Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 59/2023-T
Data da decisão: 2024-03-28  Selo  
Valor do pedido: € 2.124.623,09
Tema: Imposto de Selo sobre a utilização de crédito ao consumo. Ónus da prova, standards de prova, presunção de veracidade e contraprova.
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SUMÁRIO

 

  1. A norma contida no artigo 70.º-A do Código do Imposto do Selo delimita a regra de incidência, não estabelece um benefício fiscal: salvaguarda situações de tributação-regra, não excepciona à tributação-regra.
  2. O nº 1 do art. 75º, 1 da LGT estabelece uma presunção de veracidade que inverte o ónus da prova, pelo que, se não for comprovada, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, a existência de qualquer indício fundado que afaste essa presunção, não terá que ser provado o facto a que essa presunção conduz, nos termos do nº 1 do artigo 350º do Código Civil.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A..., S.A. – Sucursal em Portugal, NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 30 de Janeiro de 2023, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente é sucursal em Portugal do B..., S.A., sociedade anónima de direito francês com o número de pessoa coletiva ... .
  3. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do indeferimento tácito do Recurso Hierárquico n.º ...2022..., interposto da decisão de indeferimento de uma Reclamação Graciosa, e mediatamente sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa nº ...2022..., e sobre a ilegalidade do objecto dessa Reclamação Graciosa, os actos de Autoliquidação de Imposto de Selo (“IS”) referentes à utilização de crédito ao consumo nos meses de Abril a Dezembro de 2020, dos quais resultou um excesso de imposto no montante total de € 2.124.623,09, pedindo a anulação parcial dessas liquidações, e o reembolso desse montante.
  4. A Requerente designou árbitro, que veio a ser substituído, por força de Despacho do Presidente do Conselho Deontológico e do Presidente do CAAD, de 25 de Agosto de 2023, por outro árbitro.
  5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  6. A AT designou árbitro.
  7. O Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro-presidente do Tribunal Arbitral Colectivo, e notificou as partes dessa designação.
  8. Os árbitros comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  9. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 2 e 3, e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  10. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 9 de Maio de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  11. Por Despacho de 10 de Maio de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  12. A AT apresentou a sua Resposta em 9 de Junho de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  13. Por Despacho de 9 de Janeiro de 2024, determinou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.
  14. No dia 7 de Fevereiro de 2024 teve lugar essa reunião, e nela se procedeu à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente. Nessa mesma reunião, as partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas.
  15. Por Despacho de 27 de Dezembro de 2023, foi designado o dia 9 de Março de 2024 para efeito de prolação e comunicação da decisão arbitral.
  16. A Requerente e a Requerida apresentaram alegações em 21 de Fevereiro de 2024.
  17. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  18. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  19. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima que tem por objecto principal a actividade bancária, código CAE 64190 e CAE Secundário 066190, sendo considerada contribuinte de elevada relevância económica e fiscal na acepção prevista no art. 68º-B da LGT, e por isso constante do elenco previsto no Despacho n.º 704..., de 2 de Junho de 2022.
  2. A Requerente é sucursal em Portugal do B..., S.A., sociedade anónima de direito francês (“B... FR”).
  3. Em 27 de Abril de 2020, foi registada a fusão transfronteiriça (realizada nos termos da Diretiva n.º 2017/1132, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Junho), consubstanciada na integração do Banco A..., S.A. (“A... PT”), sociedade anónima com o NIPC..., no B... FR.
  4. Em resultado da fusão transfronteiriça, todos os ativos e passivos que compunham o património do A... PT foram transmitidos, por sucessão universal, para o B... FR.
  5. As actividades que até então eram desenvolvidas pelo A... PT passaram a ser asseguradas pela ora Requerente, na qualidade de sucursal, em Portugal, do B... FR.
  6. No âmbito da sua actividade bancária, a Requerente coloca ao dispor dos seus clientes, entre outras modalidades de crédito ao consumo, a modalidade de crédito renovável associado à utilização de cartões de crédito (o chamado crédito “revolving”).
  7. O saldo de crédito disponível, nessa modalidade, varia mensalmente, e corresponde à diferença entre o limite de crédito e o saldo em dívida à data de cada ciclo de facturação, em resultado da efectiva utilização do crédito concedido.
  8. Na qualidade de sujeito passivo de IS (art. 2.º, 1, b) do CIS), a Requerente está vinculada à liquidação e entrega do IS (sob forma de conta-corrente): cobra o IS aos seus clientes utilizadores do crédito, enquanto titulares do encargo do imposto (art. 3.º, 3, f) do CIS), aplicando para esse efeito a taxa prevista na Verba 17.2.4 da Tabela Geral de Imposto do Selo (TGIS) e entregando, posteriormente, o IS aos cofres do Estado, até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que a obrigação tributária se tenha constituído (art. 44.º, 1 do CIS).
  9. O artigo 343.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, que aprovou a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (“LOE 2020”), alterou a redacção do art. 70.º-A do CIS, nos seguintes termos:

Os artigos 5.º, 7.º, 53.º e 70.º-A do Código do Imposto do Selo, aprovado em anexo à Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, na sua redação atual, passam a ter a seguinte redação:

(…)

Artigo 70.º-A

(…)

Relativamente aos factos tributários ocorridos até 31 de dezembro de 2020, as taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 são agravadas em 50 /prct., excluindo contratos já celebrados e em execução.”

  1. Na discussão na especialidade que resultaria naquela Lei, a exposição de motivos justificava o regime adoptado:

Nos últimos anos, através de sucessivas alterações promovidas em sede de Orçamento do Estado, as taxas de Imposto do Selo aplicáveis a contratos de crédito ao consumo têm sido substancialmente agravadas, quer se trate de novos contratos, quer da extensão dos prazos de pagamento de créditos já anteriormente concedidos. Ora, de modo a não dificultar a situação das famílias que, pretendendo cumprir os seus contratos de crédito, por vicissitudes várias necessitam de proceder à prorrogação do prazo dos mesmos, propõe-se que o agravamento em 50% das taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 não tenha aplicação e estes casos.

