilidade do ano de 2021, assim como da entrega da declaração de rendimentos modelo 22 e da declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES/DA), do mesmo exercício o que ocorreu a 03.06.2022 e 15.07.2022 respetivamente.

Foram, posteriormente, disponibilizados para análise dos documentos de suporte dos elementos contabilísticos, o ficheiro SAFT da contabilidade do ano de 2021 e os ficheiros SAFT (PT) da faturação do mesmo exercício.

Após análise desses elementos, verificou-se que a conta SNC 11 era composta por quatro sub contas, nomeadamente, 11.1. Caixa Restaurante, 11.2. Caixa Mercado, 11.3. Caixa Prod. Agrícola e 11.4. Caixa C... . A conta SNC 11.1. Caixa Restaurante respeita ao restaurante “B...”.

Verificou-se que as vendas de produtos e as prestações de serviços são lançadas por contrapartida das várias contas SNC 11. Mesmo aquelas que são recebidas através de pagamentos por multibanco, são lançadas, inicialmente, por contrapartida das várias contas SNC 11 e posteriormente, aquando da entrada dos valores na conta bancária, é que é feito o lançamento de transferência dos montantes da conta SNC 11 (crédito) para a conta SNC 12 (débito). Também são efetuados lançamentos nas várias contas SNC 11 respeitantes a pagamentos a fornecedores e remunerações.

Com vista ao apuramento do saldo contabilístico das várias contas SNC 11 Caixa à data da contagem, ou seja 10.12.2021, e a existência de eventuais divergências entre esses saldos e os valores contados de caixa, analisados os elementos contabilísticos, tornou-se necessário, para apurar o saldo contabilístico das várias sub contas da conta SNC 11 - Caixa, em 10.12.2021, fazer alguns ajustes já que alguns documentos não tinham movimentado a conta caixa na data de lançamento. Neste seguimento junta-se os anexos 2, 3 e 4, onde se apurou o saldo contabilístico das várias caixas a data da contagem, tendo em consideração que a data do movimento corresponde à data que se encontra na coluna "data do documento". Relativamente a conta 11.4 não foi necessário construir este suporte uma vez que o último movimento registado nessa conta ocorreu em 15.11.2021, não se tendo verificado movimentos durante o mês de dezembro.

No que diz respeito a conta 11.1 - Caixa Restaurante que corresponde à caixa do restaurante “B...” foi necessário ajustar-se os movimentos creditados em caixa do mês de dezembro, respeitantes aos recebimentos de clientes através do terminal de pagamento automático (TPA), já que se encontravam todos lançados a data 31.12.2021. Outra situação detetada, prende-se com o lançamento a crédito, do montante total de 20.742,97 €, em vários lançamentos (do lançamento 120124 ao 120166), relacionados com o pagamento de vencimentos respeitantes a meses passados, nomeadamente entre dezembro de 2019 e abril de 2021. Estes movimentos encontram-se todos lançados à data de 31.12.2021, mas desconhece-se a data exata do pagamento dos mesmos. Pelo que, em 30.05.2022, ouviu-se em declarações o sócio-gerente do SP, Sr. D..., que relativamente a esta questão esclareceu que “a data de pagamento dos recibos indicados no anexo um ocorreu até dia 8 do mês seguinte a data de emissão dos referidos recibos.” Ou seja, verifica-se que a data de pagamento desses vencimentos ocorreu antes da data da contagem da caixa pelo que se torna necessário proceder esse ajuste.

O SP efetuou ainda um lançamento contabilístico com data de 01.01.2021, nomeadamente, o lançamento 12014, no diário 4, mas que foi efetuado após a realização da referida contagem de caixa (10.12.2021), denominado “correção saldo empréstimo”. Este movimento foi realizado em 04.05.2022, conforme consta da coluna “SystemEntryDate” do SAFT da contabilidade. Este lançamento movimentou a conta 11.1 Caixa Restaurante, no valor de 337.000,00 € a débito e 461.529,61 € a crédito. Solicitado documento de suporte contabilístico do referido lançamento, foi disponibilizado uma folha onde constam 4 quadros, um denominado “I... 2015-2019”, onde surge o valor de 410.000,00 € como dívida total e várias linhas com valores que totalizam 491.591,02 € e os restantes denominados “I... 2020”, “I... 2021” e “I... 2022” (anexo 5).

Aquando da contagem de caixa efetuado ao restaurante “B...”, e conforme já indicado anteriormente, a sócia gerente tinha declarado que tinha contraído “um empréstimo junto de um particular”.

Esta situação não foi comprovada pelo SP, assim como o documento suporte do lançamento contabilístico 120114, não é um documento válido, pelo que será necessário desconsiderar-se aqueles valores da conta 11.1 para se apurar o saldo contabilístico à data da contagem,

Relativamente à conta 11.3 - Caixa Prod. Agrícola, foi necessário também efetuar um ajustar o saldo contabilístico apurado no anexo 4, a data da contagem, uma vez que o lançamento 120004, no diário 12, datado de 30.11.2021, que credita esta conta no valor de 2752,80 €, refere-se ao pagamento de uma fatura emitida em 30.11.2021, pela Associação E..., NIPC:..., cujo pagamento ocorreu apenas em 14.02 2022.

Deste modo e tendo em consideração os saldos contabilísticos apurados nos anexos 2, 3 e 4, à data de 10.12.2021 e os ajustes atrás descritos apurou-se o saldo contabilístico nesta data o seguinte:

Quadro 1 - Saldo contabilístico conta 11.1. Caixa à data da contagem

Valor: euros

 

  1. (440.786,04 € = 461.529,61 € - 20742,97 €)

Neste seguimento, apura-se de divergência, entre o saldo contabilístico apurado à data de 10.12.2021 (quadro 1) e o valor contado na mesma data o seguinte:

Quadro 2 - Apuramento da divergência - Saldo de caixa

Valor: euros

 

V.2. Correções

V.2.1 Tributações autónomas

As demonstrações financeiras, nomeadamente, o balanço, compreendem a conta 11 - caixa. Esta conta faz parte dos meios financeiros líquidos (classe 1), classe esta que destina-se a registrar os meios financeiros líquidos que incluem quer o dinheiro e depósitos bancários quer todos os ativos ou passivos financeiros mensurados ao justo valor, cujas alterações sejam reconhecidas na demonstração de resultados.

A conta caixa contém os elementos monetários, tais como notas e moedas, pelo que os elementos do ativo a considerar na conta 11 – Caixa deverão ser apenas dinheiro (notas e moedas de curso legal, nacionais estrangeiras) e cheques e vales postais (em moeda nacional e estrangeira).

Dada a natureza dos seus elementos, o saldo da conta caixa é devedor ou nulo. Nunca credor.

Todos os documentos internos e externos que justificam recebimentos ou pagamentos deverão constar na conta caixa.

Consideram-se diferenças de caixa as diferenças encontradas entre a quantia resultado da contagem física dos valores e a quantia resultante dos documentos comprovativos de recebimentos/pagamentos.

Pelo que, façam exposto no ponto anterior, verifica-se que estamos na presença de uma divergência na conta de caixa, uma vez que no dia da contagem física da mesma, o valor contado foi de 622,53 € e contabilisticamente, o saldo à mesma data é de 906.067,78 € (quadro 1), apurando-se uma diferença em caixa de 905.445,25 € (906.067,78 € - 622,53 €).

De acordo com a alínea b) do número 3 do artigo 17º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), de modo a permitir o apuramento do lucro tributável, referido no número 1, a contabilidade deve refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se das restantes.

Relativamente à divergência apurada na conta caixa, e dada a ausência de justificação para a sua existência, a mesma terá enquadramento em despesas não documentada, uma vez que se desconhece o destino deste montante.

As despesas não documentadas, a que se refere o número 1 do artigo 88 do CRC, reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documentos de suporte que permita apurar o seu destino ou seu beneficiário. Podem existir múltiplas explicações e justificações para a saída não documentada de fundos da sociedade. No entanto, na ausência de elementos de prova e de quaisquer documentos de suporte que possam indicar a respetiva finalidade, a saída de fundos permanece na categoria de despesas não documentada. A ausência dos meios financeiros que as várias contas SNC 11 Caixa evidenciavam, conjugada com a não contabilização de qualquer saída, configura uma despesa não documentada.

Nos termos do número 1 do artigo 88.º do CIRC, as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, a taxa de 50%.

O fato gerador da tributação autónoma corresponde à “realização da despesa” e é caracterizado como um facto tributário instantâneo que gera uma obrigação de pagamento com caracter avulso, de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos.

Uma vez que o SP, não tendo cumprido os seus deveres declarativos, omitiu a contabilização das saídas de caixa, para determinação da data da saída da caixa terá de socorrer-se, como indicador supletivo, a data da contagem física da caixa.

Face ao até agora exposto, e uma vez que o montante de 905.445,25 €, não se encontrava em caixa à data da contagem, conclui-se que ocorreram saídas de fluxos financeiros deste valor, que não se encontram registados nos elementos contabilísticos e cujo destino dado aos mesmos se desconhece.

Pelo que, e nos termos do já referido número do artigo 88.º do CIRC, apura-se de correção as tributações autónomas, o montante a seguir indicado:

Quadro 3 - Tributações autónomas corrigidas

Valor: euros

 

A AT procedeu a ajustamentos dos lançamentos da Conta 11.1 — Caixa Restaurante, no Relatório da Inspeção relativo a remunerações lançadas a débito em 31-12-2021, mas que correspondiam aos exercícios anteriores de 2019 e 2020, no valor de 3.128,73 € (858,42+857,42+470,96+395,61+546,32) (PPA, 15.º e 16.º: doc. 4, p. 17).

Em 23-01-2015 a sociedade F..., Lda., NIPC ... cedeu à Requerente, a título gratuito, a sua posição no “contrato de cessão de exploração” outorgado em 17-11-2012, a exploração do estabelecimento comercial destinado a restauração, denominado “Restaurante G...”, instalado na ..., ..., incluindo “todos os direitos e obrigações constantes daquele contrato” de cessão de exploração. (PPA, 20.º: doc. 5).

De acordo com o registo contabilístico a primeira operação do “Restaurante G...” data de 30-03-2015 e a partir de 01-04-2015 estão assinaladas operações com regularidade. (PPA, 20.º: doc. 6).

