Processo n.º 364/2014-T
I – Relatório
1.1.A…, S.A., com sede social na Avenida … (doravante designada por «requerente»), submete à apreciação do presente Tribunal a legalidade da decisão de indeferimento do pedido de promoção da revisão oficiosa do acto de retenção na fonte de IRC, no valor global de €33.695,61, tendo, para o efeito, apresentado, em 30/4/2014, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista obter a "declaração de ilegalidade do indicado ato de retenção na fonte de IRC".
1.2. Em 7/7/2014 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.
1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo. A AT apresentou a sua resposta em 29/9/2014, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido da requerente. Na referida resposta, invocou, ainda, uma excepção, a saber: "incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa".
1.4. A requerente, notificada da resposta da AT, respondeu, por escrito, às excepções invocadas, em requerimento de 4/12/2014, o qual foi notificado à requerida.
1.5. Considerando que a requerente já se tinha pronunciado por escrito sobre eventuais excepções, o presente Tribunal considerou, ao abrigo do art. 16.º, al. c), do RJAT, dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo prosseguisse para decisão, tendo fixado a data de 19/12/2014 para a prolação da mesma.
1.6. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
1.7. No seu pedido de pronúncia, a requerente invoca a "ilegalidade do [...] ato tributário de retenção na fonte de IRC, tal como mantido na ordem jurídica pela decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa oportunamente apresentado", por entender, em síntese, que: a) "o conceito de royalties que sobressai do artigo 12.º, n.º 2, do Modelo de Convenção - e, consequentemente, que se encontra implícito no n.º 3 do artigo 12.º da Convenção - apenas contempla os rendimentos decorrentes da transmissão dos direitos de autor (copyright) incidentes sobre o programa [...] [e], reflexamente, não são de qualificar como royalties para efeitos de aplicação do regime constante do [...] artigo 12.º do Modelo de Convenção [...] os rendimentos decorrentes da transmissão de cópia do programa"; b) "o contrato [celebrado entre a requerente e a B...] configura uma transmissão de programa informático enquanto produto estandardizado destinado a comercialização junto do utilizador final - a ora requerente - ao invés de uma transmissão de direitos de autor (copyright) incidentes sobre o conteúdo do referido programa e que permitem a sua reprodução ou manipulação com fins comerciais - geradora de royalties"; c) "o contrato celebrado entre a requerente e a B... titula a aquisição de um número pré-determinado de cópias estandardizadas dos programas informáticos comercializados pela B..., destinadas a uso profissional por parte da requerente, não permitindo à requerente qualquer possibilidade de as adaptar ou reproduzir com intuitos comerciais [pelo que] os pagamentos realizados pela requerente ao abrigo do contrato celebrado com a B... não são suscetíveis de ser subsumidos no conceito convencionalmente relevante de royalties recortado pelo n.º 3 do artigo 12.º da Convenção [devendo antes] ser tratados como rendimentos comerciais abrangidos pelo artigo 7.º da mesma Convenção e, nessa medida, não sujeitos a tributação em Portugal". A requerente alega ainda, nos pontos 36.º e ss. do seu pedido, a improcedência dos argumentos invocados pela AT em sustentação da conformidade legal do ato de retenção na fonte de IRC.
1.8. Conclui a ora requerente que o presente Tribunal deve "declarar a ilegalidade do ato de retenção na fonte de IRC [identificado], promovendo, em consequência, o reembolso do montante indevidamente retido de €33.695,61 [...] acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, apurados nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária".
