Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 268/2023-T
Data da decisão: 2024-03-28  IRC  
Valor do pedido: € 142.045,19
Tema: IRC; Benefícios fiscais; RFAI; Ajudas estatais; Compatibilidade com Direito da União Europeia; Portaria de regulamentação; Inconstitucionalidade.
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SUMÁRIO

I – A indústria transformadora enquadra-se no artigo 2.º, n.º 2 do Código Fiscal de Investimento e não se está perante «atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC», para efeitos do artigo 22.º, n.º 1, do CFI.

II – A actividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos não se encontra excluída do âmbito de aplicação do benefício RFAI pelas “Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR).

III – A Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, não pode validamente afastar a aplicação de benefícios previstos em diplomas de natureza legislativa.

IV – Sendo patente que a intenção legislativa subjacente ao RFAI, na versão do Código Fiscal do Investimento, foi a de «definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional», enunciada na alínea c) do n.º 3 do artigo da Lei de autorização legislativa n.º 44/2014, de 11 de Julho, a Portaria, como instrumento de execução dessas regras, sempre teria de ser interpretada de forma a concretizá-las e não a afastá-las, em face da supremacia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, que resulta do n.º 4 do artigo 8.º da CRP.

V – Não dependendo a aplicação do RFAI, ao caso concreto, de qualquer das condições referidas na alínea c) do n.º 3 do seu artigo 1.º, do RGIC, tem de se concluir que tal aplicação não é afastada por este instrumento do Direito da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A...– Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda., NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 11 de Abril de 2023, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2022..., e mediatamente sobre a ilegalidade do objecto dessa reclamação graciosa, o acto de autoliquidação de IRC relativo ao período tributário de 2019, com o n.º 2020..., do qual resultou um excesso de imposto no montante total de € 61.454,62, pedindo a anulação dessa liquidação, e pedindo ainda o reconhecimento do direito de beneficiar de um crédito fiscal a título de RFAI no montante de € 142.045,19, acompanhado da dedução à colecta no valor de € 82.511,75, com o consequente reembolso de € 61.454,62 (depois ampliado para € 77.688,25, em resultado da liquidação adicional de € 16.233,63), acrescido de juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 21 de Junho de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 21 de Junho de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 11 de Setembro de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Suscitada, nessa resposta, uma “questão prévia” relativa a uma irregularidade do Pedido de Pronúncia Arbitral, foi a Requerente notificada, por Despacho de 13 de Setembro de 2023, para emendar essa irregularidade, o que fez por Requerimento de 4 de Outubro de 2023, juntando mais um documento.
  10. Por Despacho de 3 de Novembro de 2023, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, sendo as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.
  11. A Requerente apresentou alegações em 21 de Novembro de 2023.
  12. A Requerida apresentou alegações em 4 de Dezembro de 2023.
  13. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  14. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  15. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade gestora de participações sociais, dominante no Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades - RETGS do Grupo B..., o qual integrava, no exercício de 2019, as seguintes sociedades dominadas:
    1. C..., S.A. (NIPC...), integrada no grupo desde o início de 2006;
    2. D..., Lda. (NIPC...), integrada no grupo desde o início de 2015;
    3. E..., S.A. (NIPC...), integrada no grupo desde o início de 2019.
  2. A C..., S.A. é produtora de vinhos (CAE 11021) e dedica-se também ao enoturismo (CAE 93293), Viticultura (CAE 01210), Produção de licores e de outras bebidas destiladas (CAE 11013), Produção de vinhos espumantes e espumosos (CAE 11022) e Comércio por grosso de bebidas alcoólicas (CAE 46341).
  3. Em 2019 os investimentos iniciais nas suas actividades discriminam-se do seguinte modo:

 

  1. Em 13 de Julho de 2020 a C..., S.A. entregou a sua declaração de rendimentos individual de IRC (Modelo 22), referente ao período de 2019.
  2. Em 28 de Julho de 2020 a C..., S.A. entregou uma declaração de substituição (nº...).
  3. Em 29 de Julho de 2020 a Requerente, na sua qualidade de sociedade dominante do Grupo C..., entregou uma declaração de substituição referente ao Grupo (nº...), na qual se apurava uma colecta total de € 1.806.789,90, incluindo derrama estadual no valor de € 193.575,81, e um valor total de IRC a recuperar de € 1.379.096,65.
  4. Dada a colecta positiva, a Requerente deduziu-lhe o valor de € 1.745.335,28, a título de:
    1. Dedução por lucros retidos e reinvestidos – DLRR – pela C..., S.A., no valor de € 300.000,00;
    2. Saldo do benefício fiscal relativo ao Regime Fiscal de Apoio ao Investimento - RFAI de 2018 apurado pela C..., S.A., que transitou para 2019, no valor de € 16.233,63;
    3. RFAI de 2019 apurado pela C..., S.A., no valor de € 4.823,50
    4. Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento Empresarial II - SIFIDE II, de 2019, apurado pela C..., S.A., no valor de € 1.355.748,02;
    5. SIFIDE II de 2019 apurado pela D..., Lda, no valor de € 68.530,13.
  5. Em 2022 a Requerente entendeu que o apuramento de IRC fora efectuado erradamente, por erro de cálculo do valor do RFAI de 2019 da C..., S.A. – que determinara uma subavaliação do benefício fiscal respectivo que caberia a esta, na medida em que ela, durante o exercício de 2019, realizara investimentos destinados a aumento da sua capacidade produtiva, seja na produção de vinho, seja no enoturismo. Esse erro repercutia-se a nível do RETGS referente a 2019.
  6. A Requerente apresentou a 13 de Julho de 2022 Reclamação Graciosa (autuada com o n.º ...2022...), peticionando que fosse deduzido no campo 355 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC de 2019 o valor de € 82.511,75 a título de RFAI apurado no exercício de 2019, transitando para os períodos seguintes um saldo de € 59.533,44 por insuficiência de coleta, perfazendo um total de € 142.045,19 correspondente ao benefício fiscal que decorre dos € 603.117,44 de investimento elegível realizado em 2019 (25% de investimentos no valor de € 544.889,62 realizados nas regiões Centro e Norte + 10% de investimentos no valor de € 58.227,82 realizados no Algarve).
  7. Das correções a efectuar ao benefício apurado no âmbito do RFAI resulta que o valor total de IRC a recuperar pelo Grupo B..., em 2019, passaria de € 1.379.096,65 para € 1.440.551,27, tendo peticionado a Requerente, em consequência, o reembolso da quantia de € 61.454,62, correspondente à diferença entre o montante inicialmente recuperado e o montante que efectivamente deveria recuperar, bem como a consideração do reporte de RFAI de 2019 ainda não deduzido para os exercícios seguintes.
  8. Em 16 de Novembro de 2922 foi apresentado o projecto de indeferimento da Reclamação Graciosa, de que se destaca:

“(…) conclui-se que o enquadramento, em sede de RFAI, da atividade em causa e, consequentemente, dos projetos de investimento que a ela se se destinem é o seguinte:

a. Atividades NÃO ELEGÍVEIS para efeitos de RFAI

i. Produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021)

1. Enquadra-se no Capítulo 22 – Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres da NC , integrando-se ambos na atual posição 2204.

ii. Produção de vinhos espumantes e espumosos (CAE 11022)

1. Enquadra-se no Capítulo 22 – Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres da NC, integrando-se ambos na atual posição 2204.

b. Atividades ELEGÍVEIS para efeitos de RFAI

i. Produção de licores e de outras bebidas destiladas (CAE 11013)

1. Estes produtos, a par dos licores e de outras bebidas espirituosas, estão incluídos nas posições 22.08 e 22.09 (atuais posições 2207 e 2208 da NC).

2. No entanto, se forem considerados como bebida espirituosa nos termos do artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 110/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de janeiro de 2008, beneficiam da exceção prevista no Anexo I do TFUE.

Na documentação apresentada não é feita qualquer distinção em termos de investimento por código de atividade, não permitindo por isso apurar separadamente os investimentos elegíveis.

Resulta de todo o exposto que os montantes do benefício fiscal nas áreas de Produção e Vinificação, solicitado no âmbito do RFAI, não podem ser validados por incumprimento do requisito legal de elegibilidade da atividade. O mesmo se aplica aos investimentos na área Administrativa (falta de discriminação por código de atividade).

  1. Na reacção ao projecto de decisão de indeferimento, em sede de audição prévia, a Requerente juntara uma lista de investimentos alocados por CAE, seja o CAE 11201 (produção de vinhos comuns e licorosos), seja o CAE 93293 (organização de actividades de animação turística), e a documentação de suporte ao RFAI na qual se descreve o investimento inicial elegível de aumento de capacidade produtiva, com cumprimento do requisito da criação de postos de trabalho.
  2. A 27 de Dezembro de 2022 foi proferido despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, com o fundamento principal de que os investimentos efectuados na actividade de produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021) não cumpririam “o requisito legal de elegibilidade da atividade” – dado o disposto na Portaria nº 282/2014, de 30 de Dezembro, para a qual remete o art. 22º, 1 do CFI aplicável ao RFAI; e o fundamento adicional de que a Requerente não procedera a uma demarcação do investimento por CAE que permitisse um apuramento rigoroso dos montantes elegíveis (nomeadamente os do enoturismo e os do aumento de capacidade produtiva). Destaca-se:

“Sobre a análise global aos pressupostos do benefício

Resulta de todo o exposto que:

• Não foi possível apurar a totalidade do investimento peticionado;

• Foi comprovado o montante de investimento de € 9.572,62, o que resultaria num benefício de € 2.041,48:  € 7.228,06 * 25% + € 2.344,56 * 10%;

• Não se confirma o cumprimento do requisito de criação de postos de trabalho, no âmbito do RFAI.”.

  1. Na sequência de um procedimento inspectivo instaurado à Requerente, credenciado pela Ordem de Serviço Interna nº OI2022..., e efectuado ao exercício de 2019, à liquidação nº 2020... sucedeu uma liquidação adicional com o nº 2022..., e a data de 23 de Setembro de 2022, reflectindo na declaração consolidada as correcções em sede de IRC realizadas à sociedade C... SA no âmbito da Ordem de Serviço OI2021... (1), por se ter constatado que as correcções promovidas ao sujeito passivo relativas ao ano de 2018 tinham implicações no ano de 2019. Nessa liquidação adicional, o valor dos benefícios fiscais inscrito no campo 355 da declaração modelo 22 passou de € 1.745.335,28 para € 1.729.101,65, reflectindo a correção no valor de € 16.233,63 efetuada pelos SIT ao grupo B... .
  2. Em 11 de Abril de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.
  3. Por lapso, a Requerente não considerou, nesse Pedido de Pronúncia Arbitral, o aumento do IRC pago relativamente ao período de tributação de 2019, no valor de € 16.233,63, decorrente da correcção efectuada ao valor dos benefícios fiscais deduzidos no campo 355 da declaração de rendimentos Modelo 22 do RETGS operada pela liquidação adicional com o n.º 2022... e que é recuperado com o apuramento e dedução de RFAI referente ao exercício de 2019.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Ponto Prévio: posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua Resposta, a Requerida chama a atenção para o facto de o pedido de pronúncia referir uma autoliquidação consubstanciada na liquidação nº 2020..., quando existe uma liquidação adicional posterior, com o nº 2022..., e com data de liquidação de 22 de Setembro de 2022 – uma liquidação que resultou do procedimento inspectivo que visou fazer reflectir na declaração modelo 22 consolidada as correcções em sede de IRC realizadas à sociedade C... SA no âmbito da OI2021... (1), por se ter constatado que as correcções relativas ao ano de 2018 tiveram implicações no ano de 2019.
  2. Sendo que, dada a correcção no valor de €16.233,63 efectuada pelos SIT ao grupo B..., o valor dos benefícios fiscais inscrito no campo 355 passou de € 1.745.335,28 para € 1.729.101,65.

