Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 196/2023-T
Data da decisão: 2024-04-02  IVA  
Valor do pedido: € 73.304,48
Tema: IVA – Taxa reduzida – Alimentos para animais – Afetação à alimentação humana – Verba 3.3 da Lista I, anexa ao CIVA e Anexo III, da Diretiva IVA.
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Tributária CAAD: Arbitragem Tributária

n.º: /a: IVA – Liquidações julho a março de 2019  - Artigo 18.ba 1. listas

SUMÁRIO: I Os alimentos para animais destinados à alimentação humana são tributados à taxa reduzida de 6% à luz do disposto na verba 3.3, da Lista I anexa ao CIVA e do Anexo III, da Diretiva IVA.  II Os alimentos destinados a animais como o cavalo e o pombo, são tributados em IVA à taxa normal de 23% considerando que o seu destino normal não é a alimentação humana. III – Não há contradição ou transposição indevida no confronto entre as citadas disposições do CIVA e a Diretiva IVA.

 

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

Acordam os árbitros que integram este Tribunal Arbitral Coletivo, José Poças Falcão (presidente), Pedro Miguel Bastos Rosado e Gustavo Gramaxo Rozeira (adjuntos):

 

I – RELATÓRIO

  1. A..., LDA., sociedade comercial por quotas com sede em ..., ..., ...-... ...,  ..., titular do Número Único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial ... (“Requerente”), veio, dizendo-se ao abrigo dos artigos 95.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 99.º, alíneas a), c) e d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 97.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“CIVA”) e 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL visando a apreciação da legalidade das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) nºs 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022... e 2022..., das liquidações de juros compensatórios nºs  2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022 ... e das respetivas demonstrações de acerto de contas nºs  2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022 ..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022 ... e 2022..., referentes a todos os períodos do ano de 2019, das quais resultou o montante total a pagar de 73.304,48 EUR, e, bem assim, da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa desses atos apresentada, plasmada no Ofício n.º 2022..., de 16 de dezembro de 2022, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de ... .
  2. Alega, em síntese, que:
    1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, com sede e direção efetiva em território português, que se dedica, entre outras atividades, ao comércio por grosso de alimentos para animais.
    2.  Está enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade mensal, liquidando nas transmissões de bens por si efetuadas imposto às taxas legalmente aplicáveis – designadamente, à taxa normal (23%) e à taxa reduzida (6%).
    3. Entre outros, a Requerente comercializa – e comercializou no ano de 2019 – os seguintes produtos destinados à alimentação animal:
  • ACTIVE LIFE SPORT 20 KG;
  • FLAMINGO FLOATING;
  • CLASSIC SPORT 20 KG;
  • GULOSEIMAS POMBOS;
  • MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG e
  • E... .
  1. Em concreto, os produtos FLAMINGO FLOATING e GULOSEIMAS POMBOS destinam-se à alimentação de aves, designadamente de pombos, independentemente da funcionalidade do animal (para atividade desportiva, para atividade agrícola, para consumo humano, etc.).
  2. Por sua vez, os produtos ACTIVE LIFE SPORT 20 KG, CLASSIC SPORT 20 KG, MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG e E... destinam-se à alimentação de cavalos, igualmente com independência da funcionalidade do animal (para atividade desportiva, para atividade agrícola, para consumo humano, etc.).
  3. No ano de 2019, o universo de produtos das marcas acima identificadas, comercializados pela Requerente à taxa reduzida de IVA (6%), foi afeto à alimentação de cavalos e pombos usualmente destinados a alimentação humana.
  4. No que aos cavalos respeita, tais produtos destinaram-se igualmente a “cavalos de trabalho” (i.e., a cavalos afetos a exploração agrícola) e não a “cavalos recreativos ou de competição desportiva”.
  5. Neste contexto, a Requerente teve o cuidado de verificar junto dos seus clientes o destino normalmente conferido por estes a tais animais.
  6. A coberto da Ordem de Serviço n.º OI2021..., emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ..., a Requerente foi alvo de uma ação de inspeção tributária, de âmbito geral, ao ano de 2019.
  7.  Através do Ofício n.º 2022.., de 23 de fevereiro de 2022, a Requerente foi notificada do relatório final de inspeção tributária, em sede do qual a Autoridade Tributária pugnou pela existência de IVA alegadamente em falta, no montante de 66.706,39 EUR, por pretensa aplicação errónea da taxa reduzida de IVA (6%) à venda dos produtos identificados no ponto 10.º supra – cfr. cópia do relatório de inspeção tributária, junta como documento n.º 3.
  8. A respeito desta correção, os serviços inspetivos sustentaram o seguinte:
  9. «[A] aplicação da taxa reduzida apenas abrange os produtos/rações utilizados na alimentação de animais no âmbito de atividades de produção agrícola e com destino à alimentação humana […]. A ração E..., destinada à alimentação de cavalos, dadas as suas especificidades, não reúne os requisitos para ser enquadrada em qualquer das verbas da tabela da lista I do CIVA […]. Além da marca E... […], foram identificadas rações e outros produtos, transacionados à taxa reduzida, que pela sua designação não se destinam a animais no âmbito de produção agrícola e com destino à alimentação humana, como é o caso de ACTIVE LIFE SPORT 20 KG, FLAMINGO FLOATING, CLASSIC SPORT 20 KG, GULOSEIMAS POMBOS e MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG […]. Assim, a taxa de IVA a aplicar a estes alimentos e rações é de 23%» – cfr. páginas 9, 10 e 11 do documento n.º 3.
  10. Na sequência da notificação do projeto de relatório de inspeção, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apreciado pelos Serviços de Inspeção da AT,  nos seguintes termos:

«A – Alegações de contribuinte

Das correções propostas pela inspeção, o contribuinte vem manifestar a sua não concordância no que respeita a aplicação da taxa de IVA de 23% em oposição à taxa de 6% por ele praticada nos produtos da marca E... e outros produtos residuais também utilizados com conexão com rações, sobretudo para pombos. Refere o contribuinte que, tendo grande diversidade de produtos e clientes, sempre teve o maior cuidado na análise das incidências e taxas a aplicar e na dúvida, sempre optou por não correr riscos, aplicando, no IVA, taxas superiores. No caso dos produtos já referidos, houve esse cuidado acrescido e, por iniciativa própria, colheram todas as informações possíveis junto dos seus clientes, tendo optado pela aplicação das taxas de IVA que julgaram legais e perfeitamente justificáveis. Alegam ainda que têm a certeza absoluta que os clientes para quem vendem as rações e outros produtos, objeto de discordância da AT, os usam na alimentação de cavalos ou pombos cujo destino normal é a alimentação humana e só excecionalmente aparece um animal que tem outro destino […].

      B – Resposta da IT

[…] [É] evidente que o seu enquadramento [das rações para cavalos] não cabe na verba 3.3 da lista I anexa ao código do IVA, conforme foi explicado no relatório da inspeção. A proposta de correção apresentada pela inspeção visa essencialmente os produtos da marca E... e, de forma residual, outros produtos destinados a aves (FLAMINGO FLOATING e GULOSEIMAS POMBOS) que não reúnem os requisitos para serem taxados a 6%. Concentrando-se o maior peso nos produtos E..., é sobre esses que recai o desacordo do contribuinte e a sua argumentação contra as correções. É entendimento da inspeção que os alimentos da E... se destinam à alimentação de cavalos, sendo que, face às suas especificidades e particularidades têm a finalidade de dar ao animal os nutrientes necessários para que este possa potenciar a sua forma e capacidades físicas. Trata-se de um produto direcionado para cavalos de lazer, desporto ou até competição […]. Para sustentar as suas alegações, […] apresenta um email de um cliente (Centro Hípico ...) […]. Neste email, refere o Centro Hípico que se dedica à criação de cavalos para desporto (10%), hipoterapia (30%), abate (50%) e reprodução (20%). Se o objetivo era demonstrar que a aplicação da taxa de IVA de 6% na venda de ração para cavalos estava correta, na medida que se encontrava enquadrada na verba 3.3, seria útil juntar ao email mais informação fiscalmente relevante e devidamente comprovada. Referimo-nos, desde logo, ao enquadramento da atividade exercida no âmbito de uma atividade agrícola. Não fazendo qualquer prova da distribuição percentual que foi apresentada nem de se tratar de uma exploração agrícola, somos levados a concluir que existirá alguma deturpação da realidade. O próprio nome indica tratar-se de um Centro Hípico e basta uma breve pesquisa para percebermos a real atividade desenvolvida […]. Ao contrário do que pretendem demonstrar com o email, a atividade desenvolvida é essencialmente de desporto e lazer e não de criação de cavalos para consumo humano […].

