Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 513/2023-T
Data da decisão: 2024-04-12  IRC  
Valor do pedido: € 919.609,62
Tema: IRC. Retenções na fonte sobre rendimentos pagos a empresa não residente. Direito à tributação sobre os rendimentos líquidos.
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Sumário

É incompatível com os artigos 56º e 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia a tributação, ao abrigo da al. b) do n.º1 do art.º  94.º do CIRC, dos rendimentos auferidos por prestações de serviços efetuadas por entidades não residentes a entidades residentes, quando não se permita a dedução dos gastos associados a tais rendimentos, para efeitos da incidência do imposto.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro-presidente), Prof.ª Doutora Nina Aguiar (árbitro vogal e relatora) e Dr. José Luís Ferreira (árbitro vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 19.09.2023, acordam:

 

I - RELATÓRIO

A... (designado doravante como «Requerente»), constituído e a operar na Irlanda, com sede em ..., ..., Irlanda, titular do número de identificação fiscal na Irlanda ... e em Portugal ... apresentou, em 13.07.2023, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária («RJAT»), pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa que apresentou contra os atos de retenção na fonte a título definitivo de IRC, que lhe foram efetuados pelos seus clientes em Portugal no exercício de 2021, e à declaração de ilegalidade dos respetivos atos de retenção na fonte.

É Requerida a Autoridade Tributária.

Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa foram os signatários designados como árbitros, integrando um coletivo arbitral. Nestas circunstâncias, e em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 1 e n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 19.09.2023.

Por despacho do tribunal de 19.09.23, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e para, no mesmo prazo, remeter cópia do processo administrativo.

Por requerimento apresentado em 20.10.2023, a Requerida requereu a prorrogação do prazo para apresentação da sua contestação, o que foi concedido por despacho do Tribunal de 23.10.2023.

Em 22.11.2023, a Requerida apresentou a sua resposta.

Entendendo que nesta se suscitava matéria de exceção, por despacho de 23.11.2023, o Tribunal notificou o Requerente para, querendo, se pronunciar sobre a mesma, o que o Requerente fez por requerimento apresentado em 29.11.2023.

Por despacho de 11.12.2023, o Tribunal determinou a prescindência da reunião prevista no art.º 18º do RJAT e convidou as Partes a apresentarem alegações finais escritas.

O Requerente apresentou as suas alegações em 20.12.2023, e a Requerida em 16.01.2024.

 

II - SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

Quanto à competência do Tribunal:

A Autoridade Tributária alega na sua resposta ser o Tribunal arbitral coletivo incompetente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral, pois o Tribunal arbitral não tem competência para determinar o rendimento líquido do Requerente, a fim de determinar a validade do cálculo do rendimento líquido apresentado por este; não podendo o tribunal validar o cálculo do rendimento líquido do Requerente, não poderá condenar a Autoridade Tributária ao pagamento da quantia pedida.

Sobre esta questão, neste momento, afigura-se suficiente dizer o seguinte:

A competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária é regida em primeiro lugar pelo art.º 2º do RJAT, que determina, no seu nº 1, que aquela compreende a apreciação das seguintes pretensões:

  1. A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
  2. A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

Esta norma é complementada pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (“portaria de vinculação”) que, no seu art.º 2º dispõe que os serviços e organismos referidos no artigo anterior (a Autoridade Tributária) vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:

  1. Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
  2. Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
  3. Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;
  4. Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
  5. Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.

Ora, no caso, verifica-se que o Requerente pede ao Tribunal arbitral que declare a ilegalidade e anule um conjunto de atos de liquidação de IRC, o que se enquadra na al. a) do nº 1 do art.º 2º do RJAT e não se compreende nas exceções estabelecidas no art.º 2º da “portaria de vinculação.

Desta forma, conclui-se que o tribunal é competente para apreciar o pedido de pronúncia arbitral no que diz respeito à declaração de ilegalidade dos atos de liquidação impugnados.

Em relação aos demais pressupostos processuais:

A ação é tempestiva porque apresentada no prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra as retenções na fonte impugnadas, ocorrida em 14.04.2023[1], tendo a ação arbitral dado entrada em 13.07.2023.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e encontram-se devidamente representadas.

O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe decidir.

A cumulação de pedidos é admissível ao abrigo do art.º 104.º, n.º 1 al. b) CPPT, aplicável ao processo tributário por força da al. a) do nº 1 do art.º 29.º do RJAT, uma vez que a apreciação dos pedidos cumulados tem por base as mesmas circunstâncias de facto e os mesmos são suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.

 

III – POSIÇÃO DAS PARTES

 

  1. Do Requerente

O Requerente entende que:

  1. Ao ser tributada, em IRC, em Portugal, sobre o valor bruto da faturação (rendimento bruto), enquanto uma entidade residente a exercer a mesma atividade e a realizar as mesmas operações em território português seria tributada sobre o rendimento líquido de despesas realizadas, essa tributação constitui violação dos artigos 56º e 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia;
  2. No caso das locações financeiras, apenas a parcela de rendimento (juros) da locação financeira, nunca a parcela de reembolso de capital, poderia ser sujeita a tributação, como foi;
  3. Ainda que fosse legalmente admissível sujeitar a tributação sobre o rendimento por retenção na fonte também a parcela “amortização de capital”, por força da proibição de discriminação imposta pelo Direito da União Europeia, esta tributação sobre o reembolso de capital sempre teria de ser afastada, uma vez que uma entidade residente com os mesmos contratos de locação financeira com clientes portugueses, jamais veria incluído no cômputo do lucro tributável as parcelas das faturações respeitantes à amortização do capital adiantado para a compra do equipamento entregue em locação financeira ao cliente português.
  4. Na locação operacional, o rendimento líquido é apurado após dedução das depreciações legalmente/fiscalmente cabíveis (33,33% ao ano, conforme código 2240 da Tabela II (Taxas genéricas) anexa ao Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro de 2009);
  5. Além disso, quer nas locações financeiras, quer nas locações operacionais, o rendimento líquido é ainda apurado após dedução dos custos de financiamento proporcionalmente imputáveis às locações realizadas em Portugal, que em 2021 representaram, na média dos doze meses desse ano, 0,89% da operação mundial do A...;
  6. Aplicando-se, para não haver favorecimento (nem desfavorecimento) do não residente, a taxa de IRC de 21% (artigo 87.º, n.º 1, do CIRC) aplicável em 2021 ao residente em Portugal (superior em 11 pontos percentuais à taxa prevista no artigo 12.º, n.º 2 e n.º 3, da CDT com a Irlanda para a locação de equipamentos), temos uma tributação do rendimento líquido obtido em Portugal pelo A... em 2021, que gera um imposto de € 208.590,59, que contrasta com os € 1.128.200,21 suportados por retenção na fonte à taxa de 10% sobre os valores brutos das faturações (€ 11.282.002,10) em 2021 a clientes portugueses, o que significa um Imposto em excesso, pois, no montante de € 919.609,62.

O Requerente invoca a favor da sua pretensão e da sua tese os acórdãos proferidos pelo TJUE nos seguintes processos: processo n.º C-290/04, processo n.º C-334/02, processo n.º C‑56/09, processo n.º C-345/04, processo n.º C‑387/11, processo n.º C‑342/10 e processo n.º C-18/15.

O Requerente termina pedindo a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e dos subjacentes atos de retenção na fonte de IRC, com o consequente reembolso do imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios.

 

  1. Da Requerida

Em síntese, a Requerida alega o seguinte:

 

b.1) Por exceção

 

  1. Constata-se que a Requerente pede que o Tribunal Arbitral anule as liquidações efetuadas e proceda, ele mesmo, à determinação do cálculo do rendimento líquido, apurando as despesas efetivamente suportadas relativas aos rendimentos cuja retenção na fonte está aqui em discussão e, desta forma, condenando a AT ao reembolso de uma quantia determinada.
  2. Ora, o Tribunal Arbitral não tem competência para determinar a validade do cálculo apresentado pela Requerente determinando a condenação ao pagamento da quantia pedida pela mesma e que passa pela necessária anulação parcial das retenções efetuadas.
  3. Tal impõe-se por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT.

