Decisão Arbitral
Processo n.º 739/2023-T
Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. António Cipriano da Silva e Dr. Jorge Belchior de Campos Laires, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem Tribunal Arbitral, constituído em 02-01-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., NIF ..., e B..., NIF ..., residentes na Rua ..., nº ..., ..., ...-... Caranguejeira (doravante abreviadamente designados por «Requerentes»), vieram requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), pretendendo a anulação do acto de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., bem como da liquidação adicional de IRS n.º 2022... .
Os Requerentes pedem ainda juros indemnizatórios sobre o valor de € 155.277,88.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20-10-2023.
Os Árbitros designados pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitaram as designações.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 11-12-2023.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 02-01-2024.
A AT apresentou resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Em 04-03-2024, realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.
As Partes apresentaram alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.
O processo não enferma de nulidades.
O tribunal arbitral é competente.
2. Matéria de facto
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Os Requerentes são casados em regime de comunhão geral de bens;
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No ano de 2018, a sociedade C..., Lda., NIF..., tinha o capital social de € 50.000, sendo a Requerente A... titular de uma quota no valor nominal de € 25.000 e sendo a filha dos Requerentes D... titular de outra quota do mesmo montante (documento n. 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 2018 era trabalhador daquela sociedade o Requerente B... (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Entre 2018 e 2019, a sociedade tinha como principal actividade o fornecimento de instalações elétricas, sendo o maior projeto comercial que vinha a desenvolver a remodelação dos supermercados ... em todo o país (depoimentos de E... e F...);
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Nos anos de 2018 e 2019, a faturação dos serviços prestados à sociedade G..., Lda., representava cerca de 1.280.000,00 € (depoimentos de E... e F...);
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No início do ano de 2018, os Requerentes começaram a equacionar e debater entre si uma potencial venda das participações sociais da sociedade C..., Lda. (depoimentos de E... e F...);
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Foi com este intuito que, em fevereiro de 2018, os Requerentes começaram a projectar um cenário de venda da sociedade e, bem assim, a desenvolver contactos com vista a encontrar um potencial comprador (depoimentos de E... e F...);
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Uma das pessoas que revelou interesse na aquisição das participações sociais foi a aqui testemunha E..., sócio-gerente da sociedade H..., Lda., NIF ... (depoimentos de E... e F...);
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Os Requerentes já conheciam bem o E..., por existirem anteriores relações comerciais existentes entre as duas sociedades, a H... e a C..., Lda. (depoimentos de E... e F...);
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A sociedade C..., Lda tinha cerca de 1,5 milhões de capitais próprios (depoimentos de E... e F... e documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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O E... pretendia adquirir a sociedade na totalidade e sem os valores de capitais próprios da sociedade, que considerava excessivos (depoimentos de E... e F...);
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Na sequência dos contactos para venda da totalidade da C..., Lda, foi decidida a amortização total da quota da sócia D..., no valor nominal de € 25.000, e a amortização parcial, no montante de € 18.916,00, da quota da sócia A..., que ficou sócia única (depoimento da testemunha F... e documentos n.ºs 2 e 4 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
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Como contrapartida da amortização da sua quota a D... recebeu a quantia de € 743.957,96 (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
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A amortização parcial da quota da Requerente A... teve como contrapartida o pagamento de € 562.836,28, sendo € 18,916,00 correspondentes à restituição do capital investido e € 543.920,28 correspondentes a lucros não distribuídos (referido documento n.º 4);
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A amortização das participações sociais referidas importou a redução do capital social da sociedade de €50.000,00 para € 6.084,00, correspondente a uma quota única de que ficou titular a Requerente A... (referido documento n.º 4);
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Quando se reduziu o capital social, para a empresa não ficar descapitalizada, a Requerente A... efectuou prestações suplementares no montante de € 200.000,00 (referido documento n.º 4 e depoimento da testemunha F...);
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A Requerente A... constituiu prestações suplementares no montante de € 200.000,00 (referido documento n.º 4);
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Foi elaborado o projecto de contrato-promessa de cessão de quotas que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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Posteriormente, o E... desistiu de fazer o negócio, não chegando a ser assinado o contrato-promessa (depoimentos de E... e F...);
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Na sequência da desistência, para não ficar sociedade unipessoal, o Requerente B... adquiriu uma quota da sociedade (depoimento da testemunha F...);
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A C..., Lda, não fez distribuições de dividendos (depoimento da testemunha F...);
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Os Requerentes apresentaram a declaração modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2018, nos termos que constam do documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 2022, foi realizada uma inspecção aos Requerentes em que foi elaborado o projecto de Relatório da Inspecção Tributária que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido;
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O projecto de Relatório da Inspecção Tributária foi notificado aos Requerentes para exercício do direito de audição;
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Os ora Requerentes exerceram o direito de audição nos termos que constam do processo administrativo, tendo, além do mais, requerido a inquirição do referido E...;
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A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu não ser de realizar a diligência requerida e elaborou o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
III.3. Outras Situações
III.3.1. Alteração aos titulares do capital
De acordo com a inscrição 3 na Conservatória de Registo Comercial [CRC] de 23/06/19935 a sociedade aumentou o seu capital social de 500.000$00 para 10.000.000$00 [50.000,00 eur], o qual se decompunha nas seguintes participações:
a) 5.000.000$00 pertencente a B...;
b) 5.000.000$00 pertencente a A....
A conversão do capital social de escudos para euros consta na CRC com a inscrição nº apresentação 47/..., através da alteração da redação do artigo 3° do contrato de sociedade.
O montante do capital social não sofreu qualquer alteração até à deliberação de 28/02/2018.
III.3.1.1 Alterações aos titulares das quotas
Em 2000 B... transmitiu a sua quota para D... . O transmitente renunciou à gerência e a nova titular do capitalª foi nomeada gerente. A qual, por sua vez, a 4/10/2001, procedeu igualmente à renúncia à gerência.
A sociedade desde 2000 até à deliberação de 28/2/2018 foi detida em partes iguais por A... e D... .
(...)
III.3.2.5 - Valores declarados relativos ao capital próprio, de 2005 a 2019
Da análise à informação constante das declarações anuais de Informação Empresarial Simplificada (IES) apresentadas pelo sujeito passivo ao longo dos anos verificou-se a seguinte composição do capital próprio da sociedade:
Conforme decorre do declarado pelo sujeito passivo e, evidenciado no quadro anteriores, de 2005 a 2017 não ocorreu qualquer distribuição de resultados apesar da obtenção de lucro em todos os anos. Em 2005 os resultados acumulados ascendiam a 62.789,42 e a 31/12/2017 a soma do resultado do exercício com os resultados de exercícios anteriores ascendia a 1.336.875,89 [1.268.310,79 + 68.565,10].
(...)
V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades
V.1. Factos e fundamentos das correções
Por deliberação de 28/02/2018, vertida no ponto dois da ata nº 47 [anexo 3] com a epígrafe "Deliberação sobre a amortização de participações sociais com redução do capital social" consta o seguinte:
"[...]tomou a palavra a Senhora A... [...], que informou os presentes [D...] da intenção da amortização, com o consentimento das respetivas titulares, da totalidade da participação social detida pela sócia D..., isto é, €25.000,00 [...] e parte da participação social detida pela sócia A..., mais concretamente €18.916,00 [...]
Mais foi referido que:
a) A amortização total a quota no valor nominal de €25.000,00 [...] detida pela sócia D... terá como contrapartida o pagamento de €743.957,96 [...];
b) A amortização parcial no valor de €18.916,00[..]da quota no valor nominal de €25.000,00[...] detida pela sócia A... terá como contrapartida o pagamento de €562.836,28 [...]
c) O pagamento da contrapartida será efetuado no prazo máximo de 15 (quinze) dias;
d) A amortização das participações sociais supra referidas importa a redução do capital social da Sociedade de €50.000,00 [...]para €6.084,00 [...].
e) Após a amortização de quotas supra referidas, o capital social cifrar-se-á em €6.084, 00 [...] e corresponderá a uma quota única no referido valor pertencente à sócia única A...[...]."
À deliberação supratranscrita corresponde a inscrição 5 na CRC – Apresentação 127... -Redução do capital e alterações ao contrato de sociedade, sendo mencionado que a redução se deveu a amortização de quotas.
Após a amortização da quota da sócia D... o capital social do sujeito passivo passou a ser de 25.000,00 composto por uma só quota titulada por A... . Em ato sequencial ocorreu amortização parcial desta quota que determinou que o capital passasse para 6.084,00.
No que respeita ao valor da contrapartida atribuída às sócias conclui-se que é próximo do valor do capital próprio à data de 31/12/2017 [anexo nº 4] repartido pela parte que representa a respetiva quota no total do capital social, conforme se demonstra.