Na exploração do “Restaurante G...” a Requerente utilizou o terminal de pagamentos automáticos (TPA) da F... Unipessoal, Lda., pelo que, até junho de 2015, todas as receitas de TPA dessa máquina foram canalizadas para a conta bancária no Santander Totta da F..., Lda. (PPA, 21.º: doc. 6 e doc. 7 e depoimento da testemunha H..., contabilista certificada da Requerente)

A contabilidade da Requerente evidencia vários erros e omissões vindos do passado (exercícios anteriores), pelo que a TOC em 2021 procedeu a diversos lançamentos na tentativa de regularizar tais erros e omissões. (PPA, 27.º: depoimento da testemunha H..., contabilista certificada da Requerente).

A F..., Lda. procedeu à remodelação total do restaurante na praia da ..., incluindo a reabilitação do próprio prédio e adquiriu novos equipamentos de restauração, incluindo grande e moderna cozinha profissional, que transformou o restaurante numa unidade de restauração moderna e equipada (PPA, 32.º: declarações de parte).

O investimento que foi feito pela F..., referido no item anterior, aliado à escassez de capitais próprios, implicou a ocorrência de passivo, designadamente, a fornecedores, bancos e de impostos em atraso, que não conseguia satisfazer. (PPA, 33.º: declarações de parte).

Em 21-09-2015 foi depositado na conta bancária da F..., Lda., na CCAM ... C.R.L. o valor de 234.516,53 € através do cheque visado n.º ... (PPA, 37: doc. 10)

Nas contas da Requerente não se encontra registado qualquer financiamento obtido da I... BV, nos anos de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 e nas contas de 2020 consta o saldo devedor de 68.000,00 € e no exercício de 2021 consta o saldo devedor de 210.996,17 € (PPA, 47.º: doc. 13 (2015), doc. 14 (2016), doc. 15 (2017), doc. 16 (2018), doc. 17 (2019), que não revelam qualquer crédito da entidade na Classe 26 – Financiamentos Obtidos. (Factos adquiridos na instrução, relativos aos anos de 2020 e 2021, que constam do doc. 18, pp.4-5 e doc. 19, p. 5).

Mensalmente a Requerente transferiu da sua conta no Banco BPI para a I... B.V., no período de janeiro de 2016 até dezembro de 2019 e em 3 meses de 2020, o montante mensal de 3.030,00 € e o montante mensal de 441,54 €, quantias assinaladas no extrato bancário (PPA, 56.º: doc. 22).

A evolução anual dos saldos de “caixa” nos balancetes juntos pela Requerente assume os seguintes valores: (PPA, 71.º: docs. 15-19 e factos adquiridos na instrução, relativos aos anos de 2015 e 2016, que contam dos docs. 13 e 14).

 

 

3.2  Factos não provados

Da matéria de facto trazida aos autos pela Requerente no seu Pedido Arbitral (PPA), não se consideraram provados (para referenciação utilizam-se os números dos artigos do Pedido Arbitral):

- 16.º: Que “relativamente à Conta 11.1 — Caixa Restaurante, no Relatório da Inspecção fez-se o ajuste dos movimentos no valor de 20.742,97€ relativo a remunerações lançadas em 31-12-2021 mas que correspondiam a períodos anteriores a Dezembro e a que se referem os lançamentos 120124 ao 120166”. Para prova desta alegação a Requerente junta, como documento n.º 4 o extrato da conta corrente da conta “Caixa Restaurante”; da consulta desse documento não resulta que os lançamentos que identifica sejam referentes a outros exercícios que não o de 2021, que consta na coluna “data do documento” e na coluna “Descrição” onde para além do nome do recebedor constam as referências 01/2021, 02/2021 e outros meses do mesmo ano, excetuados aqueles que se consideraram em “D” dos factos assentes.

- 21.º e 22.º: Que “todas as receitas de TPA dessa máquina foram canalizadas para a conta bancária no Santander Totta da sociedade F..., Lda.,” e que “Como a contabilidade da aqui Autora lançava todas as suas facturas pela conta Caixa, também aquelas facturas pagas pelo TPA da F..., Lda., num total de 47.033,55€, ficaram a inflacionar o saldo da conta Caixa sem que o respectivo dinheiro tenha entrado na sociedade Autora.” No mesmo documento n.º 6 que a Requerente utiliza para provar que o TPA da F..., Lda. foi utilizado no restaurante explorado por si, e onde estão registados os recebimentos, estão também lançadas transferências para a Requerente, como se pode ver nos lançamentos de 07-04-2015, 14-04-201524-04-2015, 29-04-201512-05-2015, 13-05-2015, 18-05-2015, 25-05-2015, 01-06-2015, 05-06-2015, 17-06-2015 e 02-07-2015.

- 23.º e 24.º: Que “No mesmo período, a dita F..., Lda. fez diversas transferências bancárias a favor da Autora, no valor total de 40.779,80€, mas as mesmas foram directamente à conta 12 Depósitos à Ordem por contrapartida da conta 278818 da F... (vide balanço de 2015) e, como tal, estes meios financeiros ficaram duplicados na contabilidade, (ou seja, na conta Caixa e na conta Depósitos à ordem).” e que “o referido valor de 47.033,55€, lançado na conta Caixa pelas respectivas facturas e que vem a influenciar o saldo de caixa desde 2015, também teria que ser expurgado para apuramento do saldo da conta Caixa em 10-12-2023. A Requerente não apresenta prova para esta afirmação. Aliás, note-se que o balanço não é documento idóneo para prova da ocorrência de “diversas transferências bancárias”, atendendo à própria natureza deste elemento que faz parte das demonstrações financeiras, mas que se destina a retratar a situação patrimonial da sociedade numa determinada data, normalmente no último dia de cada exercício, mas não revela que movimentos alimentaram qualquer das suas contas.

- 25.º e 27.º Que “em conformidade com o Quadro I do Relatório e quanto a esta Conta 11.1, a inspecção fez os ajustes a débito e crédito dos valores de 337.000,00 € e de 461.529,61 € referentes ao lançamento 120114 (fls. 1 do respectivo extrato do Doc. 4), que haviam sido lançados por contrapartida da conta 2582221 – I..., sendo, contudo, que o primeiro ajustamento mostra-se devido e o segundo não.” e que “o referido valor de 337.000,00€ nunca deveria ter sido debitado na conta Caixa porquanto esse valor nunca entrou na sociedade aqui Autora”. É verdade que o extrato da conta “Caixa Restaurante” revela movimento a débito em 01-01-2021 com o título “correção saldos empréstimo 2021” no valor de 337.000,00 €. Contudo, esse movimento a débito é antecedido de sete movimentos a crédito, com a mesma data e com o mesmo título, relativo a cada um dos anos de 2015 a 2021, totalizando 461.529,61. A sequência destes movimentos não permite avaliar qual a sua verdadeira natureza, pois nada explica por que razão foram feitos estes lançamentos corretivos e por que razão uns devem ser validados e outros não. Aliás, as afirmações contidas em 26.º e 27.º do PPA, que se consideram também não provadas, no sentido de “a contabilidade da aqui requerente evidencia vários erros e omissões vindos do passado (exercícios anteriores), pelo que a TOC em 2021 procedeu a diversos lançamentos, nomeadamente, o referido 120114 na tentativa de regularizar tais erros e omissões.” e “o referido valor de 337.000,00 € nunca deveria ter sido debitado na conta Caixa porquanto esse valor nunca entrou na sociedade aqui Autora”, são geradoras das maiores dúvidas. Se houve tentativa ela resultou em sucesso ou os erros mantiveram-se? Note-se que relativamente ao exercício de 2021, no documento n.º 4, p. 1, junto com o PPA, constam dois lançamentos de sentido oposto, ambos descritos como “correção”. A existirem dois lançamentos tratar-se-á de correção da correção? A dúvida resulta obviamente contra quem tem o ónus da prova, que é a Requerente.

- 26.º e 27.º - Que entre os lançamentos feitos pela TOC para suprir erros e omissões na contabilidade se inclui o valor de 337.000,00 € que nunca deveria ter sido debitado na conta Caixa porquanto esse valor nunca entrou na sociedade Requerente. Os registos contabilísticos das empresas espelham, em princípio, a realidade que lhes cabe espelhar e são feitos sob responsabilidade técnica de um contabilista certificado, autorizado para o efeito pela respetiva Ordem dos Contabilistas Certificados. Encontrando-se esse documento registado, a prova da afirmação da Requerente tem de ter um determinado grau de solidez, sob pena de o tribunal permitir o que a lei não admite, que é que um advogado, mesmo seguindo instruções do seu cliente, traga aos autos uma realidade contabilística diferente daquela que o contabilista fez constar dos livros da sociedade Requerente. Fazer registos contabilísticos ou pelo menos supervisioná-los e assumir a responsabilidade técnica, é da competência exclusiva dos contabilistas certificados, nos termos da norma do artigo 10.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro[3] porque é um ato próprio da profissão.

-28.º:  Que os movimentos a crédito na conta Caixa no valor de 461.529,61€, referentes ao lançamento 120114 encontram-se bem lançados, uma vez que tais valores saíram da sociedade, em numerário, para pagar à I... BV empréstimos de terceiros, ainda que uma grande parte desses pagamentos tenha ocorrido em exercícios anteriores a 2021. Como é sabido, não é possível às sociedades comerciais efetuarem pagamentos e recebimentos respeitantes à atividade empresarial desenvolvida sem que isso seja feito através de conta bancária, se o valor for superior a 1.000,00 €, que é o montante máximo admitido para pagamentos em numerário (artigo 63.º-C, n.º 1 e 63.º-E, n.º 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”). Aliás é inclusivamente proibido pagar ou receber em numerário em transações de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000,00 €. Esta alegação apenas foi genericamente confirmada em sede de declarações de parte. Tenha-se presente que o regime jurídico a que se fez referência, imperativo para os pagamentos, tem como fim assegurar que a AT tem sempre a possibilidade de confirmar os fluxos financeiros mais relevantes que constam da contabilidade das empresas. Ao adotar um procedimento contra a lei, estabelecido em favor da veracidade da informação com relevância fiscal, a prova a produzir teria de ter uma natureza inequívoca, o que naturalmente não acontece com as declarações de parte.