1.9. Por seu lado, a AT alega, na sua contestação, e em síntese, que: a) se verifica "a exceção de incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido" porque o "pedido de pronúncia arbitral sub judice advém do indeferimento de pedido de revisão oficiosa do ato de retenção na fonte, de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), consubstanciado na guia n.º ..., no montante de €33.695,61"; b) "na situação sub judice, a primeira vez que a A... veio, perante a administração, questionar a bondade da retenção na fonte em causa foi quando apresentou o pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da LGT e, então, mesmo que o acto de retenção na fonte padecesse de qualquer erro, tal erro nunca seria susceptível de ser imputável à Administração, pelo que sempre se teria de concluir pela inverificação de um pressuposto procedimental legalmente estabelecido para o recurso ao mecanismo legal da revisão oficiosa, carecendo, também por isso, de suporte legal o pedido efectuado pela A... à Administração Tributária para que procedesse à revisão oficiosa da retenção na fonte «com fundamento em erro imputável aos serviços», nos termos da segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT"; c) "no caso em apreço estamos [...] perante uma transmissão parcial de direitos de software [pelo que] o rendimento sub judice não poderia legalmente deixar de ser tratado como royalty e tributado como tal"; d) "[não tendo ocorrido qualquer erro] não [pode] proceder o pedido de juros pretendidos pelo contribuinte."
1.10. Conclui a AT que "deve ser julgada procedente a supra invocada excepção, com os devidos efeitos legais" e que, "sem conceder, caso assim não se entenda, deve o pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, por não provado, absolvendo-se a Entidade Requerida dos pedidos".
1.11. Em Junho de 2006, a B... apresentou à ora requerente uma proposta respeitante a "Licenciamento de Software B..." (vd. doc. 5 apenso aos autos), tendo, na sequência da mesma, sido celebrado, entre as referidas entidades, um "contrato de renovação de software".
1.12. Em 7/7/2008, a B... emitiu uma factura no valor de €336.956,11 (vd. doc. 7 apenso aos autos).
1.13. Em 2010, no âmbito de acção inspectiva externa ao exercício de 2008, a IT entendeu que a ora requerente não tinha declarado "no modelo 30 - Pagamentos a Não Residentes, referente a pagamentos de royalties à entidade B..., nem efectuou a respectiva retenção na fonte, tendo apresentado o formulário certificando a sua residência fiscal" (vd. doc. 8 apenso aos autos).
1.14. Em 2/12/2010, ainda no decurso da mencionada acção inspectiva, a requerente efectuou a respectiva regularização, tendo entregado, para tal, a guia n.º ..., referente à retenção na fonte dos pagamentos de royalties à B..., no montante de €33.695,61, correspondente à taxa da Convenção celebrada entre Portugal e a Irlanda. O pagamento da retenção ao Estado ocorreu no mesmo dia, através de transferência bancária.
1.15. Em 3/7/2013, a ora requerente veio requerer a revisão oficiosa do seu acto de retenção na fonte, supra referido. Por despacho de 30/1/2014, o referido pedido de revisão oficiosa foi indeferido, com os fundamentos que constam das Informações n.º …, ambas constantes do processo administrativo apenso aos autos.
1.16. Em 30/4/2013, a requerente veio apresentar o presente pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, tendo em vista, em síntese, obter a "declaração de ilegalidade do indicado ato de retenção na fonte de IRC".
II – Da Excepção de Incompetência em Razão da Matéria
Tendo em consideração que foi invocada pela AT a excepção supra referida, justifica-se, previamente, a apreciação da mesma, i.e., saber se, como alega a ora requerida, o Tribunal é materialmente incompetente pelo facto do "pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa".
Assim sendo, o Tribunal deve começar por determinar se o presente litígio cabe no âmbito da sua competência material, nos termos definidos no art. 2.º, al. a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/3.
Com efeito, e como bem recorda a AT, "a Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril (Orçamento de Estado para 2010), contemplou, no seu artigo 124.º, uma autorização legislativa relativa à arbitragem em matéria tributária enquanto forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, prevendo-se que deverá constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo consagradas no CPPT. No uso de tal autorização legislativa, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que disciplina a arbitragem tributária (RJAT)."
De acordo com o Preâmbulo do referido RJAT, o âmbito de competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD encontra-se perfeitamente delimitado, tendo sido fixadas "com rigor quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral".
