Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 742/2023-T
Data da decisão: 2024-03-25  IRS  
Valor do pedido: € 101.205,00
Tema: IRS - natureza de rendimentos obtidos no estrangeiro: meios de prova.
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SUMÁRIO: Para efeitos de tributação em IRS, a natureza dos rendimentos, mesmo quando obtidos no estrangeiro, pode ser feita através de documentos particulares, nomeadamente os emitidos pela entidade bancária que intermediou a venda que gerou tais rendimentos.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIF..., residente na Rua ..., n.º ... –...–..., ... – ESTORIL, na qualidade de filha, herdeira e cabeça de casal, por sucessão de sua mãe, de B..., NIF..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I – RELATÓRIO

 

  1. O Pedido

 

Relativamente à liquidação de IRS n.º 2016..., emitida em nome do seu falecido pai B..., a Requerente sustenta que (transcrevemos):

  1. Deve ser anulado o despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico;
  2. Deve ser julgado procedente o pedido de requalificação dos rendimentos originariamente declarados, nos exatos termos e montantes em que o foram;
  3. Deve ser condenada a Requerida a devolver ao Requerente a importância de imposto a mais paga;
  4. Deve ser condenada a Requerida a pagar, ao Requerente, juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT

 

b) O litígio

 

A Requerente pretende que o rendimento de € 354.325,17, que considera corresponder a uma mais-valia mobiliária, seja tributado à taxa especial prevista no CIRS para tal subcategoria de rendimentos e não às taxas gerais de imposto, como foi feito na liquidação impugnada em resultado de alegado erro por si cometido na declaração.

A AT indeferiu tal pretensão, quer em sede de reclamação graciosa, quer de recurso hierárquico.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 23/10/2023.

Os árbitros que constituem este Tribunal foram designados pelo CAAD e aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.

O tribunal arbitral ficou constituído em 02/01/2024.

A Requerida apresentou Resposta e juntou PA.

A Requerente, para tal notificada, respondeu à exceção deduzida pela Requerida.

Por despacho de 20/02/2024, foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art. 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs a tal despacho.

 

 

D) SANEAMENTO

O processo não enferma de nulidades ou de irregularidades.

A seguir se apreciará da exceção deduzida pela Requerida. Não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

D.1) Da exceção

 

A Requerida sustenta que a lide deve ser extinta por falta de objeto, como se segue: o presente PPA tem como objecto a liquidação nº 2017...; como resulta da factualidade acima elencada, a liquidação nº 2017... é a atualmente vigente, resultante de uma declaração de substituição apresentada após a interposição da RG.; Logo, o presente PPA, ficou sem objeto o que constitui uma causa extintiva da instância nos termos do art. 277º, al. e) do CPC, aplicável ex vi art. 29º, nº 1 al.e) do RJAT.

A Requerente exerceu o seu direito ao contraditório, salientando, nomeadamente, que:

-  o objeto imediato da presente impugnação (a decisão do recurso hierárquico) versou sobre a liquidação identificada na petição inicial; a existir “falta de objeto”, ela já existiria quando tal decisão administrativa aconteceu.

-  com referência a 2015 e ao sujeito passivo em causa, foram apresentadas, relativamente a IRS, a primeira declaração (a referida na petição inicial) e várias declarações de substituição, tendo estas gerado outras liquidações, que a AT juntou com a resposta.

-  as declarações de substituição foram motivadas por outras razões que não a que constitui causa de pedir nos presentes autos.

-  em tais declarações de substituição se continuou a preencher o quadro 9.1.B do Anexo J tal como havia sido feito na declaração inicial uma vez que a questão do alegado erro de preenchimento desse quadro estava já a aguardar decisão administrativa em sede de reclamação graciosa.

- as declarações de substituição deram origem a novas liquidações “automáticas” por delas resultar o imposto superior ou reembolso inferior ao anteriormente apurado" (al. b) do n.º 3 do artigo 59.º do CPPT).