[E]stá fora de questão que não exista um consumo de carne de cavalo, no entanto, comparativamente a outros tipos de carnes, o consumo é de tal forma residual que não encontramos explorações que se destinem à criação de cavalos tendo como objetivo final o seu abate para consumo humano […]. Uma vez mais, não se afigura estarmos perante argumentos que validem a aplicação da taxa reduzida a este tipo de produtos, pelo contrário.

O último documento apresentado pelo contribuinte é uma resposta dada pela OCC em 2008 a um associado  […]. A resposta favorável não acolhe a nossa concordância, na medida em que peca pela falta de enquadramento […].

A intenção do legislador ao preconizar a utilização de taxas diferenciadas no que respeita aos bens e serviços consumidos, visa uma discriminação positiva, não cabendo a quem tem que aplicar as normas fazer uma interpretação à luz da sua conveniência. Alimentar animais que se encontram numa exploração agropecuária e que têm como fim ser introduzidos no mercado para consumo humano merece, em termo de taxação de IVA, ter um tratamento diferenciado face a alimentar animais que se destinam a fins lúdicos ou desportivos e que só por mero acaso poderão terminar a ser abatidos para consumo humano. Entende-se, então, que será de manter os valores das correções propostos» – cfr. páginas 14 a 19 do documento n.º 3.

  • Concluíram, por fim, os serviços inspetivos:

«Face ao exposto relativamente à incorreta aplicação das taxas de IVA […], será de aplicar a taxa normal de IVA ao invés da taxa reduzida. Assim, a correção à taxa de IVA aos produtos referidos […] é de 17% (diferença entre 23% e 6%). […] O total de correção de IVA é de €66.706,39» – cfr. páginas 12 a 14 do documento n.º 3.

  •  Em consequência da aludida correção, a Requerente foi notificada dos atos tributários objeto dos presentes autos, melhor identificados supra, resultando dos mesmos um montante global a pagar de 73.304,48 EUR (66.645,06 EUR de imposto e 6.659,42 EUR de juros compensatórios) – cfr. documento n.º 1.
  • A Requerente procedeu ao pagamento voluntário e integral dos montantes adicionalmente liquidados – cfr. cópias dos comprovativos de pagamento, juntas como documento n.º 4.
  • Por não se conformar com o entendimento perfilhado pelos serviços inspetivos, a Requerente apresentou, junto do Serviço de Finanças de ..., reclamação graciosa dos atos tributários acima identificados, em sede da qual peticionou a sua declaração de ilegalidade e respetiva anulação – cfr. cópia da reclamação graciosa, junta como documento n.º 5.
  • A 21 de dezembro de 2022, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, segundo a qual:

«[P]or um lado, a reclamante mantém as alegações que já fez constar do direito de audição que exerceu ao projeto de relatório de inspeção tributária de não concordar com as referidas liquidações adicionais de IVA calculadas com base na correção da taxa de 6% (taxa reduzida) para 23% (taxa normal), acrescentando referência a legislação europeia e o seu entendimento sobre ter sido incorretamente transposto para o ordenamento jurídico nacional o Anexo III da Diretiva IVA. Por outro lado, insurge-se quanto ao modo como a quantificação foi efetuada. Quanto ao explanado pela reclamante sobre a alegada incorreção na transposição do Anexo III da Diretiva IVA para o ordenamento jurídico nacional, de referir que os legisladores nacionais procedem à transposição das diretivas para o direito interno, como uma lei ou decreto-lei ou decreto legislativo regional, não sendo o procedimento de reclamação graciosa o local próprio para a requerente vir agora colocar em causa a transposição de diretivas europeias para o ordenamento jurídico nacional […]. Encontra-se bem fundamentado no relatório que os alimentos da marca E... se destinam a alimentação de cavalos, sendo que, face às suas especificações e particularidades têm a finalidade de dar ao animal os nutrientes necessários para que este possa potenciar a sua forma e capacidades físicas, tratando-se de um produto direcionado para cavalos de lazer, desporto ou até competição. De referir que, desde logo, a categoria 3 da Lista I anexa ao CIVA, impõe que a aplicação da taxa reduzida apenas pode abranger os bens que sejam “utilizados normalmente no âmbito das atividades de produção agrícola e aquícola”, afastando a aplicação da taxa reduzida aos bens que não são utilizados no âmbito de atividades de produção agrícola e aquícolas, determinando a verba 3.3 quais os bens a que se aplica essa taxa, com a condição de esses bens se destinarem para a alimentação de gado, de aves e outros animais referenciados no Codex Alimentarius, destinados à alimentação humana. Ora, é a reclamante que tem de provar que esses produtos que comercializou se destinaram à alimentação de animais criados e associados a atividades de produção agrícola e que se destinavam à alimentação humana, e isso não se encontra demonstrado inequivocamente. Quanto ao cálculo das correções efetuadas pela IT em sede de IVA e à argumentação apresentada pela requerente […] de que […] o cálculo de imposto não deve incidir sobre a base tributável inicial, mas sim considerar-se o valor final cobrado ao cliente como inalterável, sendo necessário “recalcular” a base tributável e apurar o valor do IVA “por dentro”, de referir que se identifica logo que, no entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia, a quantificação do IVA, seguindo a fórmula do cálculo “por dentro”, só se aplicaria nas hipóteses de não ser possível ao fornecedor recuperar junto do adquirente o IVA que está a ser posteriormente exigido. No entanto, não só a reclamante não demonstra como nem sequer alega ser impossível recuperar o IVA junto dos adquirentes, ónus que lhe incumbia face ao n.º 1 do art. 74.º da LGT, tendo apenas se limitado a transcrever parte da jurisprudência. Ora, compete ao reclamante, se assim o entender, solicitar aos adquirentes dos bens a retificação do IVA por alteração da taxa do IVA de 6% para 23%, devendo emitir os respetivos documentos retificativos das faturas, como determina nomeadamente o n.º 7 do art. 29.º do CIVA. […] Ou seja, quando está em causa a alteração do valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente, deve ser emitido o respetivo documento retificativo da fatura, independentemente de se reportar à retificação de parte ou da totalidade do valor mencionado na fatura inicial […]. Nestes termos, não obstante a reclamação ser legal (…), deverá a mesma ser INDEFERIDA, até porque a Reclamante nada trouxe de novo na presente reclamação que pudesse pôr em causa as correções efetuadas pela Inspeção Tributária que originaram as liquidações reclamadas» [sublinhados nossos] – cfr. páginas 6 a 8 do documento n.º 2.

  1. Em suma, replicando o entendimento perfilhado em sede inspetiva, concluiu a Autoridade Tributária, na reclamação graciosa que precedeu os presentes autos, que, por não ter a Requerente (alegadamente) demonstrado serem as rações por si comercializadas utilizadas na alimentação de cavalos enquadrados numa exploração agrícola e destinados ao consumo humano, tais produtos devem ser tributados em sede de IVA à taxa normal (23%) e não à taxa reduzida (6%) – cfr. documento n.º 2.

 

  1. A Requerente não se conforma com a posição perfilhada pela Autoridade Tributária, reputando-a de manifestamente ilegal, motivo pelo qual apresenta o presente pedido de pronúncia arbitral, em sede do qual exporá as razões em que alicerça a sua posição e pelas quais considera padecerem de ilegalidade os atos tributários e decisório acima identificados, devendo, por isso, ser anulados em conformidade, nos termos do artigo 163.º do CPA, tudo com as demais consequências legais.