Em grosso modo poder-se-á afirmar que o valor que foi entregue:
a) à sócia A... [562.836,28] reparte-se por:
• 18.916,00 relativo à restituição do capital investido;
• O remanescente (543.920,28=562.836,28-18.916,00) aos lucros não distribuídos ao longo dos anos.
b) à sócia D... [743.957,96] reparte-se por:
• 25.000,00 relativo à restituição do capital investido;
• 718.957,96 respeitante aos lucros não distribuídos.
(...)
As transferências bancárias para as beneficiárias foram efetuadas a dois de março de 2018.
No ponto 4 ainda da deliberação de 28 de fevereiro de 2018 [ata 47] foi aprovado que a sócia restante efetuasse prestações suplementares no valor de 200.000,00:
"foi aprovado por unanimidade de todos os presentes a constituição, a título voluntário, de prestações suplementares pela sócia A... [..]Valor. €200.000,00[...]"
Este montante entrou para a esfera patrimonial da sociedade a 6 de março de 2018, conforme anexo 5.
Em fevereiro de 2019, conforme consulta ao Portal do Ministério da Justiça -pesquisa de atos societários, a sociedade procedeu a aumento do capital social de 6.084,00 para 20.000,00:
(...)
O ato jurídico de amortização parcial da quota com redução de capital social, determinou que pela redução de quota de valor nominal de 18.916,00 fosse transferido da esfera patrimonial da sociedade o montante 562.836,28 para a esfera patrimonial individual de A... .
A deliberação em causa foi tomada com pleno conhecimento da sociedade, uma vez que, foi realizada na presença dos titulares da totalidade do capital social. Esta decisão e respetivo ato jurídico irão ser objeto de análise detalhada nos pontos seguintes da presente informação.
V.2 Fundamentos de direito
Dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT que:
"Artigo 38.º - Ineficácia de actos e negócios jurídicos
[...]
2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens referidas".
A norma transcrita consagra, no ordenamento jurídico tributário nacional, uma verdadeira cláusula geral anti abuso e estatui a ineficácia, perante a Administração Tributária, de atos jurídicos praticados com evidente abuso de formas jurídicas os quais conduzem, em desfavor da Fazenda Nacional, à eliminação, total ou parcial, ou diferimento temporal do pagamento de impostos que de outro modo seriam devidos.
Dispõe ainda o art.º 63.º n.º 1 e 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), na versão em vigor na data dos factos:
"Artigo 63.º- Aplicação de disposição antiabuso
1-A liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo. [Redação dada pela Lei n. 64-B/2011, de 30 de dezembro]
2-(Revogado.) [Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro]
3-A fundamentação do projecto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 contém necessariamente: [Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro]
a) A descrição do negócio Jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; [Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro]
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto Jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. [Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro]"
Será esta fundamentação que se tentará explanar de seguida.
Nas palavras de Sérgio Vasques "a cláusula geral anti abuso prevista no ordenamento jurídico tributário português é composta por três elementos essenciais:
"Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns".
V.2.1 - Fundamentação da aplicação da norma anti abuso
De tudo quanto foi exposto, no ponto III.1 desta informação, resulta uma forte convicção de que a celebração do mencionado ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais, sendo os resultados alcançados não pretendidos pelo legislador e, por essa razão, objeto de reprovação normativa-sistemática.
V.2.1.1 - Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam
V.2.1.1.1 - Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e das normas de incidência que se lhes aplicam
Tal como foi referido anteriormente foram efetuadas as seguintes amortizações de quotas com redução de capital social:
a) Amortização integral da única quota de D..., cujo valor nominal era de 25.000,00 sendo a contraprestação acordada de 743.957,96;
b) Amortização parcial da quota de 25.000,00 de A... . A quota foi amortizada em 18.916,00 sendo a contraprestação acordada de 562.836,28.
A amortização de quotas está sujeita a tributação em sede de IRS, na esfera do titular singular, como incremento patrimonial, categoria G, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 9º e subalínea 1) da alínea b) do nº1 do artigo 10º, ambos do CIRS. O ganho é determinado pela diferença entre o valor atribuído e o valor de aquisição devidamente corrigido pelo fator de desvalorização monetária, nos termos conjugados da alínea a) do nº4 do artigo 10º, nº1 do artigo 43º e artigo 50º, todos do CIRS.
Se o ganho derivar de participação em micro ou pequena entidade não cotada em mercado regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, é tributado em 50% do seu valor, conforme n.º 3 do artigo 43º do CIRS.
A taxa aplicável ao rendimento tributável apurado é de 28%, taxa especial prevista na alínea c) do nº1 do artigo 72º do CIRS. Estes rendimentos podem ser englobados nos termos do nº12 do artigo 72º do CIRS conjugado com o disposto no artigo 22º do mesmo diploma, sendo a opção exercida na entrega da primeira declaração anual de rendimentos.
V.2.1.1.2 Descrição dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se aplicam
A amortização de quotas consiste na extinção, total ou parcial de uma quota, podendo ser acompanhada de redução do capital social em medida correspondente ao valor nominal dessa quota conforme decorre dos artigos 232º a 238º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
No caso em apreço, estamos perante a ocorrência de amortizações de quotas acompanhadas com a redução do capital social da sociedade, pelo que as mesmas seguem o regime previsto nos artigos 94º a 96º do CSC.
As referidas amortizações estiveram sujeitas ao pagamento de uma contrapartida às suas sócias pelo que se trata de amortizações onerosas, conforme ensina Paulo Olavo Cunha "pode ser onerosa se implicar o pagamento de uma contrapartida, a qual pode ser estipulada no contrato de sociedade; ou gratuita, quando for dispensada tal contrapartida."
A redução de capital consiste numa diminuição do capital social motivada por cobertura de prejuízos, ou libertação de excesso de capital; ou outra finalidade especial, conforme alínea a) do nº 1 do artigo 94º do CSC.
"Redução do capital
Artigo 94.º
(Convocatória da assembleia)
1-A convocatória da assembleia geral para redução do capital deve mencionar:
a) A finalidade da redução, indicando, pelo menos, se esta se destina à cobertura de prejuízos, a libertação de excesso de capital ou a finalidade especial;
b) A forma da redução, mencionando se será reduzido o valor nominal das participações ou se haverá reagrupamento ou extinção de participações.
2- Devem também ser especificadas as participações sobre as quais a operação incidirá, no caso de ela não incidir igualmente sobre todas."
Recorde-se que a ata não refere explicitamente os motivos pelos quais é deliberada a amortização das quotas com redução de capital apenas menciona que se fará "nos termos do artigo 7º dos Estatutos da Sociedade e 232º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais."
Assim sendo procede-se a análise de qual terá sido o motivo da amortização das quotas com redução de capital face ao disposto no CSC.
No que concerne à amortização parcial. com redução de capital social. da quota de A...:
a) Não se destinou à cobertura de prejuízos atendendo que a sociedade não tinha prejuízos acumulados, muito antes pelo contrário, apresenta valores expressivos sobretudo em resultados transitados decorrentes da não distribuição de lucros;
b) Equacionado se poderia visar a libertação de capitais excessivos conclui-se pela negativa conforme se passa a explicitar. Paulo Olavo Cunha sobre esta questão refere que "A sociedade comercial durante a sua vida pode aperceber-se que o seu capital social é excessivo relativamente às necessidades decorrentes da atividade prosseguida, ou por ter sido inicialmente mal calculado ou por se ter revelado demasiado, atendendo à atividade por si exercida. Ora, esse capital excessivo é improdutivo, por não ser aproveitado, pelo que, com a finalidade de o libertar, a lei admite a respetiva redução (cfr. art. 94º, nº 1, alínea a) ).". Se ao valor do capital próprio existente à data da deliberação da amortização parcial da quota em análise, expurgado dos valores referentes à amortização da quota de D..., ter-se-á capital social de 25.000,00, representado por uma única quota e o valor total do capital próprio é de 741.829,64, pelo que, não se descortina que seja considerado que o valor do capital social [25.000,00] seja excessivo. A haver excesso o mesmo está nas reservas e nos resultados transitados resultante da longa e constante ausência de remuneração dos titulares do capital - distribuição de lucros.
Se por um lado reduz o capital social, em simultâneo, delibera a entrada de prestações suplementares em 200.000,00. As prestações suplementares são parte integrante do capital próprio e representam um reforço do capital subscrito, no entanto podem ser restituídas se os sócios deliberarem sobre tal e desde que o capital próprio não fique inferior à soma do capital e da reserva legal. Paulo Olavo Cunha sobre este assunto escreveu "As obrigações de prestações suplementares constituem verdadeiros reforços em dinheiro sempre que a sociedade se encontra em situação de subcapitalização; e consequentemente em dificuldade para cumprir as suas obrigações.", clarificando que "tecnicamente, num sentido estrito, a subcapitalização se reporta também, por referência, ao capital social, significando que este é insuficiente para a sociedade prosseguir a respetiva atividade económica, de caráter mercantil."
De salientar que muito embora o balanço relativo ao período de tributação 2019 já não evidenciar as prestações suplementares supra indicadas apresenta capital social de 20.000,00. Pela certidão permanente da sociedade confirma-se que foi efetuado um aumento do capital social, que passou de 6.084,00 para 20.000,00.