 

Esta factualidade resulta também afirmada na resposta da AT, a qual, aliás, pretende esgrimir a seu favor o facto de a Requerente, nas declarações de substituição, ter preenchido o quadro 9.1.B do Anexo J tal qual havia feito na declaração inicial.

Apreciando:

Em direito tributário, muito embora o processo de impugnação continue a ser dirigido à anulação de um ato de liquidação, o certo é o contencioso é hoje, reconhecidamente, um contencioso de plena jurisdição, cujo fim último é proceder à análise de uma determinada relação jurídico-fiscal, definindo os direitos e deveres do particular.

Ora, é bom de ver que a relação jurídico-fiscal que tem como facto gerador a obtenção do rendimento em causa nos presentes autos (o dever de pagar imposto associado) é sempre a mesma, independentemente das sucessivas liquidações em que tal valor aparece incluído nas respetivas matérias coletáveis. E que essa relação jurídico-fiscal continua carecida da tutela judicial pedida neste processo.

 

Mais, as liquidações originadas pelas declarações de substituição apresentadas correspondem, materialmente, a uma reforma da liquidação anterior, porquanto a nova liquidação é o resultado, apenas, da alteração à matéria coletável decorrente da nova declaração do sujeito passivo, mantendo-se inalterada no restante.

Ou seja, no caso, as declarações de substituição materialmente não deram origem a novas liquidações no tocante ao rendimento em causa, pese embora lhes corresponda outra identificação (outro número).

Assim, entende-se improceder, por manifesta falta de substância, esta exceção.

 

II - PROVA

 

 

II. 1 - Factos provados

 

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A falecida mãe da ora Requerente apresentou uma declaração de IRS, mod. 3, relativa ao ano de 2015, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por morte de seu marido B... .
  2. Tal declaração deu origem à liquidação ora impugnada, processada em nome deste.
  3. O valor liquidado foi pago em 6 de janeiro de 2017.
  4. Na declaração que deu origem a tal liquidação constava, no Anexo J, Quadro 9.1-B, campo 921, (Ouros Incrementos Patrimoniais de Englobamento Obrigatório) o montante de € 354.325,17.
  5. Tal valor corresponde à mais-valia de apurada na alienação de ações “...”, feita através do C... Luxemburgo.
  6. A Requerente reclamou graciosamente de tal liquidação, invocando erro na declaração por ter aí considerado tal mais-valia como sendo de englobamento obrigatório,
  7. E pretendendo que a mesma fosse sujeita à taxa especial prevista para as mais-valias mobiliarias.
  8. Em declarações de substituição posteriores, a Requerente manteve o modo de preenchimento do anexo J, Quadro 9.1-B, campo 921.
  9. Tais declarações de substituição deram origem a liquidações às quais correspondem outros números identificativos.
  10. A reclamação graciosa foi indeferida com a fundamentação seguinte: após análise aos documentos bancários que foram juntos aos presentes autos (fls. 11 a 13) de modo a comprovar a alteração de natureza dos rendimentos Categoria G, ora em questão, considera-se que estes documentos não devem ser aceites uma vez que os mesmos não cumprem as exigências previstas no Ofício-Circulado 20030, de 18/12/2000, emitido pela extinta Direção de Serviços de Benefícios Fiscais".
  11. Tal decisão de indeferimento tem data de 2017-11-28.
  12. Este entendimento foi mantido, inalterado, na decisão do recurso hierárquico.

 

Com exceção do constante de e), os factos dados como provados estão documentalmente provados, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.

As questões relativas à prova do constante de e) (e as razões que levaram o tribunal a considera-lo provado) serão analisadas no ponto seguinte, para o qual aqui se remete.

II.2- Factos não provados

Não existem, com relevância para a decisão da causa.

III- O DIREITO

1- A fundamentação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, bem como o da reclamação graciosa, invoca o disposto no ofício-circulado 20030 da então DS dos Benefícios Fiscais.

