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SUMÁRIO
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Com a entrada em vigor da redação dada ao artigo 63.º do CPPT pela Lei n.º 64-B/2011, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012, a consumação da vantagem fiscal é o facto relevante para aferir a caducidade do procedimento relativamente à cláusula geral antiabuso.
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Para efeitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, uma situação em que um sócio decide vender a sua quota a terceiros, ainda que por um valor equivalente a lucros acumulados na sociedade, terminando assim a sua relação, quer direta, quer indiretamente, com a sociedade vendida, não pode ser considerada como tendo um idêntico fim económico a uma situação de recebimento de lucros.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Jorge Belchior de Campos Laires, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:
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Relatório
A..., contribuinte fiscal n.º..., residente na Rua ..., ..., ..., ..., ..., ...-... Mem Martins (“Requerente”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e deduziu pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra a presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa que teve por objeto a análise da legalidade da liquidação de IRS com o nº. 2022..., de 09/12/2022, relativa ao ano de 2018, no montante de € 55.666,23, e das demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral deu entrada no dia 07/07/2023, tendo sido aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificado à AT.
O pedido foi comunicado à Requerida no dia 12/07/2023.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular o signatário em 25/08/2023, sem oposição das partes.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 12/09/2023.
A Requerida foi notificada em 13/09/2023 para apresentar a resposta a que se refere o artigo 17.º do RJAT, o que, em virtude do pedido de adiamento requerido ao Tribunal, fez em 02/11/2023.
A reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT realizou-se no dia 20/02/2024, tendo sido ouvidas as testemunhas arroladas pela Requerente.
Na ata da reunião ficou lavrado o Despacho de prorrogação do prazo referido no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, por dois meses, considerando a complexidade do caso, o pedido de prorrogação do prazo de Resposta apresentado inicialmente pela Requerente e os sucessivos adiamentos da Reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.
Ainda no mesmo Despacho facultou-se às partes a possibilidade de apresentarem alegações escritas, sucessivas, por prazo de 10 dias, o que o Requerente e Requerida fizerem em, respetivamente, 29/02/2024 e 15/03/2024.
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Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, todos do RJAT. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade. O presente pedido de constituição de tribunal arbitral tem-se por tempestivo.
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Matéria de Facto
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Factos Provados
Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A sociedade B... S.A. (“B...”) foi constituída em 12/04/1988, como sociedade por quotas, com o capital (equivalente em euros) de € 24.939,90, estando o seu capital social, à data da constituição, repartido em quatro quotas: duas de €7.481,97 cada e duas de €4.987,98 cada, sendo detidas pelos seguintes titulares:
(cf. Relatório de Inspeção Tributária – RIT)
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A sociedade B... tinha por objeto a instalação e a manutenção de postos de abastecimento de combustível, o que inclui os trabalhos necessários de construção civil e de fornecimento, de instalação, de manutenção e de reparação de todos os equipamentos específicos relacionados com o abastecimento de combustíveis a consumidores finais (facto alegado pelo Requerente e não contestado pela AT).
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Por motivo de óbito, ocorrido em 2012, deu-se a cessação de funções de gerente de C..., tendo a meação na quota de que era titular sido transmitida aos seus herdeiros, designadamente ao Requerente (filho), D... (cônjuge) e E... (filho), conforme abaixo:
(cf. RIT)
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O Balanço e demonstração de resultados da B..., nos períodos de 2010 a 2020, estão resumidos na tabela seguinte (documentação junta pela Requerida no Requerimento de 10/01/2024):
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Em resultado da perda do cliente …, a B... enfrentou um conjunto de consequências negativas ao nível da gestão e de perspetivas financeiras a curto/médio prazo (cf. depoimento das testemunhas).
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No final de 2014, a empresa apresentava baixa moral e conflitos internos que, entretanto, haviam descido pela organização, tendo o seu Diretor Técnico, F..., saído da empresa e ingressado na empresa sua principal parceira comercial, a G... (cfr. depoimento das testemunhas).
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Foram feitas pelos sócios tentativas infrutíferas de venda das quotas na B... (cf. depoimento das testemunhas).
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Em 2016, F... pretendeu retornar à B..., desta vez como sócio, e com posição maioritária, pelo que propôs medidas tendentes à respetiva aquisição (cf. depoimento das testemunhas).
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A compra tinha como condição de que a sociedade entretanto não fosse descapitalizada (cf. depoimento das testemunhas).
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Na proposta de compra que mais tarde apresentou a todos os sócios, F... manifestou que, como a distribuição das quotas de 30%/30%/20%/20%, apenas a compra de quotas representativas de 70% do capital social da B... garantiria um controlo decisivo na empresa, dando-lhe a capacidade de tomar todo o tipo de decisões (cfr. depoimento das testemunhas).
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A sociedade H... Lda. foi constituída em 04/05/2016, como sociedade por quotas e com o capital de € 2.500,00, capital esse que foi repartido em duas quotas, detidas pelos seguintes titulares, nomeados igualmente como gerentes:
(cf. RIT)
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A decisão dos sócios da B... de não procederam à distribuição dos resultados transitados como dividendos, incluindo em momento anterior à venda das quotas, deveu-se nomeadamente à intenção de não descapitalizar a empresa (cfr. depoimento das testemunhas).