 

 

  1. Os árbitros que integram este Tribunal foram regularmente designados pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD, nos termos dos artigos 6º-2/a), 10º-2/g) e 11º-1/a), do RJAT, todos tendo aceite o encargo.
  2.  Cumpridos os termos regulamentares, o Tribunal ficou constituído no dia 30-5-2023.
  3. O prazo para prolação e notificação da decisão arbitral, previsto no artigo 21º, do RJAT, veio a ser justificadamente prorrogado à luz do disposto no nº2, do citado artigo 21º, do RJAT (cfr despachos de 23-11-2023, 27-1-2024 e 27-3-2024).
  4. Teve lugar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, que decorreu no dia 18-10-2023, no decurso da qual foi também produzida a prova testemunhal oferecida pela Requerente.

No termo da referida reunião, e após conclusão da instrução do processo, foram as partes notificadas para apresentarem alegações finais escritas, de facto e de direito, tendo apenas exercido essa faculdade a Requerente, com conclusões que substancialmente mantêm, no essencial, as formuladas no pedido de pronúncia arbitral (PPA).

 

Resposta

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito,  apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação e por exceção.
  2. Alegou a AT, designadamente:
    1. É contestada pela Requerente apenas uma das correções promovidas na ação inspetiva (cfr artigos 25º e 26º, do PPA);
    2. Daí que só deverá determinar-se a anulação parcial dos atos tributários em causa na medida da procedência da impugnação parcial assinalada pela Requerente;
    3. Verifica-se a incompetência material do Tribunal na parte referente à correção não contestada, conducente, nessa medida, à absolvição da instância, nos termos previstos nos artigos 576º-2, 577º-a), do CPC;
    4. Alega também a a AT a ineptidão do PPA por falta de causa de pedir traduzida na não alegação dos factos e fundamentos legais que suportem o direito à anulação das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios na parte correspondente à divergência detetada entre SAF-T (PT) de faturação e as declarações periódicas de IVA o que conduz, segundo alega, à absolvição da instância nos termos previstos nos arts 576º-2, 577-a), do CPC, ex vi artigo 29º-1/e), do RJAT;
    5. Por impugnação contesta a AT que a disposição de direito português quando transpõe a Diretiva IVA seja mais restritiva que a própria Diretiva transposta;
    6. E, por outro lado, que se revele ilegal a interpretação feita pela AT quanto aos requisitos estabelecidos na legislação nacional para aplicação da taxa reduzida de IVA [Verba 3.3 da Lista I, anexa ao CIVA]
    7. Traz ainda à colação o denominado “Codex Alimentarius” e o respetivo sentido protetor dos consumidores, questionando referenciar o direito interno português este código alimentar, designadamente na Verba 3.3, da citada Lista de bens que dão origem a produtos agrícolas para consumo, bem como interrogando-se quanto à ofensa desse código ao disposto na Diretiva IVA;
    8. Assinala ainda a AT que tanto os cavalos como os pombos são utilizados em atividades de lazer, recreio ou competição, sendo os cavalos utilizados na equitação e os pombos na prática de columbofilia e de caça;
    9. Invoca jurisprudência do TJUE no sentido da defesa de que a carne de cavalo não é um produto comummente destinado ao consumo humano, sem prejuízo de demonstração (pelo contribuinte) do contrário (Acórdão C-41/09, Comissão/Países Baixos, de 3.3.20211);
    10. E, no caso, os animais, incluindo pombos,  que iriam ser alimentados pelas rações descritas, não se destinavam à alimentação humana e, consequentemente, não haveria lugar à tributação das rações em IVA à taxa reduzida;
    11. Conclui pela total improcedência do PPA;
    12. Quanto à ilegalidade dos atos tributários por alegada violação dos princípios do inquisitório e da verdade material, além de incumprimento do dever de prova (arts 58º e 74º-1, da LGT), considera não haver qualquer fundamento para a pretensa violação dessas disposições princípios, sendo certo que os SIT fizeram a prova do que lhes competia, ou seja, de que a aplicação de taxas de IVA reduzidas nos alimentos para cavalos e pombos não tinha justificação porque tais animais não se destinavam à alimentação humana;
    13. Quanto ao alegado incumprimento do dever de fundamentação (arts 268º-3, da Constituição, 77º, da LGT e 36º, do CPPT), afirma a AT que esse dever foi cumprido na medida que a Requerente ficou bem ciente do iter cognoscitivo seguido pelos SIT para chegar à liquidações adicionais ora sindicadas.

 

II. SANEAMENTO

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e, como se verá melhor infra, é materialmente competente, em face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
  2. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º,  da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
  3. O processo não enferma de nulidades
  4. As demais questões suscitadas serão apreciadas e decididas infra, aquando da apreciação do mérito do pedido.

 

III. THEMA DECIDENDUM

São as seguintes as questões suscitadas:

  1.  A incompetência material do Tribunal “(...)na parte referente à correção não contestada(...)”
  2. A ineptidão do PPA por falta de causa de pedir;
  3. (Pretensa) violação pela AT do dever de fundamentação e dos princípios do inquisitório,  da verdade material e do ónus da prova
  4. A inconstitucionalidade da verba 3.3, da Lista anexa ao CIVA por (alegada) preterição do princípio do primado do Direito Europeu concretizada na (alegda) violação do disposto no Anexo III, da Diretiva IVA.
  5. A interpretação quanto aos requisitos estabelecidos na legislação nacional para aplicação da taxa reduzida de IVA [Verba 3.3 da Lista I, anexa ao CIVA]

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO

A - OS FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos essenciais que o Tribunal considera provados:

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, com sede e direção efetiva em território português, que se dedica, entre outras atividades, ao comércio por grosso de alimentos para animais.
  2.  Está enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade mensal, liquidando nas transmissões de bens por si efetuadas imposto às taxas legalmente aplicáveis – designadamente, à taxa normal (23%) e à taxa reduzida (6%).
  3. Entre outros, a Requerente comercializa – e comercializou no ano de 2019 – os seguintes produtos destinados à alimentação animal:
  • ACTIVE LIFE SPORT 20 KG;
  • FLAMINGO FLOATING;
  • CLASSIC SPORT 20 KG;
  • GULOSEIMAS POMBOS;
  • MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG e
  • E... .
  1. Em concreto, os produtos FLAMINGO FLOATING e GULOSEIMAS POMBOS destinam-se à alimentação de aves, designadamente de pombos, independentemente da funcionalidade do animal (para atividade desportiva, para atividade agrícola, para consumo humano, etc.).
  2. Por sua vez, os produtos ACTIVE LIFE SPORT 20 KG, CLASSIC SPORT 20 KG, MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG e E... destinam-se à alimentação de cavalos, igualmente com independência da funcionalidade do animal (para atividade desportiva, para atividade agrícola, para consumo humano, etc.).
  3. A coberto da Ordem de Serviço n.º OI2021..., emitida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de ..., a Requerente foi alvo de uma ação de inspeção tributária, de âmbito geral, ao ano de 2019.
  4.  Através do Ofício n.º 2022..., de 23 de fevereiro de 2022, a Requerente foi notificada do relatório final de inspeção tributária, em sede do qual a Autoridade Tributária concluiu pela existência de IVA (alegadamente) em falta, no montante de 66.706,39 EUR, por (pretensa) aplicação (errónea) da taxa reduzida de IVA (6%) à venda dos produtos identificados supra – cfr. cópia do relatório de inspeção tributária ( Cfr Doc 3, com o PPA).
  5. Os serviços inspetivos, no citado relatório, sustentaram o seguinte:

«[A] aplicação da taxa reduzida apenas abrange os produtos/rações utilizados na alimentação de animais no âmbito de atividades de produção agrícola e com destino à alimentação humana […]. A ração E..., destinada à alimentação de cavalos, dadas as suas especificidades, não reúne os requisitos para ser enquadrada em qualquer das verbas da tabela da lista I do CIVA […]. Além da marca E... […], foram identificadas rações e outros produtos, transacionados à taxa reduzida, que pela sua designação não se destinam a animais no âmbito de produção agrícola e com destino à alimentação humana, como é o caso de ACTIVE LIFE SPORT 20 KG, FLAMINGO FLOATING, CLASSIC SPORT 20 KG, GULOSEIMAS POMBOS e MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG […]. Assim, a taxa de IVA a aplicar a estes alimentos e rações é de 23%» – cfr. páginas 9, 10 e 11 do citado documento n.º 3.