 

b.2) Por impugnação

 

  1. Da jurisprudência do TJUE, nomeadamente das decisões dos processos n.º C-18/15, extraem-se duas normas relevantes na matéria que importa ao presente processo:

1ª norma: não colide com as liberdades de prestação de serviços e de circulação de capitais, o estabelecimento de um mecanismo a prever que a consideração das despesas profissionais conexas com a obtenção dos juros seja materializada após ter sido efetuada a retenção na fonte, mediante a apresentação, junto da Autoridade Tributária, de um pedido de reembolso da totalidade ou de uma parte do imposto retido na fonte.

2ª norma: cabe ao prestador de serviços a decisão de formular o pedido e o ónus de oferecer as provas necessárias para demonstrar o montante das despesas que pretende sejam dedutíveis.

  1. Também o Despacho 101/2017.XXI, de 31-03-2017, do Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais,  na sequência das dúvidas que surgiram quanto ao alcance do disposto no nº 8 do artº 94º do CIRC (nos termos do qual é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos nºs 8, 9, 10 e 11 do artº 71º do CIRS) veio determinar que “…são dedutíveis até à concorrência dos rendimentos, os encargos necessários para a sua obtenção que estejam direta e exclusivamente relacionados com os rendimentos obtidos em território português e que tenham sido comprovada e efetivamente suportados pelo sujeito passivo.”
  2. Num plano adjetivo, a Requerida invoca jurisprudência do STA vertida num acórdão uniformizador de jurisprudência (acórdão de 29.05.2022, recurso nº 8/21.2BALSB), que se refere às condições em que um tribunal pode anular parcialmente um ato administrativo e aos limites do poder jurisdicional de anular atos administrativos, e que se resume como segue:

“[Q]uando a decisão judicial tributária ultrapassar aquilo que é a sua função meramente anulatória – e que é estruturante da instância judicial tributária – e implicar, ao invés, uma iniciativa de lançamento / liquidação (para mais, com reformulação integral da base tributável, como é o caso) – então a anulação parcial torna-se impraticável e só restará a anulação total do ato tributário. (…) Não é possível extrair da retenção na fonte efectuada a medida exata da ilegalidade, muito menos por “simples operações aritméticas”. Apenas é possível concluir, como fez a sentença recorrida, que a tributação assim calculada incidiu sobre o rendimento bruto, quando deveria ter incidido sobre o rendimento líquido, de modo a respeitar as exigências do Direito Europeu.

Estamos, com efeito, diante de um caso de substituição tributária total, pelo que o substituto tributário não estaria em condições de proceder ao cálculo da base tributável líquida exigida pelos cânones da Não Discriminação – aliás, por alguma razão, os casos de retenção liberatória na fonte incidem, invariavelmente, sobre rendimentos brutos e não líquidos. Ora, se o substituto tributário, numa retenção liberatória na fonte, não conseguiu, nem está em condições de fazer, muito menos o pode fazer este ou qualquer outro Tribunal Tributário.”

 

  1. A conclusão é a de que só o contribuinte e a AT estariam em condições de proceder ao cálculo da base tributável líquida exigida pelos cânones da não discriminação; na prática, apenas a AT poderia emitir uma nova liquidação onde fossem consideradas as despesas diretamente incorridas para a obtenção dos rendimentos brutos, estando em causa cálculos complexos que apenas poderiam ser realizados mediante informação fornecida pelo contribuinte ou através de troca de informações com a autoridade fiscal do Estado de residência do beneficiário do rendimento;
  2. O Acórdão de 08 de março de 2017 (processo nº 298/13), do STA, diz que “as instituições financeiras não-residentes devem ser tratados da mesma maneira que as instituições residentes, tendo o direito de ver reconhecidas, perante a administração tributária portuguesa, os encargos e as despesas relacionadas com os rendimentos em causa, e o direito de as deduzir antes da tributação, isto é, de serem tributadas em Portugal apenas pelo rendimento líquido”;
  3. Mas no caso sub judice, tanto na Reclamação Graciosa, como no pedido de pronúncia arbitral, a Requerente, em lugar de peticionar a dedução das despesas realizadas conexas com a obtenção dos rendimentos devidamente comprovadas, cinge o objeto do pedido à anulação dos atos tributários de retenção na fonte indevidamente suportados, a título definitivo, com o consequente reembolso de determinado montante e, bem assim, o pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.
  4. A falta de comprovação das despesas suportadas e relacionadas com os rendimentos obtidos em Portugal –a requerente só vem de uma forma genérica solicitar a tributação pelo valor líquido indicando o tipo de gastos que na sua ótica são necessários à obtenção do rendimento líquido, sem apresentar documentação das despesas efetivamente suportadas, não comprovando por qualquer meio quer a efetividade das mesmas, quer a sua relação com os rendimentos em causa - tarefa que manifestamente não pode ser desempenhada pela AT, redundará na manutenção do imposto retido na fonte.
  5. Pelo que, jamais poderia a AT efetuar a tributação pelo valor líquido, conforme pretendido, na medida em que esta não tem forma de saber quais as despesas efetivamente suportadas necessárias à obtenção dos rendimentos cuja retenção na fonte está aqui em discussão.
  6. Além disso, para que se verificasse a discriminação invocada, esta teria que integrar duas componentes: ser formal e materialmente objetiva, e conferir um tratamento diferenciado para as mesmas situações, e nas mesmas condições, somente pela diferença do local de residência, beneficiando os contribuintes residentes de um Estado face aos não residentes (desse Estado).
  7. Ora, a verdade é que se aos residentes é permitida a dedução de alguns encargos, a taxa aplicável (21% de IRC + 7% de Derrama) é superior à aplicável aos não residentes, nomeadamente as taxas reduzidas estabelecidas nas CDT´s (e que no presente caso ascendeu a 10%), sendo ainda possível a estes eliminar a dupla tributação no seu Estado de residência através do mecanismo do crédito de imposto por dupla tributação internacional.
  8. Paralelamente, os encargos dedutíveis não serão, nem terão forçosamente que ser, iguais em todos os ordenamentos jurídico-fiscais, de onde resulta que a diferença na tributação decorrerá sobretudo das flutuações nos volumes de negócios e nos rendimentos auferidos, nos lucros ou nos prejuízos dos sujeitos passivos, e não do estabelecimento de um pretenso regime fiscal que discrimine positivamente entidades residentes face a entidades não residentes.
  9. A alegada tributação mais gravosa não decorre de uma situação inevitável face às normas legais aplicáveis que a requerente contesta, mas sim da sua situação tributária, concreta, para o ano em questão, na Irlanda.
  10. Nesta linha de entendimento, o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 14 de Fevereiro de 1995 (processo C279/93) afirma: “(…) Segundo jurisprudência constante, a discriminação só pode consistir na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou da mesma regra a situações diferentes. Ora, em matéria de impostos diretos, as situações dos residentes e dos não residentes não são, em regra, comparáveis. O rendimento auferido no território de um Estado por um não residente constitui, muito frequentemente, apenas uma parte dos seus rendimentos globais, centralizados no lugar da residência. Por outro lado, a capacidade contributiva pessoal do não residente, resultante da tomada em consideração do conjunto dos seus rendimentos e da sua situação pessoal e familiar, pode mais facilmente ser apreciada no local onde tem o centro dos seus interesses pessoais e patrimoniais. Tal lugar corresponde, geralmente, à residência habitual da pessoa em causa. Assim, o direito fiscal internacional, nomeadamente o modelo de Convenção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em matéria de dupla tributação, admite que compete, em princípio, ao Estado da residência tributar o contribuinte de maneira global, tomando em consideração os elementos inerentes à sua situação pessoal e familiar. A situação dos residentes é diferente, na medida em que o essencial dos seus rendimentos é normalmente centralizado no Estado de residência. Por outro lado, este Estado dispõe geralmente de todas as informações necessárias para apreciar a capacidade contributiva global do contribuinte, tendo em conta a sua situação pessoal e familiar.”