Nestas circunstâncias, não estará subjacente à deliberação da amortização parcial da quota de A..., com redução de capital, a libertação de excesso de capital, na medida em que, a sociedade não evidencia sinais de redução de atividade, assim como sentiu necessidade de reforçar o capital seja por via das prestações suplementares ou posteriormente através de aumento de capital;
c) A quota de A... estava integralmente realizada, pelo que, não ocorreu a extinção das obrigações de entradas diferidas de capital, inicial ou provenientes de aumento de capital (artigo 27º, nº 1 do CSC);
d) A situação líquida da sociedade, que corresponde ao valor dos capitais próprios não é inferior à soma do capital e da reserva legal, pelo que, não ocorre a finalidade especial decorrente dos artigos 236º, nº 1 e artigo 188º, nº 1 do CSC;
e) A sócia A... continua a participar no capital social da sociedade com a quota de valor nominal de 6.084,00, não se aplicando o disposto no artigo 232º do CSC;
e por último
f) Não houve cisão.
Face ao exposto não se descortina que a amortização parcial da quota que determinou a redução do capital social em 18.916.00 seja justificável no plano da racionalidade económica e da atividade empresarial, tanto mais que não se enquadra em nenhuma das situações em que a mesma é admitida no direito societário.
Os factos apurados revelam indícios bastantes que se visou transferir para a esfera da sócia os resultados positivos acumulados ao longo dos anos, operação essa que mais não é do que distribuição de lucros.
A distribuição de resultados configura rendimento de capitais, categoria E, conforme previsto no nº 1 e alínea h) do nº 2 do artigo 5º do CIRS a tributar na esfera fiscal de A... .
V.2.1.2 - A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais
O ato jurídico amortização parcial da quota com redução de capital de 18.916,00, em que a sua titular por razão direta desse ato recebeu 562.836,28, foi declarado pela beneficiária para efeitos de tributação em sede de IRS conforme se indica a seguir.
O declarado por A... relativo à operação em análise foi o seguinte:
O IRS apurado, conforme os valores declarados, relativo à amortização da quota com redução de capital foi de 70.333,86 conforme se demonstra.
De tudo quanto foi exposto anteriormente o ato jurídico de amortização da quota com redução de capital social de 18.916,00 não é genuíno, uma vez que, o seu propósito não corresponde a nenhuma das razões a que o direito societário permite a realização daquele ato, assim, não se alcança que razões comerciais válidas, ou motivos económicos justifiquem o ato realizado.
A verdadeira substância económica subjacente ao ato em analise é a distribuição de lucros à sócia, A... .
O ato adequado ao fim económico visado seria a distribuição de lucros, a tributar na esfera fiscal de A... através da aplicação da taxa autónoma de 28%, com possibilidade de englobamento conforme dispõe o artigo 72º do CIRS.
A tributação efetuada com recurso ao ato amortização de quota, a título oneroso, com redução de capital social, é manifestamente inferior à tributação devida pela operação económica que, em entender da Autoridade Tributária, corresponde à realidade económica subjacente - distribuição de lucros conforme se apresenta:
A vantagem tributária alcançada com a amortização de quota, onerosa, com redução de capital social foi de 87.260,30.
V.3 Conclusão
Decorre de tudo quanto foi exposto anteriormente que não subjaz à escolha da figura jurídica amortização parcial de quota, onerosa, com redução de capital qualquer racionalidade económica, pois a titular da quota permaneceu como participante no capital da sociedade, nada indicia que o capital social seja excessivo, muito pelo contrário, pois em simultâneo deliberou a constituição de prestações suplementares de 200.000,00, ainda que tenham sido restituídas, procedeu a aumento de capital social. O excesso verifica-se ao nível do capital próprio decorrente da ausência de política de distribuição de resultados, pelo que, os resultados não distribuídos transitaram para resultados transitados.
O recurso à figura jurídica amortização de quota com redução de capital conduz a tributação em sede de IRS substancialmente menos onerosa do que a distribuição de lucros, assim facilmente se infere que não foram motivações de ordem económica que levaram a concretizar o ato e negócio jurídico descrito, mas sim as vantagens fiscais que tal operação proporcionou.
Resulta da presente informação que estarão cumpridos os pressupostos previstos n.º 3 do artigo 63.º do CPPT para aplicação da disposição prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, concretamente:
a) Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; e
b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou a prática do ato jurídico
foi essencialmente ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato jurídico com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
Os negócios jurídicos celebrados que materializaram a conduta elisiva, consistiram na alteração dos estatutos da sociedade, através da ata n.º 47, permitindo, desse modo, a possibilidade da realização de amortização de quotas.
E subsequentemente, a aprovação em Assembleia Geral da sociedade, da redução e, no caso da sócia D... foi total (50%) e, no caso do sujeito passivo se situou nos 37,83€, para o valor de€ 6.084,00.
Em contrapartida da mencionada operação (redução e amortização de capital de € 18.916,00) o Sujeito Passivo recebeu um montante de€ 562.836,28.
O negócio de idêntico fim económico, porque inexiste qualquer disfuncionalidade ou interrupção do circuito económico e financeiro na análise comparativa dos negócios jurídicos, mas apenas e exclusivamente o efeito fiscal (menos tributação dos montantes retirados dos capitais próprios da sociedade), constitui a real distribuição de lucros acumulados ao longo dos anos para a esfera patrimonial das sócias.
Os negócios jurídicos realizados pelo Sujeito Passivo mereceram o enquadramento jurídico-tributário como mais-valia (categoria -G), nos termos previstos no artigo 10.º, n.º 1 do CIRS. Ao passo que, os negócios de idêntico fim económico -como dividendos -têm o devido enquadramento jurídico-tributário na al. h), n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.
Tal como demos conta anteriormente, os negócios jurídicos celebrados pelo Sujeito Passivo foram, essencialmente ou principalmente, dirigidos à redução, eliminação ou deferimento temporal dos impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.
Não se vislumbram quaisquer dos fins previstos pelo direito societário, nem as próprias deliberações da sociedade o revelam, apesar da sua obrigatoriedade.
De salientar ainda, que as relações familiares entre os vários sócios intervenientes nas operações societárias justifica, não só esta aparente desregulação na forma como as operações foram realizadas, como evidenciam também o caracter de artificiosidade das mesmas. Esta artificiosidade também se manifesta na deliberação, imediata à redução de capital, da constituição de prestações suplementares pela sócia, no montante de€200.000,00. E, não menos importante, na entrada, em 26.02.2019, de um novo sócio, cônjuge do sujeito passivo.
Assim,
1) Foram premeditadas e concretizadas operações societárias atinentes à amortização de quotas (art.º 232.º e ss do CSC) por redução de capital social (art.º 94.º e ss do CSC) com estabelecimento imediato de obrigação de reforço de capital social (art.º 210.º e ss do CSC), quando o principal interesse das sócias da sociedade visava a distribuição de dividendos acumulados na sociedade (art.0 31 .º e ss do CSC);
2) Através da formalização concretizada, ou seja, das operações da amortização parcial da quota com redução de capital sem correspondência económica adequada, a SP obteve uma redução do encargo fiscal sobre o seu rendimento, uma vez que aquela operação sendo tributada em IRS como rendimento da categoria G, enquanto incremento patrimonial, conforme dispõem a al. a) do n.º 1 do artigo 9.º e a subalínea 1) da al. b) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do CIRS, levou a uma poupança fiscal que não acontecia se tivesse formalizado devidamente a operação real, ou seja, um recebimento dos lucros da sociedade, que se enquadrava fiscalmente como rendimento da categoria E, tributável conforme art. 72.º, n.º 1, al. c) do CIRS.
Face ao exposto consideram estes serviços que deve a situação tributária ocorrida ser corrigida e ser realizada de acordo com o negócio jurídico que justificou a substância económica, ou seja, distribuição de lucros com a respetiva tributação a realizar-se com a aplicação da taxa autónoma.
Nestas circunstâncias, a aplicação do presente normativo legal, resultará na tributação à taxa autónoma de 28%, com possibilidade de englobamento, com o apuramento no montante de 157.594, 16 euros como consagrado no artigo 72º do CIRS, acrescido de juros compensatórios nos termos do art.0 91 do CIRS e do art.º 35 da LGT.
(...)
X. Direito de Audição
(...)
-Apreciação dos fundamentos dos SP face à tributação e correções preconizadas no projeto de relatório.
Não obstante o dever de pronuncia que recai sobre a Administração Fiscal, em sede especifica de direito de audição, não tem a mesma de se pronunciar «ponto por ponto», quanto a cada um dos argumentos invocados pelos SP, dado, como refere bem o Acórdão do STA de 10/03/2021, processo n.º 27/11 que «... não obriga a administração a responder ponto por ponto a todas as objeções dos administrados, pois não vigoram aí as regras adjetivas relacionadas com ónus de impugnação ou omissão de pronuncia ...».