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A 04/11/2016 foram efetuadas as seguintes transmissões de quotas da B..., todas a favor da sociedade H...:
(cf. RIT)
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No contrato de cessão de quotas, datado de 02/11/2016, celebrado entre as partes cedentes (sócios I..., Herdeiros de C... e J...) e a cessionária – H... – que passou, por meio desta operação, a deter 70% do capital da B..., encontra-se expresso: (i) o preço de transmissão de cada uma das três quotas, sendo que a quota dos Herdeiros de C... (grupo em que se inclui o Requerente), representativa de 20% do capital social da B..., foi cedida pelo preço de €1.000.000,00 e (ii) as condições de pagamento (incluídas nas “declarações negociais”), tendo ficado acordado que o preço das quotas seria pago após decorridos 13 meses a contar da data de celebração do contrato e até ao termo do 21.º mês após essa data (cf. RIT).
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Na mesma data – 02/11/2016 – foi celebrado um aditamento ao contrato de cessão de quotas mediante o qual as partes (cedentes e cessionária das quotas da B...) acordaram que o preço das quotas fixado no referido Contrato, a pagar a cada cedente, seria acrescido de um determinado montante, no caso dos “Herdeiros de C...”, o acréscimo seria de €219.000,00 (cf. RIT).
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O pagamento dos acréscimos acordados ficava condicionado à concretização, pela B..., até ao 24.º mês a contar da data da assinatura do Aditamento, de três operações a realizar com a sociedade K..., Lda, e que representariam um encaixe financeiro por parte da B... no montante de €1.095.000,00 (cf. RIT).
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Deste modo, o capital da B... passou a ser detido por (cf. RIT):
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Em 04/05/2016 foram nomeados gerentes –F... e J... (cf. RIT).
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A participação financeira que a H... detinha na B..., correspondente a 70% do capital social desta última, era praticamente o único ativo da H... (cf. RIT).
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O Requerente não sofreu tributação em IRS sobre mais-valias geradas na venda das quotas na B... (cf. RIT).
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Em 2018 a B... procedeu à distribuição de lucros e reservas no montante de €5.300.000, sendo que tais lucros foram atribuídos às duas entidades à data titulares das quotas (sócios), proporcionalmente ao capital respetivo, da seguinte forma (cf. RIT)
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Estes lucros não foram tributados na esfera da H..., por aplicação do regime do artigo 51.º do Código do IRC (cf. RIT).
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A dívida da H... aos Herdeiros de C... (preço acordado da transmissão da quota que os mesmos detinham na B...) foi integralmente amortizada, em 2018, em duas parcelas, através da emissão de dois cheques:
(cf. RIT)
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O Requerente foi alvo de inspeção tributária ao IRS de 2018, por determinação da ordem de serviço nº. 012022... (cf. documentação junta com o PPA).
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Na sequência do RIT, o Requerente foi notificado, por carta registada a 18/12/2022, da liquidação de IRS com o nº. 2022..., no montante de € 55.666,23, e das demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas (cf. documentação junta com o PPA e informação disponibilizada pela Requerida).
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O Requerente pagou o respetivo montante de IRS e juros compensatórios em 24/01/2024 (cf. documentação junta com o PPA).
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Dessa mesma liquidação apresentou o Requerente, em 24/01/2023, reclamação graciosa, peticionando a sua anulação, e que, até à data, não foi objeto de qualquer decisão da parte da AT (cf. Processo Administrativo e PPA)
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Em 21/10/2021 foi registada a transmissão de quotas dos anteriores titulares da H... para uma sociedade não residente em território nacional, que ficou a ser única sócia da H... (cf. RIT).
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Motivação da Decisão de Facto
A matéria de facto foi fixada tendo por base a documentação junta com o PPA, bem como os elementos juntos com o Processo Administrativo, demais documentação junta pela Requerida, e o depoimento das testemunhas I... e F... .
O Tribunal deve selecionar os factos que importam à decisão, não tendo a obrigação de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi dos normativos das alíneas a) e e), do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
O Requerente elenca um conjunto de factos cuja comprovação o tribunal entende não serem necessários para a decisão, nomeadamente alguns relacionados com o percurso histórico da B..., tendo sido eleitos apenas aqueles que se considerou relevantes para a matéria em discussão.
Ilustrativamente, o Requerente argumenta que o colapso financeiro do Banco Espírito Santo contribuiu de forma relevante para o agravamento da situação financeira da B..., o que, efetivamente, poderia ter impacto na liquidez da rubrica de disponibilidades, porém, em momento algum se indica (e prova) a dimensão dessas perdas, para que possa ser um fator considerado relevante pelo tribunal. Essa perda foi também referida pela testemunha F..., mas igualmente sem concretizar a respetiva dimensão.
