Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 446/2023-T
Data da decisão: 2024-04-11  IVA  
Valor do pedido: € 3.024.968,24
Tema: IVA – Locação financeira – Sujeitos passivos mistos – Dedução parcial –Coeficiente de imputação específico.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

  1. O método de afectação real (coeficiente de imputação específico) previsto no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, tem suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, está em conformidade com a jurisprudência do TJUE no acórdão Banco Mais, proferido em 10 de Julho de 2014, no âmbito do processo C‑183/13 e não viola os princípios da legalidade, igualdade e neutralidade.
  2. Para afastar a aplicação do método de afectação real e deduzir o IVA referente a recursos indiferenciados, suportados quanto à parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito de contratos de locação financeira com a amortização de capital, é necessário que o sujeito passivo prove que a utilização daqueles recursos não foi sobretudo afecta ao financiamento e gestão dos contratos de locação financeira mas sim à actividade de disponibilização dos bens locados.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Tomás Castro Tavares e Pedro Miguel Bastos Rosado, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2023... e do acto de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), com o n.º..., referente ao período de Dezembro de 2020.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral apresentado pelo Requerente em 19 de Junho de 2023, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

            3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 9 de Agosto de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

            4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 30 de Agosto de 2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

            5. Em 4 de Outubro de 2023, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo.

 

            6. Em 23 de Fevereiro de 2024, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual foi inquirida a testemunha arrolada pelo Requerente. Naquela reunião foi ainda prorrogado por dois meses o prazo de arbitragem, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

            7. As partes apresentarem alegações escritas, tendo reiterado as posições já defendidas nos autos.

 

II. SANEAMENTO

 

            8. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas. Não existem nulidade, excepções ou outros vícios ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            9. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O Requerente é uma instituição financeira abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
  2. No desenvolvimento da sua actividade o Requerente realiza simultaneamente operações que conferem o direito à dedução do IVA (artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA) e operações que não conferem tal direito (artigo 9.º, n.º 27 do Código do IVA), razão pela qual assume a natureza de sujeito passivo misto;
  3. Nas operações que não conferem o direito à dedução do IVA suportado estão, entre outras, operações de financiamento, de concessão de crédito e operações associadas a pagamentos;
  4. Nas operações que conferem o direito à dedução do IVA suportado estão, entre outras, operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos;
  5. Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa e exclusiva entre as aquisições de bens e serviços (inputs) e as operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, do Código do IVA;
  6. Em resultado da aplicação do método da imputação directa o Requerente deduziu integralmente o IVA suportado a montante, designadamente com a aquisição de viaturas objecto de contratos de locação financeira;
  7. Em resultado da aplicação do método da imputação directa o Requerente não deduziu qualquer montante de IVA relativamente a aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução;
  8. Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa, embora não exclusiva, entre as aquisições de bens e serviços (inputs) e as operações activas (outputs) por si realizadas e em que, para além disso, logrou determinar critérios objectivos do nível de utilização efectiva, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da afectação real previsto na primeira parte, do n.º 2, do artigo 23.º do Código do IVA, o que sucedeu, nomeadamente, quanto aos encargos especificamente associados à aquisição de terminais de pagamento automático;
  9. Nas situações em que o Requerente identificou uma conexão directa, embora não exclusiva, entre as aquisições de bens e serviços (inputs) e as operações activas (outputs) por si realizadas, nas quais não logrou determinar critérios objectivos do nível de utilização efectiva, aplicou para efeitos de exercício do direito à dedução, o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA, o que sucedeu, nomeadamente, quanto aos encargos afectos indistintamente às diversas operações por si realizadas, tais como consumos de electricidade, água, papel, material informático ou telecomunicações;
  10. Em resultado da aplicação do método referido na alínea anterior, o Requerente aplicou uma percentagem de dedução de 9%, que resultou na dedução de IVA no montante de € 3.403.089,27, na autoliquidação IVA n.º..., referente ao período de tributação de Dezembro de 2020;
  11. O montante de dedução previsto na alínea anterior considerou apenas os juros e outros encargos relativos à actividade de locação financeira prosseguida pelo Requerente, desconsiderando o capital incluído nas rendas auferidas no âmbito de tal actividade;
  12. Em 2020, a carteira do Requerente ascendia a 8.522 contratos de locação financeira mobiliária, que representavam um capital vincendo total de € 571.743.147,90;
  13. Em 2020, os contratos de locação financeira relativos a automóveis ascendiam a cerca de € 195.197.941,80;
  14. Em 2020, os contratos de locação financeira relativos a equipamentos ascendiam a cerca de € 376.545.206,08;
  15. Em 2020, o Requerente tinha 8 colaboradores afectos à actividade de locação financeira, em regime de exclusividade, que são responsáveis pela contratação de locação financeira mobiliária e imobiliária, bem como pela prestação de serviço especializado pós-venda;
  16. Em 2020, o Requerente tinha 9 colaboradores afectos à actividade de locação financeira, em regime de não exclusividade, que são responsáveis pela coordenação e apoio à coordenação, pelo serviço especializado pós-venda, bem como pelos fluxos e activações financeiras;
  17. Em 2020, o Requerente tinha 858 colaboradores a exercer funções de gestão de cliente, que por serem o ponto de contacto preferencial dos clientes também tratam de questões referentes aos contratos de locação financeira;
  18. As operações realizadas pelo Requerente associadas à concessão de financiamento estão bastante automatizadas/informatizadas;
  19. As operações realizadas pelo Requerente associadas aos contratos de locação financeira dependem de uma maior intervenção humana e assumem um carácter mais personalizado e casuístico por parte dos colaboradores do Requerente;
  20. O Requerente não dispõe de uma contabilidade analítica que permita quantificar os recursos indiferenciados afectos à actividade de locação financeira e às suas diversas operações;
  21. Em 30 de Dezembro de 2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de IVA n.º ...;
  22. Em 20 de Fevereiro de 2023, o Requerente foi notificado do projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
  23. Em 21 de Março de 2023, o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa tramitada sob o n.º ...2023...;
  24. Em 19 de Junho de 2023, o Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

§2 – Factos não provados

 