A Requerida termina concluindo que deve ser julgado procedente a exceção invocada e a AT ser absolvida dos pedidos; ou quando assim não se entenda, deve ser julgado improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos de retenção na fonte efetuados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida dos pedidos.

Em 23.11.2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho em que convidou o Requerente a pronunciar-se quanto à matéria de defesa por exceção suscitada na contestação.

Em 29.11.2023 o Requerente apresentou requerimento com a sua pronúncia sobre a matéria de exceção, em que, em síntese, alegou como segue:

  1. A AT alega que o Tribunal é incompetente “em razão da matéria (...) quanto ao pedido de condenação da AT ao reembolso à requerente do montante de imposto de € 919.609,62, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde 14 de abril de 2023 até ao seu integral reembolso”. Mas depois conclui, dando salto lógico, que tal incompetência material do tribunal arbitral “deve determinar a absolvição da entidade Requerida da instância”, como se não houvesse mais pedido senão o de reembolso (em montante computado pela requerente), e de juros;
  2. Mas o primeiro pedido não é de reembolso ou juros, mas o de declaração de ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa e, bem assim, da declaração de ilegalidade dos atos de retenção na fonte referentes ao exercício de 2021, com a sua consequente anulação, e com todas as consequências legais, designadamente o reembolso;
  3. Donde que não se percebe como a eventual incompetência material quanto ao pedido de reembolso em montante computado pela requerente, possa determinar a absolvição da AT da instância.
  4. Estranha-se que sendo os contribuintes incumbidos por lei de fazer autoliquidações em sede de IRC (cômputo do imposto), onde se incluem retenções na fonte sobre outros contribuintes (in casu a requerente), a estes mesmos contribuintes se negue legitimidade para obter decisão judicial, após apresentação de contas perante a AT e subsequente recurso aos tribunais em reação a inércia ou oposição desta, sobre mensuração de reembolsos consequentes de ilegalidades parciais imputadas às liquidações.

Em alegações, o Requerente acrescentou, com relevância e em síntese, os seguintes argumentos:

 

  1. Identificados que foram e estão todos os clientes portugueses com faturações do A... em 2021, a AT dispõe de todos os dados identificativos necessários para fazer a seriação de todas as retenções na fonte e respetivas guias de pagamento ao Estado, aqui em causa, no âmbito da relação de imposto (retenção na fonte) que tem e mantém com os clientes portugueses da ora requerente;
  2. Se não lhe bastarem os dados fornecidos pelo requerente, quanto aos montantes de faturação e às transações na sua origem, pode a AT comprovar tais elementos através do cruzamento com a informação declarativa que recebe dos clientes portugueses listados pela requerente ou, se porventura também isso não lhe bastar, através de questionamentos adicionais aos mesmos;
  3. A AT não pode, discriminatoriamente, afastar pura e simplesmente a presunção de verdade declarativa do repercutido com o imposto (a ora requerente), com a afirmação de que não está provado, sem procurar questionar o que quer que seja e quem quer que seja, sem querer saber de utilizar a informação que a própria AT possui, sem querer saber de cruzar o que quer que seja, e sem querer saber de eventual e complementarmente solicitar em concreto o que quer que seja a quem quer que seja;

Quanto à Requerida, comunicou esta ao Tribunal, em requerimento apresentado em 17.01.2023, nada ter a acrescentar ao alegado na sua contestação.

 

IV – QUESTÕES A DECIDIR

A questão a decidir no presente processo arbitral é a de saber se os impugnados atos de liquidação de IRC por retenção na fonte a título definitivo (ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 94.º do Código do IRC), ao incidirem sobre rendimentos brutos pagos por entidades residentes (clientes) ao Requerente, e não sobre rendimentos líquidos, como aconteceria no caso de os mesmos rendimentos serem pagos a entidade residente, são ilegais, por violação do princípio da proibição de restrições à livre prestação de serviços no mercado comum da União Europeia, consagrado no atual artigo 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e por violação do princípio da proibição de restrições à livre circulação de capitais no mesmo mercado comum, estabelecido no atual artigo 63.º do mesmo tratado.

 

V - MATÉRIA DE FACTO

O Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:

  1. O Requerente era, em 2021 e à data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, uma sociedade com sede na Irlanda que obteve número de contribuinte em Portugal (712 081 020) e aqui operava na qualidade de entidade não-residente sem estabelecimento estável no território nacional;
  2. Os serviços prestados a clientes portugueses no ano das liquidações impugnadas (2021) consistiram na locação operacional e locação financeira de equipamentos informáticos (computadores);
  3. No âmbito dessas locações operacionais e financeiras o Requerente faturou aos clientes portugueses no exercício de 2021, o montante de € 11.282.002,10, dos quais € 2.504.114,00 foram referentes a locação operacional, e € 8.777.888,10 foram referentes a locação financeira;
  4. Sobre esta faturação bruta, os clientes portugueses retiveram na fonte a título definitivo (dada a qualidade do Requerente de não-residente sem estabelecimento estável) 10% da mesma, por enquadrarem os rendimentos brutos dessa faturação como rendimentos derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico, como tal enquadráveis no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 94.º do Código do IRC, e no n.º 3 do artigo 12.º (royalties) da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (“CDT”) celebrado entre Portugal e a Irlanda, com a consequente aplicação na fonte (em Portugal) da taxa de 10% prevista no n.º 2 do artigo 12.º dessa CDT;
  5. Assim, sobre o valor bruto da faturação (€ 11.282.002,10), incidiu IRC por retenção na fonte a título definitivo à taxa de 10%, no montante total de € 1.128.200,21;
  6. Em 14 de Dezembro de 2022 o Requerente apresentou, por correio eletrónico, reclamação graciosa contra as referidas retenções na fonte, dirigido ao diretor de finanças de Lisboa;
  7. Na Reclamação Graciosa apresentada, o Requerente diz, no artigo 8º:

“Neste sentido, o A... decidiu deduzir a reclamação graciosa do ato tributário sub judice e solicitar o consequente reembolso parcial de retenção na fonte em sede de IRC liquidada pelas sociedades residentes em Portugal no montante de € 919.609,62.”

  1. Nos artigos 40º a 50º da reclamação graciosa, lê-se ainda:

“40º

“Neste sentido, e atendendo ao preceito legal em vigor, o Reclamante procedeu ao apuramento do imposto que seria devido, caso se tratasse de uma sociedade residente para efeitos fiscais em Portugal, o qual se junta em anexo como Documento n.º 2.

41.º

Para tal, e a título preliminar, cumpre tecer alguns comentários sobre o tratamento contabilístico a conceder aos contratos de locação.

42.º

Ora, conforme disposto na norma International Financial Reporting Standards (“IFRS”) 16 – “Locações”, na data de celebração do contrato de locação financeira, o locador deve reconhecer os activos detidos na sua demonstração da posição financeira e apresentá-los como uma conta a receber por uma quantia igual ao investimento líquido na locação.

43.º

Define a referida norma contabilística que o investimento líquido da locação financeira representa o investimento bruto na locação (entenda-se os pagamentos de locação a receber por um locador ao abrigo de um contrato de locação financeira e qualquer valor residual não garantido que acresça ao locador) descontado à taxa de juro implícita na locação.

44º

Posteriormente, o locador deve reconhecer o rendimento financeiro obtido durante o período da locação, com base num modelo que reflita uma taxa de retorno periódica constante sobre o investimento líquido do locador na locação, e bem assim aplicar os pagamentos de locação relativos a esse período ao investimento bruto na locação, a fim de reduzir não só o capital, mas também o rendimento financeiro não obtido.

45.º

Em resumo, apenas os rendimentos financeiros decorrentes de um contrato de locação financeira originam impactos na demonstração de resultados do locador, porquanto o reembolso de capital apenas origina movimentações contabilísticas em balanço.

46.º

Por sua vez, de acordo com a referida norma contabilística, na data de celebração do contrato de locação operacional, o locador não deverá ter qualquer impacto em termos de reconhecimento dos ativos, assumindo que o valor do ativo que se encontra reconhecido nas contas será o considerado aquando da mensuração inicial do contrato de locação operacional.

47º

Contudo, o locador deve reconhecer os pagamentos das locações operacionais como rendimento, quer numa base linear, quer noutra base sistemática.