 

III. B. Ponto Prévio: posição da Requerente no Requerimento de 4 de Outubro de 2023

 

  1. A Requerente, em Requerimento de 4 de Outubro de 2023, reconhece essa liquidação adicional de IRC referente ao período de tributação de 2019, com o n.º 2022..., e data de liquidação de 23 de Setembro de 2022 – pelo que requer a ampliação da causa de pedir e do pedido deduzido no Pedido de Pronúncia Arbitral.
  2. Esclarece que a referida liquidação adicional visou reflectir, na declaração de rendimentos Modelo 22 do RETGS do Grupo B..., as correcções efectuadas ao benefício fiscal do RFAI apurado no período de tributação de 2018, que, por não ser passível de dedução integral nesse período, transitou para o período de tributação de 2019, pelo valor de €16.233,63, para ser deduzido à colecta do RETGS desse exercício de 2019.
  3. Como a sociedade C... foi objecto de uma acção inspetiva que visou a correcção do benefício fiscal de RFAI por si apurado no período de 2018, e o respectivo valor foi reduzido de € 915.706,79 para € 784.124,01, este benefício fiscal passou a ser deduzido integralmente à coleta do RETGS do Grupo B... desse período, não transitando, portanto, qualquer montante deste benefício para o período de tributação de 2019.
  4. Em consequência, a acção inspectiva e a liquidação adicional corrigiram a dedução à colecta do RETGS do RFAI de 2018 que havia transitado para o exercício de 2019, no montante de € 16.233,63.
  5. No entanto, sustenta a Requerente que não só pagou esse montante, como ainda, na reclamação graciosa, já havia peticionado a dedução de RFAI de 2019 à colecta do RETGS desse período, como se não houvesse qualquer montante referente a RFAI do período de 2018 disponível para dedução.
  6. E que, portanto, se deve a lapso seu o facto de não ter considerado, no Pedido de Pronúncia Arbitral, o aumento do IRC pago relativamente ao período de tributação de 2019, no valor de € 16.233,63.
  7. Conclui a Requerente que o valor do benefício fiscal cujo apuramento e dedução se peticiona não é impactado pela liquidação adicional de IRC referente ao período de tributação de 2019 – não se alterando, portanto, o valor do presente processo arbitral.
  8. Contudo, já que o valor total do IRC liquidado – e efectivamente pago – referente ao período de 2019 aumentou, por força da liquidação adicional em causa, de € 61.454,62 para € 77.688,25, a Requerente solicita a ampliação do seu pedido. E assim, onde se referia o “reembolso à Requerente do IRC indevidamente pago, no montante de € 61.454,62”, requer que se adopte esta outra formulação:

o reembolso à Requerente do IRC indevidamente pago, no montante de € 77.688,25, correspondendo este à soma do IRC pago por força da autoliquidação de IRC de 2019 com o n.º 2020..., no valor de € 61.454,62, e do IRC pago por força da liquidação adicional de IRC de 2019 com o n.º 2022..., no valor de € 16.233,63

 

III. C. Quanto ao mérito: posição da Requerente no Pedido de Pronúncia

 

  1. A Requerente começa por sublinhar que a desconsideração, pela AT, do valor do RFAI apurado pela C..., e que a Requerente pretendia ver deduzido à coleta do RETGS no exercício de 2019, foi motivada pela falta de enquadramento de parte dos investimentos considerados relevantes para o apuramento de RFAI, numa das actividades abrangidas pelo âmbito de aplicação objectiva do benefício fiscal, bem como pela ausência de elementos que permitissem a qualificação do investimento inicial a título de aumento da capacidade produtiva, e pela suposta não-verificação do cumprimento do requisito de criação de postos de trabalho – não sendo invocada, pela AT, a falta de qualquer outro requisito para a aplicação do RFAI.
  2. Assim sendo, sustenta a Requerente que as questões que subsistem são só duas:
  1. da elegibilidade da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos para o benefício fiscal de RFAI;
  2. do cumprimento dos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho

 

III. C. 1. Sobre a elegibilidade da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos para o benefício fiscal de RFAI

 

  1. A Requerente entende que a AT comete um erro manifesto, ao sustentar que os investimentos efectuados na actividade de produção de vinhos comuns e licorosos não poderiam usufruir do benefício fiscal de RFAI, porquanto, de acordo com o art. 1º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, aplicável ao RFAI por remissão dos arts. 2º, 3 e 22º, 1 do CFI, e em conformidade com as OAR e o RGIC, não seriam elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projectos de investimento que tenham por objecto as actividades económicas dos sectores da transformação e comercialização de produtos agrícolas.
  2. E esse erro nasceria de uma tripla circunstância:
  1. da ilegalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo;
  2. de não se verificar a alegada exclusão do âmbito de aplicação das Orientações Relativas aos Auxílios Estatais com Finalidade Regional para 2014-2020 (OAR);
  3. de não se verificar a alegada exclusão do âmbito de aplicação do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC).

 

III. C. 1. A) Sobre a ilegalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo

 

  1. Já que a AT entende que é a Portaria n.º 282/2014, de 30 Dezembro, que determina a limitação do âmbito de aplicação do RFAI a actividades susceptíveis de integrar o conceito de transformação e comercialização de produtos agrícolas – alegadamente por as OAR e o RGIC determinarem essa limitação –, a Requerente sustenta, pelo contrário, a ilegalidade da Portaria, no âmbito do quadro normativo do benefício fiscal de RFAI.
  2. A Requerente lembra que o novo CFI (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro) surgiu ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 44/2014, de 11 de julho, que no seu art. 2º, 3 definia os respectivos sentido e extensão:

“[a] autorização prevista na alínea c) do n.º 1 tem como sentido e extensão:

(…)

c) Definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional;

(…)”

  1. E o novo RFAI seria precisamente essa definição no âmbito regional e sectorial de aplicação do benefício, em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional.
  2. A Requerente lembra que o art. 22º, 1 do CFI estabelece, quanto às actividades relativamente às quais podem ser concedidos benefícios fiscais no âmbito do RFAI, que poderão usufruir do benefício os sujeitos passivos de IRC que exerçam uma actividade nos sectores especificamente previstos no art. 2º, 2, tendo em consideração os códigos de actividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do mesmo artigo, com excepção das actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC:

2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:

a) Indústria extrativa e indústria transformadora;

b) Turismo, incluindo as atividades com interesse para o turismo;

c) Atividades e serviços informáticos e conexos;

d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;

e) Atividades de investigação e desenvolvimento e de alta intensidade tecnológica;

f) Tecnologias da informação e produção de audiovisual e multimédia;

g) Defesa, ambiente, energia e telecomunicações;

h) Atividades de centros de serviços partilhados.

3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior

  1. A remissão do art. 2º, 3 do CFI é para a Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, na qual, entre outros aspectos, são também definidos os sectores de actividade excluídos da concessão de benefícios fiscais.
  2. Ora essa Portaria n.º 282/2014 procede a tais definições nos seus arts. 1º e 2º:

Artigo 1.º

Enquadramento comunitário

Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014‑2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.

Artigo 2.º

Âmbito setorial

Sem prejuízo das restrições previstas no artigo anterior, as atividades económicas previstas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, correspondem aos seguintes códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3 (CAE-Rev.3), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro:

a) Indústrias extrativas - divisões 05 a 09;

b) Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33;

c) Alojamento - divisão 55;

d) Restauração e similares - divisão 56;

e) Atividades de edição - divisão 58;

f) Atividades cinematográficas, de vídeo e de produção de programas de televisão - grupo 591;

g) Consultoria e programação informática e atividades relacionadas - divisão 62;

h) Atividades de processamento de dados, domiciliação de informação e atividades relacionadas e portais Web - grupo 631;

i) Atividades de investigação científica e de desenvolvimento - divisão 72;

j) Atividades com interesse para o turismo - subclasses 77210, 90040, 91041, 91042, 93110, 93210, 93292, 93293 e 96040;

k) Atividades de serviços administrativos e de apoio prestados às empresas - classes 82110 e 82910

  1. Só que, nota a Requerente, ao proceder deste modo a Portaria torna-se ilegal, porque, recorda, a remissão do art. 2º do CFI para Portaria não se reporta à definição de actividades incluídas e excluídas de benefícios, mas reporta-se somente à definição dos CAE: “3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior”.
  2. Há, portanto, uma violação clara da norma habilitante, não apenas literal mas também sistemática – porque, recorda-o a Requerente, não é constitucionalmente admissível a definição do âmbito objectivo de benefícios por Portaria, tratando-se de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por Lei formal ou Decreto-Lei autorizado, como decorre do disposto nos arts. 103º, 2, 165º, 1, i) e 198º, 1, b) da CRP.
  3. Mais precisamente, argumenta a Requerente que o art. 2º, 3 do CFI jamais poderia ser interpretado como permitindo ao Governo alargar ou restringir o âmbito de aplicação do benefício fiscal através de instrumento regulamentar, dado também o art. 112º, 5 da CRP. Cabia à Portaria definir os CAE das actividades que podem beneficiar do RFAI; não lhe cabia restringir o elenco de actividades abrangidas.
  4. Ou seja: o estabelecimento, pela Portaria, de inelegibilidades reportadas a determinadas actividades elencadas no art. 2º, 2 do CFI, pretendendo afastar a aplicação do benefício fiscal a essas actividades, extravasa a competência objectiva que foi atribuída aos membros do Governo pelo art. 2º,3 do CFI, que se restringia à indicação dos CAE das actividades definidas no n.º 2 do mesmo artigo.
  5. Acrescenta ainda a Requerente que, sendo de reserva relativa de competência da Assembleia da República a demarcação do âmbito de aplicação dos benefícios fiscais, o art. 1º da Portaria n.º 282/2014 sempre seria inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, consagrado nos arts. 103º e 165º, 1, i) da CRP, e da proibição do reenvio normativo, consagrada no n.º 5 do artigo 112.º da CRP, caso se entendesse que AT pode, com fundamento na referida Portaria, restringir o âmbito de aplicação sectorial do RFAI, tal como este se encontra definido pelos arts. 2º e 22º do CFI.

 

III. C. 1. B) Sobre a não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação das Orientações Relativas aos Auxílios Estatais com Finalidade Regional para 2014-2020 (OAR)

 

  1. A Requerente opõe-se igualmente ao entendimento da AT, segundo o qual o ponto (10) das OAR também excluiria a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos:

“[a] Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica, com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura (11) e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais

  1. Para a Requerente, tratou-se somente de excluir a agricultura do âmbito de aplicação das OAR, uma vez que os auxílios estatais destinados ao sector agrícola estão sujeitos a uma disciplina própria prevista em regulamentação especial, susceptível “de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações”. E em seu apoio cita a nota de rodapé (11) desse ponto (10):

“[o]s auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola” – remetendo, pois, para as Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020, publicadas a 1 de Julho de 2014.

  1. Sendo que o âmbito de aplicação das referidas orientações se encontra circunscrito no seu ponto (33), segundo o qual “[e]m virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020. Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações”; e, no ponto (168) das Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 se estabelece que:

“[o]s Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado [“RGIC”];

(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 [“OAR”];

(c) As condições estabelecidas na presente secção”.

  1. Deste quadro normativo retira a Requerente a conclusão de que as OAR são aplicáveis aos auxílios estatais dirigidos às actividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020.
  2. E assim, contra o entendimento da AT, a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos prosseguida pela Requerente não configuraria uma das actividades excluídas do âmbito de aplicação setorial das OAR, às quais alude a parte final do art. 22º, 1 do CFI. Pelo que tal actividade poderia usufruir de auxílios estatais criados com base nas OAR, desde que estivessem devidamente cumpridos os requisitos impostos pelo referido ponto (168) das Orientações da União Europeia.
  3. Conclui a Requerente que a AT errou, ao procurar afastar, do âmbito de aplicação objectivo do RFAI, a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos, através da invocação de que os projectos de investimento direccionados para actividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas não são elegíveis para a concessão de auxílios estatais ao investimento, por não se encontrarem contemplados no âmbito de aplicação das OAR.

 

III. C. 1. C) Sobre a não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC)

 

  1. A Requerente sustenta que a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos se inclui na actividade de “transformação de produtos agrícolas”, para efeitos de aplicação do RGIC, já que ela é definida, no art. 2º, 10 deste Regulamento, como

qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda

  1. Nos termos do art. 2º, 11 do RGIC, “produto agrícola” é

um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013

  1. A produção de vinhos comuns e licorosos é enquadrável na posição 22.05 do Capítulo 22 do Anexo I do TFUE, à qual corresponde a posição 2204 da Nomenclatura Combinada.
  2. Daí infere a Requerente que a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos configura uma “transformação de produtos agrícolas”, sendo o produto final um “produto agrícola” enquadrável no Anexo I do TFUE.
  3. Assim sendo, argumenta a Requerente que tal actividade não pode considerar-se excluída do âmbito de aplicação do RGIC, na medida em que as actividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas apenas estarão excluídas do âmbito de aplicação do RGIC se se verificar alguma das situações do art. 1º, 3, c) do RGIC – norma que estabelece que se exclui a aplicação do RGIC a auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas:

i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.

  1. Pelo que, não se verificando estas excepções, o RGIC é sempre aplicável aos auxílios estatais concedidos no âmbito das actividades económicas de transformação e comercialização de produtos agrícolas.
  2. E esse, alega a Requerente, seria o caso da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos prosseguida pela C... .
  3. A Requerente refere ainda que foi alvo de um procedimento de inspecção tributária respeitante ao IRC de 2017, no qual a AT concluiu “existirem um conjunto de investimentos considerados, como elegíveis para o cálculo do benefício fiscal em RFAI, investimentos realizados na atividade de Viticultura CAE 01210, que não são elegíveis de acordo com o disposto no artigo 22.º do CFI”, bem como investimentos efectuados na actividade de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021); e que, contra a liquidação adicional de IRC emitida pela AT em virtude das correções realizadas ao RFAI de 2017, a Requerente apresentou junto do CAAD um pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao Processo n.º 98/2021-T.
  4. Nesse processo concluiu-se que os investimentos realizados no âmbito da actividade de viticultura (CAE 01210) não seriam elegíveis para efeitos do RFAI, por estarem relacionados com a obtenção de uva, ou seja, produção agrícola primária – actividade considerada como excluída, ao abrigo do disposto no art. 1º, 3, b) do RGIC, que considera que o Regulamento não é aplicável aos “auxílios concedidos no setor da produção agrícola primária”.
  5. Em contrapartida, considerou-se, na decisão do Processo n.º 98/2021-T, que os investimentos efectuados no âmbito da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021) seriam elegíveis para efeitos de aplicação do RFAI, podendo ler-se o seguinte:

“[é], assim, manifesto que a atividade de produção de uva (viticultura), ou seja, de produção de fruta (capítulo 8 do Anexo I do TFUE), se enquadra como produção de um produto agrícola e, outrossim, uma produção agrícola primária para efeitos do RGIC, uma vez que se trata da produção de produtos da terra sem outra operação que altere a natureza de tais produtos, operação essa que ocorre numa fase posterior, no âmbito de uma diferente atividade.

[…]

Como resulta do teor expresso desta segunda parte do ponto (33), as OAR não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários, mas aplicam-se à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações relativas aos setores agrícola e florestal.

[…]

Assim, por força do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea c), do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à actividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações indicadas nas suas subalíneas i) ou ii), isto é, «sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa» ou «sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários»”.