            10. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se considera provado que os recursos indiferenciados foram predominantemente afectos à actividade de locação financeira e, nesta, assumiram uma utilização em grau/medida/intensidade superior quanto à disponibilização dos bens locados face ao financiamento e gestão dos contratos de locação financeira celebrados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

11. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. O Tribunal Arbitral não tem, contudo, um dever de se pronunciar quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

12. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame da prova documental produzida e da ponderação das declarações proferidas pela testemunha B..., que foram apreciadas e avaliadas com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

            13. Quanto ao concreto facto dado como não provado, julgou o Tribunal Arbitral não ter sido produzida prova que permitisse certificar o facto alegado no artigo 55.º do pedido arbitral no qual se refere que “No ano de 2020, as operações realizadas pela Requerente associadas à disponibilização e utilização dos bens locados consumiram mais recursos indiferenciados (i.e., consumos de eletricidade, água, papel, material informático [hardware e software], telecomunicações, etc.) do que as operações, igualmente realizadas pela Requerente, associadas ao financiamento propriamente dito.”.

 

14. Por um lado, e acima de tudo, porque inexistem elementos concretos e objectivos nos autos que permitam quantificar a medida da utilização de recursos indiferenciados em cada uma das áreas e, dessa forma, certificar a adesão à realidade da factualidade invocada pelo Requerente.

 

15. Por outro lado, porque a prova testemunhal produzida não permitiu suprir essa insuficiência, já que o depoimento da testemunha, apesar de demonstrar de forma séria, coerente e credível um conhecimento directo dos procedimentos do Requerente inerentes às operações de concessão de financiamento e de locação financeira, resumiu-se a revelar, nas palavras da própria, uma (mera) “intuição”, suportada pelo número de colaboradores alocados e pelo toner gasto, de que as actividades de contratação, formalização, operacionalização e utilização dos bens objecto de contratos de locação mobiliária consomem mais recursos indiferenciados do que as actividades associadas ao respectivo financiamento.

 

            16. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

            17. No presente processo cumpre sindicar a legalidade da aplicação aos recursos indiferenciados suportados pelo Requerente (inputs mistos), do método de dedução previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA, em virtude do qual foi apurada uma percentagem de dedução do IVA de 9%, no montante de € 3.403.089,27, relativamente à declaração periódica de IVA de Dezembro de 2020.

 

            18. No entender do Requerente, a aplicação daquele método é ilegal, já que deveria ter sido aplicado o método pro rata geral estabelecido no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, nos termos do qual deveria ter sido incluído no numerador e denominador da fracção de cálculo, para além dos juros e encargos similares, a componente do capital associada aos contratos de locação financeira, o que determinaria uma percentagem de dedução do IVA de 17%, no montante de € 6.428.057,51, na declaração periódica de IVA de Dezembro de 2020.

 

            19. Para sustentar a sua posição o Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

  • A aplicação do método de dedução previsto no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, ao tributar a totalidade das rendas provenientes de contratos de locação financeira e ao vedar a dedução do IVA suportado com os inputs relacionados com essa actividade, viola o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA;
  • De acordo com o Requerente, o respeito pelos ditames do princípio da neutralidade impunha a dedução do IVA suportado com os inputs na proporção das receitas provenientes das rendas de locação financeira, sob pena de a tributação ser desproporcional;
  • Para o Requerente, a imposição de aplicação de um determinado método de dedução, não previsto no Código do IVA, através de Circular da AT, viola o princípio da legalidade na dimensão material de tipicidade prevista no artigo 103.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e na dimensão formal de reserva de lei prevista no artigo 112.º, n.º 5 e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP;
  • No entender do Requerente, a impossibilidade de dedução do IVA na proporção das receitas provenientes das rendas de locação financeira concretiza um tratamento desigual e injustificado das instituições de crédito que realizam operações de locação financeira face a outros sujeitos passivos que desenvolvem a mesma actividade e suportam custos semelhantes, mas que podem deduzir o IVA suportado a montante;
  • A título subsidiário, sustentou também o Requerente que a AT não cumpriu o ónus de provar a existência de distorções significativas na tributação resultantes da aplicação do método do pro rata geral que justificassem a aplicação do método da afectação real, violando assim o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT;
  • Neste ponto, sustentou o Requerente que a prova da existência de distorções significativas na tributação não pode ser inferida de forma abstracta com base no Ofício‑Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, tendo pelo contrário de ser demonstrada a presença dessas distorções de forma concreta e fundamentada perante a especificidade de cada caso;
  • Ainda quanto a este ponto, defendeu o Requerente que mesmo que se viesse a demonstrar a existência de distorções significativas na tributação, era ainda assim necessário que o método de dedução mais adequado ao caso era o da imputação específica, o que não aconteceu;
  • Também a título subsidiário, invocou o Requerente que o presente caso era diferente do versado no acórdão Banco Mais, proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) em 10 de Julho de 2014, no processo C-183/13, porque aqui ficou demonstrada a afectação predominante entre os recursos indiferenciados e a actividade de locação financeira exercida no ano de 2020, no que às concretas operações de utilização dos bens locados diz respeito, razão pela qual deviam ter sido consideradas no apuramento do IVA dedutível a componente das receitas provenientes das rendas de locação financeira;
  • Por fim, para o caso de existirem dúvidas quanto à aplicação da jurisprudência do TJUE, suscitou o Requerente que fosse efectuado pedido prejudicial àquele Tribunal.

 

            20. Pelo contrário, veio a Requerida pugnar pela legalidade dos actos impugnados no presente processo por considerar validamente aplicado o método de dedução previsto no Ofício‑Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 que determinou uma percentagem de dedução do IVA de 9% e, consequentemente, o montante de € 3.403.089,27.