48.º

Adicionalmente, na esfera do locador irão ser reconhecidas na demonstração de resultados depreciações sobre os ativos em locação operacional.

49.º

Sumariamente, a totalidade dos rendimentos obtidos num contrato de locação operacional originam impactos na demonstração de resultados do locador, bem como as respetivas depreciações dos ativos subjacentes ao contrato de locação operacional.

50º

Assim, uma vez que os rendimentos provenientes dos contratos de locação ascendem ao montante de € 3.288.016,47, e os gastos necessários à sua obtenção ao montante de € 2.294.727,93 (cfr. Documento n.º 2), determinado em conformidade com a alocação dos juros que se junta como Documento n.º 3 e com o detalhe dos gastos com depreciação de ativos objeto de contratos de locação operacional, apresentamos infra a tabela que reflete a diferença no tratamento fiscal caso o Reclamante fosse residente em território nacional:)(..)”

 

  1. À data da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, não havia sido proferida decisão sobre a referida reclamação graciosa apresentada pelo Requerente.

O Tribunal não dá como provados ou não provados quaisquer outros factos com relevância para o julgamento da causa.

Relativamente à fundamentação da matéria de facto, o Tribunal não está obrigado a pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do CPC) e dizer se a considera provada ou não provada (cf. ainda o artigo 123.º, n.º 2, do Código do Processo e Procedimento Tributário (CPPT), ex vi artigo 29º do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC).

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

A matéria de facto dada como provada baseia-se nos documentos juntos pelo Requerente bem como no processo administrativo, de que foi junta cópia pela AT, os quais, analisados de forma crítica, constituem a base da convicção do Tribunal quanto à realidade dos factos descrita supra.

 

VI – DISCUSSÃO DE DIREITO

 

O artigo 56º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”), consagra o princípio da proibição de restrições à livre prestação de serviços na União Europeia, estipulando o seguinte:

 

“Artigo 56.º (ex-artigo 49.º TCE)

1. No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado-Membro que não seja o do destinatário da prestação.”.

 

O artigo 63.º do mesmo Tratado estabelece, por sua vez, o princípio da proibição de restrições à livre circulação de capitais, dispondo o seguinte:

 

“Artigo 63.º (ex-artigo 56.º TCE)

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”

 

No caso sub judice, uma entidade residente na Irlanda e sem estabelecimento estável em Portugal realizou com diversas entidades residentes transações consistentes em locações financeiras e locações operacionais de equipamento informático (computadores).

As operações de locação operacional constituem transações de serviços não financeiros, efetuadas entre entidades pertencentes a Estados-Membros diferentes, aplicando-se-lhes o art.º 56º do TFUE; por sua vez, as operações de locação financeira são transações mistas na sua natureza, integrando uma componente de locação (serviço não financeiro), e uma componente de financiamento (movimentos de capital), ficando assim abrangidas tanto pelo art.º 56º como pelo art.º 63º do TFUE.

Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 94.º do Código do IRC, os rendimentos obtidos em Portugal por entidades não residentes “derivados do uso ou da concessão do uso de equipamento agrícola, industrial, comercial ou científico” ficam sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa geral de 25%, conforme previsto no n.º 5 do mesmo artigo.

Ainda no caso sub judice, esta retenção foi efetuada sobre os rendimentos pagos ao Requerente, tendo sido calculada, em todos os casos sobre os rendimentos brutos, i.e. sobre a totalidade do preço pago pelos adquirentes dos serviços ao Requerente, facto que não é controvertido.

Na Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) celebrada entre Portugal e a Irlanda, o artigo 12º regula a tributação de royalties, dizendo o nº 3 que “o termo ´royalties´, usado neste artigo significa as retribuições de qualquer natureza atribuídas pelo uso ou pela concessão do uso de um direito de autor sobre uma obra literária, artística ou cientifica, incluindo os filmes cinematográficos, bem como filmes ou gravações para transmissão pela rádio ou pela televisão, de uma patente, de uma marca de fabrico ou de comércio, de um desenho ou de um modelo, de um plano, de uma fórmula ou de um processo secreto, bem como pelo uso ou pela concessão do uso de um equipamento industrial, comercial ou cientifico ou por informações respeitantes a uma experiência adquirida no sector industrial, comercial ou cientifico”, de onde se extrai que os rendimentos em discussão no caso vertente, de acordo com a CDT celebrada entre Portugal e a Irlanda, são qualificados como royalties, aplicando-se-lhes o regime do respectivo art.º 12º.

Por efeito desta disposição, os rendimentos derivados do contrato de locação, pagos por sociedades portuguesas a uma sociedade irlandesa sem estabelecimento estável em território nacional estão, assim, sujeitos a tributação sob a forma de retenção na fonte sobre a totalidade do rendimento obtido em Portugal à taxa reduzida de 10%, em vez da taxa de 25% prevista no art.º 94º, n.º 4 do CIRC (por remissão para o art.º 87.º, nº 4 do mesmo código). Foi esta a taxa aplicada sobre os rendimentos pagos ao Requerente (facto dado como provado e não controvertido).

O Requerente alega, contudo, que o facto de o imposto ter sido liquidado sobre os rendimentos auferidos brutos, i.e. sem dedução dos gastos que lhes são imputáveis, constitui uma desigualdade de tratamento em relação às entidades residentes que efetuem as mesmas transações (as quais são tributadas, como se sabe, pelo “lucro tributável”, apurado nos termos do art.º 17º do CIRC) e, nessa medida, tal procedimento constitui uma restrição à liberdade de prestação de serviços, incompatível com o artigo 56º do TFUE, sendo que, no caso das locações financeiras, constitui igualmente uma restrição à livre circulação de capitais, consagrada no artigo 63º do mesmo tratado.

 O Tribunal de Justiça da União Europeia tem-se pronunciado sobre esta matéria em diversas ocasiões, entendendo-se por “matéria”, neste caso, a liberdade que os Estados-Membros têm de impor diferenças de tratamento fiscal entre residentes e não residentes, que afetem a liberdade de circulação de mercadorias, de prestação de serviços e de circulação de capitais, conexionadas com a diferente situação de facto em que as entidades residentes e não residentes se encontram, em termos de administração dos impostos. Além disso, o TJUE também já se pronunciou por várias vezes sobre a questão concreta que aqui nos ocupa, que é a de saber se, sendo aplicável o mecanismo da retenção de imposto na fonte sobre rendimentos pagos por uma entidade residente a uma entidade não residente, essa retenção deve ser efetuada sobre os rendimentos brutos ou sobre os rendimentos líquidos, ou seja deduzidos dos gastos que lhes sejam imputáveis.

A primeira decisão em que o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre a questão concreta em causa na presente lide foi o acórdão Gerritse.[2] No seu acórdão, o Tribunal resume a questão a julgamento da seguinte forma (parágrafo 254):

“24. Assim, há que considerar que o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se os artigos 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE) e 60.° do Tratado CE (atual artigo 50.° CE) se opõem a uma legislação nacional, como a em causa no processo principal, que, regra geral, por um lado, toma em consideração, quando da tributação dos não residentes, os rendimentos brutos sem dedução das despesas profissionais quando os residentes são tributados sobre os seus rendimentos líquidos após dedução das suas despesas profissionais e, por outro, sujeita os rendimentos dos não residentes a um imposto definitivo à taxa uniforme de 25%, retido na fonte, quando os rendimentos dos residentes são tributados de acordo com uma tabela progressiva que inclui uma parte de base isenta.[3]

Quanto à primeira das questões formuladas, o Tribunal respondeu da seguinte forma:

“27. A título preliminar, importa observar que as despesas profissionais em causa estão diretamente relacionadas com a actividade que esteve na origem dos rendimentos tributáveis na Alemanha, pelo que os residentes e os não residentes estão, sob este aspeto, em situação comparável.