  1. Este regime iniciado a 1 de Abril de 2020 prolongar-se-ia até final de 2022, tendo o art. 70º-A continuado a vigorar nos mesmos moldes por força da aprovação dos orçamentos de 2021 e 2022.
  2. Significando essa norma que o agravamento da taxa de IS em 50% não se aplicaria a contratos cuja primeira utilização de crédito tivesse ocorrido antes de 1 de Abril de 2020.
  3. A Requerente apurou, por levantamento das “contas-cartão”, que havia 642.005 contratos em que o crédito por si concedido já fora, na data de 1 de Abril de 2020, sido objecto de uma primeira utilização.
  4. No entanto, por lapso seu (por falta de parametrização do seu sistema informático e por complexidade da situação gerada pelo contexto da pandemia, como enfatizaram as testemunhas), aplicou o agravamento de 50% na taxa de IS a esses contratos, e esse erro de liquidação e cobrança de IS perdurou de Abril a Dezembro de 2020.
  5. Quando se apercebeu do erro, que perfazia um total de €2.124.623,09 de excesso de imposto, a Requerente devolveu aos seus clientes o IS cobrado a mais, seja através dos saldos dos cartões, seja por transferência bancária – o que aconteceu ao longo do ano de 2021.
  6. Em 28 de Abril de 2022, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa da autoliquidação e entrega de IS sobre a utilização de crédito ao consumo relativo aos meses de Abril a Dezembro de 2020, a qual acabou por ser indeferida em 4 de Agosto de 2022.
  7. Em 30 de Junho de 2022, a Requerente foi notificada para exercer o seu direito de audição prévia sobre o projecto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa.
  8. Nesse projecto de decisão de indeferimento, a AT punha em causa que, nos referidos contratos, tivesse ocorrido já a “primeira utilização”, sustentando que só depois de 1 de Abril de 2020 eles entraram materialmente “em execução”, sendo que até então teriam ocorrido meras “aberturas de crédito” – sendo que só quando o creditado utiliza o crédito que lhe foi concedido (determinando a sua exigibilidade pelo mutuante), é que se desencadeia a verdadeira produção de efeitos de um contrato de crédito, aplicando-se-lhe, só então, as taxas de IS.
  9. Sustentou a AT que a Requerente deveria provar, e não provou, duas coisas: 1) que, em todos os contratos de crédito aos quais fez corresponder devolução de IS, já tivesse ocorrido, ao menos uma vez, uma efectiva utilização de crédito em virtude da sua concessão, antes da entrada em vigor da LOE 2020; 2) que devolveu efectivamente o imposto aos clientes.
  10. Em 14 de Julho de 2022, a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia, chamando a atenção para dois pontos: 1) para aquilo que se lhe afigurava ser um equívoco da parte da AT, a confusão entre contratos de crédito concedido na modalidade de crédito renovável (revolving) associado a um cartão de crédito, por um lado, e, por outro lado, a concessão de crédito por prazo determinado (term loan); 2) para a impraticabilidade de se exigir prova documentada de “primeira utilização antes de 1 de Abril de 2020” para cada um dos 642.005 contratos, sustentando que uma amostragem deveria bastar.
  11. No seu indeferimento em 4 de Agosto de 2022, a AT interpretou a lei como estabelecendo que apenas estavam isentas de agravamento da taxa de IS as utilizações de crédito anteriores a 1 de Abril de 2020, atendendo à teleologia de dissuasão do crédito ao consumo, que tornaria injustificável que aquele que tivesse feito uma primeira utilização antes daquela data continuasse, após aquela data, a beneficiar de uma isenção do agravamento da taxa, em desigualdade com os demais utilizadores do crédito ao consumo.
  12. Em 2 de Setembro de 2022, a Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, o qual não foi objeto de decisão dentro do prazo do art. 66.º, 5, do CPPT, formando-se em 2 de Novembro de 2022 uma presunção de indeferimento tácito.
  13. Em 30 de Janeiro de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo e na prova testemunhal prestada na reunião de 7 de Fevereiro de 2024.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Nos termos do art. 396º do Código Civil, a força probatória da prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal.
  6. Nos termos do art. 393º do Código Civil, havendo documentos, a prova testemunhal cingir-se-á à interpretação do contexto desses documentos, não podendo incidir nos factos que esses documentos provam.
  7. Assinala-se, nesta sequência, que os depoimentos das testemunhas arroladas pela Requerente convergiram na afirmação de que o erro de liquidação se deveu a uma deficiência no processamento informático, e que a amostragem facultada para prova não impede o livre acesso à totalidade do universo de casos, que está disponibilizada para livre consulta pela AT.
  8. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente no Pedido de Pronúncia

 

  1. A Requerente sustenta ter demonstrado, no âmbito da Reclamação Graciosa e do Recurso Hierárquico: 1) a ocorrência de uma primeira utilização de crédito antes de 1 de Abril de 2020, relativamente aos 642.005 contratos subjacentes à liquidação e cobrança de IS em excesso; 2) a devolução aos seus clientes dos montantes de IS indevidamente cobrados, no valor total de € 2.124.623,09.
  2. Essa demonstração assenta na dificuldade e onerosidade da produção de prova relativamente a todos os contratos, dado o seu muito elevado número, podendo cingir-se, no entendimento da Requerente, à prova por amostragem.
  3. A Requerente invoca diversos preceitos em apoio dessa possibilidade e suficiência da prova por amostragem, como meio geral de prova: arts. 413.º e 607.º, 5 do CPC, art. 115.º, 1, do CPPT, o próprio art. 16º, e) do RJAT.
  4. A Requerente contesta que esteja em causa um benefício fiscal – tratando-se somente de delimitar, na norma de incidência, o âmbito de aplicação de agravamento da tributação-regra, sendo que os isentos do agravamento ficam sujeitos à tributação-regra – não sendo, por isso, objectos de um verdadeiro benefício, já que um benefício fiscal é precisamente, e por definição, uma excepção à tributação-regra.
  5. Não dando origem a um benefício, o final do art. 70º-A é, somente, a formulação de uma salvaguarda contra a retroactividade, proscrita em princípio pelo art. 103º, 3 da CRP e pelo art. 12º, 1 da LGT.
  6. Para lá da questão de prova, a Requerente alega suscitar-se uma única questão de direito: a definição daquilo que possa entender-se como “contratos já celebrados e em execução”, para efeitos de aplicação do art. 70.º-A do CIS, na redacção introduzida pela LOE 2020.
  7. A Requerente sustenta que não há uma diferença de entendimento, entre ela e a AT, acerca do conceito – e apenas uma divergência relativamente à subsunção do caso concreto àquele conceito.
  8. A Requerente e a AT concordam que o facto tributário não coincide necessariamente com a data de celebração do contrato de concessão de crédito, a menos que o crédito seja imediatamente utilizado; normalmente, o facto tributário emergirá na data da primeira utilização do crédito – e isto porque só quando o creditado efectivamente utilizar o crédito concedido é que se desencadeia a verdadeira produção de efeitos de um contrato de crédito.
  9. Quanto à subsunção do caso concreto àquele conceito de “contratos já celebrados e em execução”, a Requerente pondera quatro possibilidades:
  1. Sujeição ao agravamento somente dos contratos celebrados depois de 1/4/2020
  2. Sujeição ao agravamento de contratos celebrados antes de 1/4/2020, mas ainda não “em execução” nessa data.
  3. Salvaguarda das utilizações anteriores a 1/4/2020 até ao limite do crédito efectivamente utilizado, sujeitando a taxa agravada as utilizações que excedessem esse valor.
  4. Salvaguarda de todos os contratos celebrados e com uma utilização (ao menos) anterior a 1/4/2020, independentemente do montante.
  1. A Requerente defende que tanto ela como a AT subscrevem este último entendimento, porque é o único que tem correspondência na lei, a qual salvaguarda “os contratos já celebrados e em execução”, e não o valor do crédito já utilizado, ou os montantes já mutuados.
  2. Fazendo notar que, no momento de indeferir a Reclamação Graciosa, a AT argumenta que “tal agravamento só deixará de existir se o Reclamante provar que todos os contratos de crédito que aqui peticiona e reclama, já tenham tido uma efetiva utilização de crédito em virtude da sua concessão, nem que seja pelo menos uma vez antes da entrada em vigor da LOE 2020” (ponto 57 do indeferimento).
  3. Sendo essa, assinala a Requerente, precisamente a situação factual dos contratos de concessão de crédito na modalidade de revolving que estão em causa nos presentes autos: todos tendo conhecido pelo menos uma utilização de crédito, todos estando, pois, “em execução” no dia 1 de Abril de 2020.
  4. Remata pedindo a anulação parcial das liquidações de IS e a restituição do imposto pago em excesso.