Assim, o citado preâmbulo refere que se encontram abrangidas "pela competência dos tribunais arbitrais, a apreciação da declaração de ilegalidade de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e os de pagamentos por conta, a declaração de ilegalidade de atos de determinação de matéria tributável, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais e, bem assim, a apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projeto de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão anteriormente referida."
Em concreto, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD surge no art. 2.º, n.º 1, do RJAT, nos seguintes termos:
Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 – A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de determinação da matéria tributável, de atos de determinação da matéria coletável, de atos de fixação de valores patrimoniais;
c) A apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projeto de decisão de liquidação, sempre que a lei não assegura a faculdade de deduzir a pretensão referida na alínea anterior.
Note-se, também, que a competência dos tribunais arbitrais é limitada pelos termos em que a Administração Tributária e Aduaneira (AT) expressou a sua vontade de se vincular àquela jurisdição, o que fez através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/3. Nos termos do n.º 1 do art. 4.º do RJAT, a vinculação da AT à jurisdição arbitral depende de aceitação, a qual fixará os limites dessa vinculação:
Artigo 4.º
Vinculação de funcionamento
1 – A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
Nos termos do disposto na alínea a) do art. 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, pela qual a administração tributária se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, as "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário."
Como se lembra na Decisão Arbitral (DA) n.º 236/2013-T, de 22/4/2014 - que temos vindo a seguir de perto, por com ela concordarmos, e atendendo à proximidade com o tema em análise -, "o Dec.-Lei que institui a arbitragem em matéria tributária, contém uma previsão de ampla arbitragem das matérias tributárias. Esta previsão não tem operacionalidade imediata, pois fica condicionada à vinculação da AT. Trata-se de uma reserva da Administração. Compete à Administração, representada pelos Ministros da Justiça e das Finanças, e só a ela, fixar por ato unilateral os limites dessa vinculação. A vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais é objeto de uma limitação concreta: são expressamente excepcionadas da arbitragem as pretensões que decorram de alegada ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta, exceto se sua ilegalidade tiver sido previamente suscitada, nos termos dos arts. 131.º e ss. do CPPT."
Ainda segundo a citada DA, "deve partir-se da previsão ampla do Decreto-Lei, sem dúvida querida pelo legislador, mas deverá ter-se igualmente presente que, também por vontade do legislador, foi conferida à AT a faculdade de introduzir uma ou mais restrições genéricas (gerais e abstractas) ao âmbito de aplicabilidade da arbitragem. E deverá assim constatar-se que, nesse contexto e por iniciativa da AT, a referida Portaria exclui da arbitragem, de modo expresso, todas as pretensões conexas com atos de «autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta», para depois admitir apenas aquelas pretensões que tenham sido precedidos[as] de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário."
Para melhor elucidação, veja-se o que dispõem os artigos 131.º e 132.º do CPPT:
Artigo 131.º
Impugnação em caso de autoliquidação
1 - Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de dois anos após a apresentação da declaração.
2 - Em caso de indeferimento expresso ou tácito da reclamação, o contribuinte poderá impugnar, no prazo de 30 dias, a liquidação que efetuou, contados, respetivamente, a partir da notificação do indeferimento ou da formação da presunção do indeferimento tácito.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º.
Artigo 132.º
Impugnação em caso de retenção na fonte
1 - A retenção na fonte é susceptível de impugnação por parte do substituto em caso de erro na entrega de imposto superior ao retido.
2 - O imposto entregue a mais será descontado nas entregas seguintes da mesma natureza a efectuar no ano do pagamento indevido.
3 - Caso não seja possível a correcção referida no número anterior, o substituto que quiser impugnar reclamará graciosamente para o órgão periférico regional da administração tributária competente no prazo de dois anos a contar do termo do prazo nele referido.
4 - O disposto no número anterior aplica-se à impugnação pelo substituído da retenção que lhe tiver sido efectuada, salvo quando a retenção tiver a mera natureza de pagamento por conta do imposto devido a final.