  1. Assinala ainda a Requerente que a interpretação veiculada pela decisão do Processo nº 98/2021-T veio a ser acolhida pela AT, já que no procedimento inspectivo relativo ao IRC de 2018 foi considerado, em conformidade com o raciocínio do Tribunal, que apenas seriam de excluir do benefício do RFAI os investimentos pertencentes à actividade de viticultura.

 

III. C. 2. Sobre o cumprimento dos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho

 

  1. A Requerente contesta o argumento da AT, de que a documentação de suporte ao RFAI não seria suficientemente explícita quanto à descrição do investimento inicial, tornando impossível apurar se tal investimento contribuiu para o aumento da capacidade produtiva. E faz corresponder a sua contestação a uma enumeração de investimentos que, no exercício de 2019, corresponderiam ao preenchimento dos requisitos, e tinham sido objecto de prova já por ocasião da reclamação graciosa.
  2. E alega que também apresentou toda a prova que lhe foi solicitada, nomeadamente no que respeita à manutenção de activos adquiridos na empresa, e na região, por três anos – sendo, portanto, que também nesse ponto a AT se encontrava na posse de todos os elementos necessários para aferir que a Requente cumpre com os requisitos de apuramento do crédito fiscal, a título de RFAI de 2019, e especificamente que se realizaram investimentos directamente relacionados com o “aumento de capacidade de um estabelecimento já existente”.
  3. Quanto à criação, e manutenção, de postos de trabalho em conexão com o investimento relevante, a Requerente alega ter entregue toda a documentação de suporte, que no seu entender demonstra o acatamento dos critérios enunciados pela AT, com os quais ela concorda – tendo até, por isso, corrigido espontaneamente informação inicialmente mal parametrizada.
  4. Conclui a Requerente o seu pedido de pronúncia reiterando o pedido de declaração de ilegalidade, e de anulação, dos actos impugnados, com as consequências do reembolso do pagamento em excesso da dívida tributária e o pagamento de juros indemnizatórios, devidos desde o momento em que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

 

III. D. Quanto ao mérito: posição da Requerente em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerente retoma as posições expressas do seu Pedido de Pronúncia, a que adita alguns argumentos novos.
  2. Desde logo, a Requerente entende que, na sua Resposta, a Requerida esgrimiu argumentos, mas não contestou verdadeiramente qualquer dos factos, pelo que daí resulta um consenso quanto à factualidade relevante.
  3. Quanto ao argumento da Requerida, de que o art. 1º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, determina a limitação do âmbito de aplicação do RFAI a actividades susceptíveis de integrar o conceito de transformação e comercialização de produtos agrícolas, em conformidade com a exclusão do âmbito de aplicação sectorial previsto nas OAR, a Requerente não apenas refuta essa interpretação, como assinala que a mera possibilidade dessa interpretação demonstraria, por si mesma, a ilegalidade da Portaria, naquele que é o quadro normativo do benefício fiscal do RFAI.
  4. A Requerente insiste que da letra do art. 2º, 3 do CFI só se pode retirar que a Portaria ali referida tem por única missão definir as CAE correspondentes às actividades referidas no nº 2 do mesmo art. 2º. E que a transgressão consumada na Portaria transparece logo do respectivo preâmbulo, quando anuncia: “são também definidos na presente portaria os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais”.
  5. E assim, contra o disposto no CFI, a Portaria n.º 282/2014 introduziu limitações ao âmbito de aplicação do benefício fiscal do RFAI a determinados sectores de actividade que se encontram taxativamente elencados no art. 2º, 2 do CFI, como é o caso das indústrias transformadoras, nas quais se inclui a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos.
  6. E a Requerente insiste também que a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos não configura uma actividade excluída do âmbito de aplicação das OAR nem do RGIC: isto porque, se o art. 1º da Portaria n.º 282/2014 é ilegal por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo, em contrapartida o art. 2º da Portaria n.º 282/2014 não é ilegal, e, conjugado com o artigo 2.º do CFI, inclui expressamente a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos no âmbito do RFAI (expressamente incluindo um conjunto de CAE [“b) Indústrias transformadoras – divisões 10 a 33”], no qual se enquadra o CAE específico da actividade desenvolvida pela Requerente [CAE 11021, pertencente à divisão 11]).
  7. A Requerente assinala ainda que a jurisprudência mobilizada pela Requerida se centra em investimentos no sector das telecomunicações, os quais não são subsumíveis a nenhum dos CAEs previstos no art. 2º da Portaria n.º 282/2014, pelo que o que se debate, nessa jurisprudência, é a legalidade do mencionado art. 2º – enquanto que nos presentes autos se discute a legalidade do art. 1º da Portaria, não a do art. 2º, no qual se prevê um CAE ao qual se subsume a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021), como actividade transformadora (“b) Indústrias transformadoras – divisões 10 a 33”), aplicável ao RFAI por remissão do art. 2º, 2 e 3 do CFI.
  8. Não percebendo a Requerente como poderá a jurisprudência citada pela AT contribuir para a boa decisão da causa, porquanto, em momento algum, a Requerente questionou a legalidade do art. 2º da Portaria n.º 282/2014, o qual se cinge a executar um comando normativo formulado pelo legislador no já citado n.º 2 do artigo 2.º do CFI, e inclui a actividade da Requerente no âmbito de aplicação objectiva do RFAI.
  9. Quanto aos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho, a Requerente mantém que, contra o que a AT alegou, foi e é possível fazer o apuramento individualizado dos investimentos por CAE – sustentando que se impõe a conclusão de que a Requerida se encontrava na posse de todos os elementos necessários para aferir que a Requente cumpre com os requisitos de apuramento do crédito fiscal a título de RFAI de 2019, que peticionou em sede de reclamação graciosa.
  10. No restante das alegações, retoma os argumentos já expendidos no Pedido de Pronúncia.

 

III. E. Quanto ao mérito: Posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua resposta, a Requerida reconhece que o litígio está cingido a duas questões somente:
  1. a de saber se a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos, na qual foi efectuada parte dos investimentos considerados relevantes para efeitos do RFAI, se enquadra, ou não, no âmbito de aplicação deste benefício fiscal; e
  2. a de saber se a Requerente efectuou investimentos iniciais a título de aumento da capacidade produtiva das suas actividades de produção de vinho e de exploração do enoturismo, e se efectivamente cumpriu o requisito de criação de postos de trabalho.
  1. A Requerida começa por sustentar que a Requerente não fez prova do que alegou, seja na reclamação graciosa, seja no presente processo.

 

III. E. 1. Sobre a elegibilidade da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos para o benefício fiscal de RFAI

 

  1. Quanto à questão de saber se a actividade de produção de vinhos comuns e licorosos configura, ou não, uma das actividades excluídas do âmbito de aplicação sectorial das OAR, às quais alude a parte final do art. 22º do Código Fiscal de Investimento (CFI), a Requerida entende que a Requerente não tem qualquer razão.
  2. A Requerida sublinha que o RFAI se encontra previsto nos arts. 22º a 26º do novo CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, e que o art. 1º, 2 do CFI estabelece que “O regime de benefícios contratuais ao investimento produtivo e o RFAI constituem regimes de auxílio com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 , de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC).
  3. E sublinha que a Portaria n.º 297/2015, de 21 de Setembro, veio proceder à sua regulamentação, assegurando a aplicação integral das regras previstas no RGIC e, quando aplicável, das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (OAR).
  4. Sendo, portanto – infere a Requerida –, que as questões relativas ao RFAI têm sempre de ser lidas e entendidas não só à luz da legislação interna (CFI e regulamentação constante das respectivas portarias), como também do Regulamento ao abrigo do qual foi criado (RGIC e OAR).
  5. No entender da Requerida, o afastamento da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos do âmbito de aplicação do RFAI resulta do art. 22º, 1 do CFI, que procede à respectiva delimitação por via de remissão para a lista das actividades económicas do art. 2º, 2 e de remissão para a especificação dos códigos da CAE relevantes, feita pela Portaria n.º 282/2014, tendo em conta as limitações decorrentes das OAR e do RGIC; embora as indústrias transformadoras – divisões 10 a 33 – constem do art. 2º, b) da Portaria n.º 282/2014, assinala a Requerida que tem de se atender à parte inicial do corpo deste artigo, que manda ter em conta as restrições previstas no artigo anterior. E esse artigo anterior, o art. 1º da Portaria, subordinando-se às limitações das OAR e do RGIC, determina que (...) não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores (...) da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (...)”.
  6. Sustenta a Requerida que as actividades exercidas pela C..., bem como os produtos que delas resultam, têm enquadramento no Capítulo 22 - Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres, da Nomenclatura de Bruxelas, enumerado no Anexo I do TFUE e integrando a posição 2204 (na versão da Nomenclatura Combinada, publicada no J.O. da UE N.º C 076, de 4 de Março de 2015).
  7. Pelo que os produtos – vinhos comuns e licorosos – são considerados “produtos agrícolas”, à luz da definição constante do art. 2º, 11), do RGIC, e por força do disposto no art. 1º da Portaria – e, consequentemente, no art. 22º, 1 do CFI –, são excluídos do âmbito de concessão do benefício fiscal do RFAI.
  8. A Requerida alega que tal exclusão tem a sua fonte nas OAR, cujo parágrafo 10 indica que “A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica, com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas (...)”
  9. As OAR elucidam, na nota de rodapé (11) indicada no referido parágrafo 10, que: “Os auxílios  estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”, que não são mais do que as Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 (publicadas no JO C204, de 01.07.2014) cujo parágrafo (20) prescreve que “As presentes orientações aplicam-se aos auxílios estatais à produção agrícola primária, à transformação dos produtos agrícolas que resultem num produto agrícola e à comercialização de produtos agrícolas.
  10. A Requerida reconhece que o parágrafo (33) das Orientações da União Europeia exclui a aplicabilidade dos auxílios à produção de produtos primários, reservando-os, dentro de certos limites, às actividades de transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas – o que, no seu entender, remete para o parágrafo (168) das Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais, que prevê que:

“Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a) Regulamento (UE) n.o 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tratado;

(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c) As condições estabelecidas na presente secção.”

  1. A Requerida conclui, quanto a este ponto, que o legislador fiscal não exerceu a opção prevista no parágrafo (168), uma vez que manteve, no art. 1.º da Portaria n.º 282/2014, a exclusão expressa das actividades económicas do sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE, em conformidade com a exclusão do âmbito de aplicação  das OAR.
  2. Ou seja, entende que, se o parágrafo (168) das Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020 permite aos Estados-membros a concessão de auxílios estatais aos investimentos em causa, isso não obriga os Estados a fazerem uso dessa faculdade – tendo o Estado Português, precisamente, optado por excluir actividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, designadamente de vinhos comuns e licorosos, invocando justamente as OAR e o RGIC para excluir tais actividades.
  3. Assim, para que as OAR fossem aplicáveis aos auxílios estatais dirigidos às actividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos sectores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020, o legislador nacional teria de expressar essa opção, e não o fez – nem no CFI, nem na Portaria.
  4. E assim, se, relativamente ao RGIC, o art. 1º, 3, c) não afasta do seu âmbito de aplicação os auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas com as características do benefício fiscal do RFAI, já, pelo contrário, o legislador fiscal, no art. 1.º da Portaria n.º 282/2014, qualificou como não-elegíveis os investimentos neste sector, tomando como base a respectiva exclusão do âmbito de aplicação das OAR.
  5. Entende a Requerida que tal não colide com a observância do direito europeu, visto que os auxílios de Estado assumem carácter de excepcionalidade, e, tembém por isso, têm de ser aplicados de forma proporcionada, e com parcimónia – pelo que cabe ao legislador nacional seleccionar o respectivo âmbito.
  6. Discorda, por isso, da tese da Requerente, de que as actividades elegíveis, nos termos da Portaria, teriam de ser as mesmas que integram o elenco do art. 2º, 2 do CFI, levando em conta que o n.º 3 deste artigo apenas remetia para regulamentação a definição dos códigos das atividades – e da conclusão da Requerente de que, por isso, a Portaria n.º 282/2014 está ferida de ilegalidade, por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo.
  7. Na interpretação da Requerida, conjugando o teor do art. 2º, 3, c) da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho (a Lei de autorização legislativa) com os números 2 e 3 do art. 2º do CFI, ressalta que o legislador teve a preocupação de salvaguardar as limitações decorrentes do quadro normativo comunitário, mas remeteu para a esfera regulamentar a especificação das concretas actividades económicas a promover – sendo errado afirmar-se, como o faz a Requerente, que a lista de actividades económicas constante das alíneas do n.º 2 do art. 2.º do CFI expressa o âmbito de aplicação dos benefícios fiscais pretendido pelo legislador do CFI.
  8. Sustenta a Requerida que, pelo contrário, a lista do n.º 2 do art. 2º se resume a um enunciado genérico de sectores de actividade potencialmente abrangidos, já que o elenco compreende actividades afastadas, de forma taxativa, pelos normativos europeus; além de que o uso do advérbio “nomeadamente”, confere à lista um carácter exemplificativo – pelo que não pode concluir-se que a Portaria tenha derrogado o estatuído pelo art. 2.º, 2 do CFI, e por essa via tenha invadido a esfera da competência legislativa.
  9. Na leitura da Requerida, a norma do art. 2º, 3 do CFI tem a natureza de um reenvio normativo, que remete para Regulamento a definição de aspectos específicos e complementares que o legislador do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, que aprovou o CFI, se absteve de densificar no texto deste diploma, em homenagem à proporcionalidade e à parcimónia no recurso aos benefícios fiscais, já que, em particular, a eficácia dos instrumentos de incentivação fiscal ao investimento exige uma forte articulação e convergência entre as políticas económicas e sociais e os objectivos prosseguidos pelos benefícios fiscais.
  10. Assim, o art. 112º, 5 da CRP não proíbe os reenvios normativos, admitindo que a lei remeta para a administração a edição de normas regulamentares executivas ou complementares da disciplina por ele estabelecida; o que se proíbe é a habilitação legal de regulamentos administrativos que possam, de algum modo, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar quaisquer preceitos da própria lei habilitante. Pelo que não ocorre, no caso, qualquer fenómeno de deslegalização, visto que a lei apenas habilita a administração a emitir uma regulação executiva ou complementar, nem se verifica a alegada inconstitucionalidade por violação do princípio da reserva legislativa da Assembleia da República em matéria de impostos.
  11. Invocando jurisprudência em apoio dessa leitura, a Requerida retira dela a conclusão de que em sede de RFAI, estão excluídas do âmbito de aplicação do regime as actividades relacionadas com a produção agrícola primária e a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE.
  12. Lembra ainda a Requerida que, no que se refere ao enquadramento no RFAI da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos (CAE 11021), a DSIRC publicou a ficha doutrinária – Processo 2018 002452, com entendimento sancionado por Despacho de 2019-10-03, da Subdiretora-Geral, concluindo, no seu ponto 10, que a mesma se enquadra no “Capitulo 22 – Bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres da NC, integrando-se ambos na atual posição 2204” do Anexo I do Tratado, não sendo uma actividade elegível para efeitos de RFAI.