 

            21. A Requerida sustentou a sua posição, em síntese, com base nos seguintes argumentos:

  • Começou a Requerida por sustentar que o método de dedução previsto no Ofício‑Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 não só tem enquadramento legal no artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA, como tutela devidamente o princípio da neutralidade fiscal, já que é a sua aplicação que impede a ocorrência de distorções significativas na tributação provocadas pela aplicação do método pro rata geral;
  • Prosseguiu a Requerida por referir que a parte da renda que representa a amortização financeira ou do capital não deve ser incluída no cálculo da percentagem de dedução de IVA, juntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos, na medida em que consiste na remuneração do bem locado, relativamente ao qual foi deduzido no momento da respectiva aquisição o IVA suportado através do método da imputação directa;
  • Defendeu assim a Requerida que só o diferencial que geralmente corresponde a juros é que está directamente relacionado com a aquisição de recursos de utilização mista;
  • De acordo com a Requerida, a metodologia de dedução prevista no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009 está em conformidade com a jurisprudência do TJUE no acórdão Banco Mais, proferido em 10 de Julho de 2014, nos termos da qual pode ser aplicado um método diferente do pro rata geral quanto aos recursos indiferenciados se tal método permitir uma maior aproximação à realidade entre a sua utilização e a respectiva afectação à actividade de locação financeira;
  • Concluiu a Requerida a este respeito que o Requerente não cumpriu o ónus de provar que os recursos indiferenciados foram maioritariamente utilizados na actividade de disponibilização dos bens locados e já não na actividade de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira propriamente dita;
  • Defendeu por fim a Requerida que a metodologia constante do Ofício‑Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, ao ter enquadramento legal no artigo 23.º, n.º 3, alínea b) do Código do IVA, respeita os ditames do princípio da legalidade previsto nos artigos 103.º e 104.º da CRP, contribuindo também para garantir a segurança jurídica, a igualdade e a justiça fiscal necessárias ao promover a neutralidade do imposto e garantir um tratamento equitativo para todos os sujeitos passivos envolvidos.

 

            22. Cabendo decidir, cumpre desde já referir que a questão de direito em dissídio no presente processo foi já extensa e detalhadamente analisada pela jurisprudência, que deve aqui ser ponderada de forma a garantir uma tutela efectiva do princípio da segurança jurídica, que encontra reflexo no n.º 3, do artigo 8.º do Código Civil onde se determina que “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

 

            23. Relativamente à jurisprudência do STA, vejam-se por todos o acórdão do Pleno de 30 de Setembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 095/19.3BALSB, no qual se referiu, ao que importa, o seguinte:

A questão em causa nos presentes autos já se colocou por diversas vezes a este Supremo Tribunal Administrativo, que tem respondido de forma uniforme nos diversos Acórdãos proferidos a seu respeito – veja-se, a título de exemplo, os Acórdãos proferidos por esta Secção do STA a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, a 3 de Junho de 2015 no Processo n.º 0970/13, a 17 de Junho de 2015 no Processo n.º 01874/13, a 27 de Janeiro de 2016 no Processo n.º 0331/14 e a 15 de Novembro de 2017 no Processo n.º 0485/17 (Acórdão Fundamento).

Concordamos com esta orientação jurisprudencial, não apenas por ser aquela que se encontra actualmente consolidada mas também, e sobretudo, por ser aquela que se revela mais curial.

Tal como aconteceu nos arestos acima referidos, também nos presentes autos se verifica que a questão a decidir é em tudo idêntica à que foi objecto de pronúncia pelo TJUE a 10 de Julho de 2014 no processo n.º C-183/13 (Acórdão Banco Mais), na sequência de pedido de reenvio suscitado por este STA no âmbito do processo n.º 1017/12.

A questão formulada pelo STA ao TJUE foi a seguinte: “Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?”.

E o TJUE emitiu pronúncia nos termos seguintes: “O artigo 17°, n° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Conforme se explicitou no Acórdão proferido por este STA a 17 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 01874/13, aquilo que o TJUE concluiu é “que a norma comunitária não se opõe a que um Estado-membro obrigue um banco que efectue, concomitantemente com a respectiva actividade geral bancária, operações de locação financeira, a incluir na fracção destinada ao apuramento do montante relativo ao direito à dedução dos bens e serviços de utilização mista (edifícios, consumos de electricidade, serviços transversais, etc., que sejam utilizados indistintamente para a realização de operações que confiram e não confiram direito à dedução do IVA suportado), apenas a dita parte componente dos juros incluídos nas rendas de contratos de locação financeira, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão destes contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”.

E isto porque “na apreciação do TJUE, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios (que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos), leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel”.

Sucede que a Recorrida põe em causa a aplicabilidade desta jurisprudência do TJUE ao caso dos autos, arguindo que o artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA “não constitui a transposição, para o ordenamento jurídico interno, do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, da Sexta Directiva (hoje constante do artigo 173.º da Directiva do IVA)”.

Mas sem razão que lhe assista.

Vejamos as disposições legais em causa:

O artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA dispõe que: “Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação” (nosso sublinhado).

E o artigo 17.º, n.º 5 da Directiva 77/388/CEE dispõe que: “No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução, previstas nos n º 2 e 3, como para operações sem direito à dedução, a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. Este pro rata é determinado nos termos do artigo 19º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo. Todavia, os Estados-membros podem:

(…)

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços (nosso sublinhado)”.

Como já se esclareceu no Acórdão proferido por este STA a 3 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 0970/13, ao interpretar as normas supra referidas o TJUE tomou em consideração que “na interpretação de uma disposição de direito da União, importa ter em conta não apenas os respectivos termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (acórdão SGAE, C-306/05, EU:C:2006:764, n. 34). E que no caso em apreço, o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado-Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados-Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24 do Acórdão) ”.

Neste contexto, não só se verifica que o artigo 19.º n.º 1 da Sexta Directiva (intitulado “Cálculo do pro rata de dedução”) remete unicamente para o pro rata previsto no artigo 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, desta Directiva, como se verifica que, “embora o segundo parágrafo do artigo 17.º, n.º 5, da Sexta Directiva preveja que essa regra de cálculo se aplica a todos os bens e serviços de utilização mista adquiridos por um sujeito passivo, o terceiro parágrafo desse artigo 17.º, n.º 5, que também inclui a disposição que figura na alínea c), começa com a conjunção adversativa «todavia», que implica a existência de derrogações à referida regra (acórdão Royal Bank of Scotland, EU:C:2008:750, n.º 23). - Parágrafos 25 e 26.