Ora, neste sentido, no que respeita aos argumentos aduzidos pelos exponentes, não serão os mesmos considerados «per si», mas sim de forma englobada:
No capítulo I do documento sob a denominação «Da factualidade relevante e subjacente à operação sob apreço» começam os SP, por manifestar a não concordância « ... com o teor de alguns pontos do projeto ...», alegam que as operações societárias em causa no presente procedimento inspetivo tiveram por base um «cenário» de venda/alienação da sociedade a H... Lda, NIPC..., da qual era à data sócio gerente E..., NIF ..., que a sociedade conhecia bem, «atenta a longa relação comercial» e que este terá estipulado algumas condições prévias para a concretização do negócio, entre as quais a saída da sócia D..., que as contas da sociedade fossem «limpas» no que respeitava aos capitais próprios, nomeadamente os valores de resultados transitados «não distribuídos ao longo dos an0s» - afirmação constante do ponto 20 da audição prévia e no ponto 24 referem «...a libertação dos valores de resultados transitados e redução de capital». Afirmam que o potencial comprador desistiu do negócio, posteriormente a terem efetuado os atos societários em causa e que não foi encontrado outro comprador. Pelo que em fevereiro 2019 foi decidido pela sociedade que B... voltaria a entrar no capital da mesma, apesar de no ponto 11 da audição prévia haverem afirmado que a idade avançada e saúde debilitada do mesmo, teria sido o motivo da possível alienação das participações sociais da sociedade, que confirmam ser uma «verdadeira sociedade familiar».
Para suporte das alegações juntam emails trocados entre a CC e o «potencial» comprador, sobre o contrato de promessa compra e venda, que também juntam, e ainda o recibo de vencimento de B... à data funcionário da sociedade. Alegando que a AT apesar do procedimento inspetivo ser âmbito interno, não efetuou as diligências necessárias à descoberta da verdade material.
Ora em relação a estas primeiras alegações, em nada vêm contrariar as conclusões do projeto de correções, já que a AT se encontra na posse de todos os documentos relevantes para a apreciação do caso em apreço. Acresce que da Ata n.º 47, e bem como do contrato da sociedade, não resultam quaisquer evidências dos motivos que justificam a concretização da referida operação de redução do capital.
A respeito da redução e amortização de capital é importante ter em conta que é um mecanismo de elevada relevância no âmbito de operações de reestruturação e reorganização empresarial e financeira, fundamentalmente para o saneamento financeiro da sociedade ou para devolver aos sócios fundos considerados excessivos para a atividade da sociedade. Por esse motivo, o CSC, prescreve, sobre esta matéria, a necessidade da convocatória para a assembleia ter a menção da "finalidade da redução", indicando, pelo menos, se esta se destina à cobertura de prejuízos, a libertação de excesso de capital ou a "finalidade especial", conforme estabelecido no art. 94º nº1 a).
Atendendo ao impacto económico que tal operação releva no seio da sociedade, a deliberação de redução de capital social deve constar da convocatória da assembleia geral e bem assim ser objeto de fundamentação na ata que a aprova. Ora, como já foi referido, não consta da própria ata que sustenta a operação societária qualquer justificação para a sua concretização, pelo que parece claro o incumprimento dos requisitos legais para a aplicabilidade do regime societário da amortização com redução do capital social. Não consta igualmente da própria ata qualquer indicação do critério utilizado para determinação dos valores estabelecidos como contrapartida das amortizações, sendo que os mesmos excedem em grande escala o valor que as quotas representam no capital próprio da sociedade.
Por outro lado, a deliberação de constituição imediata de prestações suplementares pela sócia, no mesmo ato em que foi deliberado amortizar a sua quota para efeitos de redução de capital social, levanta dúvidas quanto ao fim económico da operação. Para mais, é um facto o aumento de capital social, que veio a ocorrer em 26.02.2019 com a entrada do sócio fundador da sociedade C... . Isto, menos de um ano após a deliberação de amortização e redução de capital e ainda é de salientar os laços familiares dos intervenientes, que permitiram retirar um montante elevado de resultados da sociedade, acumulados e nunca distribuídos, mantendo aquela família o controlo total da sociedade.
Os factos descritos e cronologicamente ordenados no projeto de correções, demonstram que se está perante um mecanismo pré-planeado que, através da utilização da figura da redução e amortização de capital, a sociedade e os seus sócios/detentores do capital distribuíram um conjunto de resultados retidos na sociedade sem a tributação correspondente. Sendo a operação que foi conformada, a redução e amortização de capital, mais não é do que uma operação de distribuição de resultados acumulados, facto este confirmado no ponto 20 do direito de audição: «...e que as contas da sociedade fossem «limpas», em particular capitais próprios da sociedade, concretamente, os valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos.»
Face ao exposto, não se encontra justificação económica para a prática dos atos mencionados, circunscrevendo-se a motivação à vantagem fiscal entretanto descrita, tal como fundamentado no projeto de relatório.
No capítulo li do documento sob a denominação «Da aplicação da cláusula geral antiabuso - verificação do preenchimento dos requisitos de aplicabilidade» começam os SP, por fazer um enquadramento legal da cláusula geral anti abuso (CGAA) e manifestar que «... não podem concordar com a aplicação da CGAA, ..., já que não estão preenchidos os pressupostos ...)).
No subcapítulo A da referida parte li, sob a denominação «Da demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável» começam os SP por alegar falta de imparcialidade e desconhecimento da realidade por parte da AT.
Ora em relação a esta alegação cumpre referir que a AT no decurso do procedimento inspetivo sempre pautou a sua atuação com imparcialidade, sendo os documentos que suportam as operações societárias em análise que incumprem os requisitos legais para a aplicabilidade do regime societário da amortização com redução do capital social, conforme explanado anteriormente.
Já no ponto 40 deste subcapítulo afirmam que foi colocada em causa, quer a validade formal, quer a validade substantiva da ata n.º 47, alegando que a mesma foi validada e comprovada pela Conservatória do Registo Comercial que procedeu ao seu registo.
Foi verificado e comprovado pelos serviços que a ata não discrimina a razão para a amortização de quotas com redução de capital, não constando da mesma qualquer alusão ao «potencial negócio», conforme é estabelecido no art. 94º nº1 a) do CSC.
É ainda apontado que apenas em nota de rodapé na pág. 16 do projeto, são discriminadas as quatro hipóteses da expressão «finalidade especial» decorrente da alínea a) do n.º 1 do artigo 94 do CSC, que posteriormente no projeto foram analisadas, com a conclusão da não verificação de quaisquer desses pressupostos, alegando ainda que o CSC não contempla uma definição legal de «finalidade especial».
Assim, em primeiro lugar, o rodapé faz parte integrante do projeto de relatório, sendo a ele feita menção, através de numeração, no corpo do texto do projeto de relatório. Em relação à falta no CSC de uma definição legal de «finalidade especial», o mesmo define claramente os seus fundamentos legais, não podendo agora os SP alegar que a promessa de venda da sociedade, aliás nunca concretizada (contrato de compra e venda nem sequer foi assinado) seria uma dessas situações, já que em nenhum dos documentos de suporte às operações societárias fazem menção ao facto conforme estavam obrigados pelo CSC. Alegam ainda que a alteração do artigo 7.º dos Estatutos da sociedade foi também uma operação necessária ao potencial negócio.
Ora, querem os SP fazer crer que a falta de elementos probatórios sobre planeamento das operações com vista à obtenção de uma vantagem fiscal ilegítima, suportando a sua alegação na forma como é referida no projeto, ou seja, por estar mencionada pela negativa, quando ao longo de todo o projeto os serviços defenderam e comprovaram que o negócio foi praticado com abuso das formas jurídicas e que não refletiam a verdadeira substância económica do negócio e não apenas uma dúvida.
Ainda vêm os SP dizer que a «vantagem fiscal» na verdade não resultou diretamente das operações praticadas, alegadamente com vista à venda da sociedade, mas sim pelo facto da sociedade se qualificar como pequena empresa, qualificação não conhecida pela sociedade. Ora, sendo a qualificação requerida pela própria empresa, neste caso em 31-07-2017 (conforme anexo 6 do projeto de correções), estatuto atribuído pelo IAPMEI, nos termos do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, como pode a sociedade alegar desconhecimento.
No subcapítulo B da referida parte li, sob a denominação «A demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável» os SP alegam que os serviços retiram conclusões (página 21 do projeto) não verdadeiras e sem suporte probatório, representando uma inversão do ónus da prova, em direta violação do disposto nos artigos 74.º da LGT e 63.º do CPPT e no ponto 89 reconhecem não ter havido razões comerciais válidas ou motivos económicos que justifiquem as operações realizadas, porém alegam que esses mesmos motivos não foram procurados pelos serviços, pelo que a aplicabilidade da CGAA foi prejudicada por falta do preenchimento do requisito constante do artigo 63.º, n.º 3. al. b) do CPPT.