 

III. B. Posição da Requerente em Requerimentos

 

  1. Em Requerimento de 28 de Junho de 2023, a Requerente, reagindo à Resposta da Requerida e às reservas formuladas por esta ao standard de prova oferecido, sugeriu como alternativas a prova pericial (arts. 111º e 116º CPPT, e 388º CC) e a inspecção judicial (arts. 490º, 1 CPC e 390º CC), além de se prontificar à entrega de documentação adicional.
  2. Em Requerimento de 15 de Setembro de 2023, reagindo a um Despacho Arbitral de 11 de Agosto de 2023, a Requerente juntou um documento de síntese – que já tinha sido junto, como documento nº 4, à Reclamação Graciosa, e que permitia uma panorâmica do número total dos casos que cumprem os critérios do final do art. 70º-A do CIS: um documento que, pela sua dimensão, não cabia no Sistema de Gestão Processual do CAAD, e por isso demorou a chegar aos Árbitros, não obstante se ter protestado juntá-lo, desde o início, como doc. nº 6 anexo ao Pedido de Pronúncia.

 

III. C. Posição da Requerente em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerente retoma as posições expressas do seu Pedido de Pronúncia, a que adita alguns argumentos novos.
  2. Em especial, enfatiza o princípio da livre apreciação da prova, nos termos conjugados dos arts. 115º, 1 do CPPT, 413º e 607º, 5 do CPC e 16º, e) do RJAT.
  3. E sustenta, corroborando os depoimentos testemunhais, que, contrariamente ao que sucedia na data da apresentação da Reclamação Graciosa, se tornou posteriormente possível obter informaticamente todos os extractos afectados pelo erro na liquidação e cobrança de IS.
  4. Junta cópia de uma decisão de indeferimento de reclamação graciosa referida ao período de Outubro a Dezembro de 2021 (o ano subsequente ao dos factos do presente processo), na qual, não obstante a Requerente ter apresentado inicialmente a totalidade dos extractos bancários, mesmo assim a AT entendeu ser insuficiente a prova– o que, no entender da Requerente, demonstra a irrelevância das objecções formuladas pela Requerida quanto à utilização de prova “por amostragem”.
  5. A Requerente sustenta que, se a AT tivesse cumprido os arts. 58º e 59º da LGT, analisando adequadamente a prova produzida, teria concluído pela suficiência dessa prova.
  6. No restante das alegações, retoma os argumentos já expendidos no Pedido de Pronúncia.

 

III. D. Posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por reconhecer que um dos pontos fulcrais é a definição do conceito de “contratos já celebrados e em execução”, por forma a apurar se a primeira utilização dos créditos em causa ocorreu antes de 1 de Abril de 2020.
  2. Para a Requerida, a expressão “contratos já celebrados e em execução” deve ser entendida no sentido de que só ficam excluídos do agravamento de 50% da taxa prevista na verba 17.2.4 da TGIS os contratos de crédito a consumidores que cumulativamente: 1) tenham sido celebrados antes de 1 de Abril de 2020; 2) relativamente aos quais tenha ocorrido comprovadamente, pelo menos, uma utilização de crédito em virtude da sua concessão antes daquela data.
  3. Segue-se que, como reconhece expressamente a Requerida, não há discordância com a Requerente sobre a interpretação do art. 70º-A do CIS, e sobre o que deva entender-se como “contratos já celebrados e em execução”.
  4. Daí que, reconhecidamente, a questão gravite para o tema da prova: a prova da ocorrência de uma primeira utilização de crédito antes de 1 de abril de 2020 relativamente aos contratos abrangidos pela Reclamação Graciosa.
  5. E a Requerida entende que foi por falta de prova que a Reclamação Graciosa foi indeferida.
  6. A insuficiência de prova subsistiria, entendendo a Requerida que a amostra oferecida não é idónea como meio de prova daquilo que é alegado pela Requerente – sendo que é sobre esta que recai o ónus probatório, nos termos dos arts. 342º do CC e 74º, 1 da LGT.
  7. Além disso, a Requerida assinala que não se pede da Requerente uma prova diabólica, já que, estando todas as transacções documentadas, se as transacções tiverem ocorrido a prova já existirá, bastando facultá-la.
  8. Os contratos em causa são factos essenciais da causa, e por isso a Requerida entende que não é possível comprová-los por amostra, visto que cada contrato é um facto autónomo, uns não provam os outros, uns não representam os outros.
  9. Por isso a Requerida rejeita inferências estatísticas e juízos de probabilidade como sucedâneos do conhecimento directo, concreto, casuístico, de cada transacção. Especificamente, rejeita que, de uma amostra na qual os pressupostos legais estão preenchidos, se possa extrapolar esse mesmo preenchimento de requisitos para um universo muito maior.
  10. Infere daí a Requerida que é imperativo que a Requerente faça prova de todos os contratos para que se possa legitimar a anulação da liquidação impugnada – insistindo que as exigências organizativas, contabilísticas e documentais de uma entidade bancária fazem supor que nenhuma dessas entidades, dados até os seus recursos técnicos e humanos, terá dificuldade de documentar completamente o universo das suas transacções.
  11. Rejeita ainda a Requerida a sugestão de que lhe caberia a ela fazer qualquer comprovação, visto que esta cabe, legal e regulamentarmente, à Requerente, e só esta dispõe dos meios para proceder à referida comprovação.
  12. E a Requerida opõe-se à produção de prova testemunhal, que no seu entender não serve para colmatar as insuficiências probatórias que ela assinalou, e que só poderiam ser resolvidas por via documental.

 

III. E. Posição da Requerida em Alegações

 

  1. Em Alegações, a Requerida remete essencialmente para o teor da sua Resposta, assinalando complementarmente que as alegadas dificuldades de comprovação integral de contratos e extractos bancários não somente indiciam um incumprimento dos deveres previstos no art. 53º, 5 do CIS, como, também, que a alegada superação das referidas dificuldades ocorreu no decurso do procedimento de recurso hierárquico, e até dentro do prazo para deduzir reclamação graciosa nos termos do art. 133º do CPPT, tornando precipitada a judicialização do controlo da utilização do crédito nos 642.005 contratos.
  2. No restante das alegações, retoma os argumentos já expendidos na sua Resposta.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

 

Ambas as partes, no presente litígio, estão de acordo, seja quanto aos critérios legais, seja quanto à demarcação conceptual que permite a subsunção, ao quadro legal, da factualidade relevante, a qual pode resumir-se do seguinte modo:

Por lapso decorrente da falta de parametrização atempada do seu sistema informático, a Requerente não excluiu da base de cálculo do agravamento de 50% da taxa do IS (ao abrigo do disposto no artigo 70.º-A do CIS, alterado pelo artigo 343.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, que aprovou a Lei do Orçamento do Estado para 2020) o crédito “revolving” por si concedido no âmbito de “contratos já celebrados e em execução” em 1 de Abril de 2020, o que conduziu à cobrança aos clientes, e entrega aos cofres do Estado, de IS em excesso, relativo aos meses de Abril a Dezembro de 2020, no valor total de € 2.124.623,09.