28. Nestas condições, uma regulamentação nacional que recusa aos não residentes, em matéria de tributação, a dedução das despesas profissionais, ao invés concedida aos residentes, corre o risco de funcionar principalmente em detrimento dos nacionais de outros Estados-Membros e comporta, portanto, uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, em princípio contrária aos artigos 59.° e 60.° do Tratado.” [4]

Pouco tempo depois, no processo C-290/04[5], o Tribunal de Justiça voltou a pronunciar-se sobre a mesma questão. Desta vez tratava-se de uma empresa sediada na Alemanha que havia pago preços de serviços a uma entidade residente nos Países Baixos, sem efetuar a retenção na fonte que era devida. Quando o imposto devido e não retido foi oficiosamente liquidado ao adquirente alemão, e tendo-o sido sobre os rendimentos brutos e não líquidos, a empresa pagadora dos rendimentos recorreu à via judicial. Tendo o tribunal alemão apresentado ao TJUE um pedido de decisão prejudicial, entre as várias questões colocadas constavam as seguintes duas questões:

  1.  “Os artigos 59.° e 60.° do Tratado CE devem ser interpretados no sentido de que as despesas efetuadas pelo credor de uma remuneração estabelecido noutro Estado da UE, com referência à actividade que deu lugar à remuneração na Alemanha, devem ser tidas em conta pelo devedor da remuneração para efeitos da retenção na fonte referida no § 50a, n.° 4, da EStG, deduzindo o imposto, dado que, também no caso dos residentes na Alemanha, apenas os rendimentos líquidos, após dedução das despesas, estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento?” [6]
  2. Para evitar que os artigos 59.° e 60.° do Tratado CE sejam violados é suficiente que, na retenção na fonte prevista no § 50a, n.° 4, da EStG, apenas sejam tidas em conta, para efeitos de dedução do imposto, as despesas efetuadas no interior do país com referência à actividade que confere direito à remuneração que o credor da remuneração estabelecido noutro Estado da UE tenha comprovado perante o devedor da remuneração, e possam ser tidas em conta outras eventuais despesas num processo subsequente de restituição?

A estas questões o Tribunal europeu deu as seguintes respostas:

“42. Deve salientar‑se, antes de mais, que o Tribunal de Justiça já foi chamado a pronunciar‑se sobre a questão de saber se os artigos 59.° e 60.° do Tratado CE se opõem a uma legislação fiscal nacional que, regra geral, toma em conta, quando da tributação dos não residentes, os rendimentos brutos, sem dedução das despesas profissionais, quando os residentes são tributados pelos seus rendimentos líquidos, após dedução dessas despesas (acórdão Gerritse, já referido, n.° 55).

43. No acórdão Gerritse, já referido, o Tribunal de Justiça começou por declarar que as despesas profissionais mencionadas no processo em causa estavam diretamente relacionadas com a actividade que produziu os rendimentos tributáveis, de modo que os residentes e os não residentes estavam a este respeito numa situação comparável. De seguida respondeu afirmativamente à questão prejudicial que lhe foi submetida, declarando que uma regulamentação nacional que recusa aos não residentes, em matéria de tributação, a dedução das despesas profissionais, concedida em contrapartida aos residentes, comporta uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, em princípio contrária aos artigos 59.° e 60.° do Tratado CE. O Tribunal de Justiça não se pronunciou, no entanto, sobre o ponto de saber em que fase do procedimento de tributação devem as despesas profissionais efetuadas por um prestador de serviços ser deduzidas, no caso de diferentes fases poderem entrar em linha de conta.[7]

No caso C‑345/04,[8] o Tribunal de Justiça resume a questão prejudicial nos seguintes termos (parágrafo 18):

 “Com a sua questão, o tribunal de reenvio pretende saber se o artigo 59.° do Tratado se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa na lide principal, que, no caso de um contribuinte parcialmente sujeito a imposto, que pede o reembolso do imposto sobre as sociedades retido na fonte, subordina a possibilidade de tomar em conta as despesas profissionais efetuadas no âmbito das atividades que originaram receitas no território desse Estado à dupla condição de essas despesas terem uma relação direta com essas receitas e de serem superiores a metade dessas receitas.” [9]

O Tribunal responde a esta questão do seguinte modo:

 “23. No que respeita às despesas profissionais diretamente relacionadas com a actividade exercida por um não residente num Estado‑Membro e que aí tenha gerado rendimentos tributáveis, devem, em princípio, ser levadas em conta nesse Estado se os residentes forem tributados pelos seus rendimentos líquidos, após dedução dessas despesas. Com efeito, no n.° 27 do acórdão Gerritse, já referido, o Tribunal de Justiça considerou que, para efeitos de essas despesas serem tomadas em conta, os residentes e os não residentes estão em situação comparável. Por conseguinte, na medida em que um Estado‑Membro concede aos residentes a faculdade de deduzirem essas despesas, não pode, em princípio, excluir a possibilidade de os não residentes as tomarem em conta.

24. Assim, no exercício da sua competência fiscal, o Estado no território do qual a actividade gerou rendimentos tributáveis deve prever que as despesas diretamente ligadas a essa actividade possam ser tomadas em conta na tributação do não residente. A esse respeito, há que precisar, contudo, que o direito comunitário não se opõe a que um Estado‑Membro vá mais longe, permitindo que sejam tomadas em conta despesas que não têm essa relação (vd., neste sentido, acórdão FKP Scorpio Konzertproduktionen, já referido, n.os 50 a 52).”

Finalmente, no acórdão Brisal,[10] o Supremo Tribunal Administrativo Português formulou perante do TJUE a seguinte questão prejudicial:

“O artigo 56.° do TFUE opõe‑se à legislação fiscal interna segundo a qual as instituições financeiras não residentes em território português estão sujeitas a imposto sobre o rendimento de juros auferidos nesse território e retido na fonte à taxa definitiva de 20% (ou a taxa menor caso exista convenção para evitar dupla tributação), taxa que incide sobre o rendimento ilíquido, sem possibilidade de dedução das despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade financeira exercida, ao passo que os juros auferidos por instituições financeiras residentes são incorporados no rendimento global tributável, procedendo‑se à dedução das despesas associadas à atividade exercida quando se determina o lucro para efeitos de tributação em IRC, incidindo, assim, a taxa geral de 25% sobre o rendimento de juros líquido?”

Sobre a questão, respondeu o Tribunal de Justiça:

“23      No que diz respeito ao segundo aspeto do pedido de decisão prejudicial, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou, quanto à tomada em consideração das despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade exercida, que os prestadores residentes e os prestadores não residentes se encontram numa situação comparável (v., neste sentido, acórdãos de 12 de junho de 2003, Gerritse, C‑234/01, EU:C:2003:340, n.° 27; de 6 de julho de 2006, Conijn, C‑346/04, EU:C:2006:445, n.° 20; e de 15 de fevereiro de 2007, Centro Equestre da Lezíria Grande, C‑345/04, EU:C:2007:96, n.° 23).

24      O Tribunal de Justiça concluiu que o artigo 49.° CE se opõe a uma legislação nacional que, regra geral, ao tributar os não residentes, toma em conta os rendimentos ilíquidos sem dedução das despesas profissionais, enquanto os residentes são tributados pelos seus rendimentos líquidos, após dedução dessas despesas (acórdãos de 12 de junho de 2003, Gerritse, C‑234/01, EU:C:2003:340, n.os 29 e 55; de 3 de outubro de 2006, FKP Scorpio Konzertproduktionen, C‑290/04, EU:C:2006:630, n.° 42; e de 15 de fevereiro de 2007, Centro Equestre da Lezíria Grande, C‑345/04, EU:C:2007:96, n.° 23).

25      No caso vertente, tendo em conta o argumento invocado, nomeadamente pela República Portuguesa, segundo o qual as prestações de serviços das instituições financeiras devem, à luz do princípio da livre prestação de serviços consagrado no artigo 49.° CE, em princípio, ser tratadas de maneira diferente das prestações de serviços noutros domínios de atividade, na medida em que não é possível fazer qualquer ligação característica entre os custos suportados e os rendimentos de juros obtidos, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se a jurisprudência referida no número anterior pode ser transposta para o processo principal.