Não podem estes serviços concordar com tais afirmações, quando no projeto de relatório toda a análise factual e jurídica efetuada, demonstra claramente a existência de uma conduta adotada pelos sócios que se caracteriza como pré-determinada para elisão fiscal e à obtenção de uma vantagem fiscal desconforme ao ordenamento jurídico-tributário. Concluindo que estamos na presença de uma estrutura, enquanto conjunto de atos e negócios sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário (encadeados), com vista a atingir o objetivo fiscal visado: distribuir resultados sem os sujeitara tributação em sede de IRS. Não é mera convicção dos serviços, existiu de facto planeamento fiscal, cujo único objetivo foi obter a vantagem fiscal.
No subcapítulo C da referida parte li, sob a denominação «A identificação dos negócios ou actos que correspondam à substância ou realidade económica, bem como a indicação das normas de incidência que lhes aplicam» os SP alegam haver erros de identificação e aplicação das normas de incidência tributária em sede de IRS, que deveria ter sido a entidade pagadora dos rendimentos a efetuar a retenção na fonte devida e que os serviços ignoraram a substituição tributária consagrada no mecanismo de retenção. Alegando que seria aquela a responsável primária pela liquidação e entrega ao estado dos montantes de imposto devido a título de retenção na fonte em sede de IRS.
Também referem que deveria ter sido considerado o valor das prestações suplementares efetuadas pela sócia a favor da sociedade no mesmo período, pelo facto de uma parte dos lucros ter sido diretamente aportada para a sua realização, pelo que a quantia efetivamente recebida seria de 362.836,28€, essa sim sujeita a retenção na fonte à taxa de 28%, conforme disposto no artigo 71,º,n.º 1, alínea a) do CIRS, cabendo à entidade pagadora efetuar a referida retenção na fonte. Solicitam ainda que não seja fixado qualquer rendimento coletável aos SP, pelo facto da AT ter ignorado o instituto da substituição tributária.
Ora em relação ao valor das prestações suplementares ser deduzido ao valor recebido referente à distribuição de resultados, as mesmas foram constituídas à priori, constituindo um direito da sócia sobre a sociedade, podendo a mesma, reaver o seu montante quando entender e caso isso não seja possível, pelo facto dos estatutos não o permitirem, não deixa de ser um direito que em caso de liquidação da sociedade, a sócia reaverá na totalidade, com isenção de imposto. Acresce ainda que o valor recebido a título de distribuição de resultados tem por base os resultados transitados ao longo dos anos e não quaisquer prestações suplementares.
Contrariamente ao alegado pelos SP, encontra-se explanado no projeto de relatório toda a análise factual e jurídica, demonstrando claramente a existência de uma conduta que se caracteriza como pré-determinada para elisão fiscal e à obtenção de uma vantagem fiscal desconforme ao ordenamento jurídico-tributário. Assim, a tributação deve efetuar-se de acordo com as normas aplicáveis na ausência da operação realizada, qualificada como abusiva, não se produzindo as vantagens já referidas anteriormente (n.º 2 do artigo 38.º da LGT).
Nesse sentido, estando perante um caso de distribuição de resultados camuflado por um negócio jurídico aparente de redução de capital, a tributação deve ser operada na sede do beneficiário do rendimento em ordem ao principio da capacidade contributiva, conforme n.º 1 do artigo 4.º da LGT, não havendo, financeiramente qualquer prejuízo para os beneficiários, uma vez que receberam da sociedade a totalidade do rendimento (imposto incluído) e caso tivesse sido aplicada a substituição tributária apenas teriam recebido 72% do total do mesmo.
Pelo que a proposta de aplicação da CGAA foi dirigida aos beneficiários efetivos da vantagem patrimonial, sendo a requalificação da situação tributária, determinada pelo n.º 2 do artigo 38.º da LGT, operada através de recálculo do IRS devido, tendo por base os rendimentos auferidos na operação real de distribuição de lucros de que foram destinatários, conforme disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS (a totalidade do valor atribuído pela amortização da quota), considerando o IRS pago com a aparente amortização da quota e consequente rendimento de mais valias anteriormente liquidado e pago abusivamente enquadrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e na subalínea 1) da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do CIRS.
Contrariamente ao afirmado pelos SP não houve erros de identificação e aplicação das normas de incidência tributária em sede de IRS, nem a AT ignorou a substituição tributária consagrada no mecanismo de retenção, mas estando a operação real devidamente comprovada, assim como os pressupostos de aplicação da CGAA, tendo os beneficiários do rendimento enquadrado/declarado erradamente na categoria G, sendo na realidade categoria E, é necessário o recalculo do imposto já pago, pelo devido tendo em consideração os rendimentos auferidos na operação real, que se enquadram na categoria E, conforme art. 5.º, n.º 2, al. h) do CIRS.
-Relativamente à prova testemunhal
1. Importa referir que o Sujeito Passivo vem alegar que as operações societárias que estão a ser objeto de correções pela Inspeção Tributária - amortização parcial da quota com redução de capital próprio - foram originadas pela necessidade de retirar da sociedade os capitais próprios, designadamente resultados transitados e não distribuídos. (ponto 20 do Direito de audição)
2. Alegam os sp que no âmbito de um processo de negociação da venda da sociedade C..., Ida., com o promitente comprador E..., NIF:..., ficou acordado que o preço da quota a transmitir seria determinado com base nos valores do imobilizado, stocks e capital social da sociedade e não com base nos valores dos capitais próprios. (ponto 21 do Direito de audição)
3. Além da condição supra referida acordaram os promitentes vendedores e comprador que a venda da sociedade passava ainda pela saída da sócia D... do capital social da sociedade (ponto 19 do direito de audição) e pela transformação da sociedade em unipessoal. (ponto 24 do direito de audição)
4. Em suma, os SP justificaram a realização das operações societárias para a retirada dos valores de capital social da sociedade pela eventual possibilidade negocial de transmissão da sociedade sem os resultados transitados existentes no seu capital social e circunscrito a uma única quota.
5. Para o efeito juntam alguns emails trocados entre E... e a sociedade I..., onde parece estar evidente o envio de um contrato de promessa, resultado da conversa com o Sr. J..., sugerindo assim a troca de emails por conta de um contrato de promessa falado com o sp B... .
6. Juntam igualmente uma minuta de contrato de promessa de cessão de quotas, não outorgada, onde constam como promitentes vendedores os sp A..., NIF ... e B..., NIF ... e como promitente comprador E... .
7. Ora, reconhecem os SP no ponto 20 do seu articulado do direito de audição o real intuito de retirar da sociedade "os valores referentes a resultados transitados e não distribuídos."
8. Para o efeito procederam à amortização parcial da quota da sócia A..., à amortização total da quota da sócia D... e consequente redução de capital da sociedade 9. E, dessas operações resultou uma diminuição do capital social em 87,83%.
10. Porém, convém não esquecer que no mesmo ato aprovaram a constituição de prestações suplementares por parte da sócia subsistente.
11. Ora, importa realçar que a redução de capital e a amortização de quotas têm regimes muito específicos e delimitados legalmente pelo código das sociedades comerciais, leia-se art. 94.º a 96.º do CSC e art. 232.º a 238.º do CSC.
12. Dos documentos que formalizam as operações em análise - atas societárias, convocatória para assembleia geral, ou qualquer registo na certidão permanente da sociedade junto da CRC – não se verifica a referência a qualquer negócio de cessão de quotas como justificação para a redução do capital social.
13. Não são cumpridos assim os requisitos legais de fundamentação daquelas operações exigidos no art. 94.º do CSC, porquanto não apresentaram os SP, quaisquer convocatórias para a assembleia geral onde foi aprovada a redução de capital, bem como não fazem constar da ata societária os motivos que levaram as sócias à concretização das deliberações de redução de capital pela amortização de quotas.
14. Não obstante alegarem os SP que estas operações societárias visavam ajustar a sociedade às exigências de um potencial comprador,
15. Na verdade, havendo ou não um eminente negócio de cessão de quotas, a retirada de valores referentes a resultados não distribuídos da sociedade pelas duas sócias existentes à data preconiza uma verdadeira distribuição de lucros e não uma redução de capital social pela amortização de quotas.
16. Motivo pelo qual foi no mesmo ato societário aprovada a constituição de prestações suplementares pela sócia subsistente.
17. Assim, ainda que a sociedade tivesse outorgado um contrato de promessa de cessão de quotas (o que não aconteceu), e para conclusão do contrato final precisasse de retirar os valores que pudessem estar a mais no capital da sociedade por conta dos lucros não distribuídos, a operação normal a deliberar seria a distribuição de lucros aos sócios.
18. Por outro lado, o recurso à figura da amortização de quotas com redução de capital não se adequa ao fim da distribuição dos valores do capital social, uma vez que este regime visa essencialmente a extinção de quotas.