O único ponto de divergência que subsiste respeita à prova, ao ónus da prova e ao standard da prova – relativos a dois factos, 1) a ocorrência de uma primeira utilização de crédito antes de 1 de abril de 2020, 2) a devolução, aos clientes da Requerente, dos montantes de IS que lhes foram cobrados em excesso.

Especificamente, a AT entende que incumbe à Requerente provar o que alega, e que são insuficientes os esforços que a Requerente desenvolveu nesse sentido.

Já no âmbito do presente processo, o Tribunal solicitou prova adicional, e no seu Despacho de 11 de Agosto de 2023 notificou a Requerente para “juntar um documento de síntese que permita comprovar o número total de casos nos quais os contratos já tinham sido celebrados, e objecto de utilização, no dia 1 de Abril de 2020.”

Na consciência de que esse era o ponto central da divergência que subsistia entre as partes, no mesmo Despacho de 11 de Agosto de 2023 o Tribunal, aludindo a uma sugestão de recurso à prova pericial ou à inspecção judicial, determinava que “O Tribunal decidirá, depois, se estas diligências probatórias bastam para formar uma convicção e para fundamentar a sua decisão - em estrita observância do princípio da livre apreciação da prova, estabelecido nos arts. 16º, e) e 19º, 1 do RJAT -, ou se será necessário promover ainda outras diligências, nos termos dos arts. 114º e seguintes do CPPT, aplicável ex vi art. 29º, 1, a) do RJAT.

Note-se, mais uma vez, que os únicos factos a suscitar a questão de prova são a ocorrência de uma primeira utilização de crédito antes de 1 de abril de 2020, por um lado; e, por outro lado, a devolução, pela Requerente aos seus clientes, dos montantes correspondentes ao IS cobrado em excesso.

Já quanto à entrega desses montantes de IS aos cofres do Estado, não se trata sequer de facto controvertido; mas, se o fosse, seria fácil, à Requerente, comprová-lo, bastando para o efeito invocar o nº 2 do art 74º da LGT, na medida em que a liquidação e o pagamento não poderiam ter tido lugar senão através de documentação entregue à AT:

Artigo 74.º

Ónus da prova

1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

2 - Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correcta identificação junto da administração tributária. (…)” (sublinhado nosso)

Não pode deixar de se estranhar que a AT, reconhecendo – como reconhece – que houve IS pago em excesso, não faça decorrer, desse reconhecimento, o direito da Requerente à devolução dos montantes indevidamente entregues, e queira condicionar esse direito, sem fundamento legal, à verificação prévia da devolução desses montantes, pela Requerente, aos seus clientes (em boa lógica, o reembolso dos clientes deveria ser posterior à devolução do imposto à Requerente).

Em contrapartida, não pode deixar de se reconhecer, pela abundância de elementos probatórios juntos aos autos, que a Requerente desenvolveu um esforço para apresentar prova adicional – e que só por uma dificuldade logística da própria gestão processual do CAAD não foi inicialmente feito chegar aos árbitros o documento nº 6, finalmente junto aos autos com o Requerimento de 15 de Setembro de 2023, o qual fornece efectivamente, embora em mais de 5 mil páginas, uma informação de síntese sobre a totalidade das situações de devolução de IS aos clientes da Requerente, indicando o montante devolvido em cada caso.

 

IV.B. Efeitos da presunção legal

 

Sucede, no entanto, que esse esforço nem sequer seria necessário para sustentar a posição da Requerente, no que se refere à prova da factualidade relevante: é que o art. 75º, 1 da LGT estabelece, a favor da Requerente, uma presunção legal de veracidade que:

  1. Como presunção, inverte o ónus da prova;
  2. Como presunção legal, dispensa a prova – já que, como determina o art. 350º, 1 do Código Civil, “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”.

Sendo assim, torna-se irrelevante a argumentação em torno da possibilidade, e suficiência, da prova por amostragem (e mais ainda porque, como referimos agora mesmo, acabou por ser feita prova exaustiva dos factos controvertidos, nomeadamente a limitação do não-agravamento a contratos nos quais ocorrera uma primeira utilização de crédito antes de 1 de abril de 2020, e a efectividade da devolução, aos clientes, dos montantes de IS pagos em excesso).

Para o que aqui releva, transcrevamos um segmento do art. 75º da LGT:

Artigo 75.º

Declaração e outros elementos dos contribuintes

1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;

b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações; (…)”

Poderia aventar-se a hipótese de a Requerente não ter a sua contabilidade organizada nos termos exigidos pelo CIS; mas a verdade é que isso nem sequer foi alegado, e menos foi comprovado.

É a seguinte a norma relevante do CIS:

Artigo 53.º

Obrigações contabilísticas

1 - As entidades obrigadas a possuir contabilidade organizada nos termos dos Códigos do IRS e do IRC devem organizá-la de modo a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários à verificação do imposto do selo liquidado, bem como a permitir o seu controlo.

2 - Para cumprimento do disposto no n.º 1, são objecto de registo as operações e os actos realizados sujeitos a imposto do selo.

3 - O registo das operações e actos a que se refere o número anterior é efectuado de forma a evidenciar:

a) O valor das operações e dos actos realizados sujeitos a imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;

b) O valor das operações e dos actos realizados isentos de imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;

c) O valor do imposto liquidado, segundo a verba aplicável da Tabela;

d) As alterações efetuadas através da apresentação da declaração prevista no n.º 3 do artigo 52.º-A (…)”

A ser assim, não tendo sido explicitamente alegada qualquer irregularidade quanto à contabilidade da Requerente, impõe-se a conclusão que se aplica, de pleno, a presunção legal do art. 75º, 1 da LGT.

Dado que é manifesto que, quer no presente processo, quer nas fases procedimentais e processuais que o precederam, a Requerente cumpriu, com a diligência exigível, os deveres de esclarecimento que sobre ela impendiam, não se recusando à prestação de informações, a presunção legal do nº 1 do art. 75º da LGT não pode ser afastada pela alínea b) do nº 2 do mesmo artigo.

De facto, não resulta dos autos, ou de toda a documentação junta a eles, que a Requerente tenha violado o dever de colaboração que sobre a mesma impedia, e impende, nos termos do n.º 1 do art.º 59.º da LGT.

Restaria assim, porventura, ilidir a presunção legal do nº 1 do art. 75º da LGT através da invocação da alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, que afasta a presunção quando “As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo”.

Mas nesse caso caberia à Requerida, nos termos dos arts. 131º, 1 do CPPT, 74º, 1 da LGT e 342º do Código Civil, fazer prova da existência desses erros, omissões, ou inexactidões, ou até de meros indícios de falta de correspondência, com a verdade material, das declarações da Requerente apresentadas nos termos previstos na lei, bem como dos dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita.

Ora, a AT alega repetidamente que, com os esforços da Requerente, não está alcançado o standard de prova – quando, no caso, era, pelo contrário, a ela própria que incumbia a prova da existência, ou até de meros indícios de existência, de desconformidade das declarações da Requerente com a verdade material – como forma de bloquear a aplicação, ao caso, da presunção legal do art. 75º, 1 da LGT, que, como vimos, dispensa a Requerente de produzir qualquer prova.

Quanto a este ponto, julga-se oportuno ler a fundamentação da decisão proferida a 12 de Outubro de 2011 pelo TCAN (Proc. nº 01550/05.8BEVIS):

É verdade que do escrupuloso cumprimento dos deveres acessórios do sujeito passivo, nomeadamente dos deveres de apresentação da declaração (…), conferem aos elementos declarados e registados a presunção de verdade – artigo 75.º, n.º 1, da L.G.T.