Pese embora tal não fosse evidente nas demonstrações financeiras da sociedade, o depoimento das testemunhas foi convincente, revelando um conhecimento direto dos factos, no que se refere à circunstância de a sociedade B... ter passado por uma situação financeira e de gestão difícil.
De facto, de acordo com o balanço e a demonstração de resultados, não obstante os resultados líquidos negativos apresentados em 2013 e 2014, na verdade a empresa revelou ao longo de todo o período um capital próprio bastante elevado, na ordem dos 8 milhões de Euros, com uma situação de caixa e outras disponibilidades na ordem dos 5 milhões de Euros.
Todavia, face ao depoimento prestado pelas testemunhas, o tribunal considerou provado que a razão de não ter havido decisão de distribuição dos resultados transitados como dividendos, incluindo em momento anterior à venda das quotas, por parte do Requerente e dos restantes vendedores, se deveu, pelo menos em parte, à intenção de não descapitalizar a empresa, uma vez que essa “almofada financeira” permitiria mitigar eventuais custos de restruturação e garantir maior confiança a clientes e fornecedores.
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Matéria de Direito
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A matéria em discussão
A liquidação impugnada resulta da aplicação da cláusula geral antiabuso (”CGAA”) prevista no artigo 38º, nº. 2, da LGT, a título de imposto devido pelo Requerente no montante de € 49.466,67, que resulta da requalificação da sua parte no preço de venda da B... para rendimentos da Categoria E (rendimentos de capitais), enquanto distribuição de lucros. Conforme indicado no RIT, a AT apresenta o seguinte diagrama ilustrativo:
A AT entende haver uma interposição da H... entre a B... e os seus anteriores sócios, que resulta na transmutação dos valores recebidos por estes, em 2018, de “distribuição de lucros e reservas” para um “pagamento do preço das quotas” da B... .
Desta forma, segundo a AT, a tributação deveria ocorrer com a retenção na fonte de 28%, ao invés de qualificação de tais rendimentos como mais valias resultantes da transmissão onerosa das quotas, as quais não foram sujeitas a tributação na esfera do Requerente.
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Posição da Requerida
A posição da Requerida pode ser resumida com a transcrição de seguida de diversas passagens da sua Resposta, que por sua vez transcrevem parágrafos relevantes do RIT.
“(…) à luz do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, considera que esta norma se aplica à sucessão de atos e negócios jurídicos em apreço, relacionados com a H..., ou seja:
- A constituição, em maio de 2016, da sociedade H..., na qual J... detinha 49% do capital (€1.225,00) e foi designado gerente;
- Em novembro de 2016, a celebração do contrato de cessão de quotas entre os detentores de três quotas da B... e a H... (cessionária), negócio de que se destaca a acordada dilação no pagamento do preço das quotas – prazo mínimo de treze meses – que permitiria à H... receber os lucros a distribuir pela B... pelo valor ilíquido, sem retenção de imposto na fonte, beneficiando do regime de “participation exemption” previsto no 51.º do CIRC;
- Com a titularidade de 70% do capital da B..., a H... passou a deter o poder de decisão na B..., nomeadamente no respeitante à distribuição de lucros e reservas pelos sócios (montantes e datas);
- Em 18-01-2018, os sócios da B... em assembleia geral deliberam a distribuição de lucros (resultados transitados) pelos sócios, no montante de €4.200.000,00 (transferências realizadas em Fevereiro) e, posteriormente, nova deliberação de distribuição de capitais próprios (reservas no montante de €1.100.000,00, transferidas em Junho);
- Provida dos meios financeiros necessários, a H... pôde cumprir o estabelecido no contrato de cessão de quotas e no aditamento ao mesmo contrato, procedendo ao pagamento do preço previsto aos credores, anteriores titulares das quotas, incluindo os Herdeiros de C..., titulares de uma dessas quotas.
O conjunto articulado de negócios e factos jurídicos e societários, pelos valores e na cadência temporal em que aconteceram – designadamente o contrato de cessão de quotas e a data em que veio a ocorrer a distribuição de lucros e reservas pela B... - só foi possível na medida em que o poder da tomada de decisão nas duas entidades se concentrava nas mesmas pessoas, uma vez que a H... era sócia maioritário da B... desde 02-11-2016.
Em suma, desde a sua constituição, a H... limitou-se a adquirir três das quatro quotas representativas do capital social da B... . Sem meios financeiros, quer próprios, quer alheios por recurso a financiamento, o preço destas participações foi pago aos anteriores sócios da B... (cedentes das quotas), por utilização do encaixe financeiro operado pelo recebimento dos lucros e reservas distribuídos pela própria B..., direito que lhe assistia na qualidade de sócia, detentora de três quotas representativas de 70% do capital desta última.
Na realidade, a venda das quotas à H... por parte dos sócios da B... (detentores de três das quotas) teve como consequência que as importâncias monetárias com origem na B... tenham sido recebidas por aqueles sujeitos a título de quitação do preço contratual das referidas quotas, ao invés de o serem enquanto lucros e reservas distribuídos, a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da B... .
Descrição dos atos e negócios jurídicos e motivação para a sua celebração.