 

III. E. 2. Sobre o cumprimento dos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho

 

  1. Assinalando que a Requerente não acrescenta, neste ponto, argumentos que não tenham sido já formulados em sede de reclamação graciosa.
  2. E continua a achar que, dos elementos apresentados, não foi, nem é, possível fazer o apuramento individualizado dos investimentos elegíveis, por CAE.
  3. Salientando que o RFAI é um benefício fiscal despoletado pela declaração entregue pelo sujeito passivo, na qual invoca o direito ao benefício (não dependendo de reconhecimento prévio), pelo que o ónus de provar o direito ao mesmo recai sobre quem o invoca, ou seja, o Requerente, nos termos do art. 74º, 1 da LGT.
  4. Quanto ao conceito de “criação de postos de trabalho”, a Requerida insiste que a admissão de trabalhadores através da celebração de contrato de trabalho sem termo (ou por tempo indeterminado), com criação líquida de postos de trabalho e sua manutenção, deve ser proporcionada pelo investimento relevante e, bem assim, reportar-se à globalidade dos postos de trabalho da empresa – pelo que acha indispensável a comprovação, não apenas do aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento, mas também a prova da conexão desse aumento com o investimento – como requisitos cumulativos, o que não teria sucedido, na opinião da Requerida.
  5. Não reconhecendo ter havido erro imputável aos serviços, a Requerida entende que não há lugar a juros indemnizatórios a favor da Requerente, por não estarem preenchidos os pressupostos do art. 43º da LGT.

 

III. F. Quanto ao mérito: Posição da Requerida em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerida limita-se, sucintamente, a remeter para os argumentos já expendidos na sua Resposta.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

Demos por provado que, por lapso, a Requerente não considerou, no Pedido de Pronúncia Arbitral, o aumento do IRC pago relativamente ao período de tributação de 2019, no valor de € 16.233,63, decorrente da correcção efectuada ao valor dos benefícios fiscais deduzidos no campo 355 da declaração de rendimentos Modelo 22 do RETGS operada pela liquidação adicional com o n.º 2022..., e que foi recuperado com o apuramento e dedução de RFAI referente ao exercício de 2019.

Vimos também que, suscitada a questão na Resposta da AT de 11 de Setembro de 2023, a Requerente se pronunciou sobre ela em requerimento de 4 de Outubro de 2023, reconhecendo os factos mas sustentando que o valor do processo arbitral não se altera, não sendo impactado pela liquidação adicional de IRC referente ao período de tributação de 2019 com o n.º 2022 ... e data de liquidação de 23 de Setembro de 2022 – mantendo-se o valor de € 142.045,19, com a dedução, no período de 2019, do montante de € 82.511,75, transitando para os períodos seguintes um saldo de € 59.533,44 por insuficiência de colecta.

A única consequência, como assinalou a Requerente, é que se amplia a causa de pedir, visto que, dada a liquidação adicional de € 16.233,63, o IRC liquidado e efectivamente pago, referente a 2019, passa do valor de € 61.454,62 para € 77.688,25, sendo este último valor aquele que passa a ser o montante que é objecto do pedido de reembolso.

Não tendo a Requerida manifestado oposição a esta alteração, ela é, portanto, admitida nos termos do art. 264º do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do CPC.

 

IV.B. Não há autoridade de caso julgado

 

Ficamos a saber, do pedido de pronúncia (art. 74º) que a Requerente apresentou, relativamente às correcções realizadas ao RFAI de 2017, um outro pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao Processo n.º 98/2021-T.

Essa circunstância poderia suscitar a questão do caso julgado material, a título prejudicial, na medida em que outro tribunal já deu uma definição à relação controvertida.

E suscitá-lo-ia como “autoridade de caso julgado”, de harmonia com o brocardo judicata pro veritate habetur: seja por essa figura dispensar a tríplice identidade da “excepção de caso julgado”, ou a estrita “repetição de causas”, bastando-se com a identidade das partes adjectivas – como é o caso –, seja por ela ter “o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida[1].

Com efeito, “como autoridade de caso julgado, o caso julgado manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada; a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente ("proibição de contradição/permissão de repetição") (…); a excepção de caso julgado é a proibição de acção ou comando de omissão atinente ao impedimento subjectivo à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente" ("proibição de contradição/proibição de repetição").[2]

Ou seja, enquanto a excepção dilatória de caso julgado teria o efeito negativo de obstar a um acto processual decisório posterior, a autoridade do caso “lato sensu” teria o efeito positivo (externo) de um acto processual decisório anterior determinar, ou poder determinar, o sentido de um acto processual decisório posterior – podendo, no limite, configurar-se como excepção peremptória na presença de “objectos processuais conexos” (observados os limites dos arts. 580º e 581º do CPC).

Por outras palavras, a “autoridade de caso julgado” depende da verificação de uma condição objectiva positiva, que “consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor.”[3]; e de uma condição subjectiva, a identidade de sujeitos (art. 581º, 2 do CPC) que, insista-se, no caso se verifica.

Todavia, nenhuma das partes invocou essa “autoridade de caso julgado”, o que impede este tribunal de apreciar a questão, de se pronunciar sobre ela e de decidir de acordo com ela. É que,

ao contrário do que sucede com a existência de prévia sentença entre as partes, a qual é de conhecimento oficioso a fim de que o juiz possa aferir se há exceção de caso julgado — ex vi artigos 577.º, al. i), e 578.º, justamente —, a autoridade de caso julgado não é de conhecimento oficioso.”[4]

Isso impede que possam reconhecer-se efeitos de “caso julgado material”, nos termos do art. 619º do CPC, quanto a decisões que, tendo decorrido entre as partes do presente processo, tenham julgado do mérito em termos relevantes, no sentido de o presente tribunal considerar que está na presença de uma acção dependente, e que, portanto, está vinculado à decisão proferida num processo que seja reconhecido como “causa prejudicial” do presente processo.

Mas não impede que, nos termos gerais, o Tribunal obedeça ao princípio geral consagrado no art. 8º, 3 do Código Civil, buscando a uniformidade jurisprudencial com decisões arbitrais proferidas em matéria similar à dos autos.

 

IV.C. A identificação das questões controvertidas

 

As questões que se colocam são pacificamente aceites por ambas as partes, e podemos sistematizá-las como elas o fizeram:

 

1. A elegibilidade da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos para o benefício fiscal de RFAI

1. A) A ilegalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo

1. B) A não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação das Orientações Relativas aos Auxílios Estatais com Finalidade Regional para 2014-2020 (OAR)

1. C) A não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC)

2. O cumprimento dos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho.

 

Passemos à respectiva análise, por esta mesma ordem.

 

IV.D. Sobre a elegibilidade da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos para o benefício fiscal de RFAI

 

Sobre a matéria em discussão importa compulsar o art. 22º do novo Código Fiscal do Investimento, CFI, diploma aprovado pelo Decreto-lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho[5], que dispõe o seguinte:

Artigo 22.º

Âmbito de aplicação e definições

1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC. (…)” (sublinhados nossos)

A autorização legislativa concedida pelo art. 2º, 1, c) da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho, encontrava-se definida no n.º 3 do seu art. 2º, nos seguintes termos:

“3 - A autorização prevista na alínea c) do n.º 1 tem como sentido e extensão:

a) Adaptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente:

i) Às disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria, que define as condições sob as quais certas categorias de auxílios podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno;

ii) Às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional; (…)

c) Definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional (…)

O CFI procedeu à revisão dos regimes de benefícios fiscais ao investimento produtivo, e respectiva regulamentação, tendo em vista, como ressalta da nota preambular do diploma, adaptar o regime legal ao novo quadro legislativo europeu aplicável aos auxílios estatais para o período 2014-2020, e, por outro lado, reforçar os diversos regimes de benefícios fiscais ao investimento, em particular no que se refere a investimentos que proporcionem a criação ou manutenção de postos de trabalho e se localizem em regiões menos favorecidas.

Por seu turno, o art. 2º do CFI dispõe o seguinte:

Artigo 2.º

Âmbito objetivo

2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC:

(…)

d) Atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais;

(…)

3 - Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.” (sublinhados nossos)

O diploma a que faz referência o art. 2º, 3 do CFI é a Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, a qual dispõe, no seu art. 1º, o seguinte:

Artigo 1.º

Enquadramento comunitário

Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas.” (sublinhados nossos)

A Portaria já explicitava, no seu preâmbulo, que “Atendendo à necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de junho de 2014, são também definidos na presente portaria os setores de atividade excluídos da concessão de benefícios fiscais”.

O RFAI constitui, assim, um auxílio de Estado com finalidade regional materializado num benefício fiscal ao investimento em activos fixos tangíveis e activos fixos intangíveis, adquiridos por sujeitos passivos de IRC que exerçam atividade em determinados sectores e que preencham cumulativamente o conjunto de condições enunciadas no artigo 22.º do CFI.

 

IV.D. A) Sobre a ilegalidade da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, por violação da respectiva norma habilitante, do princípio da legalidade fiscal e da proibição do reenvio normativo

 

Pode a Portaria n.º 282/2014 proceder, no seu art. 1º, à exclusão de projectos de investimento – quando manifestamente o art. 2º, 3 do CFI não a habilitou a tal?

Em voto de vencido no Proc. nº 218/2019-T, do CAAD, João Taborda da Gama chamou a atenção para o problema, em termos que suscitaram uma reacção jurisprudencial duradoura, pelo que vale a pena transcrever:

Entendo que tendo em conta o princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 103.º e 165, n.º 1, al. I) da Constituição da República Portuguesa, prevendo um Decreto-Lei autorizado – o Decreto-Lei n.º 162/2014 – que um determinado benefício fiscal – o RFAI – é a aplicável aos sujeitos passivos – a requerente – que exerçam atividade num setor específico – as telecomunicações – não pode a Administração fiscal deixar de reconhecer a aplicação do dito benefício fiscal a empresas desse setor que cumpram os requisitos de acesso ao benefício, sob pena de ilegalidade da decisão. [§] O facto de uma portaria não referir um setor que a lei expressamente prevê como elegível para o benefício é juridicamente irrelevante. Como é natural, não pode uma portaria – independentemente de qualquer qualificação jurídico-pedagógica que se lhe dê – excluir um setor de atividade que o legislador fiscal soberano expressamente decidiu dever ser beneficiado e não alterou a sua decisão através de um procedimento legislativo de igual valor (lei ou decreto-lei autorizado). Ao fazê-lo está a derrogar a lei numa matéria central da tipicidade tributária – o que nem mesmo as posições doutrinárias mais flexíveis sobre a teoria da legalidade tributária admitem. [§] Havendo a suspeita de que uma lei fiscal não respeita o Direito Europeu – o que na minha opinião está aqui longe de se ter demonstrado – não cabe nunca a uma portaria corrigir a lei, pois não há qualquer arrimo metodológico para essa operação que, de resto, arvoraria o poder regulamentar em poder de fiscalização corretiva geral e abstrata da lei. (…) [§] A tese que fez vencimento no presente acórdão, ao afirmar que “a Portaria para que a lei remeteu a definição dos códigos de actividade económica poderia selecionar, no interesse geral, determinadas actividades em detrimento de outras, ainda que estas se encontrassem também incluídas no âmbito objectivo de aplicação dos benefícios fiscais”, abre a porta para que, em qualquer matéria de benefício fiscal, ou mesmo de incidência tributária, o poder administrativo possa escolher o que cai dentro ou fora de uma norma por mera portaria, o que não se pode tolerar.

Seguiu-se, como mencionado, uma abundante jurisprudência arbitral que foi consagrando esse mesmo entendimento.

Aderindo a ela – como o fizeram já tantas decisões arbitrais[6] –, transcrevemos parte da fundamentação da decisão no Proc. 220/2020-T:

 

-------------------(início de citação do Proc. 220/2020-T)

 

“Como resulta do teor expresso do n.º 3 do artigo 2.º do CFI, o que nele se remeteu para portaria foi apenas a definição dos «códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior» e não a definição dessas actividades, o que se compreende, por nem ser constitucionalmente admissível a definição do âmbito objectivo de benefícios é matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por lei formal ou decreto-lei autorizado, como decorre do preceituado nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea i), e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP.