19. Daí trata-se igualmente de figura jurídica exigente e cujos pressupostos estão tipificados na lei - art. 232.º do CSC.
20. Entre eles vigora a necessidade de previsão estatutária anterior à data da aquisição das quotas, o que não veio a acontecer, na medida em que os estatutos da sociedade apenas contemplaram a possibilidade de amortização livre de quotas, no mesmo momento em que as quotas foram amortizadas.
21. Assim, sem prejuízo da ocorrência de um cenário de potencial negócio de cessão de quotas dado a conhecer pelos SP, dúvidas não subsistem quanto, à "libertação de valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos".
22. Pelo que, consideramos que a audição de um terceiro face às operações no processo inspetivo escrutinadas, cuja responsabilidade se delimita e esgota num potencial contrato de cessão de quotas que não foi sequer outorgado, não apresenta relevância manifesta que possa influir na análise efetuada.
23. Neste sentido, a Jurisprudência considera que:
"é pacificamente aceite pela jurisprudência e pela doutrina que compete (unicamente) ao órgão instrutor avaliar da necessidade ou da pertinência das diligências requeridas pelos particulares, não estando (legalmente) obrigado a realizá-las. Ou seja, o órgão instrutor tem apenas que ponderar os pedidos e justificar sumariamente o seu indeferimento e não está obrigado a levara cabo as diligências requeridas pelos particulares quando as considere irrelevantes ou desnecessárias - cf. neste sentido, entre outros, os Acs. do STA P. n.º 041291, de 12/11/2003 ou 0650/06, de 06/02/2007, do TCAN n.º 00634/09.8BEVIS, de 08/05/2015 e na doutrina, entre outros, Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim - Código do Procedimento Administrativo, Comentado. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 459; José Santos Botelho, Américo Pires Esteves, José Cândido Pinho - Código do Procedimento Administrativo, Comentado, Anotado. 5.ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p.451; MONCADA, Luiz S. Cabral de - Código do Procedimento Administrativo, Anotado. 1 .ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p.440". (In, Acórdão do TCA Sul, processo n.º 56/09.0BELRS de 26.11.2020)
24. Em ordem ao exposto anteriormente, face à prova documental existente no processo inspetivo, facultada pelos sujeitos passivos e pela sociedade C..., Lda, consideramos desnecessária a produção de prova testemunhal.
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Na sequência da inspecção, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRS relativa ao ano de 2018, datada de 02-12-2022, com o n.º 2022 ... que consta do documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, bem como a respectiva demonstração de acerto de contas n.º..., que consta do documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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Os Requerentes pagaram a quantia liquidada (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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Em 14-04-2023, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa da referida liquidação, que veio a ter o n.º ...2023... (processo administrativo);
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A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 12-07-2023, proferido pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças de ..., ao abrigo Subdelegação de competências, que manifestou concordância com os fundamentos invocados no RIT (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 18-10-2023, os Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.1. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Não se provou que a exclusão da sócia D... tivesse sido uma condição da projectada aquisição pelo E..., mas apenas que este queria adquirir a totalidade do capital social.
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e os que constam do processo administrativo e, nos pontos indicados, com base nos depoimentos das testemunhas.
As testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento pessoal dos factos que foram dados como provados com base nos seus depoimentos.
A testemunha E... era o potencial adquirente da sociedade C..., Lda, que interveio nas negociações.
A testemunha F... é contabilista certificada da C..., Lda desde 2001.
3. Matéria de direito
A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu aplicar a cláusula geral antiabuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT na redacção vigente em 2018, a operações realizadas pela sociedade C..., Lda, de que a Requerente A... era sócia.
O artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redacção vigente em 2018, introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, estabelece o seguinte:
2. São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
A aplicação da cláusula geral antiabuso baseou-se no seguinte, em suma:
– o capital social era de € 50.000,00 repartido por duas quotas iguais, sendo a Requerente A... titular de uma delas (€ 25.000,00);
– foi efectuada amortização parcial da quota da Requerente A..., que passou a ser de € 6.084,00;
– na acta em que foi deliberada a redução do capital social, previu-se a constituição de prestações suplementares no montante de € 200.000,00 pela Requerente A..., o que veio a concretizar-se;
– em Fevereiro de 2019, procedeu-se ao aumento de capital social de €6.084,00 para €20.000,00, ficando a sócia A... detentora de uma quota no valor de €10.000,00 e o sócio B... com uma quota no valor de €10.000,00;
– na sequência dessa deliberação de redução do capital social, a Requerente A... recebeu a quantia de € 562.836,28, constituída por € 18.916,00 correspondentes à restituição da parte do capital investido que foi objecto de amortização, e a quantia de € 543.920,28, correspondente a lucros não distribuídos ao longo dos anos;
– a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que a amortização das quotas não era o objectivo pretendido, mas sim a distribuição de resultados;
– a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicou a cláusula geral antiabuso, considerando que a verdadeira substância económica subjacente ao acto e redução de quotas é a distribuição de lucros à Requerente A... e que a quantia de € 562.836,28 devia ser tributada à taxa de 28%, com possibilidade de englobamento, apurando o valor de IRS devido de € 157.594,16;
– como os Requerentes já tinham sido tributados em sede de mais-valias relativamente à redução das quotas no valor de € 70.333,86, a Autoridade Tributária e Aduaneira concluiu que a vantagem tributária alcançada pelos Requerentes com a opção pela redução das quotas em vez da distribuição de resultados era de €157.594,16.
Os Requerentes imputam à liquidação impugnada os seguintes vícios:
– aplicação de legislação revogada, designadamente a redacção dos artigos 38.º, n.º 2 da LGT e 63.º do CPPT dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29/12 e pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, respetivamente;
– violação do direito de audição no âmbito do procedimento inspetivo;
– na decisão final da reclamação graciosa, a Autoridade Tributária e Aduaneira não teceu qualquer consideração sobre o pedido de produção de prova testemunhal apresentado pelos Requerentes;
– inexistência de verificação do preenchimento dos requisitos de aplicabilidade da cláusula geral antiabuso;
– sempre seria a sociedade devedora dos rendimentos a responsável primária pela liquidação e entrega ao Estado dos montantes de imposto que seriam devidos a título de retenção na fonte em sede de IRS, ao abrigo do disposto nos artigos 28.º, n. º1 da LGT, 71.º, n.º 1, alínea a) e 103.º do CIRS.
A Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida no procedimento de inspecção, dizendo ainda o seguinte, em suma:
– sempre seria de aplicar o artigo 38.º, n.º 2, da LGT na redação anterior, nomeadamente na medida em que, se a nova redação do preceito implica redução das garantias do contribuinte, quanto ao funcionamento do ónus da prova, a aplicação da lei na nova redação seria contrária ao disposto no artigo 12.º, n.º 3, da LGT quando determina que “As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos”;
– não é obrigatório que sejam ouvidas as testemunhas indicadas no procedimento de inspeção, por aplicação conjugada dos princípios da prova escrita mitigado por manifestações de oralidade (nomeadamente no âmbito dos atos de inspeção) e o princípio da livre apreciação da prova (margem de discricionariedade que caracteriza a atuação da Administração Pública em geral);
– o princípio do inquisitório (art.º 58° da LGT) não obriga a AT a realizar todas as diligências possíveis com vista à descoberta da verdade material do sujeito passivo, mas apenas as diligências que, em concreto, se revelem necessárias e, neste caso, a factualidade subjacente já se encontrava apurada através de prova documental;
– a dispensa da audição de testemunhas foi deliberada porque da mesma, e, a concretizar-se, não resultaria qualquer alteração de entendimento por parte da AT, ou seja, a produção de tal prova foi considerada irrelevante para a decisão a tomar;
– a formalidade da audição degrada-se em não essencial, não sendo, por isso, invalidante da decisão, nos casos em que não tem a probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que impõe o aproveitamento do acto;
– o procedimento de reclamação graciosa não enferma de vício por falta de apreciação da necessidade de produção de prova testemunhal;
– a Requerente limitou-se a indicar uma testemunha sem sequer especificar o que pretendia e, dada a matéria discutida, a prova testemunhal parece-nos totalmente desnecessária e mesmo incapaz de comprovar seja o que for, pois só a prova documental tem essa idoneidade.
3.1. Ordem de conhecimento de vícios
O artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) estabelece o seguinte:
Artigo 124.º
Ordem de conhecimento dos vícios na sentença
1 – Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
2 – Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.
Este artigo 124.º do CPPT estabelece regras sobre a ordem de conhecimento de vícios em processo de impugnação judicial, que são subsidiariamente aplicáveis ao processo arbitral, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
No caso de vícios geradores de anulabilidade, a alínea b) do n.º 2 daquele artigo 124.º estabelece que se deve atender prioritariamente à ordem indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.
No caso em apreço, a Requerente imputa os vícios de aplicação de legislação revogada, violação do direito de audição, vício procedimental da reclamação graciosa e só depois vícios atinentes à aplicação da cláusula geral antiabuso.