Ora, nesta perspectiva a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços» ”.

E é precisamente por este motivo que não colhe a argumentação da Recorrida quando vem arguir que nos termos do disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA é, necessariamente, “toda a renda recebida (ou seja, capital e juros) que constitui o valor tributável da locação financeira, pelo que não seria admissível “distinguir onde a lei não distingue” aquando da dedução de IVA relativamente a bens e serviços que são comprovadamente de utilização mista”. E não colhe porque, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.

Porém, importa considerar que esta possibilidade concedida aos Estados-Membros apenas se revela possível na medida em que o método seguido garanta uma determinação mais precisa do pro rata de dedução que resulta do critério baseado no volume de negócios (vide, assim, o Acórdão Banco Mais e o Acórdão BLC Baumarkt, proferido a 8 de Novembro de 2012 no Processo C-511/10).

Por outras palavras, e como já se consignou no Acórdão deste STA proferido a 4 de Março de 2015 no Processo n.º 081/13, “a circunstância de o Tribunal de Justiça ter considerado que a Administração Tributária poderia criar um sistema específico para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista não significa que, perante a legislação nacional tal sistema específico seja pura e simplesmente admitido, em todas as situações, como não o é, de resto, face à legislação comunitária. Resulta, de modo inequívoco, do acórdão do Tribunal de Justiça que tal situação será excepcional, quando a utilização desses bens e serviços de utilização mista seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos – aqueles que obtêm enquadramento na actividade exercida pelo banco e que não confere direito à dedução de imposto, por se tratar de actividade isenta –”. Aquilo que importa, portanto, é que “sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos”.

Porém, compulsado o probatório fixado na decisão arbitral em crise, não é possível descortinar se a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Recorrida foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes ou, ao invés, pela disponibilização dos veículos.

 

            24. O entendimento do STA tem sido igualmente acolhido na jurisprudência dos Tribunais Arbitrais, designadamente nos acórdãos proferidos em 27 de Abril e em 19 de Dezembro de 2023, no âmbito dos processos n.ºs 612/2022-T e 455/2023-T, respectivamente, que se debruçaram sobre a questão da dedutibilidade do IVA em moldes muito próximos aos visados nos presentes autos. No acórdão proferido neste último processo referiu o Tribunal Arbitral, ao que aqui importa, o seguinte:

 

2.Sobre a violação do princípio da legalidade

 

Não vem questionada nesta ação a conformidade do Ofício-Circulado n.º 30 108 ao direito da União Europeia, em concreto, à Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, de 28 de novembro de 2006), ponto que foi apreciado em sentido afirmativo pelo Tribunal de Justiça no processo de reenvio prejudicial C-183/13, Banco Mais, com acórdão datado de 10 de julho de 2014.

 

O caso Banco Mais versa sobre uma situação similar à da Requerente, reportada a uma instituição de crédito que desenvolvia a atividade de locação financeira em simultâneo com a atividade de concessão de crédito. Chamado a pronunciar-se, o Tribunal de Justiça concluiu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Diretiva (correspondente ao atual artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA que a substituiu) permite que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir no “numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos”.

 

Sublinha ainda o Tribunal de Justiça neste aresto que cabe aos Estados-Membros estabelecer as regras que concretizem o método da afetação real tendo em conta “a finalidade e a sistemática da referida diretiva e os princípios em que assenta o sistema comum do IVA”, nomeadamente o da “neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas” (pontos 23 a 27 do Acórdão Banco Mais).

 

Para este efeito, importa ter em conta as características específicas próprias das atividades dos sujeitos passivos, a fim de se obterem resultados mais precisos na determinação do alcance do direito à dedução, pois o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exige que as modalidades do cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução (pontos 29 a 31 do Acórdão Banco Mais).

 

Sobre saber se o método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado é um verdadeiro método de afetação real que, nas palavras de Xavier de Basto e Maria Odete Oliveira, permita medir a “intensidade efetiva e real da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações em causa”, assente em critérios objetivos, o Tribunal de Justiça confirma-o, desde que a utilização dos recursos seja, como acima referido, “sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos” (ponto 33 do Acórdão Banco Mais), o que constitui questão de facto que adiante se analisa, tendo em conta a prova adquirida nestes autos.

 

Este entendimento do Tribunal de Justiça tem vindo a ser sucessivamente reiterado pelo Supremo Tribunal Administrativo, referindo-se, a título ilustrativo, os acórdãos de 29 de outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; de 15 de novembro de 2017, processo n.º 0485/17; de 20 de janeiro de 2021, processo n.º 0101/19.1BALSB; e de 24 de fevereiro de 2021, processo n.º 084/19.8BALSB.

 

Neste contexto, o Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão do Pleno, de 20 de janeiro de 2021, proferido no processo 0101/19.1BALSB, que aqui se acompanha, reforça que o método de imputação específica, constitui uma expressão do método da afetação real, legalmente suportado no artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, norma que transpõe para o direito interno o artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA. Sendo que não existe apenas uma forma de proceder à afetação de bens e serviços, conforme se retira do seguinte excerto ilustrativo:

“A confirmar que o sistema de afetação real comporta diferentes modalidades e apresenta, por isso, uma certa plasticidade que permita ajustar o sistema de dedução às especificidades da atividade prosseguida pelo sujeito passivo vem a segunda parte do preceito [artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA], segundo a qual a Administração Tributária pode impor «condições especiais». Isto é, condições que permitam o «afinamento» (a expressão é do artigo que acima citamos, pág. 62) do método de dedução.

Pelo que a Recorrente tem razão nesta parte: o método a que alude o ponto 9 do ofício-circulado supra aludido não tem apenas cabimento na lei comunitária; também tem cabimento na lei interna.

Pelo que as referências ao princípio da legalidade e da reserva de lei também não se nos afiguram pertinentes, ao menos por aqui.”

 

A argumentação expendida, que parte da jurisprudência do Tribunal de Justiça no Acórdão Banco Mais, acaba por ter repercussões na análise da violação do princípio da legalidade suscitada na presente ação.