- 34.º e 35.º: [a ocorrência de um elevado passivo] “conduziu a que o sócio da F..., Lda. se socorresse de um amigo, o Sr. J... (conhecido por ...), para obter empréstimos para esta sociedade com vista a liquidar os seus compromissos financeiros.” e Tais empréstimos, numa primeira fase, foram feitos à F..., Lda. pela empresa I... BV (que era sócia da Autora à data dos factos), através de várias entregas de Maio a Dezembro de 2013 e, ainda, uma entrega em Janeiro de 2014, num total de 203.200,00€ e que vieram a ficar consignadas no contrato de mútuo (para financiamento de um restaurante) celebrado em 10 de Fevereiro de 2014, onde esses valores se encontram devidamente evidenciados (sendo que foram ainda feitas mais duas entregas a título de mútuo nos valores de 7.500,00€ e 29.000,00€, em 6 de Março e 7 de Abril de 2014, respectivamente, num total de 239.700,00€ e que forma introduzidas no contrato de forma manuscrita por serem posteriores à sua celebração). O contrato junto como documento n.º 9 é um documento particular, cuja validade foi impugnada pela AT, sem que posteriormente a Requerente viesse produzir qualquer prova suplementar. Os mútuos ou empréstimos, de valor superior a 25.000,00 € só são válidos se forem celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado, nos termos do artigo 1.143.º, n.º 1 do Código Civil. Embora para efeitos fiscais se possa aceitar que uma operação que tenha a configuração de um empréstimo e a sua substância económica, possa, em determinadas situações, ser provada por outros meios, pois um mútuo está sujeito a Imposto de Selo (artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo (“CIS”) e parágrafo 17.1.2 da sua Tabela Geral “(TGIS”) e tem sempre de produzir movimentos no circuito bancário, passem os fluxos pelas contas bancárias que passarem. Havendo impugnação da AT e não tento a Requerente trazido aos autos a guia de pagamento do Imposto de Selo ou documentos com a demonstração da movimentação bancária, não é possível considerar provada a celebração deste contrato nem os fluxos financeiros que nele se proclamam.

- 37.º e 38.º: que “em virtude das dificuldades que a F..., Lda. tinha decorrentes da sua incapacidade de liquidação dos seus compromissos bancários com a Caixa Agrícola (CA) e para evitar a respetiva execução, foi feito novo empréstimo pelo dito J... (J...) e que deu entrada directamente, em 21-09-2015, na conta bancária daquele banco (CA), através do cheque visado no ..., no valor de 234 516,53€ e que serviu, entre outras coisas, para, nesse mesmo dia, liquidar todas as prestações que se encontravam em mora, acrescidas de encargos e liquidar antecipadamente o Empréstimo ... no valor de 108.105,99 €” e que “este empréstimo não foi titulado por contrato.”. Os mútuos ou empréstimos na linguagem mercantil, de valor superior a 25.000,00 € só são válidos se forem celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado, nos termos do artigo 1.143.º, n.º 1 do Código Civil. Embora para efeitos fiscais se possa aceitar que uma operação que tenha a configuração de um empréstimo e a sua substância económica, possa, em determinadas situações, ser provada por outros meios, a prova que se pretendeu produzir foi apenas de um depósito de um cheque no citado valor na conta bancária. Nada mais é possível considerar provado, sem que, pelo menos, exista um documento escrito ou uma troca de correspondência que demonstre a vontade de contratar e que estabeleça o nexo entre o depósito e o alegado contrato.

- 39.º: Que “Em Outubro de 2015, foi celebrado um outro contrato de mútuo (para financiamento de um restaurante) entre a referida I... BV, a aqui Autora e a dita F..., Lda. com vista a dar forma escrita aos empréstimos feitos por aquela à F..., Lda. entre 08-01-2015 e 05-05-2015 no valor total de 132.500,00 €”. O contrato, junto pela Requerente como doc. 10, não está assinado pela Mutuante e foi impugnado pela AT. Como se disse, os mútuos ou empréstimos, de valor superior a 25.000,00 € só são válidos se forem celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado, nos termos do artigo 1.143.º, n.º 1 do Código Civil, obviamente com todas as assinaturas. Embora para efeitos fiscais se possa aceitar que uma operação que tenha a configuração de um empréstimo e a sua substância económica, possa, em determinadas situações, ser provada por outros meios, pois um mútuo está sujeito a Imposto do Selo (artigo 1.º, n.º 1 do CIS e parágrafo 17.1.2 da TGIS) e tem sempre de produzir movimentos no circuito bancário, passem os fluxos pelas contas bancárias que passarem. Havendo impugnação da AT e não tendo a Requerente trazido aos autos a guia de pagamento do Imposto do Selo ou documentos com a demonstração da movimentação bancária, não é possível considerar provada a celebração deste contrato nem os fluxos financeiros que nele se proclamam.

– 40.º, 41º e 42.º - Que o empréstimo contraído em outubro de 2015 “embora tenha sido feito, essencialmente, para pagar dívidas da F..., Lda., teve a intervenção da aqui Autora na medida em que era esta que já tinha assumido a exploração do supra referido restaurante e, por isso, assumiu a dívida como sendo a sua pagadora.” Esta afirmação é contrária ao teor do próprio documento n.º 11, cláusula 2.2, apresentado para sua prova, pois quem figura nele como mutuária é apenas a Requerente, cabendo à F..., Lda. o papel de disponibilizadora de quantias recebidas, mas não figura na qualidade de mutuária.

- 43.º, 44.º e 45.º - Que em Outubro de 2015, foi feito, também pela I... BV, um outro contrato de mútuo (para financiamento de um restaurante) a favor de K..., sócia da Autora, no valor de 125.000,00€, a ser disponibilizado a partir dessa data. De acordo com a informação de13-12-2022 constante do PA (pp. 128 e 144) K... foi sócia-gerente desde o início de atividade da Requerente, até 15-05-2015 e apenas gerente desde 16-05-2015, até à data da informação. Por outro lado, o contrato em causa, que não está assinado pelo mutuante e, a exemplo dos anteriores, não tem qualquer prova de ter sido efetivamente celebrado, mesmo com falta de forma, contém cláusula com condição suspensiva de que fosse assinado em notário a compra das ações da Requerente, devendo a respetiva escritura ser anexada ao contrato de mútuo junto com o PPA como doc. 12. Nem o contrato de compra das ações se encontra junto, nem a referida K... passou a ser sócia ou accionista da Requerente, de acordo com a citada informação no PA; antes pelo contrário, deixou de ser sócia meses mais cedo, em 15-05-2015.

- 48: Que “apenas em 2021, com o supra referido lançamento 120114 no valor de 337.000,006, é que a TOC tentou fazer reflectir, ainda que errada e indevidamente, os mútuos nos valores de 203.200,00€ e de 132.500,00€, sendo que apenas este último teve intervenção da aqui Autora como mutuária nos termos sobreditos”. Como se pode ver no balancete da Requerente de dezembro de 2021 (doc. 19 junto com o PPA, p. 5), o saldo devedor da conta 25.8.2221 (outros financiadores), da  I... era de 210.996,17 €. A falta de coincidência entre as afirmações da Requerente e os documentos que ela própria junta, não permitem outra conclusão que não seja “não provado”.

- 49.º, 50.º, 51.º e 52.º: Que tenha sido a Requerente a pagar os alegados mútuos, que a F... tenha deixado de ter quaisquer receitas, que a Requerente tenha beneficiado de obras feitas pela F... e equipamentos que adquiriu, ou que a Requerente não tivesse quaisquer ativos fixos em 2015, por ausência de qualquer prova nesse sentido.

- 56.º Que a Requerente tenha feito pagamentos à I... BV para além dos que constam na matéria assente, e mesmo esses não sendo possível afirmar a que finalidades se destinavam, por falta de prova. O “documento” que junta como doc. 21, não é verdadeiramente um documento (em termos probatórios) mas um mero quadro referenciando pagamentos, que não se encontra assinado e cuja autoria é de todo desconhecida.

- 70.º: Que “não tendo a dita F..., Unipessoal, Lda., com o NIPC..., quaisquer receitas a partir do fim de 2014, foi com o dinheiro daqueles mútuos que foram pagas todas as suas dívidas, incluindo os impostos em divida que foram pagos já posteriormente a 2014. O documento que junta como doc. 21, que aparenta ser registo informático da Segurança Social diz respeito à entidade com o NIPC ... e dele não se consegue alcançar quem tenha sido a entidade que efetuou os pagamentos que dele parecem constar. Não foi produzida nenhuma outra prova documental relativa a este tema.

- 71.º e 72.º: Que o saldo contabilístico da conta Caixa em Dezembro de 2021 (no montante de 781.634,35€ após as correções efectuadas pela TOC) e no valor de 906.067,78 € após correcções da inspecção), já vinha influenciado significativamente pelos valores que transitaram dos exercícios anteriores e que cada um” e que “os acréscimos dos saldos em causa em cada um dos anos devem-se, em grande parte, à não contabilização dos pagamentos em numerário relativos aos aludidos mútuos ocorridos em cada um dos anos (para além das outras correcções ao saldo de 2021 da conta Caixa acima referidas)”. Ao contrário do que a Requerente afirma, esta não juntou aos autos os balanços nem as suas demonstrações financeiras obrigatórias (relatório de gestão, balanço e demonstração de resultados, demonstração das alterações no capital próprio e demonstração dos fluxos de caixa pelo método direto, nos termos do Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009 de 13/07 (“SNC” e artigo 65.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais “CSC”), nem com o PPA nem após ter sido convidada a fazê-lo, na reunião do Tribunal com as Partes. A contabilidade é o registo por excelência das operações com impacto patrimonial ou financeiro das empresas e sem ela, torna-se muito difícil considerar provadas realidades que devem constar desse registo, que tem de ser lavrado, como se deixou já dito, por contabilista certificado, por expressa previsão legal. Embora não se possa ter por certo que o contabilista não lavrou os alegados movimentos de caixa porque não o podia fazer, por se tratar de movimentos alheios à Requerente, é essa a impressão que a sistemática ausência de registos e documentação capaz sugere ao Tribunal. É uma tarefa inglória, porque ilegal, procurar criar uma realidade paralela que, ao invés de estar espelhada na contabilidade elaborada pelo contabilista certificado, insista-se, surgiria por simples declaração do contribuinte e ratificada pelas investigações da AT e chancelada pelo Tribunal. Na Ordem Jurídica portuguesa as entidades relacionadas com este tema têm competências que a lei lhes confere em exclusividade e nenhuma delas se pode substituir à outra. É ao contabilista certificado e não à gerência ou ao advogado da Requerente que cabe lavrar os registos contabilísticos, que a AT tem o dever de verificar e de tomar as diligências devidas para assegurar a si própria e publicamente quando necessário, que esses registos espelham a realidade na perspetiva tributária e ao Tribunal a função de aplicar o direito aos factos apurados daquela forma. Nenhuma das entidades se pode substituir à outra. E se a Requerente, que é o primeiro interveniente nesta sucessão de atos, não procede devidamente aos seus registos contabilísticos, através do seu contabilista certificado, isso torna impossível a reconstituição das situações de facto – os saldos e os pagamentos efetuados – sobre as quais, primeiro a AT e depois o Tribunal, se têm de debruçar, no exercício das suas citadas competências. Quem é Requerente neste processo é a sociedade A..., LDA., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Odeceixe, titular do número de identificação de pessoa coletiva ... e em sede de IRC, que é o imposto liquidado, importam prima facie os registos desta sociedade comercial e não de qualquer outra.