Depreende-se da expressão «sem prescindir», com que os Requerentes terminam cada uma das partes do pedido de pronúncia arbitral referentes à arguição dos vícios, que pretendem assegurar (não prescindem) que sejam apreciados os vícios procedimentais que invocam, o que tem ínsito que é atribuída uma relação de subsidiariedade, como permite o artigo 101.º do CPPT, pois, se fossem julgados procedentes os vícios de violação de lei atinentes a aplicação da cláusula geral antiabuso, deixaria de haver interesse processual em conhecer dos vícios procedimentais.
3.2. Vício de aplicação de legislação revogada
Os artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT foram alterados pela Lei n.º Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio.
A inspecção tributária foi efectuada em 2022, mas os factos tributários em causa reportam-se a 2018 e a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicou as redacções daqueles artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT vigentes em 2018.
Os Requerentes defendem que, de acordo com o n.º 3 do artigo 12.º da LGT, aplicável ex vi artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), as normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes, pelo que entendem que deveriam ter sido aplicadas as novas redacções dos artigo 38.º, n.º 2, da LGT e 63.º do CPPT e a sua não aplicação envolve violação dos artigos 8.º, 12.º, n.º 3, 38.º, n.º 2 e 55.º, todos da LGT e, ainda, do próprio artigo 63.º do CPPT.
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que sempre seria de aplicar o artigo 38.º, n.º 2, da LGT na redação anterior, nomeadamente na medida em que, se a nova redação do preceito implica redução das garantias do contribuinte, quanto ao funcionamento do ónus da prova, a aplicação da lei na nova redação seria contrária ao disposto no artigo 12.º, n.º 3, da LGT quando determina que «as normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos».
O artigo 12.º da LGT estabelece o seguinte:
Artigo 12.º
Aplicação da lei tributária no tempo
1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer tributos retroativos.
2. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.
3. As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.
4. Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.
Como resulta do n.º 1 deste artigo 12.º, a regra básica em matéria de aplicação da lei fiscal no tempo é a de as «normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor».
Apenas se excecionam desta regra, nos termos do n.º 3, as normas sobre procedimento e processo, que «são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes».
Assim, no que concerne ao artigo 38.º da LGT, que prevê o regime substantivo da aplicação da cláusula geral antiabuso, a regra a aplicar é a do n.º 1 do artigo 12.º, pois não se trata de «as normas sobre procedimento e processo».
Por isso, não há erro da Autoridade Tributária e Aduaneira quanto à aplicação do regime substantivo da cláusula geral antiabuso previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção anterior à lei n.º 32/2019.
Já no que concerne ao artigo 63.º do CPPT, na parte em que se esteja perante normas sobre procedimento, são de aplicação imediata, sem prejudicar garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.
Não se vê, porém, que o novo regime previsto no artigo 63.º do CPPT tenha alterações relevantes no caso dos autos, pois os requisitos da apresentação de provas, direito de audição prévia e necessidade de autorização são idênticos aos previstos na redacção anterior deste artigo.
Por outro lado, os novos requisitos de fundamentação, para além de não serem normas procedimentais, reconduzem-se a verdadeiros requisitos de natureza substantiva, que estão conexionados com o novo regime previsto no artigo 38.º da LGT, pelo que lhes é aplicável o regime do n.º 1 do artigo 12.º da LGT.
É certo que, como dizem os Requerentes, no novo regime se prevê, na alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do CPPT, a «existência de procedimento de inspeção dirigido ao beneficiário do rendimento e ao substituto tributário, quando se verifique o recurso às regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária a que se refere o n.º 5 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária».
Mas, a aplicação desta regra, bem como as que dependem da aplicação do n.º 5 do artigo 38.º da LGT, que constam do n.º 12 do artigo 63.º do CPPT, é afastada pelo facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira não ter recorrido às regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.
Por isso, não tinha a Autoridade Tributária e Aduaneira de instaurar um procedimento de inspecção dirigido ao substituto tributário, cuja responsabilidade não foi efectivada.
Por outro lado, a nova regra do n.º 13 do artigo 63.º do CPPT, em que se estabelece o prazo para opção pelo englobamento, não foi aplicada no procedimento de inspecção em causa.
Neste contexto, não se justifica que seja reconhecida eficácia invalidante à não invocação do novo regime, pois as regras procedimentais relevantes de ambos os regimes com aplicação ao caso em apreço são idênticas.
3.3. Questão da violação do direito de audição no âmbito do procedimento inspetivo
Nos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 63.º do CPPT estabelece-se que
– a aplicação da disposição antiabuso referida no n.º 1 depende da audição prévia do contribuinte, nos termos da lei;
– o direito de audição prévia é exercido no prazo de 30 dias a contar da notificação do projecto de aplicação da disposição antiabuso ao contribuinte;
– no prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.
Os Requerentes foram notificados do projecto de decisão e pronunciaram-se sobre ele, requerendo a inquirição de uma testemunha, o que foi indeferido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
A testemunha indicada para ser inquirida é E..., que os Requerentes indicaram como sendo interessado na aquisição das participações sociais e tendo estipulado várias condições, entre as quais, como indicam no requerimento de exercício do direito de audição:
– «a saída da sócia D... do capital da sociedade» (ponto 19);
– «que as contas da sociedade fossem “limpas”, em particular no que respeita aos capitais próprios da sociedade, concretamente, os valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos» (ponto 20);
– «o potencial comprador pretendia que o preço da quota a adquirir fosse determinado com base nos valores do imobilizado, stocks e capital social da sociedade e não com base nos valores dos capitais próprios» (ponto 21).
Os Requerentes defendiam no exercício do direito de audição, além do mais, que
– o «conjunto de operações societárias (...) tinham exclusivamente em vista criar as condições necessárias para o negócio de venda das participações sociais» (ponto 37);
– «a análise dos SIT revela falta de imparcialidade e desconhecimento da realidade e motivos subjacentes às operações praticadas» (ponto 38);
– que não correspondia à verdade a afirmação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira no projecto de Relatório da Inspecção Tributária de que «não estará subjacente à deliberação de amortização parcial da quota de A..., com redução do capital, a libertação do excesso de capital, na medida em que a sociedade não evidencia sinais de redução da atividade» (pontos 48 e49);
– «A verdade é que as operações de amortização parcial de quota e redução do capital social, tinham apenas em vista preparar a sociedade para a sua venda, de acordo com os pressupostos indicados pelo potencial comprador» (ponto 53);
– «Ao contrario do que os SIT querem transmitir no projeto, no caso concreto existia efetivamente uma "finalidade especial" para as deliberações de alteração aos estatutos, redução do capital social e amortização parcial de quota (ponto 56);
– «a alteração ao artigo 7." dos estatutos da sociedade era também uma operação necessária para preparar quer a saída da sócia D..., quer a reconfiguração da quota da sócia A...» (ponto 57);
– «a alteração ao artigo 7." dos estatutos da sociedade era também uma operação necessária para preparar quer a saída da socia D..., quer a reconfiguração da quota da socia A... (...) já que à data em que as operações foram equacionadas pelos Inspecionados e pelo potencial comprador da sociedade, o E...» (ponto 57 e 58);
– «Era necessário proceder a alteração dos estatutos em conformidade com a operação projetada» (ponto 63);
– não concordam «tanto pela falta de comprovação fáctica, por um lado demonstrada pela falta de elementos probatórios que de forma inequívoca suportem a tese dos SIT de que os Inspecionados planearam as operações em crise apenas com vista a obterem uma vantagem fiscal ilegítima» e que a afirmação de que «não se descortina que a amortização parcial (...) seja justificável no plano da racionalidade económica e da atividade empresarial» (pontos 65 e 66);
– a operação de amortização parcial de quota com redução do capital social teve sempre um verdadeiro substrato comercial válido, vulgo, a venda da sociedade» (ponto 76);
– ficou « desde logo prejudicada a aplicabilidade da CGAA. nomeadamente por falta de preenchimento do requisito enunciado no artigo 63.°. n.° 3, alínea b) do CPPT, a saber, (...) a demonstração e comprovação que com a pratica das opera9oes societárias em causa, os Inspecionados, em concreto a A..., visaram apenas ou principalmente, a obtenção de vantagens fiscais em sede de IRS».
Os Requerentes terminaram o seu requerimento de exercício do direito de audição pedindo que fosse ordenada a produção de prova, além da documental a inquirição da testemunha E..., «uma vez que as mesmas se afiguram essenciais para comprovar os factos novos supra expostos».
A Autoridade Tributária e Aduaneira não aceitou a produção de prova testemunhal, sobre matéria que não tinha sido considerada no SIT, por entender, em suma, que, «sem prejuízo da ocorrência de um cenário de potencial negócio de cessão de quotas dado a conhecer pelos SP, dúvidas não subsistem quanto, à "libertação de valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos" (...) pelo que, consideramos que a audição de um terceiro face às operações no processo inspetivo escrutinadas, cuja responsabilidade se delimita e esgota num potencial contrato de cessão de quotas que não foi sequer outorgado, não apresenta relevância manifesta que possa influir na análise efectuada».