  1. Na sequência da notificação do projeto de relatório de inspeção e exercido pela Requerente o direito de audição prévia, os serviços inspetivos da AT pronunciaram-se e decidiram do seguinte modo:

«A – Alegações de contribuinte

Das correções propostas pela inspeção, o contribuinte vem manifestar a sua não concordância no que respeita a aplicação da taxa de IVA de 23% em oposição à taxa de 6% por ele praticada nos produtos da marca E... e outros produtos residuais também utilizados com conexão com rações, sobretudo para pombos. Refere o contribuinte que, tendo grande diversidade de produtos e clientes, sempre teve o maior cuidado na análise das incidências e taxas a aplicar e na dúvida, sempre optou por não correr riscos, aplicando, no IVA, taxas superiores. No caso dos produtos já referidos, houve esse cuidado acrescido e, por iniciativa própria, colheram todas as informações possíveis junto dos seus clientes, tendo optado pela aplicação das taxas de IVA que julgaram legais e perfeitamente justificáveis. Alegam ainda que têm a certeza absoluta que os clientes para quem vendem as rações e outros produtos, objeto de discordância da AT, os usam na alimentação de cavalos ou pombos cujo destino normal é a alimentação humana e só excecionalmente aparece um animal que tem outro destino […].

                 B – Resposta da IT

[…] [É] evidente que o seu enquadramento [das rações para cavalos] não cabe na verba 3.3 da lista I anexa ao código do IVA, conforme foi explicado no relatório da inspeção. A proposta de correção apresentada pela inspeção visa essencialmente os produtos da marca E... e, de forma residual, outros produtos destinados a aves (FLAMINGO FLOATING e GULOSEIMAS POMBOS) que não reúnem os requisitos para serem taxados a 6%. Concentrando-se o maior peso nos produtos E..., é sobre esses que recai o desacordo do contribuinte e a sua argumentação contra as correções. É entendimento da inspeção que os alimentos da E... se destinam à alimentação de cavalos, sendo que, face às suas especificidades e particularidades têm a finalidade de dar ao animal os nutrientes necessários para que este possa potenciar a sua forma e capacidades físicas. Trata-se de um produto direcionado para cavalos de lazer, desporto ou até competição […]. Para sustentar as suas alegações, […] apresenta um email de um cliente (Centro Hípico ...) […]. Neste email, refere o Centro Hípico que se dedica à criação de cavalos para desporto (10%), hipoterapia (30%), abate (50%) e reprodução (20%). Se o objetivo era demonstrar que a aplicação da taxa de IVA de 6% na venda de ração para cavalos estava correta, na medida que se encontrava enquadrada na verba 3.3, seria útil juntar ao email mais informação fiscalmente relevante e devidamente comprovada. Referimo-nos, desde logo, ao enquadramento da atividade exercida no âmbito de uma atividade agrícola. Não fazendo qualquer prova da distribuição percentual que foi apresentada nem de se tratar de uma exploração agrícola, somos levados a concluir que existirá alguma deturpação da realidade. O próprio nome indica tratar-se de um Centro Hípico e basta uma breve pesquisa para percebermos a real atividade desenvolvida […]. Ao contrário do que pretendem demonstrar com o email, a atividade desenvolvida é essencialmente de desporto e lazer e não de criação de cavalos para consumo humano […].

[E]stá fora de questão que não exista um consumo de carne de cavalo, no entanto, comparativamente a outros tipos de carnes, o consumo é de tal forma residual que não encontramos explorações que se destinem à criação de cavalos tendo como objetivo final o seu abate para consumo humano […]. Uma vez mais, não se afigura estarmos perante argumentos que validem a aplicação da taxa reduzida a este tipo de produtos, pelo contrário.

O último documento apresentado pelo contribuinte é uma resposta dada pela OCC em 2008 a um associado  […]. A resposta favorável não acolhe a nossa concordância, na medida em que peca pela falta de enquadramento […].

A intenção do legislador ao preconizar a utilização de taxas diferenciadas no que respeita aos bens e serviços consumidos, visa uma discriminação positiva, não cabendo a quem tem que aplicar as normas fazer uma interpretação à luz da sua conveniência. Alimentar animais que se encontram numa exploração agropecuária e que têm como fim ser introduzidos no mercado para consumo humano merece, em termo de taxação de IVA, ter um tratamento diferenciado face a alimentar animais que se destinam a fins lúdicos ou desportivos e que só por mero acaso poderão terminar a ser abatidos para consumo humano. Entende-se, então, que será de manter os valores das correções propostos» – cfr. páginas 14 a 19 do documento n.º 3.

Concluindo que:

«Face ao exposto relativamente à incorreta aplicação das taxas de IVA […], será de aplicar a taxa normal de IVA ao invés da taxa reduzida. Assim, a correção à taxa de IVA aos produtos referidos […] é de 17% (diferença entre 23% e 6%). […] O total de correção de IVA é de €66.706,39» – cfr. páginas 12 a 14 do documento n.º 3.

  1.  Em consequência da aludida correção, a Requerente foi notificada dos atos tributários objeto dos presentes autos, melhor identificados supra, resultando dos mesmos um montante global a pagar de 73.304,48 EUR (66.645,06 EUR de imposto e 6.659,42 EUR de juros compensatórios) – cfr. documento n.º 1.
  2. A Requerente procedeu ao pagamento voluntário e integral dos montantes adicionalmente liquidados – cfr. cópias dos comprovativos de pagamento, juntas como documento n.º 4.
  3. Os produtos ACTIVE LIFE SPORT 20 KG, FLAMINGO FLOATING, CLASSIC SPORT 20 KG, GULOSEIMAS POMBOS e MM STANDARD SPORT SEM CEVADA 25 KG destinam-se à alimentação de aves, enquanto o produto E... destina-se à alimentação de cavalos.

 

FACTOS NÃO PROVADOS

Não ficou provados que:

  1. No ano de 2019, o universo de produtos das marcas mencionadas supra, em c., d. e e., dos factos provados,  comercializados pela Requerente à taxa reduzida de IVA (6%), tivesse sido afeto à alimentação de cavalos e pombos usualmente destinados a alimentação humana ou fosse essa a sua principal afetação
  2. Estes produtos se destinassem igualmente a “cavalos de trabalho” (i.e., a cavalos afetos a exploração agrícola) e não só a “cavalos recreativos ou de competição desportiva”.

 

MOTIVAÇÃO

  1. Recorda-se, preliminarmente,  que, relativamente à matéria de facto,  o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor - cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada -  cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
  2. Por outro lado e de harmonia com o  princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, das regras legais em matéria de ónus e meios admissíveis da prova e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas, do senso comum e da vida em geral (cfr. art.º607º-5, do CPC). A esta luz, somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v. g., força probatória plena dos documentos autênticos - cfr., v. g., artº.371º, do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
  3. A esta luz é que o sobredito quadro factual foi apurado pelo Tribunal com base na análise crítica dos elementos probatórios documentais, designadamente, o processo administrativo instrutor (PA) junto pela AT,  dos citados documentos 1, 2 e 3, juntos com o pedido de pronúncia arbitral, tudo em conjugação com o depoimento testemunhal prestado em audiência por B... .
  4. Desta análise do Tribunal é que resultou a convicção quanto à prova dos factos mencionados e, paralelamente, resultaram, no mínimo, sérias dúvidas quanto à prova pretendida pela Requerente de que os alimentos vendidos ou comercializados à taxa normal de IVA (23%) não fosse a adequada ou legal decorrente da alegada afetação dos animais a que se destinavam esses alimentos e que seria a alimentação humana.
  5. Pois bem, foi a este respeito que se suscitaram as dúvidas do Tribunal decorrentes da circunstância de ser público e notório que, pelo menos em Portugal,  os cavalos só incidentalmente ou subsidiariamente serem destinados ao consumo humano e, embora não tão acentuada ou notoriamente, o mesmo se passa com os pombos.
  6. Certo que a Requerente comercializando esses produtos para empresas ou entidades que tivessem por escopo o comércio de cavalos e pombos com destino à alimentação humana, facilmente o demonstrava elencando esses seus clientes e o objeto dos respetivos negócios.
  7. Tal, porém, não ocorreu e o depoimento testemunhal prestado não foi suficientemente específico ou claro nessa matéria, tendo sido mais opinativo quando a depoente afirma que “desde que o animal possa ser utilizado, ainda que não principalmente, para consumo humano, os produtos devem ser tributados em IVA à taxa reduzida (6%)”, indicando duas empresas (Quinta do C... e a D...) que, no final da vida útil dos animais os destinam ao consumo humano, sendo as rações para cavalos e pombos vendidas, indiferentes quanto ao destino dos animais.
  8. Não foi de molde a atenuar as dúvidas do Tribunal a cópia de um mail enviado à Requerente pelo Centro Hípico ..., Lda.,  e  incorporado a fls 32 do processo administrativo instrutor,  a informar ou declarar que aquele Centro se dedica à criação de cavalos para abate na proporção de 50% sendo os restantes 50% destinados a desporto, hipoterapia e reprodução.
  9. Por outro lado e ao contrário do que defende a Requerente não era à AT que competia demonstrar que as rações se destinavam a animais para fins diversos do consumo humano mas antes era da Requerente o ónus de provar a sua tese de que as rações vendidas se destinavam sobretudo a animais (cavalos e pombos) para consumo humano.
  10. Não sendo feita essa prova e/ou ficando ao Tribunal dúvidas quanto a essa realidade, ter-se-á sempre de concluir pela não prova desses factos à luz do disposto no artigo 414º, do CPC (aplicável à arbitragem tributária, ex vi artigo 29º, do RJAT) quando dispõe que “(...) a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (...)”