 

3.3  Fundamentação da seleção da matéria de facto

Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Os factos dados como provados resultaram do confronto da posição manifestada relativamente a cada facto pelas Partes e da apreciação da prova documental, o que foi feito com base nas regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento.

A prova testemunhal promovida pela Requerente, pela confirmação da existência de erros na contabilidade, pelas testemunhas H... e L... foi, aliás, elucidativa quanto à falta de rigor dos registos contabilísticos, com a admissão clara de existirem vários erros por esclarecer, o que criou no tribunal a dúvida quanto à completude dos elementos disponíveis. A testemunha L... declarou inclusivamente que foi admitido em fevereiro de 2023 para “colocar tudo direitinho”, o que dá consistência à dúvida manifestada pelo tribunal. As declarações de parte do gerente D... permitiram que o Tribunal ficasse com uma panorâmica geral do histórico económico-financeiro da Requerente, mas, dadas as limitações próprias deste meio de prova e a circunstância de a avaliação dos factos declarada no depoimento (v.g. a existência de contratos de empréstimo) não coincidir com a prova documental apreciada pelo Tribunal, segundo os parâmetros que lhe são aplicáveis e a falta de conhecimento manifestada pelo declarante relativamente aos princípios de autonomia e separação patrimonial de pessoas jurídicas distintas, acabou por não contribuir para assentar factos sobre os quais depôs e que constam do Pedido Arbitral e confirmar as dúvidas da fiabilidade da “escrita da sociedade”, já referidas.

Note-se que o Tribunal, na sessão em que foi produzida a prova, notificou a Requerente para juntar prova documental que apoiasse a versão que apresentou no Pedido Arbitral e notificou a Requerida para juntar aos autos todos os documentos contabilísticos que pudessem ser disponibilizados relativamente à sociedade F..., Unipessoal, Lda, designadamente as declarações modelo 22 e IES relativas aos anos de 2013, 2014 e 2015 e anos subsequentes.

Como nota final, o Tribunal deve referir que estes capítulos do acórdão – a enumeração de fatos potencialmente relevantes e não provados e a fundamentação da decisão de facto – que são usualmente pouco extensos, assumem neste caso uma dimensão menos comum, que são demonstrativas da dificuldade com que o Tribunal se debateu para apurar factos relevantes que lhe permitam selecionar e aplicar devidamente o direito.

 

4  Fundamentação – matéria de direito

4.1  A posição das partes e o objeto do litígio

 

A motivação do ato tributário impugnado indica a seguinte linha de raciocínio: No âmbito da inspeção tributária levada a efeito, constatou-se a existência de registo de saldo de caixa muito elevado, superior a 900.000,00 €, em flagrante contradição com a sua conferência física, que revelou que a existência em moedas e notas de apenas 622,35 €. Os serviços de inspeção procuraram entender a situação, através de pedidos de esclarecimento que fizeram à Requerente e seus colaboradores e, constatando que o registo contabilístico padecia de irregularidades, efetuaram as correções que consideraram dever ser feitas e apuraram que o saldo a evidenciar na conta “11 – Caixa” era de 906.067,78 €, dando assim lugar a uma diferença de 905.445,25 € (= 906.067,78 € - 622,53 €). (cfr. decisão da matéria de facto, C. e D.). Como a Requerente não apresentou justificação para a inexistência daquele valor na caixa física, em notas, moedas e afins, a AT considerou que essa divergência apurada na conta caixa, tinha enquadramento em “despesas não documentadas”, uma vez que se desconhecia o destino deste montante.

Para decidir deste modo aplicou as normas do artigo 17.º, n.º 3, alínea b) do CIRC, que dispõe no sentido de a contabilidade dever “reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.” E, uma vez que a Requerente não cumpriu “os seus deveres declarativos, omitiu a contabilização das saídas de caixa, [e] para determinação da data da saída da caixa terá de socorrer-se, como indicador supletivo, a data da contagem física da caixa.”. Desta primeira asserção e considerando que o valor de 905.445,25 € não se encontrava na caixa física, considerou que “ocorreram saídas de fluxos financeiros deste valor, que não se encontram registados nos elementos contabilísticos e cujo destino dado aos mesmos se desconhece.”. A esta sua configuração da realidade aplicou a norma do artigo 88.º, n.º 1 do CIRC, que regula no sentido de que as “despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos”.

Contra esta motivação a Requerente insurge-se, afirmando (considerando apenas os factos provados) que sucedeu à sociedade F... Unipessoal, Lda., na exploração do estabelecimento comercial destinado a restauração, denominado “Restaurante G...”, instalado na ..., ..., em 17-11-2012, cuja atividade com registo contabilístico se iniciou em 01-04-2015 e que a Requerente, na exploração do  citado restaurante utilizou o terminal de pagamentos automáticos (TPA) da F... Unipessoal, Lda., e que consequentemente, até Junho de 2015, todas as receitas de TPA foram canalizadas para a conta bancária da F..., Lda. (cfr. decisão da matéria de facto, E., F., G.).

A contabilidade da Requerente evidencia vários erros e omissões vindos do passado (exercícios anteriores), pelo que a TOC em 2021 procedeu a diversos lançamentos na tentativa de regularizar tais erros e omissões. Nas contas da Requerente não se encontra registado qualquer financiamento obtido da  I... BV, nos anos de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019,  nas contas de 2020 consta o saldo devedor de 68.000,00 € e no exercício de 2021 consta o saldo devedor de 210.996,17 € e que mensalmente a Requerente transferiu da sua conta no Banco BPI para a I... B.V., no período de janeiro de 2016 até dezembro de 2019 e em 3 meses de 2020, o montante mensal de 3.030,00 € e o montante mensal de 441,54 €[4] , quantias assinaladas no extrato bancário (cfr. decisão da matéria de facto, L. e M.).

A evolução do seu saldo de caixa foi a seguinte:

 

 

 

A Requerente considera que:

  1. A AT cometeu erro na apreciação dos pressupostos de facto por:
    1. Não ter expurgado, na correção ao saldo de caixa que fez, os movimentos que foram pagos através do TPA da F...;
    2. Não ter considerado nas suas correções os valores que foram entregues à  I... B.V., a partir da sua conta bancária no BPI;
    3. Porque a ausência de valor na caixa física não é em si um facto tributário;
    4. Porque a diferença entre o saldo da caixa física e o registo contabilístico correspondente não é, em si, uma despesa que depois se possa qualificar juridicamente na classe das “despesas não documentadas”;
    5. Não ter considerado que a contabilidade da Requerente não tinha o rigor adequado, para usar o saldo de caixa como base de tributação.
  2. Houve errónea aplicação do direito do direito pela AT porque a interpretação das normas tributárias infraconstitucionais, conjugadas com o princípio constitucional da tributação das empresas de acordo com o seu rendimento real não admite que se considere que determinado saldo de caixa, quando seja fisicamente inexistente, constitua um facto tributário sujeito a incidência de IRC, através do regime das tributações autónomas.
  3. Porque é erro de direito presumir que a diferença de caixa constitui uma despesa não documentada, ocorrida no ato da verificação, sem que se apure o efetivo valor, e momento em que possam ter ocorrido.
  4. Porque as presunções em que assenta os seus raciocínios não têm assento na lei.
  5. Porque interpreta de forma errada as regras que disciplinam o ónus da prova, ao impor à Requerente que ilida a falsa presunção de que a diferença de saldo na caixa constitui uma despesa não documentada.
  6.  Por não respeitar o princípio da periodização constante do CIRC e imputar a um único exercício a diferença do saldo de caixa, formado ao longo de seis anos;
  7. Por pretender utilizar método de avaliação direta, e utilizar como base de cálculo a informação contabilística da Requerente, que apresenta sinais de não ser fidedigna, ao invés de aplicar o regime da avaliação indireta, que é o adequado nestas situações.
  8. Por aplicar indevidamente o regime da tributação autónoma.
  9. Por ignorar a regra do Código do Procedimento e do Processo Tributário (“CPPT”), que estatui a anulação dos atos tributários em caso de fundada dúvida (123.º).

Na sua Resposta a AT critica os vícios arguidos pela Requerente e afirma que a versão dos factos contida no RIT[5] é real, que os saldos de caixa determinados pela contagem física estão devidamente descritos, pelo que resulta claro que “não se conhece a quem foram destinadas as saídas de dinheiro, em numerário, e a que título ocorreram”, quer dizer, “não há documentação válida que justifique aquela saída de caixa.”. Em face desta situação, os Serviços de Inspeção Tributária obtiveram um saldo contabilístico ajustado à data da contagem física em 10-12-2021, este apresentava uma divergência de 905.445,25 € e reafirma que essa divergência, “dada a ausência de justificação para a sua existência, a mesma terá enquadramento em despesas não documentada, uma vez que se desconhece o destino deste montante” (46.º, R-AT). Considera que em termos de direito que “as despesas não documentadas, a que se refere o n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem documentos de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário” (47.º-R-AT”) e “que na ausência de elementos de prova e de quaisquer documentos de suporte que possam indicar a respetiva finalidade, a saída de fundos permanece na categoria de despesa não documentada”.

A AT na sua Resposta defende também que “os factos apurados em sede de procedimento inspetivo são os mesmos que resultam da contabilidade e declaração apresentada pela Requerente” o que equivale a dizer “que a matéria de facto apurada pelos SIT resulta dos factos reconhecidos pela própria Requerente.” (59.º e 60.º da R-AT) e que, não tendo a AT invocado novos factos, quer dizer, factos não invocados pela Requerente, através do registo da sua contabilidade, não há qualquer inversão do ónus da prova, não cabendo à AT provar nada nesta matéria que foi afinal afirmada pela Requerente. Sustenta por isso que “AT provou a existência de despesas não documentadas, por evidência da divergência de valores apurada entre o saldo contabilístico de caixa e as quantias que efetivamente estavam na sua disponibilidade (valor apurado na contagem física)” (66.º R-AT) e que por isso “o facto que deu azo à presente tributação autónoma – é que ao longo do ano de 2021, foram considerados na contabilidade saídas de caixa (despesas) para as quais a Requerente apresenta, para parte do seu montante (contabilizado), documentação correspondente a alegados contratos de mútuos que não compromete a Requerente, não a obrigando a responsabilizar-se pela dívida, e para outra parte (não contabilizada), não apresenta qualquer documentação.” (67.º, R-AT).