26      A este respeito, há que precisar que o Tribunal de Justiça não distingue entre as diferentes categorias de prestações de serviços. Além disso, o artigo 49.° CE, lido em conjugação com o artigo 50.° CE, visa indistintamente todas as categorias de prestações de serviços enumeradas nesta última disposição. Apenas o artigo 51.°, n.° 2, CE dispõe que a liberalização dos serviços bancários ligados a movimentos de capitais se deve efetuar de harmonia com a liberalização da circulação dos capitais. Ora, as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de capitais não contêm nenhum elemento suscetível de corroborar a tese segundo a qual os serviços bancários devem ser tratados de maneira diferente das outras prestações de serviços pelo facto de ser impossível estabelecer qualquer ligação característica entre os custos suportados e os rendimentos de juros obtidos.

27      Por conseguinte, em princípio, as prestações de serviços efetuadas por instituições financeiras não podem, à luz do princípio da livre prestação de serviços consagrado no artigo 49.° CE, ser tratadas de maneira diferente das prestações de serviços noutros domínios de atividade.

28      Daqui decorre que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, por força da qual as instituições financeiras não residentes são tributadas pelos rendimentos de juros obtidos no interior do Estado‑Membro em causa, sem lhes ser dada a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em causa, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes, constitui uma restrição à livre prestação de serviços, proibida, em princípio, por força do artigo 49.° CE.”[11]

Podemos, assim, concluir existir neste momento, por parte do TJUE, uma jurisprudência clara e inequívoca no sentido de que os Estados-Membros devem providenciar, quer no plano legislativo quer no plano administrativo, a possibilidade de a retenção na fonte a título definitivo sobre os rendimentos pagos a não residentes incidir sobre rendimentos líquidos, i.e., sobre os rendimentos deduzidos dos gastos que lhe estão diretamente associados.

É certo que o Tribunal de Justiça salvaguarda a possibilidade de serem admissíveis as discriminações descritas no caso de o Estado-Membro invocar e se verificarem razões imperiosas de interesse geral que as justifiquem, sendo que, nesse caso, é ainda necessário que a aplicação dessa restrição seja adequada a garantir a realização do objetivo prosseguido e não exceda o necessário para o alcançar (acórdão Brisal, parágrafo 29.)

Mas no caso sub judice a Autoridade Tributária não invoca quaisquer razões imperiosas para justificar o regime discriminatório imposto.

Consentaneamente com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Administrativo tem decidido no mesmo sentido casos idênticos que lhe têm sido submetidos para apreciação e julgamento.

Assim, no acórdão proferido pelo STA no processo 0298/13 (STA, acórdão de 08.03.2017. Rel: Dulce Neto), em que foi apresentando perante o TJUE um pedido de decisão prejudicial que deu origem ao processo C-18/15 (acórdão Brisal, já citado), a questão prejudicial foi colocada pelo Tribunal nos seguintes termos:

“Em causa está um contrato de financiamento externo celebrado pela A..., no âmbito do qual esta sociedade residente reteve na fonte, a título definitivo, e entregou à administração tributária portuguesa a quantia de 59.386,00 € de imposto que incidiu sobre o montante de 350.806,00 € de juros vencidos que pagou àquela entidade bancária não-residente, numa tributação transfronteiriça operada ao abrigo do art.º 80º, nº 2, alínea c), do CIRC (na redacção em vigor à data dos factos.).

A impugnação teve por fundamento a ilegalidade desses atos de retenção na fonte de imposto, não porque fossem inadmissíveis à luz do Código do IRC, mas porque violadores de liberdades fundamentais vigentes na União Europeia e consagradas nos artigos 56º e 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), face ao distinto regime fiscal aplicável às instituições bancárias residentes e que encontra previsão no art.º 90º, nº 1, al. a), do CIRC.

Explicitando melhor: a impugnação alicerçou-se no facto de os juros obtidos em Portugal por instituições financeiras não-residentes estarem submetidas a uma tributação específica de retenção na fonte a uma taxa liberatória de 20% (ou a taxa menor caso seja acionada Convenção para eliminação de dupla tributação) que incide sobre rendimentos ilíquidos[12] (razão por que os custos de financiamento associados ao empréstimo e as despesas relacionadas com a atividade que gerou esses juros não podem ser deduzidos), enquanto os juros obtidos por instituições financeiras residentes estão isentos do regime de retenção na fonte e, embora submetidos a tributação a uma taxa superior (25%), ocorre a dedução de todos os custos de financiamento associados ao empréstimo e a dedução das despesas diretamente relacionadas com essa atividade, incidindo, assim, a tributação sobre os rendimentos líquidos.”

Elaborando já sobre a questão, o STA judicia, referindo-se ao processo C-18/15 julgado pelo TJUE:

“No fundo, o TJUE reitera, na 1ª asserção, a posição que tem assumido no sentido de que uma limitação à livre prestação de serviços é aceite apenas em condições específicas, clarificando que o art.º 49º do TCE não se opõe a uma legislação nacional por força da qual a remuneração a instituições financeiras não-residentes está sujeita a retenção na fonte de imposto, ao passo que a remuneração a instituições financeiras residentes não está sujeita a essa retenção. E, na 2ª asserção, responde à questão que verdadeiramente foi colocada pelo STA, declarando que a circunstância de as instituições financeiras não-residentes, contrariamente às instituições financeiras residentes, não terem a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade financeira em questão constitui uma restrição à livre prestação de serviços, restrição que não pode ser aceite por não se mostrar validamente justificada.[13]

E não é validamente justificada porque, segundo assevera o TJUE, não colhem as razões apresentadas pela administração tributária portuguesa para sustentar o tratamento diferenciado e que se traduziriam no seguinte: (i) as instituições financeiras não-residentes estão sujeitas a uma taxa de tributação mais favorável do que a aplicada às instituições residentes; (ii) necessidade de preservar a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados - Membros; (iii) necessidade de evitar a dupla dedução das despesas profissionais em causa; (iv) necessidade de garantir a eficácia da cobrança do imposto.”

Noutro acórdão mais recente do mesmo tribunal (STA, acórdão de 29.06.2022, proc. 08/21.2BALSB. Rel: Gustavo Lopes Courinha), este tratando-se de um acórdão uniformizador de jurisprudência, estava em causa “a questão de saber se as instituições financeiras não residentes e sem estabelecimento estável no território português podem ser tributadas pelos rendimentos de capitais obtidos em Portugal através de retenção na fonte, a título definitivo, nos termos dos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, sem a possibilidade de deduzirem os encargos diretamente relacionadas com a sua actividade, ao contrário do que sucede com as entidades residentes relativamente às quais a tributação incide sobre o lucro tributável.”

O Tribunal entendeu, em linha com a jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, que “a circunstância de a norma aplicada [art.º 80º, nº 2, al. c) do CIRC] não permitir deduzir as aludidas despesas, constitui discriminação incompatível com uma liberdade económica fundamental da União Europeia, da qual resulta a necessidade de desaplicar essa norma do CIRC e o dever, para a administração tributária portuguesa, de tributar apenas os rendimentos líquidos. E, por tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os atos de retenção de imposto na fonte.”

Da jurisprudência do STA citada (à qual ainda poderíamos somar o acórdão do STA de 22-03-2017, proc. 0165/13. Rel: Pedro Delgado), perfeitamente em linha, como se viu, com a posição repetidamente afirmada do TJUE, também é possível concluir que são incompatíveis com os princípios da livre prestação de serviços e da livre circulação de capitais as liquidações de IRC através de retenção na fonte a título definitivo que incidem sobre rendimentos brutos, não se permitindo ao sujeito passivo a dedução dos gastos diretamente relacionados com tais rendimentos.

Não pode haver dúvida em concluir, pois, que são ilegais, por contrárias aos artigos 56º e 63º do TFUE, as liquidações impugnadas, ao incidirem sobre os rendimentos pagos ilíquidos dos gastos que lhes estão diretamente associados. Tal como se afirmou no primeiro dos acórdãos citados, “[m]ais se entendeu no referido aresto que «a circunstância de a norma aplicada [art.º 80º, nº 2, al. c) do CIRC] não permitir deduzir as aludidas despesas, constitui discriminação incompatível com uma liberdade económica fundamental da União Europeia, da qual resulta a necessidade de desaplicar essa norma do CIRC e o dever, para a administração tributária portuguesa, de tributar apenas os rendimentos líquidos. E, por tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os atos de retenção de imposto na fonte.”