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

B. O Direito

  1. Como abordagem preliminar para a fundamentação jurídica, assinale-se o que há muito vem sendo o entendimento da Jurisprudência quanto ao dever de apreciação dos argumentos apresentados pelas partes e que se traduz na não obrigatoriedade (sublinhado nosso) de os Tribunais apreciarem todos os argumentos formulados pelas partes (Cfr., inter alia, Ac do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 7 Jun 95, rec 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Ac STA – 2ª Sec – de 23 Abr 97, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094).
  2. Vejamos então as questões suscitadas e assinaladas supra e que ora se relembram:

A - A incompetência material do Tribunal “(...)na parte referente à correção não contestada(...)”

  • A ineptidão do PPA por falta de causa de pedir;

C - (Pretensa) violação pela AT do dever de fundamentação e dos princípios do inquisitório,  da verdade material e do ónus da prova

D - A inconstitucionalidade da verba 3.3, da Lista anexa ao CIVA por (alegada) preterição do princípio do primado do Direito Europeu concretizada na (alegada) violação do disposto no Anexo III, da Diretiva IVA.

E - A interpretação quanto aos requisitos estabelecidos na legislação nacional para aplicação da taxa reduzida de IVA [Verba 3.3 da Lista I, anexa ao CIVA]

 

A – Relativamente à (in)competência material

  1. Alega a Requerida AT que a Requerente apenas contesta parte dos atos de liquidação em causa que constituem o objeto mediato do presente processo arbitral e que foram promovidas duas correções em sede inspetiva e que ambas concorrem na definição da base tributável e do imposto em falta apurados naquela ação inspetiva, consequentemente vertidas nas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios em causa nos presentes autos.
  2. E, continua a Requerida, a própria  Requerente expressamente afirmou na reclamação  graciosa por si apresentada (cf. mormente os artigos 8º e 9º daquele articulado), que os atos tributários de liquidação ali reclamados (e aqui impugnados) têm subjacentes duas correções e que:
  1. ... não  concorda com as correções técnicas  efetuadas no montante de € 65.971,30, por a Inspeção Tributária ter procedido a alterações do IVA da taxa reduzida para a taxa normal dos produtos "ACTIVE LIFE SPORT 20 KG", "FLAMINGO FLOATING", "CLASSIC SPORT 20 KG", "GULOSEIMAS POMBOS", "MM STANDARD SPORT S/CEVADA 25KG" e "E..." mas
  2.  ... aceita correções ao IVA  no valor de € 735,09, referente às diferenças detetadas detetadas entre o SAF-T (PT) de faturação  e as declarações periódicas de IVA.
  1. Concluiu deste modo a AT que, pelas circunstâncias sumariamente assinaladas, deve determinar-se apenas a anulação parcial dos atos tributários de liquidação em causa na medida da procedência da impugnação parcial que a própria Requerente assinala e, quanto ao pedido de anulação total das liquidações deduzido pela Requerente no PPA, por a mesma apenas contestar uma das duas correções promovidas na correspondente ação inspetiva, verifica-se a incompetência material do Tribunal na parte referente à correção não contestada, o que consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo nesta parte, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa nessa medida, de acordo com o previsto nos artigos 576.o, n.o 2, 577.o, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.o, n.o 1, alínea e) do RJAT.

Decidindo

  1. O facto de ser porventura improcedente ou sem fundamento um dos pedidos formulados na petição inicial não leva, de per si, à declaração de incompetência material do Tribunal mas tão só e apenas à eventual improcedência desse pedido.
  2. Com esta sumária, mas suficiente,  fundamentação, improcede a exceção de incompetência material do Tribunal suscitada.

 

B - A ineptidão do PPA por falta de causa de pedir

  1. A causa de pedir é o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir).
  2. A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos Réus da instância e que tal exceção é de conhecimento oficioso pelo Tribunal conforme os artigos 186º nº 1 e 2 alínea a), e artigo nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.
  3.  Ora é sabido que a petição inicial tem de formular um silogismo que estabeleça um nexo lógico entre as suas premissas (as razões de facto e de direito explanadas) e a conclusão (o pedido deduzido) e que a sua falta se traduz numa ausência ou inexistência de objeto do processo, sem prejuízo da apreciação casuística que é importante realizar para se poder concluir se a alegação consistente na causa de pedir é feita em termos genéricos tais, que não ilustre e evidencie, em factos concretos, o objeto do litígio, ou se essa generalidade, ou deficiência por escassez ou falta de completa inteligibilidade, permite sem esforço de imaginação compreender qual é a causa de pedir, de tal forma que, em si mesma e mesmo sem aperfeiçoamento, autoriza um julgamento e uma decisão sobre o seu mérito.
  4.      Ora,  como se disse,  o artigo 186.º n.º 2 al. a) do CPC determina que é inepta a petição “quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
  5.     Porém entende-se que “só a falta total (não a escassez) ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial”
  6.     Contudo, o nº 3 do artigo 186.° do Código de Processo Civil estatui que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na al. a) do n.º anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
  7.     A causa de pedir é definida como facto jurídico de que emerge a pretensão do autor ou, por outras palavras, “o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido”.
  8.     A Requerente  descreve a causa de pedir de forma suficiente e a AT interpretou convenientemente a petição inicial dela se defendendo e entendendo perfeitamente os fundamentos invocados para a procedência do pedido.
  9.     Assim é que improcede também a invocada exceção.