37. De acordo com o descrito no ponto V.1.2 do RIT, que ora se transcreve por facilidade de exposição: “À luz do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, e atendendo à doutrina e à jurisprudência já produzida sobre a matéria, em que se incluem os excertos apresentados no ponto anterior, consideram estes serviços que esta norma se aplica à sucessão de atos e negócios jurídicos em apreço, relacionados com a H... e pormenorizadamente descritos acima, que se enunciam: • A constituição, em maio de 2016, da sociedade H..., na qual J... detinha 49% do capital (€1.225,00) e foi designado gerente; • Em novembro de 2016, a celebração do contrato de cessão de quotas entre os detentores de três quotas da B... e a H... (cessionária), negócio de que destacamos: - a acordada dilação no pagamento do preço das quotas – prazo mínimo de treze meses – que permitiria à H... receber os lucros a distribuir pela B... pelo valor ilíquido, sem retenção de imposto na fonte beneficiando do regime de participation exemption previsto no 51.º do CIRC; - com a titularidade de 70% do capital da B..., a H... passou a deter o poder de decisão na B..., nomeadamente no respeitante à distribuição de lucros e reservas pelos sócios (montantes e datas); • Em 18-01-2018, os sócios da B... em assembleia geral deliberam a distribuição de lucros (resultados transitados) pelos sócios, no montante de €4.200.000,00 (transferências realizadas em Fevereiro) e, posteriormente, nova deliberação de distribuição de capitais próprios (reservas no montante de €1.100.000,00, transferidas em Junho);
Provida dos meios financeiros necessários, a H... pôde cumprir o estabelecido no contrato de cessão de quotas e no aditamento ao mesmo contrato, procedendo ao pagamento do preço previsto aos credores, anteriores titulares das quotas, incluindo os Herdeiros de C..., titulares de uma dessas quotas.
Descrição do negócio ou ato com idêntico fim económico
A interposição da H... entre a B... e os seus anteriores sócios, ao transmutar os valores por eles recebidos, em 2018, de “distribuição de lucros e reservas” em “pagamento do preço das quotas da B...”, consubstancia os “(…) atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios (…)”, como previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT. A não intervenção da H... implicaria que os valores de lucros transitados e reservas (capitais próprios) distribuídos pela B... seriam recebidos por todos os anteriores sócios, diretamente, enquanto tal. O recebimento de lucros e reservas por cada um dos anteriores sócios é o facto com fim económico - o recebimento de valores monetários com origem na B...- idêntico ao que resultou dos atos e negócios jurídicos artificiosos (venda das quotas à H..., com recebimento do preço não antes de treze meses após a data do contrato de cessão) realizados unicamente com o objetivo de eliminar a tributação em sede de IRS.
De facto, ao terem as quotas sido cedidas a uma sociedade – a H... – com a concordância expressa das partes cedentes, declarada no Contrato de Cessão de Quotas, de que o pagamento seria feito após decorridos treze meses a contar da celebração do contrato e até ao termo do vigésimo primeiro mês após a celebração do mesmo (que teve lugar em 02-11- 2016), aquando da distribuição de lucros e reservas, em 2018, pela B..., este novo sócio (a H...) beneficiou da eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos, ao abrigo do regime da participation exemption, previsto no art.º 51.º do CIRC, já que foi cumprida a condição prevista na al. b) do n.º 1 daquele preceito legal: “a participação (…) tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição”.
Ineficácia dos atos e negócios jurídicos celebrados
O encaixe financeiro obtido pela H... permitiu aos anteriores sócios da B... receber os valores monetários pagos pela B... ao sócio H..., sob a forma “encapotada” de pagamento do preço das quotas alienadas, valores que, se tivessem sido recebidos diretamente a título de distribuição aos sócios de lucros e reservas, teriam sido sujeitos a IRS, desde logo através da retenção na fonte à taxa de 28%, conforme previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS (CIRS). Saliente-se que, conforme já foi referido anteriormente, foi esta a situação tributária que vigorou relativamente ao contribuinte L..., detentor de uma quota de 30% no capital social da B..., cujo rendimento auferido desta sociedade, com a natureza de “distribuição de lucros e reservas”, foi sujeito a tributação (retenção na fonte) à taxa de 28%. A concretização dos atos jurídicos sucessivos enunciados e a obtenção dos resultados pretendidos (o recebimento, pelos participantes nos mesmos, dos valores sem sujeição a tributação em sede de IRS) só foi possível com a intervenção direta e ativa de todos os detentores de três das quatro quotas representativas do capital social da B... que decidiram, enquanto donos e legítimos possuidores das mesmas, de comum acordo, ceder as suas participações sociais na B... a favor da H..., conforme o Contrato de Cessão de Quotas que estabelece as condições da transação, tanto em termos do preço a receber por cada cedente/”grupo”, como do prazo acordado de recebimento do mesmo.