 

Convém notar que a Requerente tenta abordar esta questão de outro ângulo, para alcançar a conclusão de que o princípio da legalidade resulta violado, embora, adiante-se, sem razão.

 

A Requerente não contesta que o Ofício-Circulado n.º 30108 tenha suporte legal no artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA, daí não derivando desvio (formal) ao princípio da legalidade. Contudo, considera que a matéria em causa (o método de dedução parcial do IVA) respeita à incidência do imposto, pelo que não pode ser objeto de regulação que não seja por via legal, imputando inconstitucionalidade material ao n.º 2 do citado artigo do Código do IVA, ao permitir à AT a imposição de um método de dedução sem ser por via legislativa.

 

Todavia, quer o método do imposto (i.e., a afetação real), quer as circunstâncias da sua aplicação – voluntária ou impositiva –, estão contidos, com suficiente grau de detalhe e densificação, na previsão legal do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA. Estamos, pois, perante um método previsto e regulado por via legislativa, ao invés do que a Requerente defende.

 

Interessa não perder de vista a teleologia expressa por esta disciplina [do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA], cuja finalidade consiste em determinar, da melhor forma possível e com maior grau de aproximação, a utilização/consumo efetivo dos recursos adquiridos pelas distintas áreas de atividade e operações do sujeito passivo (as que conferem e as que não conferem o direito à dedução) e, em consequência, superar as limitações do método do pro rata, que, por ser apenas presuntivo, nem sempre reflete de forma adequada a devida proporção da dedução do IVA.

 

O que significa que a afetação real tem sempre subjacente o desígnio, meritório, de máxima aproximação à realidade económica, ao consumo efetivo dos recursos, a benefício do princípio da neutralidade, que constitui expressão do princípio da igualdade.

 

Acresce que o princípio da legalidade não se opõe à aplicação tipificante de conceitos que têm recorte e base legal, por via de regulamento administrativo.

 

Dito isto, a incidência objetiva do IVA na vertente da dedução parcial é materialmente definida pela lei – in casu, pelo artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA (em transposição da Diretiva IVA) – e não, como defende a Requerente, por mera instrução administrativa. O Ofício-Circulado n.º 30108 limita-se a concretizar a previsão legal e é desprovido de caráter inovatório.

 

São, aliás, inúmeros os exemplos em que o regime fiscal é definido por lei nos seus contornos essenciais e certos aspetos particulares, incluindo quantitativos e metodológicos, são regulados por instrumento que não reveste tal forma, como os regulamentos administrativos (seja, por portaria, Ofícios-Circulados, entre outros).

 

A título de exemplo, veja-se o regime de tributação do subsídio de refeição atribuído aos colaboradores, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”). O artigo 2.º, n.º 3, alínea b), ponto 2) do respetivo Código estipula que a tributação incide somente na parte em que o subsídio exceda o limite legal, ou o exceda em 60%, se for atribuído através de vales de refeição. Ora, este limite foi fixado por Portaria (v. Portaria n.º 280/2022, de 18 de novembro) e respeita ao apuramento do imposto a pagar, ao quantum (incidência). Também os valores-limite da compensação devida ao trabalhador pelas despesas adicionais com a prestação de trabalho em regime de teletrabalho, que não constitui rendimento para efeitos fiscais ou base de incidência contributiva para a segurança social, foram fixados por Portaria (Portaria n.º 292-A/2023, de 29 de setembro). Não há qualquer ilegalidade a apontar nestes casos, porquanto a lei “habilitante” contém os pressupostos essenciais da incidência, tal como no caso da afetação real que nos ocupa.

 

Portaria n.º 292-A/2023, de 29 de setembro

À face do exposto, improcede a apontada violação do princípio da legalidade, questão de direito que foi também apreciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo no sentido preconizado, pois não existe um novo método que tenha sido criado pelo Ofício-Circulado n.º 30108. Este limita-se a aplicar a lei, que é seu fundamento, dentro dos limites por aquela estabelecidos, nomeadamente no que se refere à desadequação do método do pro rata geral, por conduzir a distorções significativas na tributação, e à necessária objetividade na determinação do grau de utilização dos bens e serviços (v. Acórdão proferido no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021).

 

3. Sobre a violação do princípio da igualdade

 

Assente o pressuposto de que o coeficiente de imputação específica é enquadrável no método da afetação real e tem base legal, interessa aferir se esse método constitui um critério objetivo e ajustado para medir o grau de afetação/utilização dos bens e serviços comuns às diversas atividades (com e sem direito à dedução). Ou, dito de outro modo, se estamos perante “uma modalidade do cálculo de dedução que reflita objetivamente a parte real das despesas efetuadas com bens ou serviços de utilização mista que é imputada a operações que conferem o direito à dedução.” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021. Este aspeto é essencial para, entre outros, apreciar e decidir a invocada violação do princípio da igualdade.  

 

A este respeito, compulsa-se de novo o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais, que estabelece um parâmetro aproximativo e não uma exigência de rigor milimétrico, que, na prática, impediria a aplicação de soluções viáveis a coberto de posições impregnadas de formalismo, paradoxalmente condutoras a maiores distorções e desigualdade.

 

O que interessa, segundo aquele Tribunal europeu, é que o critério adotado seja mais preciso do que o resultante do método supletivo do pro rata (geral), considerando as especificidades do sujeito passivo, o que acontece se a utilização dos bens e serviços for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos, interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo entende também dever ser extraída das disposições nacionais que procedem à transposição da norma da Diretiva IVA, nos termos da jurisprudência antes citada.

 

Desta forma, o próprio Tribunal de Justiça, secundado pelo Supremo Tribunal Administrativo, reconhecem que a solução do coeficiente de imputação específico se conforma aos princípios da neutralidade fiscal e da proporcionalidade, pois representa um método de dedução mais preciso, conquanto a utilização dos bens ou serviços mistos seja sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos (pontos 30, 31 e 34 do acórdão Banco Mais), sendo esta última questão atinente aos pressupostos de facto, adiante analisada.

 

É incontornável que a tendencial maior aproximação à realidade do consumo dos recursos trazida pela afetação real permite alcançar de forma otimizada o princípio da igualdade, em oposição à tese apresentada pela Requerente.