C - (Pretensa) violação pela AT do dever de fundamentação e dos princípios do inquisitório,  da verdade material e do ónus da prova

  1. É sabido que o direito à fundamentação relativamente aos atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, tem consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, tendo o respectivo princípio constitucional sido densificado nos arts. 124º e 125º do CPA e, posteriormente, nos arts. 77º nºs. 1 e 2,  da LGT (acto administrativo tributário).
  2.  Este dever legal de fundamentação do ato administrativo cumpre uma dupla função: endógena, ao exigir ao decisor a expressão dos motivos e critérios determinantes da decisão, assim contribuindo para a sua ponderação e transparência; exógena, ao permitir ao destinatário do acto uma opção esclarecida entre a conformação e a impugnação graciosa ou contenciosa (cfr. o ac. STA, de 2/2/2006, rec. no 1114/05). Daí que essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio ato (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do ato um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto. Ou seja, a fundamentação formal do acto tributário é distinta da chamada fundamentação substancial, devendo esta exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico.
  3. Especificamente, também a decisão em matéria de procedimento tributário exige sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo essa fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os integrantes do relatório da fiscalização tributária, e devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo (cfr. o art. 77º,  da LGT), tendo-se como constitucionalmente adequada a fundamentação que respeite os mencionados princípios da suficiência, da clareza, e da congruência e que, por outro lado, seja contextual ou contemporânea do acto, não relevando a fundamentação feita a posteriori (cfr., v. g., os acórdãos do STA, de 26/3/2014, proc. no 01674/13 e de 23/4/2014, proc. no 01690/13). De referir, porém que, para a suficiência da fundamentação de direito da decisão do procedimento tributário ou do acto tributário não é sempre necessária a indicação dos preceitos legais aplicáveis, bastando a referência a princípios jurídicos ou a um regime jurídico que definam um quadro legal perfeitamente conhecido ou cognoscível por um destinatário normal, colocado na posição do destinatário real (cf. acórdão do STA, de 17/11/2010, proc. no 1051/09 e jurisprudência nele citada).
  4.  Tem-se entendido na doutrina e na jurisprudência que a fundamentação, até por causa do imperativo da clareza, deve ser simples, sem deixar de ser plena.
  5.  Implica isso que, se a fundamentação se encontra já formulada completamente num determinado passo de um procedimento ou processo, é mais do que desnecessário, por redundância, repeti-la: pode ser até contraproducente, convertendo-se numa penosa reformulação de tudo o que já foi dito, de tudo o que já foi argumentado, de tudo o que já foi documentado – contribuindo presumivelmente para a entropia informativa por excesso, redundando, no final, em desinformação e vulnerabilização daquele a quem a informação deveria precipuamente aproveitar, que é o seu destinatário: esse o princípio que dita a solução consagrada no art. 77º da LGT.
  6. Nesse mesmo sentido reconheceu-se já, em sede de arbitragem tributária, que “quando o ato tributário (liquidação adicional de imposto, por exemplo) surge na sequência e em consequência dum procedimento inspetivo levado a cabo pela Administração Fiscal, a dialética ou diálogo que necessariamente se estabelece entre o contribuinte e a inspeção tributária, hão-de tornar difícil, em princípio, o não cumprimento ou até o cumprimento deficiente desse ónus de fundamentação na medida em que a decisão final se vai construindo ao longo desse processo com a participação do contribuinte” .
  7. O contexto procedimental / processual não é, em suma, indiferente para se aferir em concreto a adequação da fundamentação produzida. Como se conclui numa outra decisão arbitral, “deverá, desde logo, ser afastada a hipótese de existência de nulidade por falta de fundamentação, já que é bem patente a existência de um processo administrativo com junção de elementos probatórios, funcionamento do contraditório, fundamentação, conclusões […] Ou seja, todos os despachos decisórios que conduziram à liquidação contestada ou à confirmação da sua correção, foram precedidos de informações dos serviços contendo todos os fundamentos, de facto e de direito, necessários à plena compreensão de como foi calculado o valor.  Assim, verifica-se que o ato foi praticado num contexto procedimental susceptível de permitir ao seu destinatário ficar a saber as razões de facto e de direito […]” .
  8. Daí que seja entendimento firmado na própria jurisprudência arbitral que a alusão a “sucinta exposição”  (art. 77º, 1, da LGT) é para ser tomada à letra: “o que importa é que, ainda que resumidamente ou de forma sucinta, se conheçam as premissas do ato e se refiram todos os motivos determinantes do conteúdo resolutório”
  9. As mesmas razões de economia e racionalidade de meios, aditadas à consciência de que a fundamentação se vai, não raro, adensando “dialogicamente” ao longo do processo, têm levado a jurisprudência a reconhecer que a fundamentação excessivamente minuciosa pode ser o contrário daquilo que teleologicamente se visa com uma verdadeira fundamentação – dispensando minúcias ainda onde elas notoriamente não contribuíssem já para a partilha de informação entre administração e contribuintes, numa espécie de efeito de “rendimento marginal decrescente” da própria informação. Daí que a referência a princípios, a regimes, ou a quadros normativos, possa dispensar a enunciação completa de tudo o que corresponde a esses princípios ou a esses regimes ou a esses quadros normativos.
  10.  Não deve, por outro lado,  esquecer-se que as características exigidas quanto à fundamentação formal do acto tributário, são distintas das exigidas para a chamada fundamentação substancial, que deve exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico. É que, neste domínio da fundamentação do acto, é relevante a distinção entre fundamentação formal e fundamentação material: à fundamentação formal interessa a enunciação dos motivos que determinaram o autor ao proferimento da decisão com um concreto conteúdo; à fundamentação material interessa a correspondência dos motivos enunciados com a realidade, bem como a sua suficiência para legitimar a atuação administrativa no caso concreto.
  11.  No  ensinamento de Vieira de Andrade, (O Dever de Fundamentação Expressa de Atos Administrativos, Almedina, 2003, p. 231.) o dever formal cumpre-se «... pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis; enquanto a fundamentação material exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo».
  12.  Por outro lado, conectado com este dever de fundamentação, está o cumprimento dos princípios do inquisitório e da verdade material.
  13. Assim é que, o entendimento sobre estes pontos decorre do que ficou estabelecido anteriormente: se concluímos que o RIT é minucioso e completo nas demonstrações e cálculos, e que daí pudemos até inferir o preenchimento do dever de fundamentação, então é porque foi cumprido o dever estabelecido no artº 58º da LGT quanto à realização de “todas as diligências necessárias (…) à descoberta da verdade material”, e não ocorreu nenhum vício procedimental de omissão de atos de inspeção, que especificamente redundasse em desconsideração pelas justificações apresentadas pela Requerente, ou de conflito com essas justificações, ou não lograsse passar do plano das meras suspeitas.
  14. Resulta claro do RIT e da demais documentação junta ao PPA, que foram solicitados repetidamente esclarecimentos e pedidas informações à Requerente de molde a não permitirem a conclusão de incumprimento dos deveres de fundamentação e dos princípios do inquisitório e da verdade material.

 

D - A inconstitucionalidade da verba 3.3, da Lista I anexa ao CIVA por (alegada) preterição do princípio do primado do Direito Europeu concretizada na (alegada) violação do disposto no Anexo III, da Diretiva IVA.

  1.  A Lista I, anexa ao Código do IVA, elenca, para o que ora interessa, os bens e serviços sujeitos à taxa reduzida de 6% e, designada e concretamente,  os “Bens utilizados normalmente no âmbito das atividades de produção agrícola e aquícola” – cfr 3., da citada Lista.
  2.  Desse elenco de bens fazem parte “farinhas, cereais e sementes, incluindo misturas, resíduos e desperdícios das indústrias alimentares e quaisquer outros produtos próprios para alimentação de gado, de aves e outros animais, referenciados no Codex Alimentarius, independentemente da raça e funcionalidade em vida, incluindo os peixes de viveiro, destinados à alimentação humana”  - Cfr 3.3, da mencionada Lista.
  3.  Por seu lado, a Diretiva IVA, no seu artigo 98º, dispõe que “(...) os Estados-Membros podem aplicar um máximo de duas taxas reduzidas (...) fixadas numa percentagem do valor tributável que não pode ser inferior a 5% e aplicam-se apenas às entregas de bens e às prestações de serviços constantes da lista do Anexo III (...)”
  4.  Do citado Anexo III consta designadamente a citada lista das entregas de bens e prestações de serviços a que se podem aplicar as taxas reduzidas de IVA previstas no mencionado artigo 98º, da Diretiva.
  5.  Assim e logo em 1) daquela Lista elencam-se os “(...) produtos alimentares  (...) destinados ao consumo humano e animal, animais vivos, sementes, plantas e ingredientes normalmente destinados à preparação de alimentos, bem como produtos normalmente destinados a servir de complemento ou de substituto de produtos alimentares (...)”
  6.  Segundo a Requerente existe uma alegada discrepância entre o Anexo III da Diretiva IVA  (nº 2006/112/CE, de 28 de novembro) e a verba 3.3 do Anexo I do CIVA, “[...] porque o legislador português fundiu duas situações diversas, para as quais a Diretiva IVA prevê a aplicação da taxa reduzida – as ínsitas nos pontos 1) e 11) do citado Anexo III  – numa única situação, fazendo depender a aplicação desta taxa, reduzida,  da verificação cumulativa dos requisitos de ambas – i.e., de as transmissões de bens se destinarem à alimentação animal e do seu enquadramento no âmbito da atividade de produção agrícola.” (cf. artigo 35º,  do PPA).
  7. Entende ainda a Requerente que o legislador nacional foi mais longe, pois que “[...] adicionou ainda um outro requisito, não plasmado na Diretiva IVA: que os animais, a cujas rações se destinam, sejam utilizados para consumo, estando incluídos no Codex Alimentarius.” (cf. artigo 36º,  do PPA).

Vejamos:

  1. Como é sabido e ora se lembra, o princípio do primado do direito da União Europeia visa regular a transposição feita para o ordenamento jurídico interno de cada Estado- Membro das normas dimanadas da União Europeia, o qual determina que a norma de direito da União Europeia tem prevalência sobre toda as normas de direito nacional.
  2. Dito doutro modo: em caso de conflito ou desconformidade de normas, os Estados-Membros têm o dever de aplicar a norma de direito da União Europeia, preterindo a aplicação da sua norma interna.
  3. Este princípio tem consagração no n.º 4 do artigo 8.º,  da Constituição da República Portuguesa (CRP), quando prevê ou estatui que o direito da União Europeia é aplicável em Portugal nos termos definidos pelo próprio direito da União Europeia.
  4.  Revela-se indiscutível o alegado pela Requerente de que “as disposições constantes da Diretiva IVA são obrigatórias para os Estados-Membros, devendo ser por eles transpostas para o seu Direito interno em estrito respeito pelos objetivos da Diretiva.”.
  5.  A questão que se coloca é agora e sobretudo reconhecer se existe ou não discrepância entre o disposto na Diretiva IVA e o estabelecido no Código do IVA relativamente a este matéria e, mais concretamente, se a legislação nacional é muito mais restritiva do que a legislação europeia como pretende a Requerente e, se consequentemente, existe ou subsiste a alegada inconstitucionalidade.
  6. Pois bem, independentemente de saber se o direito europeu pode constituir parâmetro de fiscalização constitucional de uma norma jurídica  - e, a este respeito, o Tribunal Constitucional (TC) veio já concluir negativamente (cfr . acórdão do TC nº 198/2023[1], proferido no processo no 1095/2020,  mormente na sua referência ao seu acórdão 422/2020[2] - importa então apurar se, no exercício da opção concedida pela Diretiva IVA, o legislador interno elencou na lista I anexa ao CIVA, os bens e serviços suscetíveis de serem sujeitos à taxa reduzida de imposto.
  7. Como se refere no acórdão do TCA Norte citado pela Requerida, proferido, em 29-9-2016, no processo no 01290/14.7BEAVR:

      «O IVA, imposto que sucedeu ao imposto de transacções, é regulado por várias directivas do Conselho, entre as quais a chamada “sexta directiva” (77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977), que procedeu à uniformização da base tributável do imposto a aplicar em todos os Estados membros.[3]

Refere o art. 12°, n° 3, al. a), 3° parágrafo, da Directiva “Os Estados membros podem igualmente aplicar uma ou duas taxas reduzidas. Essas taxas serão fixadas sob a forma de uma percentagem da matéria colectável que não pode ser inferior a 5% e serão aplicáveis apenas ao fornecimento de bens e à prestação de serviços das categorias referidas no anexo H,”

Vemos, assim, que a possibilidade de aplicação de taxas reduzidas está na disponibilidade dos Estados membros, que internamente, podem optar por aliviar a tributação de certos bens (fixando taxas mais baixas) de entre os que constam do anexo à directiva, não tendo, necessariamente, de abranger todos os que ali estão elencados.

Deste modo, o anexo a que a directiva faz referência, contém apenas o rol de todos os bens susceptíveis de tributação à taxa reduzida, não estando os Estados membros obrigados a sujeitar todos eles à taxa reduzida.

Por outro lado, no preâmbulo do CIVA, aprovado pelo DL n° 394-B/84, de 26 de Dezembro, explica-se que se tentou que a passagem do imposto de transacções ao IVA se fizesse com o mínimo possível de perturbações, preocupação que justificou várias soluções adoptadas pelo legislador português. Assim, visou-se evitar o «salto demasiado brusco» que constituiria a passagem de uma situação de «isenção completa para uma tributação por taxa normal», relativamente a certas «categorias de bens, particularmente de bens alimentares, que, isentos de IT, não beneficiarão de isenção em IVA», pelo que foi criada uma lista de bens sujeitos à taxa reduzida.»

  1. A referência na legislação nacional ao Codex Alimenatarius nada de substancial altera nesta matéria porquanto, como se explicita na Informação Vinculativa proferida em 29.01.2020, pela Direção de Serviços do IVA citada pela Requerida, “(...) o Codex Alimentarius corresponde a uma expressão em latim que significa “código alimentar” ou “livro sobre alimentos” contendo “(...) um conjunto de normas, códigos, diretivas e outras recomendações que visam a segurança sanitária dos alimentos e a proteção dos consumidores. Os seus textos são desenvolvidos e mantidos pela Comissão do Codex Alimentarius, fórum internacional criado em 1963 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).”.
  2.  A legislação nacional elencou na lista I anexa ao CIVA, os bens e serviços suscetíveis de serem sujeitos à taxa reduzida de imposto.
  3.  Claramente que este elenco de bens são aqueles que a Diretiva IVA permitiu que fossem sujeitos à taxa reduzida de IVA.
  4. Assim é que no ponto 3.3, da citada Lista I vemos  contempladas farinhas, cereais e sementes, incluindo misturas, resíduos e desperdícios das indústrias alimentares e quaisquer outros produtos próprios para alimentação de gado, de aves e outros animais, referenciados no Codex Alimentarius, independentemente da raça e funcionalidade em vida, incluindo os peixes de viveiro, destinados à alimentação humana.
  5. Ou seja: a referência ao Codex Alimentarius nada de substancial aporta ou altera a respeito desta matéria na medida em que se trata apenas apenas duma compilação de regras e normas que deverão ser adotadas  quando está em causa o tratamento de bens alimentícios.
  6. Assim é que, no sítio da internet[4] da DGAV (Direção-Geral de Alimentação e Veterinária), pode ler-se que o Codex “[é] um conjunto de normas, códigos, diretivas e outras recomendações internacionais que visam promover a segurança sanitária dos alimentos, a proteção dos consumidores e garantir práticas justas no comércio de alimentos.”
  7. À luz do sumariamente exposto, não se antolha como poderá o citado Codex ofender a citada Diretiva quando o mesmo se destina a regular a entrada ou disponibilização de alimentos no mercado, tendo em vista a sua segurança sanitária, protegendo assim, os seus consumidores, independentemente, destes serem humanos ou animais.
  8. Nesta linha argumentativa é que se decidiu já que “(...) as sementes transformadas e comercializadas, que visam a alimentação de aves ornamentais e outras que não se destinam a alimentação humana não beneficiam da tributação em IVA à taxa reduzida (...)” – Cfr Acórdão acórdão do TCA Norte, proferido no processo no 01290/14.7BEAVR, em 29-09-2016, publicado em www.dgsi.pt.
  9. Quanto ao argumento de  que existe uma discrepância entre o texto da Diretiva IVA e o do CIVA, sendo a primeira bastante mais abrangente” (...) porque o legislador português fundiu duas situações diversas, para as quais a Diretiva IVA prevê a aplicação da taxa reduzida – as ínsitas nos pontos 1) e 11) do Anexo III, acima transcritos -, numa única situação, fazendo depender a aplicação desta taxa da verificação cumulativa dos requisitos de ambas (...)” deve salientar-se que a redação da verba 3.3 do CIVA em nada contende com o teor dos nºs 1 e 11 do Anexo III à Diretiva IVA, até porque o título da Verba 3 apenas reforça o âmbito de utilização dos bens (consumo humano), o que está previsto tanto no ponto 1) como no ponto 11) daquele Anexo III.
  10. Realce-se que o direito interno não tem de fazer uma cópia literal das normas europeias, sendo até que neste caso concreto, resulta da própria letra da Diretiva IVA que os Estados podem optar por aplicar taxas reduzidas, não sendo obrigados a aplicá-las a todos os bens.
  11.  No caso,  na verba 3.3 em concreto,  tal como assinala a AT, Portugal optou por deixar de fora os animais que não se destinam à alimentação humana.
  12. Coloca-se então a questão de saber se as espécies de animais alimentados pelos produtos aqui em discussão, são normalmente consumidos pela população portuguesa em geral e, logo à partida, diga-se que aos olhos de um homem médio, tal tipo de carne não se encontra à disposição nos locais comuns de venda, ou seja, nos açougues, vulgarmente conhecido como talhos.
  13. Pois bem, é facto público e notório que, em Portugal, o consumo humano de carne de cavalo e de pombo são muitíssimo residuais, não se conhecendo sequer estabelecimentos que vendam, a título principal, esse tipo de carne para alimentação humana.
  14.  Ou seja: os cavalos e pombos não se destinam, normalmente, à alimentação humana mas antes são utilizados, insiste-se,  normalmente em atividades de lazer, recreio ou competição, sendo os cavalos utilizados, de novo normalmente na equitação e os pombos na prática de columbofilia e, também de caça.
  15. Obviamente que, se por hipótese - que não é manifestamente a presente no caso dos autos - , fosse demonstrado (ónus da Requerente – artigo 74º, da LGT), que a Requerente vendia os alimentos em causa para entidades que se dedicassem a título principal à criação de cavalos e/ou pombos destinados à alimentação humana, poder-se-ia admitir a redução de taxa de IVA
  16.  Não sendo esse o caso, é manifesto que a taxa de IVA será a normal não existindo a invocada inconstitucionalidade.
  17. Acrescentar-se-á ainda, en passant, que o TJUE tem firmado jurisprudência defendendo que a carne de cavalo não é um produto comumente destinado ao consumo humano, havendo necessidade de demonstrar que a mesma se destina ao trabalho agrícola, ao abate ou à reprodução – Cfr Acórdão no processo nº  C-41/09, Comissão/Reino dos Países Baixos, de 03.03.2011, publicado in www.curia.europa.eu
  18. Destaca-se do teor desse Acórdão: “(...) Ao permitir a aplicação de uma taxa reduzida do IVA aos produtos alimentares, em vez de uma taxa normal, o legislador da União procurou tornar estes produtos mais baratos, e portanto mais acessíveis, para o consumidor final, que é quem, em definitivo, suporta o IVA (v., designadamente, acórdãos de 3 de Outubro de 2006, Banca popolare di Cremona, C-475/03, Colect., p. I-9373, n.o 22, e de 11 de Outubro de 2007, KÖGÁZ e o., C-283/06 e C-312/06, Colect., p. I-8463, n.o 30). Com o objectivo de alcançar efectivamente essa finalidade, o dito legislador, logicamente, alargou a aplicação desta taxa reduzida do IVA a elementos que, não sendo em si mesmos produtos alimentares, são normalmente destinados à sua preparação. Resulta do exposto, por um lado, que o ponto 1 do anexo III só autoriza a aplicação de uma taxa reduzida do IVA relativamente a animais vivos normalmente destinados à preparação de alimentos e, por outro, que a finalidade desta disposição é facilitar a compra destes alimentos pelo consumidor final.  Ao utilizar o advérbio «normalmente» no segundo membro de frase do dito ponto 1, o legislador da União visava os animais que, habitualmente e de modo geral, se destinam a entrar na cadeia alimentar humana ou animal. É o caso, designadamente, das espécies bovina, ovina, caprina e suína, mencionadas no ponto a. 4, alínea a), da lei do imposto sobre o volume de negócios. Todas as entregas de animais pertencentes a estas espécies podem, assim, ser objecto de uma taxa reduzida do IVA, sem necessidade de se examinar a situação particular deste ou daquele animal. Ao invés, é manifesto que, na União, a espécie equídea se encontra numa situação diferente da das espécies referidas no número anterior. Com efeito, como realçou o advogado-geral no nº 65 das suas conclusões, os cavalos não são, habitualmente e de um modo geral, destinados à preparação de alimentos, embora alguns sirvam efectivamente para consumo humano ou animal.  Tendo em conta esta situação particular dos cavalos, que, não sendo normalmente destinados à preparação de alimentos, podem contudo, nalguns casos, ser entregues para consumo, há que do considerar que, à luz do objectivo do legislador da União que pretende tornar os bens essenciais mais baratos para o consumidor final, o ponto 1 do anexo III deve ser interpretado no sentido de que só a entrega de cavalos para abate com vista à sua utilização na preparação de alimentos pode ser objecto de uma taxa reduzida do IVA.  Importa acrescentar que, de acordo com jurisprudência assente, as disposições que derrogam um princípio são de interpretação estrita (v., designadamente, acórdãos de 12 de Dezembro de 1995, Oude Luttikhuis e o., C-399/93, Colect., p. I-4515, n.o 23, e de 17 de Junho de 2010, Comissão/França, C-492/08, Colect., p. I-5471, n.o 35). Ora, permitir a aplicação de uma taxa reduzida do IVA relativamente a qualquer entrega de cavalos implica acolher uma interpretação lata do ponto 1 do anexo III.  O referido ponto 1 não permite, portanto, a um Estado-Membro aplicar uma taxa reduzida do IVA ao conjunto das entregas de cavalos vivos, independentemente do seu destino.

 

E - A interpretação quanto aos requisitos estabelecidos na legislação nacional para aplicação da taxa reduzida de IVA [Verba 3.3 da Lista I, anexa ao CIVA]

  1.  Como já se deixou exposto, torna-se claro, por um lado, que o ponto 1 do anexo III só autoriza a aplicação de uma taxa reduzida do IVA relativamente a animais vivos normalmente destinados à preparação de alimentos e, por outro, que a finalidade desta disposição é facilitar a compra destes alimentos pelo consumidor final.
  2. Os cavalos e pombos não são animais, normalmente destinados à alimentação humana e a prova que, no caso, essa normalidade não acontecia e que os alimentos vendidos ou comercializados pela Requerente se destinaram a cavalos e pombos para consumo humano, não foi feita pela Requerente, a quem competia tal ónus – artigo 74º, da LGT.
  3.  Razão porque não subsiste fundamento para não manter na ordem jurídica  as liquidações adicionais e a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa plasmada no Ofício n.º 2022..., de 16 de dezembro de 2022, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de ..., considerando a legalidade desses atos.
  4. Fica, deste modo, prejudicada a apreciação de pedido de juros indemnizatórios formulado e as demais questões suscitadas.

 

 Reenvio prejudicial

  1.  Como se infere ou conclui do anteriormente exposto, não tem o Tribunal dúvidas sobre a correta transposição dos pontos 1) e 11)  do Anexo III da Diretiva IVA e, consequentemente,  é desprovido de fundamento o pedido do uso de faculdade de reenvio prejudicial nos termos do artigo 267º, § 3 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.  para a o TJUE

 

III - DECISÃO

Em face do supra exposto, decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar totalmente improcedentes as exceções suscitadas pela Requerida na Resposta;
  2. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado e, em consequência
  3. Absolver a Requerida do pedido
  4. Julgar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, incluindo o pedido de reenvio prejudicial formulado e
  5.  Condenar a Requerente nas custas.

 

Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 73.304,48, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas

As custas são fixadas no valor de € 2.448,00 e ficam inteiramente a cargo da Requerente atento o seu total decaimento.

 

  • Notifique-se, incluindo o Ministério Público

 

 

Lisboa, 2 de abril de 2024

 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

Pedro Miguel Bastos Rosado

(Árbitro Adjunto)

 

Gustavo Gramaxo Rozeira

(Árbitro Adjunto)

 

 



[1] Publicado em tribunalconstitucional.pt

 

[2] Considerou e concluiu o Tribunal Constitucional, em síntese, que o direito da União Europeia não configura uma convenção internacional, para efeitos da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, e, consequentemente, não podia conhecer-se do objeto do recurso interposto.

[3] Não há diferenças substanciais neste matéria entre o disposto na anterior Diretiva IVA e a atual.