Clarificada a questão substancial, e passando ao plano procedimental, assinala-se que a jurisprudência do TJUE deixa abertas duas vias para efetivar a tributação sobre os rendimentos líquidos (pagos por entidades residentes a não residentes e tributados através de retenção na fonte): a determinação do rendimento líquido pelo substituto tributário, solução que colocaria todo o peso administrativo de uma complexa operação de liquidação sobre o substituto; e o pedido de reembolso apresentado, à posteriori, pelo sujeito passivo substituído perante a administração tributária do Estado-Membro da fonte (vd. acórdão Brisal, parágrafo 42).

A Autoridade Tributária alega em sua defesa (artigo 52º da resposta) que o Requerente, tanto na reclamação graciosa que apresentou ao diretor de finanças de Lisboa, como no pedido de pronúncia arbitral, “em lugar de peticionar a dedução das despesas realizadas conexas com a obtenção dos rendimentos devidamente comprovadas, cinge o objeto do pedido à anulação dos atos tributários de retenção na fonte indevidamente suportados, a título definitivo com o consequente reembolso de determinado montante e, bem assim, o pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.”

Ora, analisada a reclamação graciosa, verifica-se que tal alegação não corresponde à verdade. Com efeito, o Requerente solicitou o reembolso parcial do imposto indevidamente suportado (artigo 28º da reclamação graciosa), tendo calculado e efetuado um esforço percetível e claro de demonstrar o cálculo do rendimento líquido sobre o qual considerou deverem incidir as retenções na fonte. Em face da insuficiência dos  elementos probatórios carreados, cabia à Autoridade Tributária, ao abrigo quer do princípio do inquisitório (consagrado no art.º 58º da LGT) quer do princípio da colaboração (consagrado no art.º 59º da mesma lei) informar o Requerente de quais os elementos probatórios adicionais que deveria fornecer ao procedimento, o que aquela não fez.

A Autoridade Tributária alega ainda (artigo 62º da resposta) que a discriminação se justificaria porque “a verdade é que se aos residentes é permitida a dedução de alguns encargos, a taxa aplicável (21% de IRC + 7% de Derrama) é superior à aplicável aos não residentes, nomeadamente as taxas reduzidas estabelecidas nas CDT´s (e que no presente caso ascendeu a 10%), sendo ainda possível a estes eliminar a dupla tributação no seu Estado de residência através do mecanismo do crédito de imposto por dupla tributação internacional.

Ora, o Tribunal de Justiça recusa esta argumentação, tendo declarado reiteradamente (acórdão Brisal, parágrafo 32) que “um tratamento fiscal desfavorável, contrário a uma liberdade fundamental, não pode ser considerado compatível com o direito da União pelo facto de, eventualmente, existirem outros benefícios”.  O TJUE cita, neste sentido, os acórdãos de 01.07.2010, Dijkman e Dijkman Lavaleije, C 233/09 (par. 41), e de 18.10. 2012, C 498/10 (par. 31).

Assim, perante a robustez e constância da jurisprudência citada, tanto do TJUE como do STA, e a similitude das situações e questões colocadas, tendo em conta a inexistência de razões que afastem a aplicação ao caso vertente da jurisprudência explanada e ainda em vista do princípio da aplicação uniforme do direito pelo juiz artigo 8º, n.º 3 do Código Civil, impõe-se que também nos presentes autos se conclua da mesma forma e se dê ao litígio a mesma solução, de considerar os atos de liquidação impugnados ilegais e inválidos na sua totalidade, deixando a cargo da Autoridade Tributária a prática de novos atos de liquidação, se para tal ainda estiver em tempo.

 

VII – CONCLUSÃO

  1. QUANTO AO PEDIDO DE ANULAÇÃO DOS ATOS DE RETENÇÃO NA FONTE DE IRC A TÍTULO DEFINITIVO

Nos acórdãos do STA citados acima (proc. 0298/13 (STA, acórdão de 08.03.2017; e proc. 08/21.2BALSB, acórdão de 29.06.2022), foi discutida a questão da solução processual a dar ao litígio em face da constatada e demonstrada ilegalidade das retenções na fonte.

No primeiro dos arestos citados, afirmou-se quanto a esta questão:

“(...) [P]or tal motivo, encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os atos de retenção de imposto na fonte. Quantificação que exige a prática de novo ato tributário, sendo impraticável a reforma dos atos impugnados porque o tribunal não pode substituir-se à administração na fixação de outra matéria tributável, sob pena de estar a invadir o núcleo essencial da função administrativa-tributária, substituindo-se à administração na tarefa de determinar e fixar as despesas que as entidades financeiras não-residentes podem deduzir aos rendimentos auferidos em Portugal por forma a tornar a retenção na fonte compatível com o artigo 49º do TCE.

O que determina o provimento do recurso e a revogação da sentença recorrida, devendo, em substituição, ser julgada procedente a impugnação judicial e anulados os atos impugnados.”[14]

No segundo acórdão citado, considerou-se por seu turno:

Este Supremo Tribunal já teve, por inúmeras vezes, oportunidade de esclarecer as circunstâncias em que entende ser de anular parcialmente um ato tributário. E tais circunstâncias respeitam à divisibilidade do ato tributário anulado – “há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é suscetível de o afetar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado” (Acórdão de 5 de Dezembro de 2018, no Processo n.º 888/05, entre muitos outros - disponível em www.dgsi.pt) – e, mais concretamente, à possibilidade de redução do ato à parte não inquinada “por simples operação aritmética” (Acórdão de 12 de julho de 2017, no Processo n.º 636/17, entre muitos outros - disponível em www.dgsi.pt).

Ora, a razão para este critério, logo se antevê, é que: “Não constituindo os tribunais órgãos com competência para a tributação, não podem eles assumir a função de mecanismo ou aparelho primário de indagação oficiosa de eventuais despesas dedutíveis ou a função de receção e seleção das despesas que as entidades não-residentes queiram apresentar e deduzir de forma a serem tributadas pelo rendimento líquido, sob pena de afronta do núcleo essencial da função administrativa-tributária.”, mais se explicando que, “pois como já explicou este Supremo Tribunal, “Tal violaria o núcleo essencial dos limites da competência dos tribunais tributários, dado que assim se deslocaria para a proteção jurídica destes tribunais a actividade administrativa da esfera da administração tributária, violando grosseiramente os princípios da indisponibilidade e da tipicidade de competências, bem como o princípio da separação de poderes constitucionalmente garantido.” – cfr. Acórdão de 22 de Março de 2017, lavrado no Processo n.º 165/13, disponível em www.dgsi.pt.

Quer dizer, quando a decisão judicial tributária ultrapassar aquilo que é a sua função meramente anulatória – e que é estruturante da instância judicial tributária – e implicar, ao invés, uma iniciativa de lançamento/liquidação (para mais, com reformulação integral da base tributável, como é o caso) – então a anulação parcial torna-se impraticável e só restará a anulação total do ato tributário[15].

IX. Cabe, pois, questionar se tais critérios, uma vez aplicados ao caso, permitem concluir no sentido da anulação parcial dos atos de retenção definitiva na fonte, salvaguardando a possibilidade de, em execução de julgados, a AT poder refazer a liquidação, em termos conformes ao Direito Europeu, i.e., em consideração das despesas diretamente relacionadas com a obtenção dos rendimentos?

Ora, não vemos como tal possa suceder.

É que não nos encontramos diante um ato qualquer apenas parcialmente incorreto. A retenção na fonte, que é definitiva e configura o ato de liquidação e pagamento do imposto, encontra-se totalmente errada.

Não é possível extrair da retenção na fonte efectuada a medida exata da ilegalidade, muito menos por “simples operações aritméticas”. Apenas é possível concluir, como fez a sentença recorrida, que a tributação assim calculada incidiu sobre o rendimento bruto, quando deveria ter incidido sobre o rendimento líquido, de modo a respeitar as exigências do Direito Europeu.