 

Não colhe o argumento da Requerente de que o critério da atividade (principal) dos sujeitos passivos que sejam instituições de crédito os sujeita a um tratamento diferenciado (o do coeficiente de imputação específico), desprovido de fundamento material e que seja, por essa razão, um critério arbitrário. Desde logo, porque é a especificidade da atividade financeira (de concessão de crédito) das instituições de crédito que suscita a distorção na tributação do IVA, pelo que essa atividade não pode deixar de ser a chave da distinção.

 

Independentemente disso, não se vislumbra que o tratamento “diferenciado” conduza a uma situação desfavorável, seja porque uma sociedade de locação financeira que se dedique apenas a essa atividade deduz o IVA na totalidade, a menos que também realize locação financeira imobiliária, caso em que deve a aplicar igualmente o método da afetação real (v. Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro, e Ofício n.º 79713, de 18 de julho de 1989, da DSIVA); seja porque permitindo o método da imputação específica uma melhor aproximação da realidade (na condição de o consumo dos recursos indiferenciados ser sobretudo determinado pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira), o seu resultado há-se ser mais fidedigno do que o do pro rata geral, pelo que as instituições de crédito não ficam prejudicadas, quando muito não serão beneficiadas, evitando-se vantagens indevidas face aos demais operadores, essas, sim, violadoras da igualdade de tratamento.

 

Em relação à afirmação da Requerente de que a ponderação das operações que conferem direito à dedução vs. operações que não conferem esse direito deve ser efetuada no estrito âmbito da atividade de locação financeira, sem que relevem as demais atividades prosseguidas pela Requerente, a mesma é de rejeitar liminarmente. Com efeito, no domínio dos recursos de utilização mista, a determinação do nível do seu consumo por parte das atividades/operações com regimes de IVA distintos (com e sem direito à dedução) exige precisamente que se comparem essas atividades. É um exercício relacional, sendo essencial à repartição que o método de dedução parcial opere a comparação das realidades que se estão a repartir.

 

À face do exposto, soçobra igualmente a alegada violação do princípio da igualdade.

 

4. Da violação do artigo 23.º, n.º 3 do Código do IVA por ausência de distorções significativas na tributação

 

A aplicação impositiva do método da afetação real depende da constatação de que o método do pro rata conduz a distorções significativas na tributação, o que, de acordo com a Requerente, não foi demonstrado pela Requerida, devendo sê-lo de forma casuística, nem se verifica na realidade. 

 

Neste contexto, compulsado o Ofício-Circulado n.º 30108, não subsistem dúvidas de que este contém, no seu ponto 8, a justificação para o afastamento do método do pro rata: este é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, podendo conduzir a distorções significativas na tributação.

 

Asserção que é inteiramente válida do ponto de vista material, porquanto, derivado do conceito de volume de negócios, a comparação das operações, tributadas e isentas, efetuada pela fração de cálculo do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, no caso de atividades financeiras (em sentido lato) que incluam a locação e a concessão de crédito, é feita entre realidades economicamente não equiparáveis, o que representa, a priori, de facto, uma distorção.

 

Do ponto de vista económico, quer a locação financeira, quer a concessão de crédito, implicam que o locador/mutuante, ceda uma quantia para adquirir o bem (no caso da locação) ou para emprestar (no caso de financiamento), sendo essa cedência remunerada (do ponto de vista económico, reitera-se) por uma taxa de juro em ambas as situações.

 

Na primeira [locação], esse juro está incluído na renda debitada (em regra com periodicidade mensal), que contém também uma outra parte que representa a amortização (devolução) do capital despendido para a aquisição do bem dado em locação.  Na segunda situação [financiamento], o juro é debitado de forma separada do reembolso da componente do capital mutuado. Porém, apesar dos distintos procedimentos de redébito (em conjunto ou separado), do ponto de vista económico estamos, em ambos os casos, perante cedências de fundos remuneradas por juros.

 

Tanto assim é que o tratamento contabilístico conferido às locações, nos termos da IFRS 16, é equiparado ao das operações de financiamento ou concessão de crédito, não sendo refletidos, nas contas de rendimentos/ganhos do locador, os valores do capital cedido ou usado para a compra dos bens locados, mas tão-só o montante da remuneração daquele capital (juros auferidos). Em consequência também o é o tratamento fiscal para efeitos de IRC.

 

Deste modo, para se comparar a remuneração dos dois tipos de operações, as variáveis de referência (ou termos de comparação) apenas serão congruentes na perspetiva económica se, de duas uma:

  • Compararmos os “juros” da locação com os “juros” das operações de financiamento, como resulta do coeficiente de imputação específico; ou
  • Compararmos a totalidade das operações, incluindo capital e juros.

 

Dada a conformação da locação financeira para efeitos de IVA, que suscita a incidência do imposto sobre a totalidade da renda (contraprestação), se aplicarmos a fórmula do método supletivo do pro rata, acabamos por comparar a renda [que tem duas componentes: capital e juros] apenas com a componente de juro isenta (contraprestação) das operações de financiamento.

 

De facto, a componente de capital no caso de operações de financiamento, não cai no âmbito de sujeição a IVA, sendo, por razões técnicas de definição do valor tributável das operações, excluída da referida fórmula de cálculo. Por esta razão, resulta desvirtuada a usual presunção (subjacente ao pro rata) de que a comparação dos valores de contraprestação das operações traduz, em princípio, uma aproximação razoável do consumo de recursos mistos pelas diversas tipologias de operações.

 

Com efeito, na situação sub iudicio, pelos motivos descritos, na fórmula de cálculo do pro rata geral prevista na lei (artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA) deparamo-nos com termos de comparação não equivalentes, nem equiparáveis do ponto de vista económico, suscitando o incremento da percentagem de dedução para níveis presumivelmente superiores aos do consumo efetivo dos recursos mistos, por parte da atividade de locação.

 

Por outro lado, importa reforçar que o valor da renda tributada em IVA relativo à parte do reembolso do capital usado para a aquisição dos bens dados em locação (ou amortização financeira) não é ignorado, uma vez que contribui diretamente para a dedução integral do IVA incorrido na aquisição desses bens (que são recursos específicos e exclusivos da locação).