A constituição da H..., sem qualquer atividade nem racionalidade económica, não teve outra motivação para além da aquisição das quotas da B..., operação concretizada apesar de a sociedade não possuir recursos financeiros para pagar aquelas participações sociais. Estes são os negócios jurídicos dirigidos, essencialmente, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos mesmos, ao permitirem a obtenção de meios financeiros originados na B... e a sua canalização para os anteriores sócios desta sociedade, sem sujeição a tributação, pela transmutação de um fluxo financeiro de distribuição de lucros e reservas num fluxo financeiro de pagamento de dívida. São estes por conseguinte os negócios que, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, se propõe sejam considerados ineficazes no âmbito tributário, de modo que seja efetuada a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência, anulando as vantagens fiscais obtidas”.
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Posição do Requerente e pedido
O Requerente começa por alegar a caducidade de aplicação da CGAA, porque o último ato praticado pelo Requerente - a venda das suas quotas na sociedade B..., - remonta a 02/11/2016, sendo essa a única data relevante para efeitos de eventual aplicação da CGAA prevista no artigo 38º nº. 2 da LGT, importando assim a caducidade do poder-dever de liquidação de imposto ao abrigo daquela norma, nos termos do artigo 45º nº. 1 da LGT.
Subsidiariamente, o Requerente apresenta um extenso conjunto de factos que pretendem demonstrar que a sociedade B... se encontrava numa situação de gestão e financeira muito complexa, situação esta que terá motivado diversas opções dos seus sócios, incluindo o Requerente. Neste ponto, há que ressaltar um interesse dos sócios em garantirem a viabilidade da empresa e da integridade do seu próprio património, o que motivou, em primeiro lugar, uma decisão de venda, que acabou por ser concretizada em benefício do seu ex-Diretor Técnico, F..., único, segundo o Requerente, capaz de liderar a empresa de forma a devolver-lhe a respetiva viabilidade.
A venda foi feita com diferimento do pagamento do preço, fator que, segundo o Requerente, garantiria, por um lado, a não descapitalização da empresa, uma vez que manter-se-iam nesta as disponibilidades financeiras acumuladas ao longo dos anos, e, por outro lado, permitiria que F... procedesse à aquisição das quotas sem ter as correspondentes disponibilidades financeiras.
Clarificado todo o contexto, não houve, no entender do Requerente, qualquer motivação essencial, nem principalmente, nem mesmo marginal ou até incidentalmente, dirigida à obtenção de qualquer vantagem fiscal, já que a única motivação do Requerente foi mesmo a de ceder a sua quota a título oneroso e definitivo, o que fez em 2016.
Segundo o Requerente, o negócio alternativo que a AT descreve conducente aos atos impugnados não satisfaz, ainda que minimamente, a exigência legal da verificação de "atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico". O negócio jurídico pretendido e efetivamente concretizado pelo Requerente implica a transmissão da titularidade das quotas a título definitivo. Citando a decisão arbitral no processo nº 141/2020-T, o Requerente defende que na ausência de equivalência económica entre as situações descritas – que é condição de aplicabilidade - a CGAA é forçosamente inoperável.
Nessa linha, o Requerente questiona-se qual seria afinal o comportamento normal, de efeito equivalente ou "idêntico fim económico", não artificioso nem abusivo, que o Requerente devia ter celebrado em alternativa à cessão de quotas que quis realizar e celebrou em 2016. Citando o PPA: “querer assimilar a cessão de quotas que o Requerente realizou no dia 02-11-2016 - e onde fixou exatamente o preço a receber por essa cessão e a respetiva forma de pagamento -, a uma distribuição de lucros integralmente dependente de opiniões, atos ou intenções de terceiros (…) não passa de um delírio porque esquece o mais importante: que o Requerente vendeu as suas participações sociais porque as queria vender e não recebeu posteriormente dividendos porque em 02-11-2016 não queria ser sócio daquela sociedade, não querendo nessa exata medida, estar em posição de ter o direito de os receber (ou não) (…) tão delirante de resto, quanto a manobra que querer imputar ao Requerente atuações e comportamentos - intervenções em órgãos sociais, distribuição de dividendos, canalização dos mesmos a estes fins e não àqueles - totalmente fora do controlo do Requerente”
O Requerente prossegue dizendo que “ainda que essa distribuição de lucros lhe tivesse sido feita, tal nunca teria o mesmo fim económico que o negócio que na altura efetivamente pretendia e finalmente levado a cabo em 02-11-2016 pelo Requerente - a cessão de quotas da B... (negócio através do qual deixou de ser seu sócio)”.
O Requerente insurge-se igualmente quanto à liquidação de juros compensatórios, em virtude da sua inexigibilidade, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 1, da LGT, uma vez que tal dependeria de negligência ou dolo por parte do Requerente, o que não sucedeu neste caso.