Do que se trata, no fundo, é de relevar o cumprimento formal dos deveres de declaração e organização contabilística como um indicador de que o contribuinte está mesmo a colaborar com a Administração Tributária, a enviar-lhe os dados fiscalmente relevantes e a transmitir-lhe a sua verdade fiscal. A aparência de colaboração é relevada pelo legislador como indicador suficiente de que há uma colaboração efectiva do sujeito passivo com as entidades administrativas.

A razão de ser deste regime parece repousar no facto de o nosso sistema fiscal ser hoje, tendencialmente, um sistema de gestão privada, que remete para o sujeito passivo da relação tributária a tarefa de revelar à Administração Tributária os elementos fiscalmente relevantes, em ver de aguardar que esta os indague. A preferência legal pelo conteúdo das declarações dos contribuintes funciona, assim, como uma moeda de troca para a observância dos deveres declarativos e informativos que a lei lhe impõe genericamente no artigo 59.º, nºs 1 e 4, da L.G.T..

Note-se que o cumprimento dos deveres declarativos por parte do contribuinte não limita, não modifica e, sobretudo, não dispensa o dever de indagação oficiosa, por parte da Administração Tributária, genericamente consignado no artigo 58.º da mesma Lei. Mas acentua o dever de demonstrar a legalidade das correcções a que se propõe, acrescentando-lhe o ónus de demonstrar que a colaboração do contribuinte era meramente aparente e insubsistente.

A Administração Tributária poderá fazê-lo, basicamente, de duas formas: atacando directamente a força presuntiva dos elementos declarados ou registados, ou demonstrando por outra via que o resultado fiscal do contribuinte não poderia ser o declarado.

No primeiro caso, a Administração Tributária procura demonstrar que a declaração padece de erros, lacunas ou omissões não supridas por informações adicionais justificadamente solicitadas, e que não é possível confirmar através dos respectivos elementos de suporte os dados declarados [n.ºs 2, alíneas a), primeira parte, e b), e 3, ambos do artigo 76.º da L.G.T.]. Como a função primordial da declaração e do registo é assegurar a verificabilidade externa dos respectivos dados, a constatação de que não cumprem essa função não pode deixar de afectar o seu valor presuntivo.

No segundo caso, a Administração Tributária – sem afrontar directamente a declaração – recolhe outros indicadores de que a situação tributária do sujeito passivo não podia ser a declarada [n.º 2, alíneas a), segunda parte, c) e d), do mesmo dispositivo legal].

A lei não diz [senão em dois casos muito singulares – alíneas c) e d)] quais são os indicadores a que a Administração Tributária pode recorrer para concluir que as declarações e a contabilidade não reflectem a matéria tributável real do sujeito passivo. E são óbvias as razões porque não o faz: é que seria tecnicamente impossível tipificá-las. Pelo menos sem comprimir dramaticamente os poderes investigatórios da administração e comprometer uma das principais finalidades da tributação, que é a de promover a igualdade efectiva na distribuição da carga fiscal.

Pelo que, em vez disso, o legislador ficou-se pela delimitação externa desses poderes: os indícios, quaisquer que eles sejam, têm que se basear em dados objectivos e ser externamente sindicáveis – cfr. a alínea a) daquele n.º 2, conjugada com o artigo 76.º, n.º 1, da mesma Lei. E devem ser suficientemente sólidos para convencer o órgão decisor de que a verdade fiscal do contribuinte não pode senão divergir da declarada – como decorre do seu artigo 73.º, ao estatuir que a presunção deve ser infirmada pela prova em contrário. Isto é, devem ser suficientes para proporcionar um «alto grau de probabilidade» de ocorrência dos factos indiciados, «suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)» (…).

No entanto, e assim que tais indicadores forem recolhidos, o sujeito passivo deixa de beneficiar da presunção e passa a recair sobre ele o ónus de confirmar os dados declarados e que pela Administração Tributária foram infirmados. Já não lhe basta clamar pelo cumprimento escrupuloso dos seus deveres fiscais, que a Administração já revelou ser meramente aparente. Já não lhe basta apelar à presunção de verdade dos dados declarados, de que já não beneficia. É-lhe exigido que se chegue à frente e explique pontualmente a razão por que declarou o que declarou, fornecendo dados adicionais que confirmem os valores lançados e as operações correspondentes. Ou que, pelo menos, abalem a convicção firmada sobre a existência ou quantificação do facto tributário, arrastando o juízo probatório para um plano em que não seja possível formar qualquer convicção, a que a doutrina designa por situação de “non liquet” – artigo 100.º do C.P.P.T.

 

IV.C. A falta de contraprova

 

Voltando ao caso, impõe-se reconhecer que nenhum indício, e menos ainda um indício sério (no sentido de indício suficiente[1]), foi apresentado pela Requerida para demonstrar que, de facto, tais desconformidades ocorreram.

Nem sequer se alega, e menos ainda se comprova, um único caso falso – ou seja, um único caso em que:

  1. A Requerente alegue erradamente que o agravamento de 50% da taxa do IS não era devido, quando o era;
  2. A Requerente alegue erradamente que cobrou esse agravamento de taxa, e não o tenha cobrado;
  3. A Requerente alegue erradamente que entregou aos cofres do Estado esse IS em excesso, e não o tenha entregue;
  4. A Requerente alegue erradamente que devolveu aos seus clientes esse IS cobrado em excesso, e não o tenha devolvido.

Nem um único caso. Nem uma única contraprova de uma única destas situações em concreto.

Aliás, se tivesse havido essa contraprova, ainda assim incumbiria à AT, atendendo ao princípio do apuramento da verdade material, demonstrar de forma consistente o valor exacto e objetivo da matéria tributável, depois de se confirmar que o declarado não corresponde à verdade.

E isto porque uma singela contraprova poderia bastar para abalar a presunção de veracidade, e para devolver à Requerente o ónus da prova dessa veracidade; mas não bastaria, por si só, para permitir a inferência de que todas as declarações da Requerente seriam ipso facto falsas – e isso, gerando fundadas dúvidas sobre a quantificação do facto tributário, levaria à anulação de todo o acto tributário, nos termos do art. 100º do CPPT:

Artigo 100.º

Dúvidas sobre o facto tributário e utilização de métodos indirectos

1 - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.

2 - Em caso de quantificação da matéria tributável por métodos indirectos não se considera existir dúvida fundada, para efeitos do número anterior, se o fundamento da aplicação daqueles consistir na inexistência ou desconhecimento, por recusa de exibição, da contabilidade ou escrita e de mais documentos legalmente exigidos ou a sua falsificação, ocultação ou destruição, ainda que os contribuintes invoquem razões acidentais (…)” (sublinhado nosso)

Aderimos, neste tema, à opinião de Elisabete Louro Martins:

existe no art. 100.º do CPPT uma regra de ónus de prova objectivo, que determina que, em caso de dúvida insanável resultante da actividade probatória dos intervenientes no processo, o acto de liquidação deverá ser anulado, o que significa que o Tribunal deverá ficcionar que a Administração não demonstrou os factos constitutivos do direito de tributar, regra que é justificada pelo princípio da legalidade e pelo princípio da prossecução do interesse público, que constituem os princípios basilares da actividade da Administração, a qual não pode actuar como parte no processo[2].