 

Com efeito, ao IVA liquidado na renda pelo locador, aqui Requerente, é totalmente subtraído o IVA incorrido com a aquisição dos bens, pelo que, sendo o contrato de locação executado até ao seu termo, o IVA liquidado na componente da amortização financeira da renda é totalmente absorvido e compensado pelo IVA deduzido com a aquisição dos bens locados.

 

A parte sobrante [juros e outros encargos] da renda é aquela que visa remunerar os gastos gerais da atividade de locação. Pelo que é a componente da renda remanescente ao capital (este exclusivamente afeto ao input do bem adquirido para locação) que há-de refletir a ponderação por parte do sujeito passivo dos gastos (inputs) que este estima incorrer na operação e da sua margem financeira. É esta componente dos juros e outros encargos que representa a (única) remuneração económica dos gastos da atividade de leasing, como aliás é patenteado pelas normas contabilísticas e de tributação do imposto sobre o rendimento.

 

Em síntese, do ponto de vista da adequação, em abstrato, do método de determinação da dedutibilidade dos gastos mistos, a comparação entre as diversas contraprestações da atividade da Requerente apenas é proporcional e equilibrada se tiver em conta a componente de juros e outros encargos e já não a do capital, que, à partida, não apresenta conexão com esses gastos mistos e apenas com o input de aquisição dos bens dados em locação, cujo IVA é deduzido integralmente pelo método da imputação direta.

 

Neste termos, não pode deixar de concluir-se que o Ofício-Circulado em análise indica as razões do método preconizado, referindo expressamente a falta de coerência das variáveis de cálculo do pro rata (geral), e aponta a suscetibilidade de vantagens ou prejuízos injustificados daí derivados, com distorções significativas na tributação.

 

Pelo que se conclui que, no plano abstrato ou “para-regulamentar”, a AT defendeu e justificou, ainda que de forma sucinta, que a aplicação do método de imputação específica assenta num critério mais objetivo e adequado, por ser mais aproximativo da realidade, do que a aplicação do pro rata geral, dadas as variáveis tidas em conta no cálculo deste último, provenientes da fórmula imperativa do artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA.

 

Conclusão que está em sintonia com o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Banco Mais ao sancionar o entendimento de que o método do coeficiente de imputação específica é “conforme com os princípios da neutralidade fiscal e da proporcionalidade”. Nestes moldes, “a validade do método da Administração Tributária não depende do facto de ser ajustável totalmente à atividade do sujeito passivo (o que, de qualquer modo, teria que ser analisado em concreto); depende, tão só, do facto de ser o mais ajustado. O que acontece neste tipo de atividade se a utilização de bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos.” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021.

 

De referir que o Ofício-Circulado não constitui o parâmetro de validade da autoliquidação, cujo suporte é o artigo 23.º, n.ºs 2 e 3 do Código do IVA.

 

Relativamente à indispensabilidade de uma demonstração casuística, por parte da AT, dos pressupostos factuais que subjazem à aplicação do coeficiente de imputação específico, coloca-se a questão de saber se, à luz das regras que estabelecem o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos dos direitos que as partes se arrogam (v. artigo 74.º da LGT), aquela teria que “invocar e demonstrar no procedimento ou nos autos a factualidade que permitisse formular um juízo (de facto) sobre se a utilização dos bens ou serviços é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021.

 

Relembra-se que, quando o ato de liquidação adicional de IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução. Pelo que, em oposição à tese da Requerente, é sobre esta que recai tal ónus, e não sobre a Requerida. É ao sujeito passivo que compete alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização dos bens ou serviços mistos não foi sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Neste sentido se pronuncia, de igual modo, o Supremo Tribunal Administrativo, que reputa tal solução adequada “também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio.” – v., por todos, o Acórdão proferido no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021.

 

Conclui-se neste segmento que não procede o argumento da invalidade da autoliquidação por falta de comprovação concreta da AT.

 

5. Dos Pressupostos de facto – utilização dos recursos indiferenciados determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos

 

Como acabou de se referir, é sobre o sujeito passivo que impende o ónus de demonstração que, sendo uma instituição de crédito que realiza operações de locação financeira mobiliária, no seu caso, o consumo de bens e serviços de utilização mista não é sobretudo determinado pelo financiamento e pela gestão dos contratos, antes pela disponibilização dos bens locados.

 

A Requerente propugna o seu enquadramento nesta última hipótese e equipara à disponibilização dos bens locados a “utilização” dos mesmos. Porém, afigura-se de antemão que as tarefas associadas à utilização dos bens locados – designadamente, coimas, pagamento de IUC, portagens – se situam no âmbito da gestão e execução dos contratos de locação, não se reportando à fase da disponibilização desses bens. Logo, disponibilização e utilização são conceitos distintos e não sinónimos, inexistindo qualquer referência a este último no dispositivo do Acórdão Banco Mais.

 

Por outro lado, não ressalta da matéria de facto provada que tenha ocorrido um consumo mais expressivo de recursos mistos por parte da área de locação financeira da Requerente e que a utilização destes não tenha sido sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos, antes pela disponibilização dos bens locados.

 

Os exemplos que a Requerente identifica como representativos de gastos comuns implicados essencialmente pela atividade de locação financeira mobiliária não têm a virtualidade de lograr essa demonstração, porquanto:

  • Alguns não consubstanciam recursos de utilização mista, mas recursos específicos e exclusivos dos contratos de locação, claramente identificados, como sejam os pareceres (alheios ao objeto da presente ação, referente a recursos indiferenciados). Aliás, é a própria Requerente que assinala que os gastos inerentes à propriedade dos bens não seriam incorridos se se dedicasse apenas à atividade de financiamento (concessão de crédito); e
  • Outros, ou são inexistentes no período em causa, ou pouco frequentes/raros, não tendo sido facultados dados quantitativos que permitam inferir a respetiva relevância. De novo, é a própria Requerente que, em termos incompatíveis e contraditórios à sua pretensão, afirma não dispor de contabilidade analítica que permita quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos indiferenciados afetos à sua atividade.