Na verdade, «como é natural, não pode uma portaria – independentemente de qualquer qualificação jurídico-pedagógica que se lhe dê – excluir um setor de atividade que o legislador fiscal soberano expressamente decidiu dever ser beneficiado e não alterou a sua decisão através de um procedimento legislativo de igual valor (lei ou decreto-lei autorizado). Ao fazê-lo está a derrogar a lei numa matéria central da tipicidade tributária – o que nem mesmo as posições doutrinárias mais flexíveis sobre a teoria da legalidade tributária admitem».

Por isso, tendo em mente que, por força do disposto no n.º 5 do artigo 112.º da CRP, «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos», o n.º 3 do artigo 2.º do CFI não deve ser interpretado como permitindo aos membros do Governo a definição do âmbito de aplicação dos benefícios através de diploma regulamentar. Na verdade, «é a Constituição e não a lei que estabelece a hierarquia normativa. São por isso inconstitucionais as normas legais que infrinjam a proibição de delegação, sendo consequentemente ilegais os regulamentos que porventura sejam emitidos ao abrigo dessa delegação.

Assim, aquele n.º 3 do artigo 2.º do CFI deve ser interpretado com o alcance, que é o que resulta do seu teor literal, de permitir que fossem definidos por portaria os «códigos de atividade económica» que se reportam às actividades que nele se indicam poderem beneficiar do RFAI e não que pudessem ser alteradas, para menos, as actividades abrangidas.

Por isso, «o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional» que o Governo foi autorizado a esclarecer foi definido pelos artigos 2.º, n.ºs 1 e 2, e 22.º, n.º 1, do CFI e o que nele se remeteu para portaria foi apenas a definição dos códigos das actividades que se indicaram incluir-se nesse âmbito.

Sendo assim, a Portaria n.º 282/2014 não encontra norma habilitante no n.º 3 do artigo 3.º do CFI para estabelecer, restringindo o âmbito definido no n.º 2 do mesmo artigo, que «não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos setores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo i do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes e das infraestruturas conexas e da produção, distribuição e infraestruturas energéticas».

Na verdade, o estabelecimento destas inelegibilidades, reportadas a determinadas actividades elencadas no artigo 2.º, n.º 2 do CFI, reconduz-se ao afastamento da aplicabilidade do benefício fiscal a essas actividades, extravasando a competência objectiva que foi atribuída aos membros do Governo pelo n.º 3 do artigo 2.º do CFI, que se restringia à indicação dos Códigos das actividades definidas no n.º 2 do mesmo artigo.

É certo que os diplomas de Direito da União que são invocados no Preâmbulo da Portaria n.º 282/2014, e a «necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais» aí referida, poderiam constituir «um fundamento constitucional e uma habilitação legal prévia da emanação de regulamentos internos», mas tal habilitação não é admissível quando «seja incompatível com a ordem material de competências constitucionalmente estabelecida (excluem-se, pois, regulamentos de actuação de directivas em matérias de reserva de lei)» ( 4 ), o que sucede neste caso, pois a definição do âmbito dos benefícios é matéria que a lei constitucional portuguesa integra na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos dos citados artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea i), da CRP.

Doutra perspectiva, como defende a Requerente, sendo a delimitação do âmbito dos benefícios fiscais matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o artigo 1.º, da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, será «inconstitucional por violação do princípio da legalidade fiscal, consagrado nos artigos 103.° e 165.°, n.º 1, alínea i), da CRP, e da proibição do reenvio normativo, consagrada no artigo 112.°, n.º 5, da CRP, na interpretação de que a Administração Tributária pode restringir o âmbito de aplicação sectorial do RFAI tal como este se encontra definido pelos artigos 22.º e 2.º do CFI, com fundamento nessa norma regulamentar».

Assim, não pode basear-se no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, o afastamento do benefício fiscal, por falta de habilitação legal e validade constitucional para restringir o âmbito do benefício fiscal definido no artigo 2.º, n.º 2, do CFI.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 220/2020-T)

 

Valerá a pena realçar que a invalidade do art. 1º da Portaria n.º 282/2014, face ao disposto no art. 2º, 3 do CFI, deixa intacta a amplitude da enumeração exemplificativa do art. 2º, 2 do CFI, precedido que ele é do advérbio “nomeadamente”. E tal invalidade, insista-se, sempre resultaria da inadmissibilidade constitucional da definição do âmbito objectivo de benefícios, uma vez que se trata de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, só podendo ser regulada por Lei formal ou Decreto-Lei autorizado, como decorre do preceituado nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1 alínea i), e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP – sendo que também o art. 8º, 1 da LGT proclama o princípio da legalidade para a matéria dos benefícios fiscais, entre outras matérias.

A leitura do art. 2º, 3 do CFI não pode ser outra: permitir que fossem definidos por portaria os CAE que se reportam às actividades que nele se indicam como beneficiárias do RFAI; não permitindo que seja alterada a enumeração das actividades abrangidas.

Não há, pois, como vimos, norma habilitante para o art. 1º da Portaria n.º 282/2014, quando considera não-elegíveis para a concessão do benefício fiscal do RFAI os projectos de investimento que tenham por objecto as actividades económicas da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE, não obstante a actividade principal da sociedade dominada ser a “produção de vinhos comuns e licorosos”, com o CAE 11021, incluído no art. 2º, 2, a) do CFI, enquanto norma habilitante, por remissão do art. 22º, 1, parte final, do mesmo Código, bem como no art. 2.º, b) daquela Portaria, se bem que com ressalva das restrições previstas no artigo anterior.

Por outras palavras, as inelegibilidades de benefício fiscal reportadas a determinadas actividades elencadas no art. 2º, 2 do CFI e que não sejam excluídas pelo seu art. 22º, 1, que apenas excepciona da aplicação do RFAI “atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”, extravasa a competência objectiva que foi atribuída aos membros do Governo pelo art. 2º, 3 do CFI.

Assim, não sendo a actividade aqui considerada uma daquelas que é excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR, o art. 1º da Portaria n.º 282/2014 é ilegal, por desrespeito do grau hierárquico entre actos legislativos e actos regulamentares (violando os arts. 2º e 22º do CFI), ao restringir inopinadamente o âmbito sectorial de aplicação do RFAI, ilegalidade que se transmite aos actos praticados ao abrigo da norma ilegal.

Ainda que o art. 2º, 3, da lei de autorização legislativa, Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho, tivesse fixado o sentido e extensão da autorização contida na alínea c) do seu n.º 1 – de aprovar, no âmbito do novo Código Fiscal do Investimento, um novo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) –, designadamente a autorização para “Adaptar o regime às disposições europeias em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, nomeadamente: i) Às disposições constantes do Regulamento geral de isenção por categoria, que define as condições sob as quais certas categorias de auxílios podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno; ii) Às regras previstas no mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional”, nada indica que essa “adaptação” passasse pela restrição do âmbito de aplicação das Orientações oriundas do Direito da União Europeia (“Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020” e OAR), em relação às quais não se vislumbram quaisquer reservas por parte do Governo-legislador.

Por outro lado, embora o Governo não pudesse, no diploma autorizado, Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, exceder a extensão da autorização parlamentar, sempre poderia ter expressamente excluído do âmbito de aplicação do RFAI a actividade de comercialização e transformação de produtos agrícolas, que continuem a ser considerados produtos agrícolas, de acordo com o Anexo I ao TFUE, não o tendo feito.

Resulta clara, do quadro normativo aplicável, a intenção legislativa de aplicar o benefício fiscal do RFAI a todas as actividades referidas no art. 2º, em que se inclui a indústria transformadora prevista na alínea a) do n.º 2, “com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”, como se refere no n.º 1 do art. 22º – ou seja, com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de Julho de 2013, e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de Junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria).

Não sendo controvertido que a actividade em causa se enquadra no art. 2.º, o afastamento da aplicação do benefício fiscal só poderia resultar da circunstância de se tratar de actividade excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC.

Por referência ao RGIC, no que respeita a “auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas”, apenas se prevê no art. 1º, 3, c) do RGIC a exclusão do âmbito de aplicação deste diploma nos seguintes casos:

  1. sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou
  2. sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.

Não se afigurando que se esteja perante qualquer situação deste tipo, o que nem sequer é invocado ou demonstrado no processo. Pelo que, não excluindo o RGIC, do seu âmbito de aplicação, as actividades de agricultura, nem tão pouco de transformação de produtos agrícolas, não pode a Portaria “de execução” excluir a atividade de transformação de produtos agrícolas, uma vez que aquele Regulamento se sobrepõe a esta Portaria.

 

IV.D. B) Sobre a não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação das Orientações Relativas aos Auxílios Estatais com Finalidade Regional para 2014-2020 (OAR)

 

Regressemos à fundamentação da decisão no Proc. 220/2020-T, à qual aderimos:

 

-------------------(início de citação do Proc. 220/2020-T)

 

“Assim, não pode basear-se no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, o afastamento do benefício fiscal, por falta de habilitação legal e validade constitucional para restringir o âmbito do benefício fiscal definido no artigo 2.º, n.º 2, do CFI.

No entanto, do vício de que enferma este artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014 não decorre necessariamente a anulação das liquidações impugnadas, pois é invocado também como seu fundamento para exclusão do benefício fiscal «o próprio número 1 do artigo 22º deste diploma que, na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC».

Com efeito, quando um acto de tributário tem mais que um fundamento, cada um deles com potencialidade para, só por si, assegurar a sua legalidade, é irrelevante que um deles seja ilegal, pois "o tribunal, para anular ou declarar a nulidade da decisão questionada, emitida no exercício de actividade vinculada da Administração, não se pode bastar com a constatação da insubsistência de um dos fundamentos invocados, pois só após a verificação da improcedência de todos eles é que o tribunal fica habilitado a invalidar o acto". ( 5 )

Por isso, é necessário apreciar também este segundo fundamento das liquidações.

3.2.2. Questão do afastamento do benefício fiscal com fundamento por se tratar de actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC

Como resulta da alínea c) do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho (autorização legislativa), visou-se com o RFAI «definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional».

O artigo 2.º do CFI elenca as actividades que podem usufruir de benefícios fiscais, entre as quais inclui a «indústria transformadora»[alínea a) do n.º 2], mas reafirmando o respeito do «âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC».

O artigo 22.º, n.º 1, do CFI estabelece que «o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC».

A Requerente defende que apenas relevou para a aplicação do RFAI investimentos realizados na sua actividade de transformação e comercialização de produtos vinícolas (investimentos em adegas e máquina para instalação de uma linha de engarrafamento de vinho) o que está em sintonia com o afirmado pela Administração Tributária, que refere no Relatório da Inspecção Tributária que «os investimentos realizados antes referidos destinaram-se à atividade principal da empresa e consistiram essencialmente no reforço das suas instalações para vinificação e armazenagem do vinho a granel e engarrafado, fruto do elevado crescimento das vendas de vinho».

A actividade da Requerente, com o código CAE 11021, incluída na Divisão 11, grupo 110, classe 1102 o anexo ao Decreto-Lei n.º 38172007, de 14 de Novembro, é uma das indicadas na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, que abrange «Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33». Há também acordo das Partes quanto a este enquadramento.

No entanto, a Administração Tributária defende que a actividade da Requerente é excluída do âmbito de aplicação do RFAI, porque as actividades de «transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola enumerado no Anexo l do Tratado» são «atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC», a que se refere a parte final daquele n.º 1 do artigo 22.º do CFI.

A questão que se coloca, assim, é a de saber se a actividade da Requerente está excluída do âmbito sectorial de aplicação das OAR (Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013) e do RGIC (Regulamento Geral de Isenção por Categoria, aprovado pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, , publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187/1, de 26 de Junho de 2014.

3.2.2.1. Questão da exclusão do benefício fiscal pela aplicação das OAR

No que concerne às OAR, a Administração Tributária entendeu que a exclusão decorre do seu ponto 10 em que se estabelece o seguinte:

10. A Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura ( 10 ), da agricultura ( 11) e dos transportes ( 12 ), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações. A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. As presentes orientações aplicam-se a medidas de auxílio em apoio de atividades fora do âmbito do artigo 42.º do Tratado, mas abrangidas pelo regulamento relativo ao desenvolvimento rural, e cofinanciadas pelo Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural ou concedidas como um financiamento nacional em suplemento dessas medidas cofinanciadas, salvo previsão em contrário das regras setoriais.

Na nota de rodapé (11), relativa à agricultura, refere-se o seguinte:

«Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola».

Considerando estas disposições, a Administração Tributária concluiu que, «quando está em causa a atividade de "transformação de produtos agrícolas", apenas pode beneficiar do RFAI, a transformação destes produtos desde que o produto final dela resultante não seja um produto agrícola de acordo com a definição prevista no artigo 38º do TFUE e, como tal, não integre a lista constante do Anexo l do Tratado».

A Requerente defende, no entanto que aquele ponto 10, ao excluir «agricultura» do âmbito dos sectores de actividade a que se referem estas orientações sobre os auxílios com finalidade regional a económica, faz essa exclusão, porque «estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações».

E também, como salienta a Requerente, a referida nota de rodapé (11), esclarece que «os auxílios estatais à (..), transformação e comercialização de produtos agrícolas que dêem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola».

Na fundamentação que consta do Relatório da Inspecção Tributária não se encontra qualquer referência a estas especiais «Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola», que, como se diz no ponto 10 das OAR, são susceptíveis de derrogar total o parcialmente estas Orientações.

Isto significa, desde logo, que as liquidações enfermam de um erro de direito, quanto à invocação das OAR como obstáculo à aplicação do benefício fiscal, pois era primacialmente com base nas específicas «Orientações para os auxílios estatais no setor agrícolas» que a questão tinha de ser apreciada e só se se concluísse que estas não derrogam, total ou parcialmente as OAR se poderia concluir pela exclusão do benefício fiscal com base nestas.

Por outro lado, nas «Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020», publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204/1, de 01-07-2014, refere-se no ponto 33:

(33)

Em virtude das especificidades do setor, não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 (27). Aplicam-se, no entanto, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações.

Como resulta do teor expresso desta segunda parte do ponto (33), as OAR não se aplicam aos auxílios à produção de produtos primários, mas aplicam-se à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas, dentro dos limites fixados nas presentes orientações relativas aos setores agrícola e florestal.

E, na secção 1.1.1.4., ponto (168), das mesmas «Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020» estabelece-se que

(168) Os Estados-Membros podem conceder auxílios a investimentos relacionados com a transformação de produtos agrícolas e a comercialização de produtos agrícolas, desde que satisfaçam as condições de um dos seguintes instrumentos de auxílio:

(a) Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 17 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.o e 108.o do Tratado;

(b) Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020;

(c) As condições estabelecidas na presente secção.

Conclui-se, assim, que a actividade da Requerente, de transformação e comercialização de produtos agrícolas, designadamente de vinhos comuns e licorosos, não é uma das «actividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR's» a que se refere a parte final, do artigo 22.º do CFI, e, pelo contrário, desde que satisfaçam as condições previstas no RGIC [o Regulamento (UE) n.º 651/2014, referido na alínea (a)], ou nas OAR, ou na secção em que se insere este ponto (168), são permitidos os auxílios estatais.

Assim, como bem diz em síntese a Requerente, «à luz do §10 (e da respectiva nota de rodapé 11) das OAR 2014-2020 e dos §33 e §168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Sector Agrícola, a actividade de transformação e comercialização de vinhos comuns e licorosos não se encontra excluída do âmbito de aplicação sectorial das OAR 2014-2020, sendo, pelo contrário, abrangida por este instrumento».

Por isso, não pode, com o fundamento que foi invocado no RIT, (de a actividade da Requerente, por ser de "transformação de produtos agrícolas", pretensamente estar excluída do âmbito das OAR’s), considerar-se que está excluída do benefício fiscal do RFAI.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 220/2020-T)

 

Também daqui se retira que a actividade exercida pela Requerente não se encontra excluída pelas OAR. O ponto 10 destas, ao mencionar que a Comissão aplicará as orientações à “transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas” está justamente a referir-se à actividade exercida pela Requerente, que transforma produtos agrícolas adquiridos no mercado primário em produtos que, pela sua natureza, não podem ser qualificados como produtos agrícolas primários.

Como resulta do art. 2º, 3, c) da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho (autorização legislativa), visou-se com o RFAI “definir o âmbito regional e setorial de aplicação do benefício em conformidade com as regras europeias e o mapa nacional dos auxílios estatais com finalidade regional”.

E assim, como vimos, o art. 2º do CFI elenca as actividades que podem usufruir de benefícios fiscais, entre as quais inclui a “indústria transformadora” (alínea a) do n.º 2), mas reafirmando o respeito do “âmbito sectorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC”.

Por sua vez, o art. 22º, 1 do CFI estabelece que “o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

A actividade da Requerente, com o código CAE 11021, incluída na Divisão 11, grupo 110, classe 1102 o anexo ao Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, é uma das indicadas na alínea b) do artigo 2.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que abrange “Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33”.

Considerando as disposições das OAR, há quem entenda que quando está em causa a actividade de “transformação de produtos agrícolas”, a transformação destes produtos apenas pode beneficiar do RFAI se o resultado final não for, ele próprio, um produto agrícola, de acordo com a definição prevista no art. 38º do TFUE e, como tal, não integre a lista constante do Anexo l do Tratado. De facto os produtos resultantes da actividade de produção de vinhos comuns e licorosos estão incluídos no Capítulo 22 da Nomenclatura de Bruxelas (atual posição 2204) a que se refere o Anexo I do TFUE (Capítulo 22 – “Vinhos de uvas frescas”), pelo que integram o conceito de “transformação de produtos agrícolas”, em que o produto final continua a ser um produto agrícola enumerado no Anexo I do Tratado. Mas a isto opõe-se o argumento de que a actividade agrícola e de transformação de produtos agricolas estão – como o determina a nota (11) do ponto (10) das OAR –, sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, susceptíveis de derrogar, total ou parcialmente, as OAR.

Ora, se procurarmos nas “Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais nos setores agrícola e florestal e nas zonas rurais para 2014-2020”, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 204/1, de 01-07-2014, refere-se no ponto 33 que, não obstante as OAR não se aplicarem aos auxílios à produção de produtos primários, aplicam-se, em contrapartida, à transformação de produtos agrícolas e à comercialização de produtos agrícolas.

O que permite concluir que a actividade da Requerente, de transformação e comercialização de produtos agrícolas, designadamente de vinhos comuns e licorosos, não é uma das “actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR's” a que se refere a parte final, do art. 22º do CFI – pelo que, desde que satisfaçam as condições previstas no RGIC ou nas OAR 2014-2020 (e no §168 das Orientações para os Auxílios Estatais no Sector Agrícola), são permitidos os auxílios estatais.

 

IV.D. C) Sobre a não-verificação da alegada exclusão do âmbito de aplicação do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC)

 

Regressemos uma última vez à fundamentação da decisão no Proc. 220/2020-T, à qual aderimos:

 

-------------------(início de citação do Proc. 220/2020-T)

 

“Assim, não pode basear-se no artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, o afastamento do benefício fiscal, por falta de habilitação legal e validade constitucional para restringir o âmbito do benefício fiscal definido no artigo 2.º, n.º 2, do CFI.

No entanto, do vício de que enferma este artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014 não decorre necessariamente a anulação das liquidações impugnadas, pois é invocado também como seu fundamento para exclusão do benefício fiscal «o próprio número 1 do artigo 22º deste diploma que, na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC».

Com efeito, quando um acto de tributário tem mais que um fundamento, cada um deles com potencialidade para, só por si, assegurar a sua legalidade, é irrelevante que um deles seja ilegal, pois "o tribunal, para anular ou declarar a nulidade da decisão questionada, emitida no exercício de actividade vinculada da Administração, não se pode bastar com a constatação da insubsistência de um dos fundamentos invocados, pois só após a verificação da improcedência de todos eles é que o tribunal fica habilitado a invalidar o acto".

(…)

3.2.2.2. Questão da exclusão do benefício fiscal pela aplicação do RGIC

A Administração Tributária entendeu que actividade da Requerente se integra no conceito de «transformação de produtos agrícolas» e, como o produto final desta actividade é um produto agrícola, porque enumerado no Anexo l do Tratado, esta actividade encontra-se excluída do RGIC, de acordo com o seu Considerando (11).

A Administração Tributária ponderou, em suma, que

– o número 1 do artigo 2º da Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamenta o RFAI, refere que "Para efeitos da determinação do âmbito setorial estabelecido na Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do número 1 do artigo 22º do Código Fiscal do Investimento, aplicam-se as definições relativas a atividades económicas estabelecidas no artigo 2º do RGIC";

– fazendo uma leitura do Regulamento (UE) n.º 651/2014 (RGIC), acima referido, verificamos no Considerando (11) que "O presente regulamento deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as atividades de preparação dos produtos para e primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para uma primeira venda devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização".

– portanto, a preparação de um produto agrícola para a primeira venda efetuada nas explorações agrícolas, a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores ou qualquer atividade que prepare o produto agrícola para uma primeira venda, não se inserem no conceito de "Transformação e comercialização de produtos agrícolas". Isto porque, estas atividades integram o próprio conceito de "Produção agrícola primária". E como vimos, a produção agrícola primária é uma das atividades referidas no artigo 1º da Portaria n.º 282/2014, excluída, portanto, do âmbito setorial do RFAI.

– para efeitos do CFI e nos termos do ponto 9) do artigo 2º do RGIC, entende-se por "Produção agrícola primária, a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo l do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza dos produtos".

– de acordo com o ponto 11) do mesmo preceito, "Produto agrícola [é] um produto enumerado no anexo l do Tratado, (...)".

A Requerente defende, em suma, que o RGIC é aplicável a auxílios previstos no CFI e que a exclusão dos auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, apenas se verifica nos casos previstos na alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo.

O RGIC identifica ao auxílios estatais que estão isentos da obrigação de informação atempadamente dos projetos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios, prevista no artigo 108.º, n.º 3, do TFUE.

Por força do preceituado no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do RGIC, este diploma é aplicável, além do mais, aos auxílios com finalidade regional, como são os previstos no CFI, à face do preceituado no n.º 2 do seu artigo 2.º.

Relativamente aos auxílios concedidos no sector de transformação e comercialização de produtos agrícolas, o afastamento da aplicação do RGIC é estabelecido nos seguintes termos:

Artigo 1.º

Âmbito de aplicação

(...)

3. O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios:

(...)

c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários;

Depreende-se desta limitação dos auxílios excluídos do âmbito de aplicação do RGIC, que este diploma é aplicável aos auxílios concedidos no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas em todos os outros casos cuja exclusão não está prevista.

No caso em apreço, as Partes estão de acordo em que a actividade da Requerente é de «transformação de produtos agrícolas», que é definida na alínea 10) do artigo 2.º do RGIC] ( 6 ); como «transformação de produtos agrícolas», entende-se, para este efeito, «qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda». Por outro lado, por «Produto agrícola» entende-se «um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013» [definição 11) que consta do artigo 2.º do RGIC].

Os vinhos de uvas frescas são um dos produtos enumerados no anexo I do TFUE [posição 22.05, a que corresponde a posição 2204 da Nomenclatura Combinada ( 7 ), como se refere no Relatório da Inspecção Tributária], pelo que, à face das definições referidas, aqueles produtos se consideram «produto agrícola» e as operações a ele respeitantes são de «transformação de produtos agrícolas».

Assim, por força do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea c), do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à actividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações indicadas nas suas subalíneas i) ou ii), isto é, «sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa» ou «sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários».

Consequentemente, não se verificando qualquer destas situações no caso em apreço, tem de se concluir que a aplicação do benefício fiscal do RFAI também não é afastada pelo RGIC.

O artigo 13.º, alínea b), do RGIC, que define o «âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional», confirma a sua aplicação à actividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, ao excluir do seu âmbito de aplicação os «auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica», mas esclarecendo que não é como tal considerada «a transformação de produtos agrícolas», nestes termos:

Artigo 13.º

Âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional

A presente secção não é aplicável aos seguintes auxílios:

(...)

b) Auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica; os regimes destinados a atividades turísticas, infraestruturas de banda larga ou comercialização e transformação de produtos agrícolas não são considerados orientados para setores específicos da atividade económica;

(...)

Pelo exposto, conclui-se que a actividade da Requerente se inclui no âmbito de aplicação do RGIC, pelo que a exceção de aplicação do RFAI às actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação do RGIC, que se prevê na parte final do artigo 22.º, não afasta a aplicação do benefício fiscal do RFAI àquela actividade.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 220/2020-T)

 

Poderia eventualmente entender-se que, como a actividade da Requerente se integra no conceito de “transformação de produtos agrícolas” e o produto final desta actividade é um produto agrícola, porque enumerado no Anexo l do TFUE, esta actividade se encontra excluída do RGIC, de acordo com o seu Considerando (11).

É que, levando-se em conta que o conceito de “transformação de produtos agrícolas” e de “produto agrícola” se encontram definidos nos pontos 10) e 11) do art. 2º do RGIC, que o art. 22º, 1 do CFI, na parte final, excepciona do âmbito de aplicação do RFAI as actividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC, e ainda que o art. 2º, 1 da Portaria n.º 297/2015, de 21 de Setembro, que regulamenta o RFAI, refere que “Para efeitos da determinação do âmbito setorial estabelecido na Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do número 1 do artigo 22º do Código Fiscal do Investimento, aplicam-se as definições relativas a atividades económicas estabelecidas no artigo 2º do RGIC”, poderia propender-se para a inferência de que há realmente uma exclusão em sede de RGIC.

Só que os vinhos de uvas frescas são um dos produtos enumerados no anexo I do TFUE (posição 22.05, a que corresponde a posição 2204 da Nomenclatura Combinada), pelo que aqueles produtos se consideram “produto agrícola” e as operações a eles respeitantes são de “transformação de produtos agrícolas”.

Assim, por força do disposto no art. 3º, 1, c) do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à actividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações indicadas nas suas subalíneas i) ou ii), isto é, “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa”, ou “sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”.

Mais, sabemos que o art. 13º, b) do RGIC, que define o “âmbito de aplicação dos auxílios com finalidade regional”, confirma a sua aplicação à actividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, quando exclui do seu âmbito de aplicação os “auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica”, mas clarificando que não é como tal considerada “a transformação de produtos agrícolas”.

Consequentemente, não se verificando qualquer destas situações no caso em apreço, tem de se concluir que a aplicação do benefício fiscal do RFAI também não é afastada pelo RGIC.

 

IV.E. Sobre o cumprimento dos requisitos de descrição do investimento inicial e de criação de postos de trabalho

 

IV.E. 1. Requisitos de descrição do investimento inicial

 

Quanto à alegação de que os elementos apresentados pela Requerente não propiciam o apuramento individualizado dos investimentos elegíveis, afigura-se a este Tribunal que, pelo contrário, eles estão discriminados, classificados e documentalmente comprovados – na área de produção (aumento da capacidade de armazenagem, upgrade de diversos equipamentos), na área da vinificação, na área do enoturismo e na área administrativa.

Tanto assim que demos por provada essa matéria, transcrevendo a lista na qual cada investimento aparece discriminado em termos de NUTS II, Imobilizado, CAE, Descrição e Valor de Aquisição.

Referimos já, antes, que vigora o princípio da livre apreciação dos factos, que faz com que a decisão deva basear-se, em relação aos factos alegados pelas partes, na íntima e prudente convicção dos julgadores, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência.

Não pode estabelecer-se, para essa factualidade, um standard de prova excessivamente oneroso, ou que privilegiasse a forma em detrimento da verdade material – que, neste contexto, é a única que deve relevar (sem impedir que, a nível administrativo, haja consequências próprias para a preterição de formalidades ad probationem).

O investimento inicial está, portanto, adequadamente descrito.

 

IV.E. 2. Requisitos de criação de postos de trabalho

 

Sobre o ponto da criação de postos de trabalho, e novamente em homenagem à uniformidade da jurisprudência, aderiremos à fundamentação de duas decisões arbitrais, que no nosso entender se adequam perfeitamente à temática do presente processo, e são exaustivos na convocação dos quadros do direito da União e do direito Português aqui aplicáveis.

Comecemos pela fundamentação da decisão no Proc. nº 307/2019-T (José Pedro Carvalho, Tomás Castro Tavares e Jorge Carita), ressalvando que ela se reporta também  à norma contida no art. 2º, 3, f) do RFAI 2009, que é correspondente ao artigo 22º, 4, f) do novo CFI.

 

-------------------(início de citação do Proc. 307/2019-T)

 

“Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, considera-se que a referência feita na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, deve ser entendida como reportando-se à criação de postos de trabalho causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Com efeito, o regime legal em questão foi criado pela Lei 10/2009, no âmbito da Iniciativa para o Investimento e o Emprego, designada por Programa IIE, que visou “promover o crescimento económico e o emprego, contribuindo para o reforço da modernização e da competitividade do País, das qualificações dos Portugueses, da independência e da eficiência energética, bem como para a sustentabilidade ambiental e promoção da coesão social”.

No âmbito do programa IIE, incluíram-se medidas de “Apoio especial à actividade económica, exportações e pequenas e médias empresas (PME)” e de “Apoio ao emprego e reforço da protecção social” (cfr. als. d) e e) do n.º 1 do art.º 2.º da Lei 10/2009).

No quadro daquele programa, o RFAI 2009 foi criado como “um sistema específico de incentivos fiscais ao investimento”, conforme resulta do art.º 1.º do mesmo Regime.

Foi, assim, o regime em questão, expressamente e no que para o caso interessa, formulado como um incentivo ao investimento (gerador de crescimento económico) tendo em vista o reforço da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, explicando-se dessa forma a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, que radica na al. f) do n.º 3 do art.º 2.º do RFAI 2009, criado pela referida Lei 10/2009.

Neste contexto, a criação de emprego previsto na al. f) do n.º 4 do art.º 22.º CFI, deverá ser entendido como um requisito sine qua non do direito ao benefício fiscal, já que é esse um dos propósitos assumidos pelo legislador e consta expressamente da letra da lei.

Não obstante não se poderá, nem deverá, julga-se, esquecer que o regime em questão visará, à frente daquele propósito, fomentar o investimento, para além da modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, sendo essencialmente um regime de apoio ao investimento, e não ao emprego.

Neste quadro, portanto, e na leitura e interpretação do regime em questão, dever-se-á sempre ter presente em primeira linha a ideia do incentivo ao investimento, sendo a criação de emprego uma condição, mas não o fundamento, do direito ao benefício fiscal.

Assim, e tendo presente igualmente as finalidades de modernização e da competitividade do País, e das qualificações dos Portugueses, dever-se-á concluir que o regime em questão visa promover o investimento modernizador, que aumente a competividade do país, e fomente a actualização, ou a aquisição de novas, competências pelos trabalhadores.

Posto isto, sustenta a AT que, na leitura da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, se deverá lançar mão do enquadramento europeu em matéria de auxílios de Estado com finalidade regional no qual se inscreve o RFAI, constituído, nos termos do n.º 2 do art.º 1.º do CFI, pelo Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de Junho de 2014 , que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.°e 108.° do Tratado.

Sendo, evidentemente, um elemento relevante, crê-se que, antes de mais, se deve recorrer ao Regulamento (CE) N.º 800/2008 da Comissão, de 6 de Agosto de 2008, vigente na altura da implementação do RFAI 2009, que, como se viu, está na génese do RFAI integrado no CFI.

(…)

Aqui chegados será possível, crê-se, verificar que o Regulamento em questão distingue efectivamente, entre dois tipos distintos de apoios às PME, que são os apoios quantificados:

a) com base nos custos do investimento; e

b) nos custos relativos aos postos de trabalho directamente criados por um projecto de investimento.

E é para este último tipo de apoios que é utilizado o conceito, e exigido o aumento líquido de postos de trabalho por serem, justamente, aqueles em que a utilização de tal conceito se justifica.

O Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, segue, no que para o caso importa, a mesma lógica, referindo no preâmbulo que “A fim de não favorecer o investimento em capital em relação ao investimento nos custos da mão de obra, deve prever-se a possibilidade de quantificar os auxílios regionais ao investimento com base quer nos custos do investimento quer nos custos salariais do emprego diretamente criado por um projeto de investimento.”, e dispondo no art.º 17.º que:

“2. Os custos elegíveis devem ser um dos seguintes custos ou ambos:

a) Os custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;

b) Os custos salariais estimados do emprego diretamente criado pelo projeto de investimento, calculados para um período de dois anos.”.

No art.º 14.º também se dispõe que:

“4. Os custos elegíveis devem ser os seguintes:

a) Custos de investimento em ativos corpóreos e incorpóreos;

b) Custos salariais estimados decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos; ou

c) Uma combinação das alíneas a) e b), que não exceda o montante de a) ou b), consoante o que for mais elevado.”.

É neste contexto que o n.º 9 do mesmo art.º 14.º, citado pela AT, dispõe que:

“9. Quando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados, descritos no n.º 4, alínea b), devem ser preenchidas as seguintes condições:

a) O projeto de investimento deve conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período;

b) Cada posto de trabalho deve ser preenchido no prazo de três anos após a conclusão dos trabalhos; e

c) Cada posto de trabalho criado através do investimento deve ser mantido na zona em causa durante um período mínimo de cinco anos a contar da data em que a vaga foi preenchida, ou três anos no caso de PME.”.

Ora, como se viu já, o RFAI foi sempre um apoio ao investimento, e é calculado com base nos custos de investimento em activos corpóreos e/ou incorpóreos, e não com base nos custos de investimento em postos de trabalho ou em custos salariais estimados.

Daí que não seja fundada, julga-se, a invocação do conceito de criação líquida de postos de trabalho do Regulamento em questão, para a interpretação a fazer da al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do RFAI.

De resto, terá sido por ter noção do quanto se expôs que o legislador não utilizou a expressão “criação líquida de emprego”, quando a mesma era utilizada, por exemplo, no art.º 19.º do EBF vigente à data, esse sim, um benefício fiscal que tem por base os custos de investimento em postos de trabalho.

Considerando-se, então, que a al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI, não se reporta à criação líquida de postos de trabalho, nos termos em que, por exemplo, o referido art.º 19.º do EBF e as Directivas sobre apoios de Estado o fazem, é ainda necessário densificar qual o sentido e alcance da expressão “criação de postos de trabalho”, ali empregue, tem.

Tendo em conta que, pelos fundamentos expostos, não se deverá equiparar a expressão “criação de postos de trabalho” a “criação líquida de postos de trabalho”, dever-se-á, em obediência ao princípio hermenêutico do legislador razoável, obter um resultado interpretativo que seja coerente com a teleologia do benefício fiscal em questão e que tenha um efectivo conteúdo prático.

Nessa perspectiva, a única interpretação que não se reconduza à “criação líquida de postos de trabalho”, será, julga-se, a de que a “criação de postos de trabalho” pressuposta pelo benefício fiscal em questão se refere à criação de postos de trabalho, e a sua manutenção, causalmente associáveis ao investimento realizado, independentemente de, sob um ponto de vista global, a empresa ter verificado, ou não, um aumento do número de trabalhadores ao seu serviço.

Ou seja: o que está em causa é que o investimento realizado por determinada empresa será elegível para usufruir do benefício fiscal em questão se, e na medida em que, dele resulte, de forma causalmente adequada, a criação de, pelo menos, um posto de trabalho, e a sua manutenção.

Assim, e por exemplo, se uma determinada empresa adquirir um veículo pesado de mercadorias e contratar um motorista habilitado à sua condução, para o conduzir, verificar-se-á o pressuposto da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.

Mas uma empresa que adquira um veículo pesado de mercadorias, e já dispusesse nos seus quadros de um motorista habilitado à sua condução (que estivesse, por exemplo, afecto à condução de um veículo ligeiro de mercadorias), e contrate um colaborador para a limpeza das suas instalações, que também faça a lavagem e limpeza do veículo adquirido, não preencherá o referido pressuposto de criação de postos de trabalho, já que, embora o referido colaborador possa executar alguns serviços relacionados com o bem adquirido, não se poderá, em princípio, concluir que a sua contratação se relacione de forma causalmente adequada àquela aquisição.

Deverá ser assim este, julga-se, o critério para aferir da criação de postos de trabalho, pressuposto pela al. f) do n.º 4 do art.º 22.º do CFI.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 307/2019-T)

 

Passemos à fundamentação da decisão no Proc. nº 561/2022-T (Carlos Fernandes Cadilha, André Festas da Silva e Mariana Vargas)

 

-------------------(início de citação do Proc. 561/2022-T)

 

“Outra questão em discussão é a de saber se a Requerente cumpriu a condição da “criação de postos de trabalho”, nos termos da alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro (CFI), para o que é necessário primeiro determinar aquele conceito, começando pela interpretação das partes.

(…)

Para analisar esta questão teremos, desde logo, de verificar as disposições aplicáveis, relativamente ao emprego, a nível comunitário e nacional.

O n.º 32 do artigo 2.º do RGIC, no âmbito das definições genéricas, identifica que «aumento líquido do número de trabalhadores» é o “aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento em causa em comparação com a média durante um determinado período de tempo, devendo os postos de trabalho suprimidos durante esse período ser, por conseguinte, deduzidos e o número de trabalhadores a tempo inteiro, a tempo parcial e sazonais ser considerado segundo as respetivas frações de trabalho anual”.

Em idêntico sentido, segundo disposto na alínea k) do ponto 1.2 das OAR, que se refere às definições aplicáveis para efeito dessas orientações, entende-se como criação de emprego “um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, após deduzir os postos de trabalho eventualmente suprimidos durante o mesmo período do número aparente de postos de trabalho criados.

Mas é de realçar que apenas é feita menção no RGIC, no capítulo específico sobre os auxílios com finalidade regional (subsecção A, da Secção I, capítulo III), às condições relativas ao número de trabalhadores, concretamente no n.º 9 do artigo 14.º, “[q]uando os custos elegíveis são calculados por referência aos custos salariais estimados”, descritos no n.º 4 (alíneas b) e c)), ou seja, “decorrentes da criação de emprego, em virtude de um investimento inicial, calculados ao longo de um período de dois anos”.

Nesse caso:

“a) O projeto de investimento deve conduzir a um aumento líquido do número de trabalhadores do estabelecimento em causa, em comparação com a média dos 12 meses anteriores, ou seja, qualquer perda de postos de trabalho deve ser deduzida do número aparente de postos de trabalho criados nesse período;

b) Cada posto de trabalho deve ser preenchido no prazo de três anos após a conclusão dos trabalhos; e

c) Cada posto de trabalho criado através do investimento deve ser mantido na zona em causa durante um período mínimo de cinco anos a contar da data em que a vaga foi preenchida, ou três anos no caso de PME”.

O artigo 5.º do Anexo I do RGIC define que os efetivos correspondem ao número de Unidades de Trabalho-Ano (UTA), isto é, ao número de pessoas que trabalharam na empresa em questão ou por conta dela a tempo inteiro durante todo o ano considerado, sendo que o trabalho das pessoas que não tenham trabalhado todo o ano, ou que tenham trabalhado a tempo parcial, independentemente da sua duração, ou o trabalho sazonal, é contabilizado em frações de UTA.

Os efetivos são compostos por trabalhadores, pessoas que trabalham para essa empresa, com um nexo de subordinação com ela e equiparados a trabalhadores à luz do direito nacional, proprietários-gestores e sócios que exerçam uma atividade regular na empresa e beneficiem das vantagens financeiras da mesma.

Em conclusão, no quadro normativo comunitário relevante, apenas podem ser aplicadas as “definições” relativas ao emprego, nos “auxílios regionais” (como o RFAI), quando os custos elegíveis sejam calculados por referência aos custos salariais estimados. Sendo então, só nesse caso, que o investimento deve conduzir ao aumento líquido do número de trabalhadores no estabelecimento, preenchido nos três anos seguintes à sua conclusão e mantido pelo mesmo prazo.

Dito de outra forma, os critérios determinados em cada definição não são genéricos ou extrapoláveis e só podem ser aplicados quando sejam enquadráveis. Pelo que não podemos invocar uma obrigação, relativamente a algo que não está previsto no contexto específico em causa.

No direito interno, relativamente à criação de postos de trabalho, a disposição está exclusivamente no Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de Outubro, e não na Portaria de regulamentação, sendo que, pela alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º, somente podem beneficiar dos incentivos do RFAI (que é um “auxílio regional”) os sujeitos passivos de IRC quando “Efetuem investimento relevante que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto de investimento, nos termos da alínea c)” [três anos para as PME e cinco nos restantes casos].

Do ponto de vista meramente textual, é, portanto, exigida a:

i) criação de postos de trabalho,

ii) proporcionada pelo investimento e

iii) a sua manutenção por cinco anos.

Daqui resulta que, de forma literal, estamos a falar da criação de emprego em resultado do investimento relevante, devendo ambos ser mantidos pelo mesmo prazo.

Ora, como já vimos, as disposições comunitárias só determinam, por um lado, obrigações no caso de os custos elegíveis, que são a base do incentivo1, terem uma componente em função da criação de emprego, concretamente dos seus encargos por dois anos (individual ou cumulativa com o investimento).

E, por outro, consideram que o emprego diretamente criado por um projeto de investimento é aquele ligado à atividade relacionada com o investimento, incluindo o emprego criado na sequência do aumento da taxa de utilização da capacidade criada pelo investimento.

Os custos de emprego não são elegíveis no RFAI. Ou seja, a criação de postos de trabalho proporcionado por investimento relevante é uma condição de candidatura e não de elegibilidade de custos.

Relativamente ao contexto contemporâneo nacional, deve ser destacado que o (revogado) artigo 19.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais identificava que o apuramento do benefício se fazia com base nos encargos com a criação de emprego, admitidos por contrato de trabalho por tempo indeterminado e indicava que eram apurados em termos líquidos, tudo condições que não se verificam no RFAI.

Relativamente à condição da criação de emprego no RFAI, no sentido de a aferição dever ser feita se relacionada com o investimento e não de forma líquida na entidade, citamos a Decisão Arbitral no processo nº 307/2019, de Março de 2020.

(…)

Não tendo a Administração efetuado, em primeira linha, a prova que lhe incumbia, na medida em que basicamente parte de um mero juízo presuntivo, acaba por decidir em sentido desfavorável ao contribuinte com base na inversão do ónus da prova, exigindo que fosse este a comprovar cabalmente que ocorreu uma efetiva criação de novos postos de trabalho.

Em conclusão, considera-se demonstrado que a Requerente cumpriu a condição prevista na alínea f) do n.º 4 do artigo 22.º do Decreto-Lei nº 162/2014, dado que o investimento relevante proporcionou a criação de postos de trabalho e a sua manutenção por mais de três anos.”

 

-------------------(fim de citação do Proc. 561/2022-T)

 

Restando concluir que, nestes termos lapidarmente formulados pelas duas decisões arbitrais citadas, se encontra cumprido, pela Requerente, o requisito da criação de postos de trabalho.

 

IV.F. Conclusão

 

Vimos que uma das preocupações do legislador pátrio, ao criar o Código Fiscal do Investimento e o Regime Fiscal de Apoio ao Investimento, foi a de adaptar tais instrumentos “às novas regras europeias aplicáveis em matéria de auxílios de Estado para o período 2014-2020, tendo em vista a promoção da competitividade da economia portuguesa e a manutenção de um contexto fiscal favorável ao investimento”, como se refere no art. 1º da Lei n.º 44/2014, de 11 de Julho, que autorizou o Governo a aprovar um novo Código Fiscal do Investimento.

No resultante quadro legislativo, o RFAI passou a ter aplicação a todas as empresas dos sectores de actividade enumerados, onde se inclui o da Requerente, excepto se existir uma exclusão por força das OAR ou do RGIC.

Mas, tal como resulta do disposto no artigo 1º, 3, c), do RGIC, só não é permitida a concessão de auxílios estatais à actividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas “sempre que o montante dos auxílios for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados em empresas no mercado pelas empresas em causa” ou “sempre que o auxílio for subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários”. Não era o caso, pelo que há que concluir que a aplicação do benefício fiscal RFAI aos investimentos realizados pela Requerente também não é afastada pelo RGIC.

Por outro lado, também no quadro das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020 não se vislumbra a proibição da aplicação do RFAI à actividade de transformação industrial de produtos agrícolas em novos produtos agrícolas, como resulta dos pontos 33 e 168 dessas Orientações.

De onde se conclui que a actividade da Requerente, de transformação de produtos agrícolas, não resulta excluída do âmbito das OAR, sendo permitidos os auxílios estatais uma vez satisfeitas as condições aí previstas.

Vimos ainda que uma simples Portaria não pode interferir negativamente no quadro normativo aplicável, seja porque este lhe é hierarquicamente superior, seja porque, sendo patente a intenção legislativa subjacente ao RFAI, na versão do CFI, a Portaria, como instrumento de execução dessas regras, sempre teria de ser interpretada de forma a concretizá-las, e não a afastá-las, em face da supremacia do Direito de União sobre o Direito Nacional

Vimos, por fim, que os requisitos de descrição do investimento inicial, e de criação de postos de trabalho, estavam adequadamente preenchidos.

Conclui-se, assim, que as liquidações impugnadas enfermam de vício, por erro sobre os pressupostos de direito, ao terem pressuposto o entendimento de que a actividade da Requerente não era elegível para beneficiar do RFAI.

Na verdade, a indústria transformadora enquadra-se no art. 2.º, 2 do CFI, e não se está perante “atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”, para efeitos do art. 22º, 1, do CFI.

Pelo exposto, tem de se concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas, por vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no art. 163º, 1, do CPA, subsidiariamente aplicável nos termos dos arts. 29º, 1, d) do RJAT e 2º, c), da LGT.

 

IV.G. – Juros indemnizatórios.

 

O tribunal arbitral não é apenas competente para apreciar a legalidade de actos de liquidação de impostos, cabendo-lhe ainda algumas atribuições que se enquadram no âmbito da execução de sentença - porque constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a AT deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado, e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (art. 179º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração, ou a requerimento do particular (art. 172º do CPA).

No caso, a Requerente veio deduzir um pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, mas esse é um pedido meramente acessório, e condicionado à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de um pedido autónomo de condenação na prática de acto devido, ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral. 

Por conseguinte, o tribunal arbitral não está impedido de incluir, no dispositivo, as cominações meramente consequenciais da declaração de ilegalidade do acto tributário.

De harmonia com o disposto no art. 24º, 1, b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT.

Nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas.

Tudo isso condicionado pela existência, ou não, de erro imputável aos serviços, que já determinámos ter existido.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, e em aplicação do art. 24º, 1, b) e 5 do RJAT, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

A própria Requerente admite, no seu pedido de pronúncia, que, tratando-se de um caso de autoliquidação, o erro dos serviços só se manifesta no momento do indeferimento da reclamação graciosa, pelo que os juros indemnizatórios só são peticionados a partir dessa data, ou seja, desde 27 de Dezembro de 2022.

Segue-se o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, de 2021-04-07:

(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.

Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte”.

Encontra-se o mesmo entendimento nas Decisões Arbitrais dos Processos n.os 345/2020-T, 558/2020-T, 115/2022-T ou 816/2021-T.

Os juros indemnizatórios são, pois, devidos, nos termos dos arts. 43º, 1 e 4, e 35º, 10 da LGT, 61º, 5 do CPPT, 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde 27 de Dezembro de 2022 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

IV.G. – Aplicação uniforme do Direito.

 

Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no art. 8º, 3 do Código Civil, seguimos de perto as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 220/2020-T, 670/2020-T, 98/2021-T, 236/2021-T, 164/2022-T, 642/2022-T, 675/2022-T, 706/2022-T e 773/2022-T do CAAD[7]; e ainda as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 307/2019-T, 142/2021-T, 169/2021-T, 273/2021-T, 333/2021-T, 655/2021-T, 688/2021-T, 827/2021-T, 858/2021-T, 43/2022-T, 149/2022-T, 187/2022-T, 229/2022-T, 251/2022-T, 447/2022-T, 544/2022-T, 561/2022-T e 750/2022-T, além da declaração do voto apresentada no Processo nº 218/2019-T do CAAD[8].

 

IV.H. – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a autoliquidação impugnada e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
  3. Condenar a Requerida na devolução do imposto pago em excesso;
  4. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, contados desde 27 de Dezembro de 2022;
  5. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VII. Valor do processo

 

Como ficou fixado como matéria de facto provada, na sequência de um procedimento inspectivo instaurado à Requerente, credenciado pela Ordem de Serviço Interna nº OI2022..., e efectuado ao exercício de 2019, à liquidação nº 2020... sucedeu uma liquidação adicional com o nº 2022..., e a data de 23 de Setembro de 2022, reflectindo na declaração consolidada as correcções em sede de IRC realizadas à sociedade C... SA no âmbito da Ordem de Serviço OI2021... (1), por se ter constatado que as correcções promovidas ao sujeito passivo relativas ao ano de 2018 tinham implicações no ano de 2019.

Nessa liquidação adicional, o valor dos benefícios fiscais inscrito no campo 355 da declaração modelo 22 passou de € 1.745.335,28 para € 1.729.101,65, reflectindo a correção no valor de € 16.233,63 efetuada pelos SIT ao grupo B... .

Por lapso, a Requerente não considerou, no Pedido de Pronúncia Arbitral, o aumento do IRC pago relativamente ao período de tributação de 2019, no valor de € 16.233,63, decorrente da correcção efectuada ao valor dos benefícios fiscais deduzidos no campo 355 da declaração de rendimentos Modelo 22 do RETGS operada pela liquidação adicional com o n.º 2022 ... e que é recuperado com o apuramento e dedução de RFAI referente ao exercício de 2019.

Suscitada a questão na Resposta da AT de 11 de Setembro de 2023, a Requerente pronunciou-se sobre ela em requerimento de 4 de Outubro de 2023, reconhecendo os factos mas sustentando que o valor do processo arbitral não se altera, não sendo impactado pela liquidação adicional de IRC referente ao período de tributação de 2019 com o n.º 2022 ... e data de liquidação de 23 de Setembro de 2022 – mantendo-se o valor de € 142.045,19, com a dedução, no período de 2019, do montante de € 82.511,75, transitando para os períodos seguintes um saldo de € 59.533,44 por insuficiência de coleta.

A única consequência, como assinala a Requerente, é que se amplia a causa de pedir, visto que, dada a liquidação adicional de € 16.233,63, o IRC liquidado e efectivamente pago, referente a 2019, passa do valor de € 61.454,62 para € 77.688,25, sendo este último valor aquele que passa a ser o montante que é objecto do pedido de reembolso.

Fixa-se, assim, o valor do processo em € 142.045,19 (cento e quarenta e dois mil, quarenta e cinco euros e dezanove cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 3.060,00 (três mil e sessenta euros) a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 28 de Março de 2024

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Pedro Guerra Alves

 

José Luís Ferreira

 



[1] Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., 599.

[2] Teixeira de Sousa, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ, 325, 178-179.  

[3] Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, JULGAR Online, Nov. 2018, p. 27.

[4] Rui Pinto (2018), “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, JULGAR Online, Nov. 2018, p. 35.

[5] Revogando o Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro, que aprovava o anterior CFI.

[6] Veja-se, por exemplo, a do Proc. nº 642/2022-T.

[7] Processos n.os 220/2020-T (Jorge Lopes de Sousa, Luís Janeiro e Nuno Cunha Rodrigues), 670/2020-T (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Rui Ferreira Rodrigues e Augusto Vieira), 98/2021-T (José Poças Falcão, Jorge Bacelar Gouveia e Eduardo Paz Ferreira), 236/2021-T (Fernanda Maçãs, Álvaro Caneira e Clotilde Celorico Palma), 164/2022-T (Nuno Cunha Rodrigues, Francisco Melo e João Taborda da Gama), 642/2022-T (Rui Duarte Morais, Pedro Guerra Alves e Pedro Galego), 675/2022-T (Rita Correia da Cunha, Augusto Vieira e Manuel Alberto Soares), 706/2022-T (Carla Castelo Trindade, Armando Oliveira e Mariana Vargas) e 773/2022-T (Rita Guerra Alves).

[8] Processos n.os 307/2019-T (José Pedro Carvalho, Tomás Castro Tavares e Jorge Carita), 142/2021-T (Alexandra Coelho Martins, Ricardo Rodrigues Pereira e André Festas da Silva), 169/2021-T (Alexandra Coelho Martins, A. Sérgio de Matos e Rui Duarte Morais), 273/2021-T (Jorge Lopes de Sousa, Luís Janeiro e João Marques Pinto), 333/2021-T (Manuel Macaísta Malheiros, António Cipriano da Silva e Cristina Coisinha), 655/2021-T (Victor Calvete, Alexandra Iglésias e Amândio Silva), 688/2021-T (José Poças Falcão, Fernando Miranda Ferreira e Cristina Coisinha), 827/2021-T (Regina de Almeida Monteiro, Paulo Jorge Nogueira da Costa e Francisco Melo), 858/2021-T (Fernanda Maçãs, Carlos Manuel Baptista Branco e José Rodrigo de Castro), 43/2022-T (Alexandra Coelho Martins, Armando Oliveira e Marcolino Pisão Pedreiro), 149/2022-T (Rita Correia da Cunha, Ana Pinto Moraes e Raquel Franco), 187/2022-T (Rui Duarte Morais, João Pedro Rodrigues e António Pragal Colaço), 229/2022-T (Fernando Araújo, André Festas da Silva e Luís Cupertino Ferreira), 251/2022-T (Fernando Araújo, Paulo Lourenço e João Pedro Rodrigues), 447/2022-T (Guilherme W. d´Oliveira Martins, António Cipriano da Silva e José Coutinho Pires), 544/2022-T (Jorge Lopes de Sousa, Tomás Castro Tavares e Jónatas Machado), 561/2022-T (Carlos Fernandes Cadilha, André Festas da Silva e Mariana Vargas) e 750/2022-T (Filipa Barros).