Poderia ainda a Requerida, até em homenagem à fórmula final do nº 1 do art. 75º da LGT (“sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”), ter invocado a estranheza factual e jurídica de situações que, de acordo com regras de bom-senso e experiência comum, permitissem abalar a presunção de veracidade da contabilidade, forçando o contribuinte à cabal e concreta explicação de tais situações.

Mas também aí não houve estranheza, nem houve incentivo para a contraprova: na verdade, um lapso induzido por alteração de regras tributárias a meio de um ano – e de um ano de pandemia –, um imposto cobrado em excesso e entregue ao Fisco, e a devolução, aos clientes, do imposto que lhes foi cobrado em excesso – não é uma sequência que cause estranheza, ou se possa reputar de prática insólita, frívola, desprovida de racionalidade económica, ou insusceptível de passar no “business purpose test”.

Dessa falta de contraprova, já aludida, há que tirar, em suma, a conclusão de que a Requerida não logrou invocar a alínea a) do nº 2 do art. 75º da LGT, e que, portanto, não é ilidida, e mantém todos os seus efeitos, a presunção legal que se contém no nº 1 do art. 75º da LGT.

Por outras palavras, dado que a AT não reuniu, ou invocou, indícios fundados de que o facto tributário não ocorreu, na ausência dessa matéria indiciária não se chega a desencadear o ónus probatório da Requerente, que só opera depois da AT ter reunido, e invocado, aquela matéria que bastasse para se entender preenchida a previsão da alínea a) do nº 2 do art. 75º da LGT, especificamente demonstrando a factualidade susceptível de abalar a presunção da veracidade das operações registadas na contabilidade do contribuinte e dos respectivos documentos de suporte.

Ora isso nunca aconteceu no caso concreto, face aos factos apurados nestes autos – deixando incólumes a veracidade e a boa-fé das declarações da Requerente, e dispensando esta da apresentação de prova ulterior.

É uma solução que Jorge Manuel Santos Lopes de Sousa pondera assim:

Sob a aparência e forma de uma presunção, o legislador comummente prevê certas normas que têm por função operar uma distribuição do ónus de prova. Esta função é exercida para transferir o ónus de prova para a parte que, num dado litígio, tem melhor possibilidade de produzir a prova. Uma das particularidades importante e realmente distintiva das regras de distribuição do ónus de prova e das verdades interinas face às presunções é a desnecessidade de provar o facto-base. (…)

Com efeito, as regras de distribuição do ónus da prova configuram uma dispensa ou liberação do ónus de prova em relação a determinados factos. Estas importam o reconhecimento de certo facto, se não se provar o contrário, permitindo que se alcance um determinado resultado probatório, como consequência da não prova do contrário. Por conseguinte, têm ainda a função de determinar as consequências que hão de derivar da falta ou insuficiente prova de certos factos.”[3]

Insistamos que nenhum indício, e menos ainda um indício sério, foi apresentado pela Requerida relativamente aos dois tópicos controvertidos, pelo que, nesse ponto, acompanhamos conclusões encontradas na fundamentação da decisão proferida no CAAD no Proc. nº 720/2021-T (Fernanda Maçãs, Luís Ricardo Farinha Sequeira e Filipa Barros):

Face ao regime de repartição do ónus da prova, não basta que a AT enuncie uma situação de dúvida, de resto não fundamentada, sobre os documentos apresentados pela Requerente (…)

Ora, as suspeições da AT devem assentar em factualidade de que se possa extrair um juízo fundado de dúvida de que as declarações do sujeito passivo não refletem uma realidade tributária verosímil. Por conseguinte, não tendo sido apresentados elementos idóneos pela AT que permitam afastar a presunção estabelecida no artigo 75º, nº 1, da LGT, entende-se que a documentação existente nos autos, comprova de modo suficiente (…)”

Sendo que, em matéria de ilisão de uma presunção legal, deverão requerer-se especiais cuidados, e estabelecer-se especiais exigências, em matéria de fundamentação. Voltando à Tese de Mestrado de Jorge Manuel Santos Lopes de Sousa:

Embora constituindo uma exigência basilar, decorrente do imperativo constitucional atinente às garantias dos administrados, o dever de fundamentação das decisões da Administração Tributária, patente no art. 77.º da LGT, será mais intenso nestas situações, como decorre do disposto no art. 77.º, n.º 4 da LGT. Assim, para além de a fundamentação dever exprimir as razões de facto e de direito, de forma clara, que permita ao destinatário perceber o “itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor da decisão para decidir no sentido em que decidiu e não em qualquer outro”, este n.º 4 exige, consoantes os casos, i) que seja especificado o motivo da impossibilidade da comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributária, ii) que seja descrito o afastamento da matéria tributável do sujeito passivo dos indicadores objectivos da actividade de base cientifica, iii) que sejam descritos os bens considerados manifestação de fortuna relevante, iv) que seja indicada a sequência de prejuízos fiscais relevantes, e v) que sejam indicados os critérios utilizados na avaliação da matéria tributável.

A nosso ver, a exigência legal, prevista no art. 77.º, n.º 5 da LGT, de que a fundamentação da Administração Tributária “deverá também incluir as razões da não aceitação das justificações apresentadas pelo contribuinte, em caso de aplicação de métodos indirectos por afastamento dos indicadores objectivos de actividade de base científica(art. 87.º, al. c) e 89.º, n.º 1 da LGT), pese embora a especialidade da norma, deverá ser aplicável, de um modo geral, às situações de ilisão de presunção, no contexto do art. 73.º da LGT. Não vislumbramos razão para que não seja de exigir que a Administração Tributária expresse por que razão não aceita as justificações ou as provas apresentadas. Não só na fundamentação, que apenas surge a montante, tal conduta parece-nos ser exigível no âmbito do princípio de colaboração recíproca previsto no art. 59.º, n.º 1 e, num elenco não taxativo, n.º 3 da LGT.”[4]

Por fim, assinale-se que, estabelecida a veracidade das declarações da Requerente, se segue que, nos termos do art. 59º, 2 do CPPT, a AT fica vinculada à realização da liquidação com base naquelas declarações.

 

IV.D. Conclusão

 

Pelos motivos expostos, podemos dar com assente a veracidade das circunstâncias relevantes do caso: a não-exclusão, da base de cálculo do agravamento de 50% da taxa do IS (ao abrigo da LOE2020), do crédito “revolving” concedido pela Requerente no âmbito de “contratos já celebrados e em execução” em 1 de Abril de 2020, a cobrança aos clientes, e entrega aos cofres do Estado, de IS em excesso, relativo aos meses de Abril a Dezembro de 2020, no valor total de € 2.124.623,09, e a devolução deste montante aos clientes, de forma plena e discriminada.

Essa veracidade nem seria necessária para o reconhecimento, pela AT, de que ocorreu cobrança de imposto indevido, mas sempre servirá para legitimar a Requerente no pedido de devolução do imposto liquidado e pago em excesso.

E é uma veracidade assente tanto numa presunção legal, que dispensa prova (na ausência de contraprova), como em prova que satisfaz um standard susceptível de alicerçar a convicção de um Tribunal que livremente aprecia essa prova (arts. 16º, e) e 19º, 1 do RJAT); ainda que se trate de prova redundante, dada a existência da presunção legal.