Conclui peticionando pela anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e liquidação de IRS, do ano de 2018, com o nº. 2022..., no montante de € 55.666,23, bem como as demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas conexas, sendo o Requerente reembolsado do imposto por si indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
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Análise
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Quanto à caducidade do direito à liquidação
Face à redação do artigo 63.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), em vigor à data da cessão das quotas, ou seja 2016, não assiste razão na alegação do Requerente de que o direito de liquidação caducou. Isto porque os efeitos da consumação do negócio alegadamente abusivo se deram no ano de 2018, ou seja, quando o Requerente recebeu o preço da cessão das quotas, logo, tendo a liquidação sido notificada antes do final de 2022, a mesma encontrava-se dentro do prazo geral de caducidade de 4 anos previsto no artigo 45.º, n.º 1, da LGT.
A tese do Requerente poderia ter acolhimento se o quadro legal fosse, que não era, a redação do aludido artigo 63.º anterior às alterações produzidas pela Lei n.º 64-B/2011, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012, circunstância bem explicada no Acórdão do STA, dado no Processo 0525/13.8BEAVR, de 03/08/2023, e que se cita de seguida:
“Aliás, foi precisamente o facto de o prazo ser curto e ser normal o seu esgotamento sem que a obtenção concreta da vantagem para o sujeito se efetivasse, assim se frustrando os objetivos visados com a consagração do instituto, que constituiu uma das principais razões (senão mesmo a principal) que determinaram o legislador a alterar o regime, eliminando o procedimento e o prazo que fixara para a sua abertura.
Porém, fê-lo, através da já referida Lei n.º 64-B/2011, que apenas produziu efeitos a partir de 1-1-2012, conforme resulta do seu artigo 125.º.
Em suma, do quadro legal relevado há que extrair três conclusões. A primeira é a de que, até à entrada em vigor da Lei n.º 64-B/2011, a abertura do procedimento próprio para efeitos da aplicação de disposição antiabuso estava sujeito a um prazo de três anos. A segunda é a de que este prazo deve ser contado a partir da realização do ato ou da celebração do negócio jurídico objeto da aplicação dessa disposição (na situação em que os atos ou negócios a desqualificar tenham ocorrido na vigência da redação originária) ou do início do ano civil seguinte ao da realização do ato ou da celebração do negócio jurídico (nas situações em que o ato ou negócio jurídico a desqualificar tenham ocorrido na vigência do artigo 63.º do CPPT na redação introduzida pela Lei n.º 64-A/2008). A terceira, corolário das duas primeiras, é a de que, nas redações anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 64-B/2011, os factos relevantes para efeitos de determinar a caducidade do direito de instaurar o procedimento eram e só eram a realização do ato ou negócio jurídico objeto da aplicação das normas anti abuso ou o início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objeto das disposições antiabuso.
Significa o que deixamos exposto que, distintamente do que defende a Recorrente, antes da entrada em vigor da Lei nº 64-B/2011, a consumação da vantagem fiscal tida em vista ou obtida com o negócio ou ato jurídico cuja ineficácia é visada pela aplicação da cláusula antiabuso, que constitui o pilar da tese que advoga, não constituía o facto relevante para aferir da tempestividade da abertura do procedimento”. (sublinhado nosso).
Daqui se retira, a contrario, que a partir da entrada em vigor da nova redação do artigo 63.º do CPPT, cujo quadro é que o releva para o caso, a consumação da vantagem fiscal é facto relevante em termos de aferir a caducidade do procedimento.
Tal alteração está em consonância com a explicação que consta do Relatório do Orçamento do Estado para 2012, onde se aponta que “o procedimento próprio e autónomo consagrado no artigo 63.º do Código do Processo e do Procedimento Tributário é significativamente flexibilizado, passando a abranger apenas as situações de aplicação da cláusula geral anti abuso constante do artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária. No âmbito das alterações introduzidas, deixa de existir um prazo específico para a aplicação da referida cláusula e potencia-se a respetiva utilização, como instrumento para agilizar o combate à fraude e evasão fiscal de elevada complexidade”.
No mesmo sentido veja-se o Acórdão arbitral n.º 317/2019-T:
“Reportando-nos à situação do caso, não basta, por conseguinte, para se iniciar a contagem do prazo de caducidade do direito à liquidação que for devida, tomar como ponto de referência a data em que foram efetuadas as alienações das participações sociais já que estas operações não consubstanciam em si mesmo um meio artificioso ou fraudulento ou um abuso de formas jurídicas. O que poderá ter justificado a aplicação da cláusula geral antiabuso – na perspetiva da Autoridade Tributária - é o facto de o retorno do crédito gerado pela venda de ações vir a ocorrer através de pagamentos que dissimulam uma distribuição de dividendos, e, por isso mesmo, o esquema negocial que é objeto da cláusula geral antiabuso apenas se completa com o acréscimo patrimonial que é obtido indevidamente por esse meio.
(…)
Sendo assim – como é bem de ver -, o prazo de caducidade não se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que ocorreram as alienações das participações sociais (2005), nem da data em que as alienações foram declaradas à Autoridade Tributária (10 de Março de 2006), nem da data em que foram efetuados os primeiros pagamentos (2006).
Tratando-se de um pagamento realizado no exercício de 2014, o prazo de caducidade conta-se a partir de um 1 de janeiro de 2015 e tendo sido os Requerentes notificados da liquidação adicional em 31 de dezembro de 2018, não havia decorrido o prazo de quatro anos fixado no falado artigo 45.º, n.º 1, da LGT”.