Não obstante a defesa da linha de orientação seguida no RIT, a R-AT reconhece que na contabilidade da Requerente “foram detetados alguns lapsos/erros aquando da sua elaboração, que até originaram alguns movimentos de regularização por parte da Requerente, não é apresentada por parte da Requerente, explicação para que não tenha procedido no sentido de apurar um saldo da conta de caixa que traduzisse o valor nela existente, justificando com documentos válidos as diferenças por si apuradas” (76.º da R-AT). Considera por isso que “Estamos perante uma presunção resultante de uma dedução lógica: se o valor da conta do SNC 11 Caixa traduz o dinheiro (físico) em caixa, e se contando o dinheiro de caixa se vier a apurar um valor inferior ao saldo daquela conta, é porque foram pagos valores cuja justificação documental não se encontra na contabilidade.” (R-AT 82.º).

Quanto à crítica da Requerente à preterição do princípio da periodização, ou dito de outro modo, do acréscimo, concentrando no exercício de 2021 diferenças de caixa que se vinham acumulando desde 2015, a AT defende que “para se proceder à tributação autónoma sobre despesas não documentadas, não tem como base o princípio do regime do acréscimo, sendo que o facto gerador daquela tributação autónoma, ocorre aquando da própria despesa, no caso em apreço, ocorre em 2021, no período em que se procedeu à contagem física.” (124.º da R-AT), acolhendo a tese de que o que é pretendido através da tributação autónoma é “evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, favorecendo a erosão da base tributária e a transferência indevida de lucros” (125.º da R-AT)

A AT considera também que não há, neste caso, que lançar a mão “de métodos indiretos pois que estes têm por objetivo apurar o lucro tributável, quando se demonstra que a contabilidade não é feita e mantida com o rigor exigido por lei e pelos princípios contabilísticos, não sendo relevantes para apurar se e quando foram feitas despesas não documentadas nem contabilizadas, para sobre elas fazer incidir a tributação autónoma. (127.º da R-AT).

A AT rejeita a aplicação do regime previsto no artigo 100.º do CPPT, por entender que não existe qualquer fundada dúvida que se “está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado”.

Ensaia ainda a tese de que não se considerar, nestas situações, a classificação de despesas não documentadas, quando não seja possível “aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial” significa, logicamente criar um vazio jurídico “insuscetível de ser apreendido pelo homem médio”, “Exigindo poderes de premonição à administração fiscal no sentido de adivinharem o ano em que exfluxos não documentados e não refletidos na contabilidade ocorreram (…)”, o que permitiria que os sujeitos passivos acumulassem saldos de caixa, exaurindo o património social a favor dos sócios que decidam não os documentar, o que significaria “desvirtuar o combate à fraude e à evasão fiscal, compactuando com estes fenómenos, fazendo tábua rasa do esforço coletivo, legislativo e inspetivo no combate aos mesmos.” e assim estaria, “encontrada a fórmula mágica de esvaziar o património de uma sociedade sem sujeição a qualquer tipo de tributação em face da insusceptibilidade – que brota desta tese – da AT fiscalizar” (145.º a 148.º da  R-AT), concluindo que a ser assim, deixaria “de funcionar, portanto, o caráter anti abusivo e anti elisivo que subjaz à tributação autónomas sobre «despesas não documentadas»”. (156.º do R-AT”).

A AT conclui afirmando que como “não foi apresentado qualquer documento que revele o destino desses meios, pelo que está demonstrada uma situação factual enquadrável no conceito de despesas não documentadas para efeitos da tributação autónoma prevista no n.º 1 do art.º 88.º do CIRC” e que “ Entendendo-se em sentido contrário (…) estar-se-á a dar guarida a uma fórmula inatacável de sonegação de receita fiscal (devida) e dos contribuintes se eximirem às suas obrigações e responsabilidades fiscais (…)” (R-AT, 176.º).

Da contraposição das posições assim manifestadas, o objeto do litígio é assim o de saber, se a diferença entre o saldo de caixa revelado pela contabilidade da empresa que é sujeito passivo, e o saldo negativo[6] encontrado na contagem física da caixa pelos Serviços de Inspeção Tributária, deve ser considerado como despesa não documentada e se lhe deve ser, sem mais, por isso aplicado o regime da tributação autónoma previsto na norma do artigo 88.º, n.º 1 do CIRC, seguindo o regime do procedimento de avaliação direta previsto nas normas dos artigos 81.º a 85.º da LGT ou, assim não sendo, quando lhe deve ser aplicado o regime da avaliação indireta, previsto nos artigos 87.º a 90.º da LGT.

 

4.2  Apreciação jurídica da questão

Este Tribunal entende que a situação da divergência entre o saldo de caixa em termos físicos e o saldo de caixa revelado pela contabilidade, por nos situarmos no tempo em que os meios de pagamentos são sobretudo eletrónicos e a contabilidade deve ser suportada em registos informatizados (artigo 17.º, n.º 3, al. c) do CIRC), é uma situação patológica que obriga a considerar a regra do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, que impõe ao julgador que leve em consideração “todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

Considerando assim a necessidade de alinhar a jurisprudência importa traçar as grandes linhas que têm presidido a esta vexata quaestio.

Crê-se que é possível identificar com clareza duas orientações, que têm raízes desde 2011 e se têm mantido, pelo menos até 2021[7].

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Determinada jurisprudência tem entendido que quando a AT tenha reconhecido que os elementos contabilísticos e as declarações dos sujeitos passivos sejam contraditórias, ou cuja explicação seja equívoca, há um afastamento do princípio de que “a contabilidade deve exprimir factos concretos, documentados e/ou previsíveis, passíveis de serem comprovados”. Essa situação verifica-se quando existam movimentos sem suporte documental idóneo, nomeadamente incidentes sobre exercícios pretéritos, que deixem dúvidas sobre a sua natureza de estorno, reposição ou anulação ou que sejam feitos no decurso do procedimento inspetivo, envolvendo sucessivos movimentos contabilísticos. São também indícios da postergação do princípio da contabilidade, como expressão fiel dos factos concretos, para esta orientação, a movimentação contabilística sem suporte documental, que não tenha subjacente operações reais da entidade em causa e a não identificação das despesas ou custos (gastos na nomenclatura contemporânea), sem identificação do destinatário, natureza da operação e sua finalidade. Existindo esses artifícios de modo a ocultar o saldo anormal e efetivamente inexistente na caixa, apesar de estar revelado nas demonstrações financeiras, há que reconhecer que a situação classifica-se como de “despesas não documentadas”. Contudo, é pacífico para esta linha jurisprudencial, sobretudo com base no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/12 [João Cura Mariano] de 20-06-2012[8] que as despesas não documentadas “tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.”. Em sentido diverso, em sede de IRC, tributa-se o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado exercício. Em consequência, enquanto o IRC é um imposto anual, em que é feito um cálculo desse período, com base nos rendimentos e gastos desse período, globalmente considerados, a tributação autónoma é um facto isolado, que é tributado por si só, e que não tem a natureza complexa da formação própria do imposto sobre o rendimento, que se vai formando sucessivamente ao longo do exercício. Dito de outro modo, enquanto o IRC, enquanto imposto sobre o rendimento real das empresas é um tributo periódico de formação sucessiva, já a tributação autónoma tem natureza instantânea: “esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação.”. Temos assim por um lado (i) um imposto periódico, que é o IRC, enquanto imposto sobre o rendimento real, de formação sucessiva e; (ii) a tributação sobre determinadas operações autónomas com determinadas características, que individualmente são tributadas isoladamente (mesmo que o apuramento seja agrupado).

Entre as duas situações existem diferenças fundamentais: no primeiro caso segue-se o princípio da tributação com base no acréscimo, quer dizer sobre a riqueza real gerada no período, calculada pela soma algébrica rendimentos menos gastos, com base na contabilidade devidamente organizada e concatenada pelas normas de “correção” tributária, e é esse rendimento líquido real que se pretende tributar. No caso das tributações autónomas, a constituição da obrigação tributária dá-se isoladamente, não tem natureza periódica, mas simultânea e é independente da efetiva obtenção de rendimento, quer dizer, de riqueza criada no período em causa. A tributação autónoma tem por objeto a despesa, mas não o rendimento.

Para além do que se expôs, a tributação autónoma de despesas não documentadas tem implícito um juízo de censura, pela não apresentação do documento que titule a operação em questão, pelo que a taxa adicional que é aplicada, revela de algum modo uma natureza sancionatória, muitas vezes associada à penalização (ou compensação ao Estado) por manobras de evasão fiscal, nem tanto do contribuinte atingido, mas sim do terceiro beneficiado. É um raciocínio diferente daquele que preside ao IRC, que na sua pureza do cálculo, procura arrecadar parte da riqueza gerada para o erário público e que obedece ao princípio da tributação pelo rendimento real.

Embora o ponto de partida seja o mesmo, porque a inspeção tributária procura assegurar a prossecução do objetivo, precisamente, da tributação do lucro real da empresa, é diferente seguir um dos dois caminhos. Há uma forma de proceder que não oferecerá dúvidas: seguir o método da tributação autónoma será sempre um afastamento do objetivo teleológico pois ao contrário do imposto IRC “puro” tem, de algum modo, associado um intuito sancionatório, e não procura por qualquer forma atingir o objetivo de tributar o lucro real da empresa, determinado pelo princípio do acréscimo. Aliás, não tributa definitivamente o lucro; faz incidir imposto sobre determinada despesa, independentemente do efeito enriquecedor ou empobrecedor dessa operação.

Como concluiu o acórdão de 20-09-2012 do tribunal arbitral que funcionou sob a égide do CAAD, no processo 7/2011-T [Brandão de Pinho e Ana paula Dourado][9] “a tributação autónoma é um regime excecional no enquadramento jurídico constitucional da tributação do rendimento acréscimo e do rendimento real, e por isso deve ser objeto de uma interpretação restritiva.”.

Seguindo esta linha de orientação, não resta alternativa a reconhecer que “o ótimo é inimigo do bom”. Embora se saiba que a avaliação por métodos indiretos não é o melhor caminho para atingir a tributação sobre o rendimento real das empresas, como é desígnio previsto na Constituição (artigo 104.º, n.º 2), a impossibilidade de comprovação e quantificação direta dos elementos indispensáveis à determinação da matéria tributável, por insuficiência de elementos de contabilidade, impõe, nos termos combinados das normas dos artigo 87.º, n.º 1, alínea b) e do artigo 88.º, alínea a) da LGT, o recurso a este método.