 

Em relação ao argumento da posição do Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 18 de outubro de 2018, no processo C-153/17, Volkswagen FS, que determina que os Estados-Membros não podem aplicar um critério de repartição do IVA dedutível nos recursos mistos que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, do mesmo não se retira a desconformidade do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado, sendo incorreta a interpretação que dele faz a Requerente.

 

No caso Volkswagen FS, a situação fática apreciada é distinta da aqui em causa, pois “o direito do Reino Unido obriga à desagregação do leasing em duas operações: a disponibilização do veículo e o seu financiamento. […] Para efeitos de IVA, as duas operações são tratadas de forma distinta também. A disponibilização do veículo constitui uma operação tributada; ao passo que o financiamento é tido como uma operação de concessão de crédito isenta.” – v. Sérgio Vasques, “IVA, Pro rata e Locação Financeira”, Cadernos IVA 2020, p. 523.

 

Acresce que as conclusões do Tribunal de Justiça nesse processo C-153/17 foram ditadas pelo facto de o tribunal nacional de reenvio ter previamente determinado que, no caso concreto, os custos gerais tinham uma relação direta e imediata com a totalidade das atividades do sujeito passivo e, assim, também com a disponibilização dos veículos, aí tratada como operação autónoma. Na situação vertente, para tal, a Requerente teria de demonstrar que os recursos de utilização mista foram sobretudo determinados pela disponibilização dos veículos locados, o que, como se viu, não se verificou.

 

No mesmo sentido veja-se ainda a posição do Supremo Tribunal Administrativo acerca da mesma questão:

 

“Como decorre do seu parágrafo 56, o Tribunal de Justiça da União Europeia não pretendeu ali reformular o entendimento firmado no acórdão “Banco-Mais”, mas sublinhar que aquela jurisprudência não podia ser aplicada de maneira geral, abrangendo todos os tipos de operações de locação financeira para o setor automóvel.

Incluindo aquelas em que a aplicação de um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando na sua entrega não seja adequada a garantir uma repartição mais precisa do que a baseada no volume de negócios.

O que sucedia naquele caso específico porque havia uma afetação real e significativa dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução (§ 57). Porque esses custos eram efetuados tendo em vista a disponibilização de veículos (§ 44) e eram, apesar disso, imputados aos próprios custos de financiamento, em vez de serem imputados ao valor inicial do veículo aquando da sua entrega (§ 13).

Em lado algum se conclui que, no caso dos autos, também havia uma afetação significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos […].

Pelo que a invocação da jurisprudência firmada no acórdão C-153/17 não se nos afigura pertinente nem acrescenta nada ao juízo ali fornecido sobre a legalidade da liquidação.” – v. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20 de janeiro de 2021.

 

  À face do exposto, também nesta matéria é improcedente a argumentação da Requerente.”.

 

            25. Tendo presente a jurisprudência acabada de citar, à qual adere este Tribunal Arbitral, conclui-se sem necessidade de mais desenvolvimentos que não viola os princípios da neutralidade, legalidade e igualdade, a metodologia de dedução prevista no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, que determina a não consideração para efeitos de dedução do IVA suportado com recursos indiferenciados, da parte das rendas pagas no âmbito de contratos de locação financeira correspondente à componente do capital, isto é, à amortização financeira.

 

            26. Para que o Requerente não tivesse de considerar apenas os juros e encargos similares associados aos contratos de locação financeira no numerador e denominador da fracção de cálculo do IVA dedutível, tinha de demonstrar que a utilização dos recursos indiferenciados não foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.

 

            27. Este era um ónus probatório que recaía sobre o Requerente e que este não logrou cumprir. Com efeito, não resultou provado no presente processo a ocorrência de uma afectação preponderante de recursos indiferenciados à actividade de locação financeira e, dentro desta, à componente de disponibilização de bens locados em detrimento da componente de gestão e financiamento dos contratos celebrados pelo Requerente.

 

28. Pelo contrário, foi o próprio Requerente que afirmou que não dispunha de meios para provar aquela afectação, ao referir no artigo 13.º do pedido arbitral o seguinte: “Face às caraterísticas específicas da atividade bancária, nomeadamente ao facto desta atividade se traduzir na realização de operações que se desenvolvem e concretizam, muitas vezes, em simultâneo, torna-se inviável a aplicação de uma contabilidade analítica que permita à Requerente quantificar com detalhe, rigor e fidedignidade os recursos indiferenciados afetos à sua atividade, nomeadamente à atividade de locação financeira e, concomitantemente, às suas diversas operações.”.

 

29. Insuficiência de prova esta que também não foi suprida pela prova testemunhal produzida, que para além da “intuição” da depoente não permitiu certificar a existência de uma determinada preponderância na utilização e afectação de recursos indiferenciados a uma concreta área inserida no conjunto de actividades associadas aos contratos de locação financeira.

 

30. Pelo exposto, conclui-se que o método de dedução do IVA aplicado pelo Requerente na autoliquidação daquele imposto referente ao período de Dezembro de 2020 não padece de qualquer ilegalidade, devendo manter-se como tal na ordem jurídica, conforme propugnado no despacho de indeferimento da reclamação graciosa aqui contestado.

 

31. Ao ser o pedido arbitral improcedente, inexiste erro imputável aos serviços que tenha determinado o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido nos termos e para os efeitos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, pelo que também improcede o pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

32. Por fim, regista-se que o pedido de reenvio prejudicial efectuado pelo Requerente se revelou desnecessário, já que as questões submetidos à apreciação deste Tribunal já foram devidamente esclarecidas pela jurisprudência europeia, sendo de aplicar a teoria do acto “claro/aclarado” desenvolvida pelo TJUE, entre outros, no acórdão Cilfit proferido em 6 de Outubro de 1982, no processo n.º 283/81.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, absolver a Requerida do pedido.
  2. Condenar o Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 3.024.968,24.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 38.556,00, a suportar pelo Requerente, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de Abril de 2024

 

Os árbitros,

 

 

Carla Castelo Trindade

(Presidente e Relatora)

 

 

Tomás Castro Tavares

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado