Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 555/2023-T
Data da decisão: 2024-03-14  IRS  
Valor do pedido: € 35.297,68
Tema: IRS – Domicílio Fiscal, Residência Fiscal, intenção de ocupar a habitação como residência habitual.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Sumário

  1. – Os conceitos de domicílio fiscal (artigo 19.º da LGT) e de residência fiscal para efeitos de IRS não são sinónimos.
  2. – A alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS exige a verificação cumulativa e três condições para que uma pessoa seja considerada residente fiscal em território português: a permanência em Portugal por um período inferior a 183 dias, a disposição de uma habitação própria, e a verificação de condições que faça supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.
  3. – A intenção de vir a ocupar a habitação como residência habitual não é uma intenção para o futuro, mas antes uma intenção atual, para o presente.

 

 

  1. Relatório

 

A..., a seguir designado por “Requerente, contribuinte fiscal n.º ..., residente no ..., Luanda, Angola veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, do n.º 1 do artigo 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem (RJAT) e da alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral com nomeação de Árbitro pelo Conselho Deontológico, pedindo a anulação da liquidação de IRS n.º ... reportada ao ano de 2017 e respetivos juros compensatórios, no montante total de € 35.297,68, a condenação da AT no pagamento de juros  indemnizatórios, bem como a anulação do indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º ... .

É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”),

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, a qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo.

Em 13 de setembro de 2023, as partes foram notificadas da designação do árbitro não tendo arguido qualquer impedimento.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 3 de outubro de 2022.

Notificada para o efeito por despacho de 4 de outubro de 2023, a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada de Requerida ou AT, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação, solicitou a improcedência do pedido arbitral e requereu a dispensa da produção de prova testemunhal, uma vez que a matéria sob escrutínio nos presentes autos é exclusivamente de direito.

Na sequência do despacho de 26 de janeiro de 2024, a reunião foi realizada no dia 15 de fevereiro de 2024, na qual se procedeu, via Cisco Webex Meetings, à inquirição da testemunha arrolada no Pedido de Pronuncia Arbitral (PPA).

Na mesma reunião, Requerente e Requerida foram notificadas para apresentarem alegações escritas simultâneas no prazo de 15 dias.

Requerente e Requerida apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram e desenvolveram a sua posição quanto à matéria de facto e de direito.

 

  1. Descrição sumária dos factos

 

 

 

  1. Posição do Requerente

 

 

O Requerente é cidadão de nacionalidade portuguesa, trabalha em Angola desde o ano de 2003 ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, celebrado com uma empresa sedeada em França, especializada na prestação de serviços de engenharia e manutenção das atividades de exploração de produção petróleo e gás, nomeadamente das plataformas off shore, no qual Angola é indicada como o local de trabalho do Requerente.

Refere o Requerente que durante anos esteve registado no cadastro das finanças como residente no estrangeiro e, por lapso, aquando da renovação do Bilhete de Identidade para o cartão de cidadão indicou Portugal como residência desconhecendo que a morada indicada na Conservatória seria comunicada à AT e considerada para efeitos fiscais.

Defende assistir aos Contribuintes o direito ao erro declarativo podendo fazer prova dessa incorreção ou desatualização junto da AT.

Em agosto de 2021 o Requerente, notificado da existência de divergências reportadas ao IRS de 2017, bem como para apresentar a declaração de rendimentos modelo 3, informou a Administração Tributária que não se encontrava a residir em Portugal, razão pela qual entendeu que não tinha de declarar os rendimentos em Portugal.

No entanto, a AT emitiu uma declaração oficiosa de IRS, que deu origem à liquidação sob escrutínio, com base em factos errados, nomeadamente o estado civil, país da fonte dos rendimentos e país de residência.

Discordando da liquidação o Requerente apresentou Reclamação Graciosa e, do despacho de deferimento parcial desta, apresentou recurso hierárquico igualmente indeferido pela AT.

No ano de 2017, ano a que se reporta a liquidação impugnada, o Requerente não era residente fiscal no território português, mas sim em Angola, país onde permaneceu mais de 183 dias e onde pagou o imposto sobre o rendimento do trabalho (IRT) não tendo, por isso, apresentado a declaração de rendimentos em Portugal.

Adiantou o Requerente que vinha a Portugal nos períodos de férias, onde é proprietário de um imóvel, para estar com a família (mulher e filha), sendo esta propriedade do imóvel a única condição, do n.º 1 da alínea b) do artigo 16.º do CIRS que preenche pois não trabalha em Portugal nem aqui permanece por mais de 183 dias, não se verificando as condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.

Como o critério da alínea b) exige a verificação de três condições cumulativas para que uma pessoa seja qualificada como residente fiscal em território português, não basta demonstrar que o Requerente é proprietário de uma habitação em Portugal, é necessário que exista uma intenção de ocupar o imóvel como residência habitual, e face à ausência de comprovação da intenção de ocupar o imóvel como residência habitual está afastada a aplicação deste preceito e consequentemente excluída a residência fiscal do Requerente em Portugal.

Alegou ainda o Requerente que em 2017 inexistia CDT entre Portugal e Angola, resultando da prova que o mesmo não só residia em Angola como é na sociedade Angolana que se encontrava integrado social, laboral e economicamente.

 Termina pugnando pela procedência do pedido de pronuncia arbitral e, por via desta, a anulação da liquidação de IRS relativa ao exercício de 2017 e da declaração oficiosa de IRS, ambas por vício de violação de lei, bem como a anulação do(s) despacho(s) de indeferimento da Reclamação Graciosa e do Recurso Hierárquico.

  

  1. Posição da Requerida

 

 

A AT, defendendo-se por impugnação, circunscreve o thema decidendum ao apuramento da residência fiscal do Requerente, que o Requerente afirma ser em Angola e a AT entendeu dever ser considerada em Portugal.

Começa por esclarecer a AT que, no contexto da troca automática de informações fiscais internacionais prevista na Diretiva de Cooperação Administrativa, do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, a autoridade fiscal de França comunicou à AT os rendimentos do Trabalho dependente aí auferidos pelo Requerente, no ano de 2017, pagos pela entidade empregadora, não tendo sido comunicado qualquer valor pago a título de imposto.

Verificou posteriormente que, nos termos do contrato de trabalho, o Requerente estava ligado a Angola como chefe de equipa do designado trabalho offshore.

Alega que o conceito de residência deve ser aferido nos termos do ordenamento jurídico de cada Estado, ou seja, no caso de Portugal a residência fiscal terá de ser aferida nos termos do artigo 16.º do CIRS.

Embora no ano em questão o Requerente figure como residente fiscal em Portugal, não permaneceu em Portugal mais de 183 dias, recaindo assim no âmbito de aplicação da alínea b) do nº 1 do artigo 16.º do CIRS, que estabelece um critério subjetivo com base numa intenção de residência, aplicável caso não seja possível a qualificação de residente pelo critério tempo de permanência.

Esta alínea permite considerar residente em Portugal qualquer pessoa singular que, num qualquer dia do período de tributação, disponha de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual.

Pese embora a lei não esclareça que condições são essas, é entendido que devem ser condições objetivas que permitam retirar inequivocamente a conclusão de que se trata de uma habitação própria e permanente ou uma habitação permanente, i.é., não poderá ser uma habitação de férias ou uma habitação secundária.

Ora, no ano de 2017 o Requerente era proprietário de uma fração autónoma cujo contrato de fornecimento de água estava em seu nome, fração que constitua a o seu núcleo familiar, lugar onde mantinha a sua habitação e onde sempre viveu com a família. E, embora esta habitação tenha sido alienada em 2018, o Requerente adquiriu um novo imóvel destinado a habitação própria e permanente, o que demonstra a intenção de residência em território nacional.

Entende a AT que, apesar do domicílio fiscal do Requerente se situar em Angola, o mesmo não acontecia com a sua residência fiscal, situada em Portugal, país onde mantinha a sua habitação e onde se encontravam estabelecidos os seus laços afetivos e familiares.