Em sentido coincidente, pode ver-se também o acórdão de 06-09-2013 do tribunal arbitral que funcionou sob a égide do CAAD, no processo 54/2013-T[10] [Jorge Lino Alves de Sousa, João Maricoto Monteiro et ali], que destaca que a presunção de veracidade dos dados e apuramentos inscritos na contabilidade ou escrita, assenta na sua organização de acordo com a legislação comercial e fiscal e que essa presunção cessa quando a contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo (artigo 75.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) da LGT). Realça também de modo incisivo que:

34. Ora, quando a contabilidade das empresas não merece credibilidade, quando os lançamentos efetuados não têm o devido e necessário suporte documental, determina a lei que deve a AT recorrer à aplicação de métodos indiretos na determinação da matéria coletável (al. b) do artigo 87º e art.º 88º da LGT).

35. O que a AT não pode fazer é, a coberto da presunção de veracidade das declarações dos contribuintes (…), “aproveitar” uma operação contabilística que considera artificiosa e imaterial para da mesma extrair a qualificação e tributação que incidiria sobre uma operação efetiva e substancial.

36. Pelo contrário, se a AT considerou esta operação artificiosa e atenta a relevância da mesma, se considerou existirem irregularidades relevantes na contabilidade da Requerente, devia ter recorrido à determinação da matéria coletável por métodos indiretos.

37. E não, como fez, à tributação autónoma deste lançamento contabilístico artificioso como despesa não documentada.

Mantendo a linha de orientação citada, veja-se ainda o acórdão de 24-09-2019 do tribunal arbitral que funcionou sob a égide do CAAD, no processo 88/2019-T[11] [José Pedro Carvalho et ali], com a particularidade de considerar que mesmo nos casos de a contabilidade do sujeito passivo ser fiável, a aplicação do regime das tributações autónomas tem de passar num especial crivo, afirmando que:

Assim, e em suma, a legal aplicação do artigo 88.º/1 do CIRC pressupõe a demonstração de:

i.             ocorrência de despesas não documentadas;

ii.            num determinado exercício; e

iii.           num determinado montante.

No que diz respeito à ocorrência de despesas não documentadas, como se viu já, verifica-se que a AT reuniu indícios consistentes da respectiva ocorrência.

Não obstante, a consistência desses indícios não abrange o concreto montante de despesa ou despesas ocorridas no ano de 2015.

Nesta matéria, alega a Requerente que as mesmas ocorreram em exercícios anteriores, sendo que, face aos factos apurados não é possível a este Tribunal concluir que assim não seja.

Ora, como a Requerente salienta, nos termos do artigo 74.º da LGT “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

No caso, pretendendo a AT aplicar a tributação invocando o disposto no artigo 88.º/1 do CIRC, é àquela Autoridade que assiste o ónus de demonstrar os respectivos factos constitutivos incluindo, no que para o caso interessa, a ocorrência de despesas indocumentadas no exercício de 2015, e o respectivo montante.

A este propósito, cumpre notar que os movimentos contabilísticos onde a AT assentou a sua actuação, e que se revelam não estar devidamente sustentados em documentação de suporte, não incorporam em si qualquer registo de uma concreta despesa (ou despesas), ou seja, a transferência de disponibilidades patrimoniais da Requerente para terceiros, pelo que não se está perante um caso em que há um registo contabilístico directo de uma despesa indocumentada, mas perante registos que não têm suporte material e documental e que, por isso, indiciam a ocorrência prévia de despesas indocumentadas e não contabilizadas.

Não obstante, não é possível, julga-se, extrair de tais movimentos contabilísticos o momento em que as despesas indiciadas ocorreram, sendo que, à míngua destes elementos, não é possível concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, que, e em que dias, naquele exercício de 2015, hajam ocorrido despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação de tributações autónomas, ora em crise.

Assim, e desde logo, como se apontou já e é consensual, não se poderá deixar de ter presente que as tributações autónomas têm subjacente factos tributários de natureza instantânea.

Daí não decorre, necessariamente, que para aplicar aquele tipo de tributação a AT tenha, forçosamente, de demonstrar a sua ocorrência num determinado dia – o que de resto poderá ser extremamente difícil, atenta a necessária ausência de documentação – mas não poderá prescindir da demonstração, para lá de qualquer dúvida razoável, da sua ocorrência, no montante considerado, dentro de um período temporal definido, que se situe dentro do exercício económico a que se reporta a liquidação operada.

Na mesma linha de entendimento pode ainda ver-se o voto de vencido de Jorge Lopes de Sousa, no acórdão de 20-10-2020, no processo 235/2020-T, do Tribunal Arbitral que funcionou no CAAD, que se menciona e transcreve em rodapé pela acutilância do raciocínio[12].

o0o

Noutra linha de orientação, determinada jurisprudência tem entendido que nas situações com idênticos sinais, a divergência entre o saldo contabilístico e a contagem física da caixa, se esta for inferior, deve ser tributada pelo regime aplicável às despesas não documentadas, em sede de tributação autónoma.

É representativo desta orientação o acórdão de 20-10-2020 do Tribunal Arbitral organizado sob a égide do CAAD, no processo n.º 235/2020-T [Luís M. S. Oliveira e Jónatas Machado][13] em que se sumariou:

1. A prática de não contabilização de saídas que deveriam ser abatidas na conta 11-Caixa tornou possível a ocorrência de saídas de numerário, sem contrapartida e sem suporte documental. Tais fluxos constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.

2. Não se mostra viciada de ilegalidade a liquidação da tributação autónoma prevista no CIRC sobre despesas não documentadas, que também não estão contabilizadas, determinadas pela AT em ação de verificação de caixa, para comprovação do saldo da conta 11-Caixa.

3. Também se não mostra viciada de ilegalidade a referida liquidação como resultado de a AT não ter recorrido a métodos indiretos para determinar quais as despesas que foram feitas, patenteadas pela inexistência na empresa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa e a que exercícios devem ser imputadas.

4. Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas, e não sobre o rendimento. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.

Nesta linha jurisprudencial sustenta-se que “não decorre necessariamente que para as tributações autónomas previstas no CIRC vigore o princípio da anualidade, enunciado no artigo 8.º, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».”. E, se bem entendemos a orientação seguida, ela radica na natureza que atribui à tributação autónoma que, afirma-se no acórdão “A tributação autónoma exprime o exercício de uma função regulatória através do CIRC, inerente às finalidades e exigências de um Estado de direito material, onde se incluem objetivos incentivar a formalização da economia, o rigor e a fiabilidade das contas das empresas, prevenir a fraude e a evasão fiscal, nomeadamente através da retirada dissimulada de ativos monetários.”

No que concerne ao tratamento da divergência entre o saldo de caixa contabilístico e o valor efetivo e realmente contado, considera que deve-se presumir tratar-se de saída do património social, nos seguintes termos:

No caso em apreço, constatou-se que a conta 11-Caixa tinha um saldo elevado, mas não existiam na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo, não se apurando quais as razões da divergência.

À face da experiência comum, é de presumir que os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa e na conta 21-Clientes deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.

A Requerente aventa que a diferença entre os saldos em causa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respectiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.

 Por outro lado, os valores elevados dos saldos de caixa mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de duas centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros, incorreções ou irregularidades contabilísticas, pelo que a respetiva atribuição a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente. De resto, é a Requerente que está em melhor posição probatória, dispondo ou devendo dispor dos elementos documentais e materiais necessários e suficientes para justificar as saídas de valores da empresa e evitar a incidência de tributação autónoma.

Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada, de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.

Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.

Há, assim, fundamento factual para aplicação da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC.

Com idêntica orientação pode também ver-se o acórdão do Tribunal Arbitral que funcionou no CAAD, proferido em 18-05-2021, no processo 412/2020-T [Carlos Cadilha, et ali], onde, de forma expressiva, se sumariou:

1. A divergência entre o saldo de caixa e o respetivo registo contabilístico é tributada autonomamente, a título de despesas não documentadas, nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, quando não exista qualquer documento de suporte da saída dos meios monetários.

2. Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas, e não sobre o rendimento.

3. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.

Neste acórdão segue-se, no essencial, a orientação do citado acórdão no processo n.º 235/2020-T, em 20-10-2020, afirmando-se a importância da relação das normas contabilísticas e os regimes e dispositivos do CIRC e a não contabilização das saídas de caixa, é revelada pela discrepância dos saldos, concluindo que “A ausência na caixa dos meios financeiros que a conta 11-Caixa evidencia, conjugada precisamente com a não contabilização de qualquer saída, configura, para os efeitos da lei, a despesa não documentada.”

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Recolhidos os contributos da jurisprudência, é agora tempo de interpretar o direito e aplicá-lo ao caso sub judicio. O direito a considerar é sobretudo aquele que serviu de fundamento à AT, designadamente as normas do artigo 17.º, n.º 3, alínea b) do CIRC, que dispõe no sentido de a contabilidade dever “reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se das restantes.”. Na ótica da AT as regras de contabilidade têm natureza jurídica e a sua não observância tem determinadas consequências definidas na lei. Seguindo a doutrina tradicional sobre a composição das normas jurídicas, o registo contabilístico funcionaria como, previsão à qual estaria definida normativamente uma estatuição, que, na interpretação constante da fundamentação da liquidação, seria a classificação da divergência no saldo como “despesa não documentada” e a sua tributação nos termos previstos no artigo 88.º, n.º 1 do CIRC.

A Requerente opõe-se a esta interpretação que classifica não só como erro na apreciação da matéria de facto, porque a AT vê uma despesa onde está uma divergência de saldos e erro na aplicação do direito, porque a tributação autónoma é aplicável a despesas o que não é o caso.

Importa determinar se as regras de organização contabilística têm natureza jurídica, quer dizer, se são comandos obrigatórios aos quais está associada determinada consequência ou se estamos perante regras técnicas, que se destinam a atingir um fim próprio da ciência que as institui.

As normas que estabelecem a organização da contabilidade na União Europeia têm assento no Regulamento (CE) n.º 1126/2008 da Comissão de 3 de novembro de 2008 que adota determinadas normas internacionais de contabilidade nos termos do Regulamento (CE) n.º 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho. Da sua consulta resulta que na Estrutura Conceptual das demonstrações financeiras consta como orientação basilar o princípio da Continuidade, que é indissociável do conceito de empresa e de sociedade comercial, meio por excelência da atividade comercial moderna[14], que nos termos do Regulamento citado (§25 e §26) significa:

Continuidade

25 - Aquando da preparação de demonstrações financeiras, a gerência deve fazer uma avaliação da capacidade de uma entidade de prosseguir como uma entidade em continuidade. Uma entidade deve preparar demonstrações financeiras numa base de continuidade, a menos que a gerência pretenda liquidar a entidade ou cessar de negociar, ou não tenha alternativa realista senão fazê-lo. Quando a gerência estiver consciente, ao fazer a sua avaliação, de incertezas materiais relacionadas com acontecimentos ou condições que possam lançar dúvidas significativas acerca da capacidade da entidade de prosseguir como uma entidade em continuidade, a entidade deve divulgar essas incertezas. Quando uma entidade não preparar demonstrações financeiras numa base de continuidade, esse facto deve ser divulgado, juntamente com as bases pelas quais as demonstrações financeiras foram preparadas e a razão por que a entidade não é considerada como estando em continuidade.

26 - Ao avaliar se o pressuposto de entidade em continuidade é apropriado, a gerência toma em consideração toda a informação disponível sobre o futuro, que é pelo menos de, mas não se limita a, doze meses a partir do fim do período de relato. O grau de consideração depende dos factos de cada caso. Quando uma entidade tiver uma história de operações lucrativas e acesso pronto a recursos financeiros, a entidade pode chegar à conclusão, sem uma análise pormenorizada, de que a base de contabilidade da entidade em continuidade é apropriada. Noutros casos, a gerência pode necessitar de considerar um vasto leque de fatores relacionados com a rentabilidade corrente e esperada, esquemas de reembolso de dívidas e potenciais fontes de financiamentos de substituição para que ela própria possa estar satisfeita de que a base da empresa em continuidade é apropriada.

Analisando o primeiro dos princípios proclamados e utilizando-o como base de ensaio, pode afirmar-se que é evidente que o fenómeno empresarial assenta na sua continuidade; a generalidade das empresas é criada e existe para desenvolver a sua atividade para o futuro, com duração indeterminada. As demonstrações financeiras são um elemento essencial que permite às Autoridades de todos os setores, aos stakeholders e ao público em geral conhecerem os resultados dessa atividade e a robustez da sua situação e para isso os seus gestores dirigem a preparação das demonstrações financeiras, que são a síntese dos registos contabilísticos, assumindo a sua responsabilidade pela respetiva autenticidade. É o princípio da continuidade que marca de forma indelével toda a orientação da empresa. Como se pode ler do citado princípio enformador “a gerência deve fazer uma avaliação da capacidade de uma entidade de prosseguir”. E deve fazê-lo de modo consciente, i.e. de acordo com a sua prudente consciência, e “avaliar incertezas materiais relacionadas com acontecimentos ou condições que possam lançar dúvidas significativas acerca da capacidade da entidade” e para isso não tem em consideração o curto prazo de um ano; “a gerência toma em consideração toda a informação disponível sobre o futuro, que é pelo menos de, mas não se limita a, doze meses a partir do fim do período de relato. O grau de consideração depende dos factos de cada caso. E para fazer esse juízo a “gerência pode necessitar de considerar um vasto leque de factores relacionados com a rentabilidade corrente e esperada, esquemas de reembolso de dívidas e potenciais fontes de financiamentos de substituição para que ela própria possa estar satisfeita de que a base da empresa em continuidade é apropriada.”. Em síntese, o princípio da continuidade deixa à prudente avaliação dos seus gestores o juízo da sua continuidade face a todos os dados que têm no seu registo e no seu conhecimento.

Da dissecação da estrutura deste princípio primeiro na organização contabilística, não se vê como entender as normas contabilísticas e de relato financeiro enquanto fontes de direito, capazes de integrar uma interpretação de norma de incidência, seguindo esta formulação do princípio da continuidade. As regras de contabilidade são sem dúvida normas obrigatórias quanto à forma de organizar a contabilidade e de elaborar as demonstrações financeiras e poderão até gerar ilícitos pelo seu incumprimento. Mas os impostos não são sanções por falha no cumprimento de diretrizes contabilísticas. Seria fastidioso explicar nesta sede a natureza de imposto, tal é a naturalidade com que ela é entendida pelos membros da nossa sociedade. Em termos populares, que não andam longe da dogmática jurídica, imposto é a contribuição dos cidadãos para os gastos comuns da sociedade de que são membros. Multas e coimas não são impostos e, estas sim, destinam-se a atingir objetivos corretivos dos comportamentos em sociedade, de punição, de prevenção geral e de prevenção especial dos comportamentos que forem censuráveis. Aliás, o Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de julho é bem claro no seu artigo 14.º, na estatuição das sanções por irregularidades no registo contabilístico, como ilícitos de mera ordenação social.

E seguindo o mesmo diapasão, o Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) é também claro ao estabelecer a responsabilidade dos gestores perante os credores sociais, pela falta de cumprimento das disposições destinadas à sua proteção, entre elas a publicidade e regularidade das demonstrações financeiras (artigos 65.º e 78.º, n.º 1 do CSC) e perante todos os stakeholders (artigo 79.º do CSC), na sucessão do que já estabelecia o Código Comercial de 1888 no seu artigo 173.º. No campo sancionatório, também o CSC expressa a sua censura à apresentação de contas falsas ou fraudulentas, prevendo no seu artigo 519.º-A que “O gerente ou administrador que, em violação dos deveres previstos no artigo 65.º, intencionalmente apresentar, para apreciação ou deliberação, documentos ou elementos que sirvam de base à prestação de contas falsos ou adulterados é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

De modo muito diferente das sanções, que traduzem a censura social, os impostos contêm em si um nexo de solidariedade entre cada cidadão e a sua sociedade. É por isso mediata a força das normas contabilísticas, que não são aptas para constituir diretamente relações jurídico-tributárias, mas apenas para retratar tecnicamente determinada realidade, de acordo com um protocolo técnico. Claro que a realidade contabilística pode constituir ou não constituir uma realidade tributária, quer dizer, pode constituir um facto relevante para o universo tributário, mas não o é necessariamente. Para constituir relações jurídico-tributárias são necessários factos tributários, como estipula o artigo 36.º, n.º1 da LGT e só no âmbito da relação jurídica tributária é que as normas de incidência têm campo de aplicação.

A relação entre o direito e a contabilidade tem vindo a evoluir, com dá conta Joaquim Freitas da Rocha[15] mas a inclusão das regras de contabilidade entre as fontes de direito, padece ainda de “patologias”, como a ausência de elemento “sistemático”, que é fruto da pulverização legislativa, da juridificação de normas técnicas e “o processo de globalização financeira [que] traz assumido um incremento de importância dos IAS e IFRS, contribuindo para a desestadualização da regulação jurídica e, por essa via, para a sua disseminação e espalhamento por diversíssimas fontes. Será certo que as diferentes normas se encontram unitariamente interligadas por valores comuns (…) mas, não obstante, a dispersão acaba por introduzir perturbação, alguma desordem, quando se trata de considerar a compatibilização das mesmas entre si.”. Freitas da Rocha faz ainda notar que para promoção das regras de contabilidade a verdadeiras normas jurídicas, “não podem ser negligenciados os problemas relacionados com a publicidade das normas objeto de reenvio (normas reenviadas), as quais não estão muitas vezes sujeitas a publicação oficial, o que poderá implicar problemas de inconstitucionalidade da norma reenviante por violação do princípio constitucional da segurança jurídica e proteção da confiança”.

A caracterização das regras de contabilidade como soft law aparece também na moderna e Ilustre jurisprudência nacional, como se alcança do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) de 27-10-2021 [Pedro Vergueiro], no processo 0610/15.1BELRA, reiterou esse entendimento e sumariou:

I - O princípio constitucional da tributação do rendimento empresarial pelo lucro real, que está na base do princípio da dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade, determina ou conduz a soluções diferentes conforme se trate de externalizar de forma padronizada (tendo em vista a comparabilidade) a situação financeira de uma entidade económica (a empresa) – sendo essa a finalidade a que se destinam as normas de contabilidade e relato; ou antes de apurar o rendimento líquido do exercício, ou seja, aquilo que expressa a efectiva capacidade contributiva do sujeito passivo.

E tanto assim é que os impostos são sempre criados por lei, por disposição da Constituição (artigo 103.º, n.º 2). Mas não é assim para as normas técnicas de contabilidade, que continuam a existir e são de acesso mais ou menos fácil para os técnicos da especialidade, mas não estão ao alcance de todos os cidadãos e essa é uma característica imperativa do Estado de Direito: a divulgação universal da lei (artigo 119.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

Excluídas as normas técnicas de contabilidade enquanto fonte de direito, ou pelo menos enquanto fonte de regras de incidência tributária, importa interpretar as normas jurídicas invocadas na fundamentação da liquidação, que elege como norma de incidência o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC que dispõe no seguinte sentido:

Artigo 88.º - Taxas de tributação autónoma

1 — As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.  (Redação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro)

Cabe aqui fazer algumas considerações sobre a interpretação das normas de incidência que contribuem para a tributação das empresas, designadamente as operações intelectivas necessárias ao relacionamento das normas do ordenamento tributário infraconstitucional com os preceitos constitucionais, in casu com a norma do artigo 104.º, n.º 2 da CRP, que impõe que a tributação das empresas seja feita fundamentalmente sobre o seu rendimento real.

Seguindo Bernardo de Castro[16] crê-se que a ausência de contradições na ordem jurídica impõe que a atividade interpretativa da lei seja sempre feita em conformidade com a Constituição, sobretudo pelos tribunais, praticando o que Cristina Queirós[17] denomina de “interpretação generalizadora orientada pela Constituição em sentido amplo”. Trata-se, no fundo, de cada tribunal assumir a tarefa de integrar a realidade no processo hermenêutico e não a tarefa que cabe exclusivamente ao Tribunal Constitucional, de averiguar e declarar se determinada interpretação, de determinada norma, cumpre com o parâmetro constitucional, i.e., saber se a norma, possuindo mais do que uma interpretação possível, deve adotar-se uma delas, por ser “conforme à Constituição”. É assim que Cristina Queirós situa a “interpretação generalizadora orientada pela Constituição em sentido amplo” “no campo da interpretação jurídica”, que fica aquém do processo de controle de normas que, em última instância, é atividade reservada ao Tribunal Constitucional.

De acordo com Bernardo de Castro “Assim, a sensibilidade do intérprete à realidade e à esfera pública constituirá um factor de legitimação das decisões por este tomadas e, outrossim, o reconhecimento do facto que a Constituição evolui e experiência fenómenos de mutação, não se quedando estagnada no tempo.”

Parece aliás, que o pensamento que se acabou de referir, não é muito mais do que a amplificação da metodologia que o ordenamento infra constitucional já disciplinava desde 1966, na norma do artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil, quando afirma  que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” (o sublinhado é da autoria do relator). Dito de outro modo, a unidade do sistema jurídico compreende não só as normas das leis, mas também aquelas que compõem a CRP, cabendo ao julgador enquanto intérprete, fazer as necessárias operações intelectivas de integração.

Visto este quadro importa perceber se a interpretação do artigo 88.º, n.º 1 do CIRC, integrada com o desígnio constitucional de tributar as empresas de acordo com o seu rendimento real, permite subsumir a divergência de saldo de caixa a uma despesa não documentada. Crê-se que não pode. Uma divergência do saldo de caixa é uma situação patológica que tem de ser corrigida e eventualmente tributada, mas essa divergência não constitui uma despesa. O raciocínio subjacente ao cálculo do IRC é constituído pela formulação que consta do artigo 17.º, n.º 1: O lucro tributável das pessoas coletivas é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado. O ponto de partida é assim o conjunto dos rendimentos deduzidos dos gastos e perdas suportados. O conceito de rendimento obtém-se através da exemplificação de situações feita no artigo 20.º, n.º 1 do CIRC e nele não se encontra qualquer alusão a saldo. O conceito de gasto é obtido pela exemplificação de situações que consta do artigo 23.º n.º 2 do CIRC e entre esses exemplos não encontramos nunca o termo despesa ou saldo. De acordo com a técnica própria da contabilidade o resultado económico é refletido na demonstração de resultados, através da soma algébrica dos rendimentos, enquanto componente positiva e os gastos, como componente negativa.[18] Este é o sistema básico que o CIRC usa para obter o desiderato traçado na Constituição; a tributação pelo rendimento real, obviamente que calculado de acordo com o crivo das normas tributárias.

É evidente que a tributação autónoma cai fora deste sistema de cálculo. Por isso é autónoma, quer dizer, fora do cálculo típico, que têm um escopo próprio, que não cabe aqui aprofundar. Basta que se apure que o saldo de caixa divergente não constitui um rendimento tributável nem uma despesa não documentada.

A divergência do saldo de caixa contabilístico, com o valor que resulta da sua contagem física, constitui um sinal de irregularidade no cálculo do imposto. Há que apurá-lo e para isso o CIRC, pelas normas dos seus artigos 57.º e 59.º, remete essa função para as normas da LGT, que indica dois caminhos alternativos: preferencialmente a avaliação direta (artigo 85.º, n.º 1) e a avaliação indireta, quando se verifique impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável, resultante de insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução (artigos 87.º, n.º 1, alínea b) e artigo 88.º, alínea a) .

Como ressalta do RIT, a Requerente não tinha os seus registos contabilísticos em ordem, o que levou os Serviços da AT a efetuarem correções diversas para apurar o que consideraram ser o correto saldo contabilístico da caixa (veja-se C. da decisão dos factos assentes). Ficou também assente que os recebimentos do estabelecimento da Requerente “Restaurante G...” foram feitos por entidade terceira, sem que essa situação fosse relevada na contabilidade da Requerente (G. da decisão dos factos assentes), assentou-se ainda que a contabilidade da Requerente evidencia vários erros e omissões vindos de exercícios anteriores, o que levou a sua contabilista certificada a efetuar diversos lançamentos na tentativa de regularizar tais erros e omissões, sem que se tenha apurado o sucesso dessas intervenções (H. da decisão dos factos assentes) e que na contabilidade da Requerente não se encontra registado qualquer financiamento obtido da I... BV, mas a sua contabilidade apresenta, nas contas de 2020 o saldo devedor a esta empresa de 68.000,00 € e no exercício de 2021 o saldo devedor de 210.996,17 €, relativamente àquela entidade (L. da decisão dos factos assentes) e que, não obstante a inexistência de registo da contração de qualquer financiamento feito pela I... BV, a Requerente transferiu da sua conta no Banco BPI para a I... B.V., no período de janeiro de 2016 até dezembro de 2019 e em 3 meses de 2020, os montantes mensais de 3.030,00 € e de 441,54 € (M. da decisão dos factos assentes). Não oferece qualquer dúvida ao Tribunal que o registo contabilístico da Requerente contém manifestas irregularidades, não espelhando a real situação patrimonial, por nele serem omissas operações muito relevantes, designadamente financiamentos e recebimentos e dela constarem pagamentos que se desconhece se correspondem a efetivas despesas que a Requerente deva suportar. Neste contexto, as normas combinadas dos artigos 87.º, n.º 1, alínea b) e artigo 88.º, alínea a) da LGT impunham à AT que determinasse, por avaliação indireta, a repercussão em termos de IRC que a existência de divergência no saldo de caixa devia ter.

Há assim que reconhecer que a AT fez errada interpretação da situação de facto e aplicou mal o direito, ao eleger a norma do artigo 88.º, n.º 1 do CIRC como norma de incidência aplicável ao caso e porque optou por efetuar correções nas contas da requerente, que não tinham fiabilidade, ao invés de efetuar a eventual correção ao imposto através de avaliação indireta.

Assistindo razão à Requerente e procedendo na totalidade o seu pedido principal, não há que apreciar os alegados vícios que esta alega conduzirem à procedência dos pedidos subsidiários.

 

5     . Decisão

Pelas razões expostas este Tribunal Arbitral coletivo delibera:

  1. Julgar procedente o pedido principal da Requerente e em consequência anular as liquidações e atos conexos identificados no relatório deste acórdão.
  2. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

6   Valor do processo

Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de € 462.153,76.

 

7  Custas

O valor da taxa de arbitragem é fixado em € 7.344,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerida[19].

Notifique-se.

Lisboa, 16 de abril de 2024

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade (Presidente)

 

 

Cristina Coisinha (árbitro adjunto)

 

 

Nuno Maldonado Sousa (árbitro adjunto e relator)



[1] Os artigos indicados neste parágrafo, sem referência a outra fonte, são do Pedido de Pronúncia Arbitral.

[2] Acrónimo de “pedido de pronúncia arbitral”.

[3] O Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, que aprovou o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de outubro, pela lei n.º 139/2015, de 7 de setembro, que transforma a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas em Ordem dos Contabilistas Certificados, e altera o respetivo Estatuto, e pelas leis números 119/2019, de 18 de setembro, 12/2022, de 27 de junho, 24-D/2022, de 30 de dezembro e número 68/2023, de 7 de dezembro.

[4] O total transferido resulta em 177,048,54 [(3030,00+441,54) x 51 meses]

[5] Entenda-se “Relatório de Inspeção Tributária”, como é prática do foro.

[6] Quer dizer, o saldo físico, determinado pela contagem de notas, moedas e equivalentes é inferior ao saldo relevado no registo da contabilidade, que é maior. Dito de um modo popular, “falta dinheiro na caixa registadora”.

[7] Referenciam-se os acórdãos que se consideram mais paradigmáticos, obviamente que na perspetiva deste Tribunal, o que não significa qualquer alheamento de todos os acórdãos que foram proferidos. Não se consideraram as decisões dos tribunais singulares, que por sua natureza não admitem a discussão entre os árbitros e a contraposição de opiniões.

[12] Jorge Lopes de Sousa aprecia deste modo a aplicação do regime da tributação autónoma de despesas não documentadas ao Saldo de caixa contabilístico, sem existência física : “Na tese que fez vencimento, o momento da ocorrência do facto tributário acaba por ser aquele em que se fez a contagem física da caixa, o que se reconduz à possibilidade de multiplicação ilimitada dos factos tributários, pois sempre que fosse efectuada uma contagem e fosse detectada uma falta de valores na caixa física estar-se-ia perante um novo facto tributário: isto é, houve um facto tributário no dia 17-12-2018, porque foi feita uma contagem, mas, se fosse feita nova contagem no dia seguinte, haveria aí um novo facto tributário, pois ainda não haveria os valores em caixa. E assim sucessivamente, a mesma apropriação de quantias seria suporte de multiplicação de tributações autónomas todas as vezes (duas, três, cinco, dez ou mais) que fosse efectuada uma contagem física e se verificasse que continuava a faltar aquele valor em caxa física.

Esta seria uma hipotética solução legislativa tão desacertada e desproporcionada, por razões que suponho serem óbvias, que tem de se presumir não ter sido legislativamente adoptada, por força da presunção que impõe o n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.

E, da mesma forma, as mesmas despesas não documentadas que, pelo menos parcialmente, mas na sua maior parte terão ocorrido antes de 2014 poderiam ser repetidamente tributadas, tanto antes da data em foi feita a contagem como posteriormente, ad eternum, sempre que se fizer uma nova contagem que confirme que continua a falta de valores na caixa física.

Esta tese, para além de contrariar o texto do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, que identifica as despesas e não a contagem física da caixa como o facto tributário sujeito a tributação autónoma, é também incompatível também com o n.º 14 do mesmo artigo que impõe a conexão das despesas com determinado período de tributação.

Para além disso, esta tese, que prescinde do momento da realização das despesas para efeitos da sua tributação autónoma, é incompatível com o regime da caducidade do direito de liquidação, que, em sede tributações autónomas de IRC, impõe a irrelevância fiscal de factos ocorridos em períodos fiscais há mais quatro anos em relação àquele em que se emite a liquidação.

E esta tese, ao permitir tributar com tributações autónomas despesas ocorridas em qualquer momento do passado, desde que a contagem se faça dentro do prazo de caducidade, é também incompatível com a proibição da retroactividade das leis fiscais (artigo 103.º, n.º 3, da CRP), pois, em última análise, permite, por essa via, tributar, inclusivamente, despesas realizadas antes da introdução no nosso sistema jurídico das tributações autónomas (há 20, 30 ou mais anos).

[14] Veja-se o artigo 15.º do Código das Sociedades Comerciais que quanto à sua duração dispõe: “A sociedade dura por tempo indeterminado se a sua duração não for estabelecida no contrato.”

[15] Joaquim Freitas da Rocha – Fontes de direito da contabilidade. In Suzana Fernandes da Costa (coord.) -Direito da Contabilidade – Lisboa. AAFDL, 2023.

[16] Bernardo de Castro - As sentenças de interpretação conforme à Constituição. Análise dos limites jurídico-funcionais do Tribunal Constitucional nas relações com as demais jurisdições. Revista Eletrónica de Direito Público. Vol. 3, nº 2, novembro 2016, pp. 232-233.

[17] Cristina M. M. Queirós – O princípio da interpretação conforme a Constituição. Questões e perspectivas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. N.º VII, 2010, pp. 313-328.

[18] O tratamento conceptual dos termos receita, rendimento, recebimento e dos termos gasto, despesa e pagamento pode ver-se em António Borges e Azevedo Rodrigues – Contabilidade e finanças para a gestão. 4.ª edição. Lisboa, Áreas Editora, 2008, pp. 32-40.

[19] De acordo com o Despacho de Retificação de 2024-04-24.