Estamos, com efeito, diante de um caso de substituição tributária total, pelo que o substituto tributário não estaria em condições de proceder ao cálculo da base tributável líquida exigida pelos cânones da Não Discriminação – aliás, por alguma razão, os casos de retenção liberatória na fonte incidem, invariavelmente, sobre rendimentos brutos e não líquidos.

Ora, se o substituto tributário, numa retenção liberatória na fonte, não o conseguiu, nem está em condições de fazer, muito menos o pode fazer este ou qualquer outro Tribunal Tributário.
X. A conclusão inevitável é a de que só o contribuinte e a AT estariam em condições de o fazer.
Mas, ao passo, que o primeiro não o podia fazer por a tal obstar a legislação nacional, a AT já o podia (e pode) fazer, em conformidade com o Direito Europeu. Simplesmente, para tal, teria de emitir um novo ato de liquidação oficiosa, precedido de um cálculo complexo das despesas diretamente incorridas com a obtenção dos rendimentos brutos, a partir de informação fornecida pelo sujeito passivo e, se necessário, com troca de informações com as suas congéneres germânicas.
Em suma, a AT teria de proceder a um novo ato de liquidação, de acordo com as exigências europeias. Sucede que um tal ato de liquidação teria sempre de ter lugar dentro dos prazos de caducidade, o que não é garantido que possa ainda suceder.

Assim sendo, é inevitável a conclusão de que as tarefas que se exigiriam aos Tribunais no âmbito de uma anulação nos termos pretendidos pela decisão arbitral recorrida são incompatíveis com as funções por estes desempenhadas.

(...)

As retenções liberatórias na fonte relativas a rendimentos de capitais auferidos por não residentes, declaradas ilegais por desconformidade ao Direito Europeu, por não incidirem sobre os rendimentos líquidos, mas apenas sobre os rendimentos brutos, só podem ser objeto de anulação integral[16].

 

Também no caso sub judice o Tribunal arbitral considera não poder, sob pena de violar os limites da função jurisdicional, substituir-se à administração tributária na função, a desempenhar em colaboração com o contribuinte, de determinar os rendimentos líquidos que correspondem aos montantes brutos sobre os quais incidiram as retenções na fonte agora julgadas ilegais. E sendo assim o Tribunal anula os atos impugnados na sua totalidade.

Por tudo o exposto, o Tribunal Arbitral julga procedente o pedido de anulação, com base em violação dos artigos 56º e 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e decide anular na sua totalidade os atos de retenção na fonte de IRC a título definitivo impugnados no presente processo.

Conforme declarado no acórdão do STA acima citado (processo 0298/13), incumbe à AT, em sede de execução de julgados, validar o concreto montante das despesas diretamente relacionadas com a atividade do Requerente e que foram incorridas para a obtenção dos rendimentos auferidos em território português, em cumprimento do disposto no artigo 24.º do RJAT e do artigo 609.º, n.º 2 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Não cumpre anular o “ato” de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa, dado tratar-se de uma mera ficção jurídica, destinada a abrir a via contenciosa, servindo, no caso do processo arbitral tributário, para a fixação do dies a quo do prazo para apresentação do pedido arbitral, nos termos do art.º 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

  1. QUANTO AO PEDIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS

O Requerente solicitou ainda o reembolso do imposto indevidamente retido e o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo, estes últimos, do art.º 43º da LGT.

Decorre do art. 43º, 1 da LGT que são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".

Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Tudo isso condicionado pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços.

Nas situações de retenção na fonte está, em princípio, afastada a possibilidade de existência de erro imputável aos serviços, porquanto a determinação da matéria coletável e liquidação do imposto são efetuadas pelo próprio contribuinte ou por substituto, e não pela AT. Nessas situações o erro imputável aos serviços só passa a ser passível de qualificação enquanto tal, ou seja, imputabilidade à AT, no momento em que podia ter tomado posição conforme o direito e não o fez, ou seja, apenas com a competente e atempada impugnação administrativa os serviços da AT ficam em condições de percecionar, ponderar, conhecer, corrigir e sanar uma cometida ilegalidade. Logo, existindo ilegalidade de retenções na fonte, por força de violação do direito da União Europeia, e tendo sido apresentada reclamação graciosa com esse desiderato, são devidos juros indemnizatórios a partir da data da presunção do seu indeferimento.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, e em aplicação do art. 24º, 1, b) e 5 do RJAT, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, relevando como termo inicial da sua contagem a data da formação do indeferimento tácito do pedido formulado no procedimento de reclamação graciosa desencadeado pelo Requerente, tal como decidido no acórdão do STA citado, de 08.03.207, proc. 0298/13.

O valor dos juros deve ser calculado sobre a importância de IRC retido que venha a ser determinada como tendo sido liquidada em excesso pelos substitutos tributários, a determinar em sede de execução do presente julgado.

 

VIII – DECISÃO

De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação improcedente in totum, com a consequente:

  1. Anulação das retenções na fonte de IRC efetuadas à Requerente acima identificadas, respeitantes ao ano 2021;
  2. Reembolso do IRC retido na fonte que vier a ser determinado pela Requerida em execução do presente julgado, como liquidado em excesso, por não ter sido considerado o valor líquido dos rendimentos auferidos pelo Requerente;
  3. Condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, a partir da data do indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida contra as mencionadas retenções na fonte, calculados sobre o valor que vier a ser determinado como tendo sido pago em excesso, em fase de execução desta decisão arbitral.

IX - VALOR DO PROCESSO

Em decorrência da solução adotada, julgada única conforme ao Direito, de anulação total dos atos impugnados, e em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, há que corrigir o valor do pedido e fixá-lo em 1.128.200,21 euros (um milhão, cento e vinte e oito mil e duzentos euros e vinte e um cêntimos), conforme fundamentado no despacho de 18.03.2024, porquanto o referido valor é o que corresponde à totalidade dos atos de retenção na fonte cuja anulação o Requerente pretende.

Com efeito, o artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, para o qual remete, de forma expressa, o artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, determina que “[o]s valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei”, quando seja impugnada a liquidação, é o da importância cuja anulação se pretende. Nestes termos, se a anulação é total, como resulta do entendimento jurisprudencial consolidado do Supremo Tribunal Administrativo, o valor da causa deve também corresponder à totalidade das retenções na fonte efetuadas, no citado valor de 1.128.200,21 euros, que, assim, se considera o valor da utilidade económica do pedido, independentemente de, em momento posterior, ser efetuada uma nova liquidação, com a consequente não restituição de uma parte dessa importância. Isto, com as legais consequências, nomeadamente na fixação da taxa de arbitragem.

 

X - CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 15.606,00 euros (quinze mil, seiscentos e seis euros), nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida Autoridade Tributária.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 12 de abril de 2024

Os Árbitros,

 

(Alexandra Martins – árbitro presidente)

 

 

 (Nina Aguiar – árbitro vogal, relatora)

 

 

(José Luís Ferreira – árbitro vogal)

 

 



[1] A Reclamação Graciosa foi apresentada em 14.12.2022, pelo que, após o prazo de quatro meses previsto no artigo 57.º, n.ºs 1 e 5 da LGT, se presumiu indeferida em 14.04.2023.

[2] Caso C-234/01, Arnoud Gerritse, acórdão do TJUE de 12.06.2003, ECLI:EU:C:2003:340.

[3] Realce nosso.

[4] Realce nosso.

[5] Caso C-290/04, FKP Scorpio Konzertproduktionen, acórdão do TJUE de 03.10.2006, ECLI:EU:C:2006:630.

[6] Realce nosso.

[7] Realce nosso.

[8] Caso C-345/04, Centro Equestre da Lezíria Grande, acórdão do TJUE de 15.02.2007, ECLI:EU:C:2007:96

[9] Realce nosso.

[10] Caso C-18/15, Brisal, acórdão do TJUE de 13.07.2016, ECLI:EU:C:2016:549.

[11] Realce nosso.

[12] Realce nosso.

[13] Realce nosso.

[14] Realce nosso.

[15] Realce nosso.

[16] Realce nosso.