O exercício do direito de audição inclui o direito de requerer diligências complementares e juntar documentos, como decorre do n.º 2 do artigo 121.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT e, no caso do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso, está especialmente previsto no n.º 6 do artigo 63.º do CPPT.
Por outro lado, a produção de prova testemunhal é admitida no procedimento de inspecção, como decorre, em geral, dos artigos 72.º da LGT, 50.º do CPPT e 29.º, n.º 1, alínea g), do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira.
Como resulta do requerimento apresentado no exercício do direito de audição, os Requerentes apresentaram prova testemunhal para demonstrarem que o motivo determinante não tinha sido fiscal, mas sim, o de criar condições para a venda da empresa, exigidas pelo potencial comprador.
E essa prova tinha manifesta relevância para a apreciação da verificação dos requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, pois não basta para esta aplicação concluir que existiu «libertação de valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos».
Na verdade, para aplicação da cláusula geral antiabuso, à face da redacção do artigo 38.º, n.º 2 da LGT vigente em 2018, era necessário que os actos ou negócios jurídicos fossem essencial ou principalmente dirigidos à obtenção de vantagens fiscais.
Isto é, a realidade da «libertação de valores de resultados transitados não distribuídos ao longo dos anos», que é evidente, só poderia justificar a aplicação da cláusula geral antiabuso se o conjunto de operações realizadas para ela se concretizar tivesse sido efectuada com o propósito essencial ou principal de obter vantagens fiscais.
Por isso, a prova testemunhal que os Requerentes pretendiam que fosse produzida sobre a finalidade prosseguida com as operações de que resultou a tal libertação de valores de resultados transitados era de importância primordial, para mais sendo a testemunha indicada a pessoa a quem era imputada pelos Requerentes a imposição das operações realizadas e, por isso, seria quem presumivelmente poderia esclarecer ,com melhor conhecimento, se fez ou não exigências referidas pelos Requerentes.
Em última análise, o que os Requerentes pretendiam fazer era a prova da justificação da «racionalidade económica» da operação de redução do capital que a Autoridade Tributária e Aduaneira refere no RIT não descortinar e que, a provar-se, poderia levar a concluir que o motivo essencial ou principal da operação não tinha sido a obtenção de vantagens fiscais.
Pelo exposto, tem de se concluir que não podia ser indeferida a produção de prova testemunhal, em sintonia, aliás, com o que o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender em situações em que a prova da racionalidade económica de operações é relevante para o enquadramento fiscal. ( [1] )
A isto acresce que, em matéria de aplicação da cláusula geral antiabuso, existem manifestas preocupações acrescidas de cautela procedimental (bem evidenciadas na previsão do especialmente exigente procedimento previsto no artigo 63.º em que se inclui a obrigação de autorização prévia pelo dirigente máximo do serviço), o que justifica que se atribua o direito de «o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes», expressamente prevista no n.º 6 do artigo 63.º, a obrigação de a Autoridade Tributária e Aduaneira produzir as provas apresentadas, as que o contribuinte considera pertinentes, pelo menos sempre que não se possa concluir com segurança que elas são impertinentes ou a produção de prova seja inútil por a Autoridade Tributária e Aduaneira aceitar como provados os factos a que a prova requerida se reporta.
Ora, não é este o caso dos autos, pois a Autoridade Tributária e Aduaneira não considerou provado que as operações não tivessem essencial ou principalmente uma motivação fiscal e a prova testemunhal apresentada, a produzir pela pessoa a cuja vontade é atribuída a justificação das operações realizadas, tinha potencialidade para, a provar-se, afastar a aplicabilidade da cláusula geral antiabuso, pelo que é manifestamente pertinente.
Por isso, ao contrário do que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, não se está perante uma mera omissão de formalidade sem possibilidade de influenciar a decisão procedimental.
Pelo exposto, tem de se concluir que ocorreu vício procedimental, por violação do direito de audição, tal como está configurado no n.º 6 do artigo 63.º do CPPT.
3.4. Questão do aproveitamento do acto
A Autoridade Tributária e Aduaneira defende ainda que perante um vício procedimental deve aplicar-se o princípio do aproveitamento do acto administrativo (artigo 43.º da Resposta e 48.º das suas alegações).
O Supremo Tribunal Administrativo tem feito aplicação do princípio do aproveitamento do acto, que é uma concretização do princípio geral de direito que se exprime pela fórmula latina utile per inutile non vitiatur, e que, com essa ou com outras formulações e designações ( [2] ), tem sido aplicado frequentemente pelo STA. ( [3] )
À luz de tal princípio, deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição do direito de audição, inclusivamente o indevido indeferimento de produção de provas, nos casos em que se apure no processo contencioso que essa irregularidade procedimental não tem potencialidade para conduzir a diferente decisão procedimental.
Mas, apenas nessas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância da irregularidade sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio.
Só nos casos de «absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada» pela irregularidade procedimental se pode afastar o efeito anulatório que lhe está associado, como decidiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 02-02-2022, processo n.º 0208/04.0BEPRT.
Tal não se verifica no caso em apreço, pois o depoimento da testemunha referida sobre a motivação das operações tinha potencialidade, em abstracto, para influenciar a decisão sobre a aplicação da cláusula geral antiabuso.
3.5. Questões de conhecimento prejudicado
Como se referiu no ponto 3.1., interpretando o pedido de pronúncia arbitral, conclui-se que os Requerentes imputaram vícios à liquidação impugnada numa relação de subsidiariedade.
Nos termos do artigo 554.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, «diz-se subsidiário o pedido que é apresentado a tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior».
Assim, julgado procedente o vício de violação do direito de audição, com a configuração que lhe é dada no n.º 6 do artigo 63.º do CPPT, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios imputados à liquidação impugnada (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
4. Reembolso de quantia paga e juros indemnizatórios
Em 17-01-2023, os Requerentes pagaram a quantia liquidada.
Os Requerentes não formulam expressamente pedido de reembolso da quantia paga, mas ele está implícito no pedido de juros indemnizatórios, pois estes são contados com base na quantia a reembolsar.
Como consequência da anulação da liquidação os Requerentes têm direito a ser reembolsados da quantia que pagaram, o que é efeito directo da anulação.
No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
Como resulta do teor expresso do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, apenas há direito a juros indemnizatórios em caso de anulação por vício que constitua «erro», entendendo-se como tal os vícios que na dogmática administrativa tem tal designação, que são os vícios de erro sobre os pressupostos de facto e erro sobre os pressupostos de direito.
Neste sentido tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se pelos seguintes acórdãos: de 05-05-1999 processo n.º 05557-A; de 17-11-2004 processo n.º 0772/04; de 01-10-2008 processo n.º 0244/08; de 29-10-2008 processo n.º 0622/08; de 25-06-2009 processo n.º 0346/09; de 09-09-2009 processo n.º 0369/09; de 04-11-2009 processo n.º 0665/09; de 08-06-2011 processo n.º 0876/09; de 07-09-2011, processo n.º 0416/11; de 30-05-2012, processo n.º o410/12; e de 22-05-2013, processo n.º 0245/13.
Na linha desta jurisprudência, sendo procedente o pedido de pronúncia arbitral apenas com fundamento em vício procedimental, os Requerente não têm direito a juros indemnizatórios.
5. Decisão
Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
– julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao vício de violação procedimental de violação do direito de audição;
– anular liquidação adicional de IRS n.º 2022...;
– julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 155.277,88 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a fazer o respectivo pagamento aos Requerentes;
– julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira deste pedido.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º -A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 155.277,88, indicado pelos Requerentes sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 26-03-2024
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(António Cipriano da Silva)
(Jorge Belchior de Campos Laires)
[1] Essencialmente neste sentido, sobre o direito dos contribuintes à produção de prova da racionalidade económica da operação quando esta é relevante para o enquadramento fiscal, podem ver-se os acórdãos do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 16-10-2010, proferido no processo n.º 046/10, e de 22-01-2014, proferido no processo n.º 01632/13, sobre tal prova relativamente a racionalidade económica de gastos.
( [2] ) Como a de princípio antiformalista, a de princípio da economia dos actos públicos e a de princípio do aproveitamento do acto administrativo.
( [3] ) Sobre aplicações deste princípio, podem ver-se os seguintes acórdãos do STA:
– de 11-2-98, recurso n.º 040404;
– de 17-6-99 recurso n.º 037667;
– de 23-9-99, recurso n.º 040842;
– de 23-1-2001, recurso n.º 045967;
– de 7-11-2001 recurso n.º 038983;
– de 13-2-2002, recurso n.º 048403;
– de 15-02-2007, processo n.º 01071/06;
– de 19-09-2018, processo n.º 0242/17;
– de 14-10-2020, processo n.º 02046/04.0BELSB 0808/18.