Em conclusão, improcede a alegação do Requerente quanto à caducidade do direito à liquidação.
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Questão de fundo
Está em causa a aplicação da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, que, à data dos factos, estabelecia que: “são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”
A Acórdão arbitral proferido no processo n.º 499/2023-T apresenta de forma sistemática as diversas posições doutrinárias da figura em análise, conforme se transcreve de seguida:
“A figura da cláusula geral antiabuso (“CGAA”) surgiu pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que conferiu precisamente a redação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT à data dos factos. A CGAA enquadra-se num quadro interventivo do Estado no combate à elisão fiscal, “constituindo uma válvula de escape de respiração do valor da injustiça, um instrumento adequado de combate à mera engenharia financeira ostensivamente violadora da igualdade fiscal”.
Como salienta Saldanha Sanches, que trata a matéria no âmbito do instituto do abuso de direito, a lei desconsidera, para efeitos fiscais, certos negócios celebrados pelas partes quando estas contornam a lei para evitar a tributação que seria devida por atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico (look through provision). Pelo que temos de considerar os efeitos económicos do negócio e verificar se se obteve uma equivalência de efeitos, i.e., se se seguiu um caminho diverso para obter o mesmo resultado.
O que a norma “procura evitar é a vantagem fiscal de um comportamento em que se põe em causa a totalidade do ordenamento jurídico-tributário, como sistema de partilha de encargos tributários, exigindo por isso que o aplicador da lei considere os princípios estruturantes do sistema de onde deve ser extraída uma intenção inequívoca de tributação daquela particular situação ainda que tal intenção não encontre uma expressão correspondente na formulação da lei.”
Ainda segundo Saldanha Sanches, em termos que aqui se acompanham, sobre as manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: “[n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou atos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objetivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objetivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objetivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objetivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”.
Explica este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do artigo 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, atos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”.
De acordo com Sérgio Vasques, a CGAA consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de ato ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objetivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objetivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns”.
Gonçalo Lopes Courinha faz uma subdivisão mais pormenorizada e distingue cinco elementos:
- O elemento meio, que tem a ver com a forma utilizada, ou seja, com a prática de certos atos ou negócios dirigidos à obtenção da vantagem fiscal;
- O elemento resultado, que visa a vantagem fiscal como fim da atividade do contribuinte (redução, eliminação ou diferimento temporal de tributos);
- O elemento intelectual, que se reporta à intenção fiscal do contribuinte, que pratica os atos ou negócios essencial ou principalmente dirigidos à vantagem fiscal;
- O elemento normativo, que representa a anti-juridicidade do resultado atingido, a desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito da lei; e, por fim,
- O elemento sancionatório, que corresponde à estatuição da CGAA dirigida à neutralização dos efeitos fiscais da conduta abusiva”.
É com base na interpretação que resulta das posições doutrinárias acima, muito bem sistematizadas pelo Acórdão citado, que devemos analisar o presente caso, tendo em conta a posição do Requerente na sucessão dos factos fixados.
Estão em causa atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico?
A primeira parte da norma determina que “são ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico (…)”.
Como é unânime na doutrina, e aliás resulta nítido da letra da lei, a operação só pode ser questionada como base nesta primeira parte da CGAA se for praticada para evitar a tributação que seria devida por atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico.
Conforme a citação já feita de Saldanha Sanches, “temos de considerar os efeitos económicos do negócio e verificar se se obteve uma equivalência de efeitos, i.e., se se seguiu um caminho diverso para obter o mesmo resultado”.
Ora, esta premissa não se verifica no caso concreto. O Requerente decidiu vender a sociedade e, como consequência, deixou de ter qualquer relação societária com a B... . Deixou de participar nas decisões da sociedade, deixou de partilhar lucros e quinhoar nas perdas. Não ficou com qualquer participação indireta na B..., uma vez que não era sócio da H..., nem consta que tivesse ingressado como sócio em momento posterior.
E mesmo que o preço recebido possa ter uma relação direta com o valor distribuível pela B... a título de lucros, os quais seriam efetivamente sujeitos a IRS, não se pode afirmar que a venda da B... tem um efeito económico equivalente ao recebimento de lucros dessa mesma B... por parte do Requerente. Ou seja, mesmo que o encaixe financeiro seja equivalente, a venda implica a alienação das quotas na sociedade. Não tem um efeito económico equivalente à distribuição de dividendos, no sentido que deve ser dado à expressão utilizada pela primeira parte da CGAA.
Na verdade, aceitar a aplicação da CGAA à situação concreta do Requerente, seria o mesmo que aceitar a obrigação, imposta fiscalmente, de um sócio distribuir lucros antes da venda da sociedade, em vez de incorporar o valor de tais resultados transitados no preço de venda, caso a primeira opção gerasse mais imposto para o Estado do que a segunda.