 

IV.E. Questões prejudicadas

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular as autoliquidações impugnadas e as decisões de indeferimento da Reclamação Graciosa nº ...2022... e de indeferimento tácito do Recurso Hierárquico n.º ...2022...;
  3. Condenar a Requerida ao reembolso do montante total de Imposto de Selo entregue, em excesso, pela Requerente, no valor de €2.124.623,09.

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €2.124.623,09 (dois milhões, cento e vinte e quatro mil, seiscentos e vinte e três euros e nove cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT.

 

Lisboa, 28 de Março de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Jesuíno Alcântara Martins

 

 

 

António de Barros Lima Guerreiro

(vota vencido, nos termos da declaração que junta)

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Discordo de todo da presente Decisão Arbitral já que esta se baseia num pretenso ónus de a administração fiscal fazer a contra-prova de fatos que a Requerente não demonstrou pelos meios legais adequados, ao contrário do que era sua obrigação.

Por estarem em causa utilizações do crédito ocorridas entre  Abril e Dezembro de 2020, a norma cuja aplicação é controvertida  é o art. 70º- A, do  Código do Imposto de Selo  , na redação do art. 343º da Lei nº 2/2020, de 30/3, que, dispunha que,  relativamente aos factos tributários  entre 1/1 e  31/12 /2020,  as taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17 .2.1 a 17,2.4  da Tabela  Geral eram agravadas em 50 %, excluindo contratos já celebrados e em execução  a quando da entrada em vigor dessa Lei.

Posteriormente, o art. 384º da Lei nº 75-B /2020, alteraria essa norma, que passaria a dispor que, relativamente aos factos tributários ocorridos até 31/12 /2021, as taxas as taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4  eram agravadas em 50 %, excluindo contratos já celebrados e em execução. O   art. 292º da Lei nº 12/2022, de 31/3, prorrogaria, por sua vez, a aplicação dessa norma, dispondo que, relativamente aos factos tributários ocorridos até 31/12 /2022, as taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 seriam agravadas em 50 %, excluindo contratos já celebrados e em execução.

Anteriormente, o art. 278º da Lei nº 71/2018, de 31/3, que introduziu este agravamento, dispunha que, relativamente aos factos tributários ocorridos até 31/12/2019, as taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 são agravadas em 50 %, não ressalvando ainda os contratos os contratos já celebrados e em execução.

Todas essas normas reportam-se á tributação do crédito ao consumo regulado pelo DL n.º 133/2009, de 2/6  

Assim, os factos tributários abrangidos nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 da Tabela Geral posteriores a 31/12/2022 não são atingidos por este agravamento.

A abertura de crédito bancária cuja noção não consta de qualquer disposição legal, mas foi construída pela doutrina, é uma mera promessa de crédito, que confere ao cliente de banco um mero direito de utilização do crédito, que este pode exercer ou não segundo as suas conveniências. Com a efetiva utilização do crédito, a abertura de crédito transforma-se em mútuo.

Por natureza, essa ressalva dos “contratos já celebrados e em execução” apenas abrange os contratos de concessão de crédito de execução continuada, como tipicamente é o crédito de abertura de crédito em conta corrente, em particular o crédito concedido mediante cartão de crédito, que pode ou não coexistir com outros servlços que o contrato proporcione.

Ao contrário do  mútuo e da abertura de crédito simples em que o creditado pode utilizar o crédito por uma única vez, ainda que  mediante sucessivos levantamentos parciais ,  na abertura de crédito em conta corrente , que absorveria vários elementos da  conta corrente comercial, essa sim expressamente  definida no art. 344º do Código das Sociedades Comerciais bem como dos  contratos de mandato e depósito , o contrato de  abertura de crédito bancária em regime de   conta corrente é de execução  continuada,  na medida em que o cliente do banco pode  reconstituir o direito potestativo inicial de saque através de sucessivas entregas efetuadas ao longo do contrato, Subjacente  à abertura de crédito em conta corrente, está uma relação jurídica de eficácia sucessiva, ou seja, que se vai renovando ao longo do tempo, mediante a respetiva movimentação a crédito ou a débito( sobre o assunto, José Maria Pires,  Direito Bancário ,II Vol.,  Lisboa, 1995, pgs. 152 e sgs.).  O crédito concedido em regime de “ revolving” através de cartão de crédito  tem enquadramento, como as partes reconhecem, na verba 17.1 da    Tabela Geral.

No regime anterior   da Lei nº 150/99, de 11/9, a abertura de crédito era tributada na verba 1º da Tabela Geral anterior, aprovada pelo Decreto nº 21.916, de 28/11/32 que a definia como a obrigação de colocação á disposição de outrém de fundos, mercadorias ou outros valores, quer para utilizar no país ou no estrangeiro. Os contratos de mútuo eram tributados nos termos da verba 54º.

O facto tributário era então de natureza formal, o contrato de abertura de crédito, pelo que a tributação se fazia por uma única vez-.

A tributação em imposto de selo recaía, assim, sobre o contrato de concessão de crédito, ainda não houvesse qualquer utilização do crédito no momento do contrato ou posteriormente.

Inversamente, não eram tributadas em imposto de selo as múltiplas utilizações do crédito no âmbito do mesmo contrato de abertura de crédito.

A verba 17 da nova Tabela Geral regularia a tributação do crédito nos seguintes termos.

O 17.1. especificaria  o imposto de selo  ser devido em função do valor e do prazo do contrato pela utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título exceto nos casos referidos na verba 17.2, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor, considerando-se, sempre, como nova concessão de crédito a prorrogação do prazo do contrato .  Esse regime abrange os contratos de mútuo e abertura de crédito simples, mas a tributação   da concessão de crédito passaria a ocorrer quando e á medida de cada utilização do crédito.

A verba 17.1.4 especificaria um regime particular para o crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização do crédito em que o prazo de utilização do crédito não fosse determinado nem determinável, em que o  valor tributável é apurado através de média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente divididos por 30. É esse o caso do crédito concedido em regime de “revolving”.

Assim, o facto tributário ocorre no último dia de cada mês, quando pode ser apurado o valor tributável: essa média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente divididos por 30. 

Esse novo modelo determinaria um novo e mais exigente regime de controlo do imposto inexistente no Regulamento aprovado pelo Decreto nº 12.700, de 28/11, que consta do art. 53º do Código do Imposto de Selo e se passa a reproduzir.

“Obrigações contabilísticas
 

1 - As entidades obrigadas a possuir contabilidade organizada nos termos dos Códigos do IRS e do IRC devem organizá-la de modo a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários à verificação do imposto do selo liquidado, bem como a permitir o seu controlo.


2 - Para cumprimento do disposto no n.º 1, são objeto de registo as operações e os atos realizados sujeitos a imposto do selo.

 
3 - O registo das operações e atos a que se refere o número anterior é efetuado de forma a evidenciar:
a) O valor das operações e dos atos realizados sujeitos a imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;


b) O valor das operações e dos atos realizados isentos de imposto, segundo a verba aplicável da Tabela;

 
c) O valor do imposto liquidado, segundo a verba aplicável da Tabela;
d) As alterações efetuadas através da apresentação da declaração prevista no n.º 3 do artigo 52.º-A.


4 - As entidades que, nos termos dos Códigos do IRC e do IRS, não estejam obrigadas a possuir contabilidade organizada, bem como os serviços públicos, quando obrigados à liquidação e entrega do imposto nos cofres do Estado, devem possuir registos adequados ao cumprimento do disposto no n.º1.

Essa norma impõe o registo individualizado de cada ato e operação sujeita a imposto de selo, bem como do seu valor. Esse registo, desde que respeite legislação comercial e fiscal, goza de presunção de verdade. nos termos do nº 1 do art. 75º da LGT.

Nesta medida, a contabilidade do sujeito passivo deve estar organizada de modo a refletir todos as utilizações de crédito antes ou posteriormente à   entrada em vigor da Lei  nº 2/20020, identificadas pelo mês a que respeitam .

Essa obrigação acessória não constava do anterior Regulamento do Imposto de Selo e é necessária à eficácia do novo modelo de tributação do crédito adotado.

Tal obrigação acessória resulta de a abertura de crédito em conta corrente se traduzir em   um conjunto de movimentos contabilísticos    através dos quais o crédito vai atuar (Sofia Gouveia Pereira “O contrato de abertura de crédito bancário” Cascais, 2000, pags. 46 e 478.esse

A inobservância desses requisitos determina a aplicação de métodos indiretos se for caso disso.

A ressalva na parte final do art. 70º-A do Código do Imposto de Selo dos “contratos já celebrados e em execução não tem, por outro lado, qualquer relação com o princípio constitucional da irretroatividade dos impostos.

A irretroatividade dos impostos não impõe, na verdade, o não agravamento da tributação em todo o período de execução da operação. Apenas tal agravamento, a ter lugar, não pode ter efeitos “ex tunc”.

Com o início do contrato não se constitui qualquer direito do contribuinte ao não agravamento da taxa até ao termo da sua execução.

Que o objetivo dessa parte final do art. 70º-A não foi assegurar a não retroatividade do agravamento, resulta da exposição de motivos que justificou essa alteração apresentada na votação da especialidade do 0E – 2020 pelo grupo parlamentar do PSD nos termos seguintes.

 

“Nos últimos anos, através de sucessivas alterações promovidas em sede de Orçamento do Estado, as taxas de Imposto do Selo aplicáveis a contratos de crédito ao consumo têm sido substancialmente agravadas, quer se trate de novos contratos, quer da extensão dos prazos de pagamento de créditos já anteriormente concedidos. Ora, de modo a não dificultar a situação das famílias que, pretendendo cumprir os seus contratos de crédito, por vicissitudes várias necessitam de proceder à prorrogação do prazo dos mesmos, propõe-se que o agravamento em 50% das taxas previstas nas verbas 17.2.1 a 17.2.4 não tenha aplicação e estes casos.”

 

Se a parte final do art. 70º- A do Código do Imposto de Selo é uma benefício fiscal mas uma mera limitação do universo dos contribuintes abrangidos pelo agravamento motivada por razões extra-fiscais sem carácter excepcional , é, no entanto, irrelevante.

 

A questão em causa é se a prova de uma utilização do crédito anterior a 1 de Abril de 2022 pode ser feita por outros meios que não através da contabilidade, o que impõe ao contribuinte dessa contabilidade constem pelo menos a identificação do mês da primeira utilização do crédito, do montante e da guia de pagamento do imposto de selo em que este foi incorporada.

 

Tal identificação não foi feita, segundo a fundamentação do indeferimento impugnado.

 

Para efeitos dessa prova, a Requerente limitou-se inicialmente a apresentar:

-

-Copia de quatro contratos de cartão de crédito na modalidade “revolving”.;

-Documento excel discriminativo do valor do imposto de selo que alega ter sido liquidado em excesso.;

- Apuramento do imposto de selo liquidado aos clientes à taxa de 0,2115% para três contratos e apuramento do imposto que deveria ter sido liquidado;

-Cópia das guias de imposto de selo referentes aos meses de abril a dezembro de 2020 e não dos meses das utilizações de crédito anteriores no âmbito desses contratos.

-Extratos de conta com evidência da restituição do imposto de selo liquidado respeitante a 6.440 contratos, uma pequena parcela (1 %) dos 642.005 contratos em que a Requerente considera indevidamente ter sido indevidamente liquidado imposto de selo.

 

Ora as utilizações de crédito que a Requerente invoca como fundamento do seu direito deviam ter expressão sua contabilidade.

 

Não existiu nem existe dificuldade insuperável para exportação desses dados, após tratamento com a consequente elaboração de um ficheiro autónomo a apresentar á administração fiscal. (Portaria nº 321-7/2007, de 26/3) Tal dificuldade deveria ser, aliás, ponderada pelo Requerente antes de devolver o imposto aos clientes.

 

A prova dos movimentos de crédito e débito não pode, no entanto, ser substituída por prova testemunhal, circunscrita ao depoimento de duas colaboradoras do banco, o que remeteriapara a prateleira das inutilidades o art. 53º do Código do Imposto de Selo.

A prova testemunhal, ainda que possa completar ou esclarecer a prova documental, ,   não pode substituir-se  à prova legal dos movimentos contabilísticos  a que se refere o art. 53º do Código do Imposto de Selo.

 

A prova por amostragem, que, aliás, teria de ter natureza aleatória e não, como foi o caso, sobre elementos previamente selecionados pelo banco Requerente, o que diminui a sua credibilidade, apenas poderia ter lugar “ex post”, se a administração fiscal entendesse solicitar ao contribuinte o suporte contabilístico dos movimentos efetuados, solicitação obviamente limitada, dado o grande volume da informação, aos casos em que se suscitem dúvidas.

 

É de referir finalmente que, por o imposto ser de repercussão legal, os clientes do banco podiam ter impugnado as liquidações de imposto de selo ora impugnadas, nos termos da alínea a) do nº 4 do art. 18º da LGT, o que certamente não fizeram dada a exiguidade dos montantes envolvidos individualmente considerados.

A soma desses montantes já é, no entanto, um valor considerável.

Impor à administração fiscal a contra-prova de factos que o Banco requerente não demonstrou   , através da  contabilidade que, como o diz o referido nº 1 do art. 76º da LGT, desde que organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, afeta , assim, irremediavelmente a legalidade da decisão arbitral, que não pode ser sanada por uma mera construção teórica, sem o necessário suporte normativo

 

 

António de Barros Lima Guerreiro

 



[1] Este dever probatório dos factos constitutivos é cumprido, “através da apresentação de “indícios suficientes”, entendidos estes como factos claros e objectivos que demonstrem que o contribuinte revela uma capacidade contributiva superior à declarada” - Martins, Elisabete Louro (2010), O Ónus da Prova no Direito Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 74-75.

[2] Martins, Elisabete Louro (2010), O Ónus da Prova no Direito Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, p. 266.

[3] Jorge Manuel Santos Lopes de Sousa (2013), Ilisão de Presunções Consagradas nas Normas de Incidência Tributária: O Art. 73.º da LGT (Tese de Mestrado), pp. 35-36, citando também Sousa, Luís Filipe Pires de (2012), Prova por Presunção no Direito Civil, Coimbra, Almedina, pp. 99-100, e Ribeiro, João Sérgio (2010), Tributação Presuntiva do Rendimento, Coimbra, Almedina, p. 44.

[4] Jorge Manuel Santos Lopes de Sousa (2013), Ilisão de Presunções Consagradas nas Normas de Incidência Tributária: O Art. 73.º da LGT (Tese de Mestrado), 181-183.