Sem necessidade de se reafirmar que as orientações genéricas dos serviços, dada a sua natureza de regulamentos internos, não vinculam os sujeitos passivos (e os tribunais), apenas diremos que tal circular se refere à prova do imposto pago no estrangeiro a ser creditado no imposto devido em Portugal (para a qual se “exige” aí documento emitido pela administração fiscal em causa) e não à prova da natureza de determinado rendimento obtido no estrangeiro. Pelo que não se compreende a sua invocação no presente caso.

No domínio do direito tributário vigora o princípio da verdade material, o qual tem diversas manifestações, entre as quais a possibilidade de recurso a todos os meios de prova admitidos em direito. Isto sem prejuízo da constatação de que alguns factos, pela sua natureza, dificilmente poderão resultar provados sem a exibição de um documento comprovativo.

Mas esse documento não tem que ser necessariamente um documento emitido por uma autoridade pública. Aliás, no caso em apreço, estando em causa uma venda de ações, intermediada por um banco – sem intervenção de uma entidade pública – não se vislumbra qual seria o documento autêntico pretendido pela Requerida.

 

2- A documentação junta aos autos (documentos emitidos pelo banco), no entender deste tribunal, prova suficientemente estar em causa uma venda de ações, feita no quadro de uma oferta pública de compra, em 2015, mediada pelo D... .

Aliás, a Requerida nunca impugnou a veracidade do constante de tais documentos, apenas insistindo na obrigatoriedade de apresentação de documentos autênticos.

Há, pois, que concluir que não estão em causa "outros incrementos patrimoniais de englobamento obrigatório", previstos no artigo 9.º do CIRS, mas sim mais-valias mobiliárias, previstas no artigo 10.º do CIRS, as quais podem, por opção do contribuinte, ser tributadas a uma taxa especial, nos termos do artigo 72.º.

 

Por último, salientar que a fundamentação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico se refere apenas à natureza do rendimento em causa, não sendo questionado respetivo valor declarado pelo sujeito passivo

Assim, há que concluir pela total procedência do pedido principal.

 

III.1 - Juros indemnizatórios

Tendo sido pago o montante de imposto liquidado, em o sujeito passivo direito a, para além do reembolso do indevido, receber jutos indemnizatórios, nos termos do art. 43º da LGT.

Porém, um dos pressupostos do direito a tais juros é a existência de erro imputável aos serviços.

Ora, a liquidação impugnada decorreu integralmente do constante da declaração do contribuinte, pelo que não enfermou de erro imputável aos serviços.

O erro só aconteceu com a decisão da reclamação graciosa, confirmada em sede de recurso hierárquico, na qual a AT – ilegalmente, no entender deste tribunal arbitral – concluiu pelo indeferimento da pretensão do contribuinte. Decisão da reclamação que, como dado por provado, é datada de 2017-11-28,

 

IV- DECISÃO

Considera-se totalmente procedente o pedido pelo que, em execução de sentença, a Requerida deverá reformular a liquidação impugnada (melhor, a liquidação vigente em razão das sucessivas declarações de substituição apresentadas[1]) considerando o valor de € 354.325,17 como tendo a natureza de mais-valia mobiliária e sujeitando-o à tributação por aplicação da taxa especial prevista no art. 72º do CIRS, tal como pretendido pela Requerente.

Deverá ainda extrair as demais consequências legais, nomeadamente, proceder à devolução do montante de imposto que se venha a apurar ter sido indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios, como acima enunciado.

Consequentemente, anula-se a decisão de indeferimento do recurso hierárquico.

Valor: 101.205,00

Custas arbitrais, no montante de 3.060,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.

 

25 de março de 2024

 

 

Os árbitros

 

Rui Duarte Morais

 

 

Clotilde Celorico Palma

 

 

 

 

Ana Rita do Livramento Chacim

 

 



[1] Segundo o constante da resposta da AT, a liquidação vigente será a nº 2017..., de 29/09/2017.