5 - Caso a reclamação graciosa seja expressa ou tacitamente indeferida, o contribuinte poderá impugnar, no prazo de 30 dias, a entrega indevida nos mesmos termos que do acto da liquidação.
6 - À impugnação em caso de retenção na fonte aplica-se o disposto no n.º 3 do artigo anterior.
Sucede, contudo, que o ato tributário em causa foi objeto de apreciação e subsequente confirmação (acto tributário de 2.º grau), não em sede de reclamação graciosa, mas sim no âmbito de pedido de revisão oficiosa, nos termos do art. 78.º da LGT - o qual foi interposto a 3/7/2013, quando se encontrava já esgotado o prazo para aferir, em sede de reclamação graciosa, da ilegalidade invocada.
Note-se, por outro lado, que a alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, ao introduzir a excepção atrás referida, contém uma expressão ampla (quando refere o "recurso à via administrativa") e uma concretização restritiva e taxativa ("nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário").
Como refere a DA supra citada, e com especial interesse para o tema aqui em análise, uma vez que se trata de pedido de pronúncia arbitral sobre indeferimento de pedido de revisão oficiosa de acto de retenção na fonte, "o texto normativo [da Portaria n.º 112-A/2011] não permite pois encontrar nele um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, com a possibilidade de, em qualquer uma das três situações nele referidas (autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta), se poder prescindir do recurso à reclamação graciosa, strictu sensu, para arbitragem da pretensão tributária, ainda que sobre ela tenha havido um qualquer ato de segundo grau e, portanto, se tenha verificado, in casu, uma reapreciação do ato tributário sindicado pela AT, na sequência de pedido de revisão oficiosa formulado pelo sujeito passivo."
Continua a referida DA, que aqui se volta a citar com a devida vénia: "e tal conclusão é alcançada independentemente e sem prejuízo da posição que se adote sobre a equiparação de revisão oficiosa, por iniciativa do contribuinte, ao procedimento de reclamação graciosa, para efeitos de impugnação judicial. Isto pela referida clareza da disposição de vinculação, atenta a dupla negação nela constante: determinados atos não se incluem no objeto da vinculação (sujeição), exceto se precedidos de reclamação graciosa («precedido de… nos termos dos...», diz-nos a lei). Face a tão cristalina formulação, não se vê como pode o intérprete alcançar conclusão diversa, em especial para alargar o âmbito de sujeição da AT a uma opção do sujeito passivo, sujeição essa que o legislador pretendeu que fosse em concreto delimitada por vontade da própria AT, uma clara reserva da Administração em matéria de autovinculação."
Fazendo eco da DA n.º 236/2013-T, mas também da DA n.º 51/2012-T, de 9/11, deve entender-se que, em face da natureza voluntária da arbitragem, a interpretação da vinculação da AT "não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação. Só não seria assim, se a sua posição implicasse a frustração total do objetivo pretendido com a instituição da arbitragem tributária, o que não é o caso", realçando-se que então, como também agora, "o Tribunal não se pronuncia sobre a construção doutrinária em que assenta a equiparação do procedimento de revisão oficiosa, por iniciativa do contribuinte, ao procedimento de reclamação graciosa, para efeitos de impugnação judicial. Simplesmente, entende que do princípio da consagração do procedimento arbitral enquanto meio de resolução de litígios fiscais alternativo ao processo de impugnação judicial, não decorre automaticamente a extensão da vinculação da AT a todas as situações em que, doutrinária e/ou jurisprudencialmente for considerada admissível essa impugnação."
Para além de que, como assinalam Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª Ed., 2012, a p. 120, em anotação ao art. 11.º da LGT, "não se pode, na interpretação, transcender a linguagem, a construção linguística (sintático-formal) para afirmar um significado que não resulte expresso. Verifica-se, pois, uma conexão essencial entre linguagem expressiva e conteúdo expresso. Seja qual for o objeto que se pretenda atribuir à norma, quando não resultar expresso no contexto lógico-literal ou quando não apareça suficientemente definível com base no próprio contexto, o objeto deve considerar-se não significado".