Efetivamente, não se contesta que a operação tenha sindo pensada do ponto de vista fiscal, de forma a escolher o caminho menos oneroso em sede de IRS. Mas esse comportamento não é colhido pela CGAA, apenas quando o meio escolhido, para obter o mesmo fim, é artificioso.
Conforme escreve Patrícia Meneses Leirião, “a Administração Fiscal, ao tentar apurar o elemento meio, deverá precaver-se para não confundir a coincidência de eventos resultantes de atividade normal do contribuinte, ainda que da mesma surjam vantagens fiscais, e a obtenção intencional de vantagem fiscal obtida através da montagem dos tais atos ou negócios praticados” (A cláusula geral antiabuso e o seu procedimento de aplicação, Vida Económica)
Acresce que a existência de resultados transitados positivos não implica, por si só, a possibilidade de distribuir dividendos aos sócios. É preciso que haja disponibilidades de caixa para o fazer e que, havendo, haja um interesse societário em prescindir dessa “almofada” financeira, o que, no caso concreto, até resultou provado se tratar de uma opção justificável, considerando as contingências da atividade futura da B... .
Nessa medida, não se percebe a alegação da AT na sua Resposta, em que defende que o Requerente deveria ser tributado pelos lucros “a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da B...” (no original a frase está no plural, porque a AT usa este mesmo argumento para todos os sócios envolvidos).
Salvo o devido respeito, é ir longe demais considerar que “não continuar como sócio” é um ato abusivo, considerando que o Requerente, como se frisou, efetivamente deixou de ter relação, direta ou indireta, com a sociedade.
A AT defende ainda a sua posição dizendo que a não intervenção da H... implicaria que os valores de lucros transitados e reservas distribuídos pela B... seriam recebidos por todos os anteriores sócios, diretamente, enquanto tal. Porém, esta alegação, em termos de CGAA, só seria atendível, ou pelo menos merecedora de análise mais detalhada, caso o Requerente tivesse continuado sócio da B... de forma indireta, nomeadamente se fosse sócio da H... ou viesse a sê-lo.
Ou seja, a AT sustenta que há uma interposição de uma sociedade entre o Requerente e a B... apenas para alcançar um efeito fiscal favorável, o que não é certamente o caso, pelo menos para o Requerente.
A AT alega ainda que, ao terem as quotas sido cedidas a uma sociedade, com o pagamento a ser feito após decorridos treze meses, aquando da distribuição de lucros e reservas, em 2018, pela B..., o novo sócio (a H...) beneficiou da eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos.
Mas ainda que se configure que o diferimento do pagamento do preço foi acordado entre as partes de forma a permitir que a sociedade não fosse tributada na data do recebimento dos dividendos, por efeito da eliminação da dupla tributação económica, esse efeito fiscal não beneficia, nem direta, nem indiretamente o Requerente.
Foram obtidas vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a operação?
Conforme a segunda parte da CGAA, os atos são igualmente ineficazes quando resultem na “obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”
Assim, a CGAA pode ainda ser aplicada no caso de obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização dos meios em análise. Conforme já se assinalou, esta situação, caso fosse colhida pela CGAA, teria como consequência a mera anulação dos efeitos da operação praticada. Trata-se de uma situação que claramente não tem cabimento no caso concreto, uma vez que “anulando-se” de um ponto de vista fiscal a operação de venda, a consequência não seria o recebimento, por parte do Requerente, de quaisquer dividendos tributáveis na sua esfera. Conforme assinala Saldanha Sanches, em citação já feita anteriormente, esta situação tem especial cabimento para os casos em que o agente, através de uma operação artificial, consegue obter uma dedução fiscal, o que não é o caso.
Em conclusão, não se consideram verificados os requisitos necessários para aplicação da CGAA, pelo que deve ser anulada a liquidação efetuada pela AT, bem como os correspondentes juros compensatórios.
Torna-se, pois, desnecessário analisar a alegação do Requerente de que, ainda que a liquidação fosse de subsistir, não seriam devidos juros compensatórios, por ausência de comportamento culposo.
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Juros Indemnizatórios
O Requerente peticiona, em consequência da anulação do ato de liquidação de IRS e juros compensatórios, o reembolso da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.
Conforme decorre do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, o direito a juros indemnizatórios depende da verificação de “erro imputável aos serviços” de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Neste caso, verificou-se uma errada interpretação e aplicação pela Requerida do disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, pelo que, a acrescer à restituição dos montantes pagos em excesso, deve a AT pagar igualmente juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
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Decisão
De harmonia com o exposto, decide o Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e em consequência:
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Anular a liquidação de IRS n.º 2022... .
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Condenar a AT a reembolsar ao Requerente as quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios calculados desde a data de pagamento até à data de emissão da respetiva nota de crédito.
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Condenar a AT ao pagamento das custas do processo.
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Valor do Processo
Nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, quando seja impugnada a liquidação o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende. Fixa-se como valor do processo o indicado pelo Requerente de € 55.666,23.
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Custas
Custas no montante de € 2.142,00, a cargo da Requerida, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 22 de abril de 2024
O Árbitro,
Jorge Belchior de Campos Laires