No mesmo sentido, assinala, ainda, Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, II Volume, 6.ª Ed., 2011, a p. 420, que, "de harmonia com o disposto no art. 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de retenção na fonte, a Administração Tributária apenas se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de retenção na fonte tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo quiser optar pela via arbitral, terá sempre de fazer uso de reclamação graciosa".
Em síntese: não se mostrando possível a submissão à arbitragem do litígio relativo às pretensões a que alude o art. 2.º (objecto de vinculação) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/3, por não ter sido precedido de reclamação graciosa, afigura-se inquestionável a incompetência, em razão da matéria, do presente Tribunal Arbitral.
Assim, e em linha com o que também se concluiu na DA n.º 236/2013-T, dir-se-á que estamos diante de uma reserva da Administração, como resulta da regulamentação referida, a qual significa que o poder judicial (tribunais comuns ou arbitrais) deve respeitar estritamente as decisões da Administração, e que, neste caso, o que se trata é de interpretar uma portaria (acto administrativo genérico) onde a Administração (representada pelo Ministro da Justiça e pelo Ministro das Finanças) decide vincular-se à jurisdição arbitral tributária, nos termos acima referidos.
Não se está, pois, perante uma mera interpretação de uma norma regulamentar contida em Portaria. Por essa razão, e porque se trata, antes, da interpretação de uma manifestação de vontade, embora feita em termos de disposição genérica, deverão ser respeitados os poderes e deveres da Administração, nos exactos termos que resultam da regulamentação que conduziu à autovinculação.
Por outro lado, na realização desta última interpretação, terá que respeitar-se o que se dispõe no art. 9.º, n.º 2, do Código Civil (CC) - segundo o qual não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal - e no art. 9.º, n.º 3, do mesmo Código - de acordo com o qual, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Este n.º 3 é especialmente relevante, uma vez que afasta a possibilidade de interpretação correctiva - o que tem implicações para o tema em análise, dado que, a incluir-se no âmbito da citada Portaria o disposto no art. 78.º da LGT (diploma totalmente distinto), tal consubstanciaria um caso de evidente interpretação correctiva.
No mesmo sentido, veja-se a já antes citada DA n.º 51/2012-T: "Pode o pedido de revisão ser alternativo à reclamação, pode ser complementar, pode até no procedimento de revisão ter-se apreciado a pretensão do contribuinte mas considerando a natureza voluntária da arbitragem, a interpretação adoptada não poderá, em caso algum, traduzir-se numa restrição da esfera de liberdade da AT, enquanto parte, de estabelecer os limites da sua vinculação. Só não seria assim se a sua posição implicasse a frustração total do objectivo pretendido com a instituição da arbitragem tributária, o que não é o caso."
Assim, conclui-se que este Tribunal é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objecto do litígio sub judice, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º e 2.º, al. a), da Portaria n.º 112-A/2011, o que consubstancia excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.os 1 e 2, do CPC, ex vi art. 2.º, al. e), do CPPT, e artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT, a qual obsta ao conhecimento do pedido e conduz à absolvição da instância da AT, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, al. a), do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT.
Nestes termos, julga-se procedente a excepção de incompetência deduzida pela AT, pelo que se absolve a requerida da instância, ficando, assim, prejudicado o conhecimento da questão de mérito e demais questões conexas.
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III – Decisão
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar procedente a excepção dilatória da incompetência deste tribunal em razão da matéria invocada pela requerida;
- Absolver a requerida da instância (artigos 96.º e 278.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Fixa-se o valor do processo em €33.695,61 (trinta e três mil seiscentos e noventa e cinco euros e sessenta e um cêntimos), nos termos do art. 32.º do CPTA e do art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
Custas a cargo da requerente, no montante de €1836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, dada a excepção supra assinalada, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2014.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
***
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 138.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.