            Sustenta que a alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS estabelece um critério subjetivo que envolve uma intenção de residência que se aplica a este caso concreto.

Acrescenta que a morada constante nos recibos de vencimento, abonos e descontos, no ano de 2017, é a morada portuguesa do trabalhador.

Refere ainda que, não obstante os documentos apresentados pelo Requerente para prova do domicílio fiscal, nomeadamente o Certificado de Residência Fiscal (CRF) emitido pela Autoridade Fiscal de Angola (AGT) que se reporta ao período de 09/08/2016 a 30/12/2022, como a CDT celebrada entre Portugal e Angola entrou em vigor somente em 2019, as disposições da mesma não são aplicáveis à situação do Requerente, e ainda assim este documento apenas comprova que a A... era residente fiscal em Angola para efeitos de acesso ao direito de tributar os rendimentos da categoria “A” obtidos neste país.

No âmbito do procedimento administrativo, face à prova apresentada em sede de reclamação graciosa, a AT considerou que face ao rendimento global declarado pela entidade empregadora, no montante de € 81.881,00, teria sido sujeito a imposto angolano (IRT) o valor de € 11.454,60, por retenção na fonte em função do critério económico (Estado do exercício do emprego por mais de 183 dias, ainda que interpolados), e pago por retenção na fonte a quantia de € 1.173,15.

   Em consequência, a AT deferiu parcialmente a reclamação graciosa tendo considerado a quantia de € 1.172,34, a título de imposto suportado em Angola para efeitos de eliminação da dupla tributação, emitiu uma declaração oficiosa de IRS e a liquidação de IRS n.º ... .

Termina pugnando pela improcedência do pedido.

 

 

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer dos pedidos formulados pela Requerente em conformidade com o preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, na alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 1 do artigo 11.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas (artigo 4.º e artigo 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03).

O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

  1. Objeto dos autos

           

  1. Matéria de Facto
    1. Factos Provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Em abril de 2003 o Requerente celebrou um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a B..., sedeada em França, cujo local de trabalho é Angola.”( Cfr. doc. n.º 11 e PA junto pela AT)
  2. No ano de 2017 o Requerente trabalhava em Angola, na manutenção da plataforma, país onde reside e trabalha desde o ano de 2003. (cfr. Documentos n.º 11, PA e prova testemunhal).
  3. No ano de 2017 o Requerente pagou Imposto sobre o Rendimento do Trabalho (IRT), mediante a retenção na fonte pelo empregador. (Cfr. Docs. n.ºs 13, 14 e PA)
  4. O certificado de residência emitido pelo Consulado Português de Angola, em 2019, confirma que o Requerente reside em Angola desde 1997, como emigrante produtivo. (cfr. Doc. n.º 18)
  5. No ano de 2017 o Requerente não permaneceu em território português mais de 183 dias. (Cfr. PA e Resposta)
  6. Em 2017 o Requerente era proprietário da fração “E” do prédio urbano inscrito na matriz predial de ..., sob o artigo ..., sito na ..., Santa Maria da Feira, Portugal, onde tinha a sua morada em 2017. (cfr. PA)
  7. O contrato de fornecimento de água deste imóvel encontrava-se em nome do Requerente. (cfr. PA)
  8. No imóvel indicado residiam o cônjuge e a filha de ambos. (cfr. PA)
  9. O Requerente vinha a Portugal três vezes por ano, em períodos de 15 dias cada. (prova testemunhal)
  10. Por lapso declarativo, no ano de 2015, quando terminou a validade do seu bilhete de identidade, para obtenção do cartão de cidadão indicou Portugal como país de residência.
  11. Em 2017 o Requerente não apresentou a declaração de IRS Modelo 3.
  12. O Requerente alterou a sua residência fiscal para Angola em 22.06.2018, alterando o seu estatuto para não residente. (cfr. PA)
  13. Através da notificação da divergência com referência..., emitida pela AT, datada de 23/08/2021, o Requerente foi notificado do seguinte: "Face ao disposto no artigo 57.º do CIRS, está VI Exa. obrigado à apresentação da declaração de rendimento modelo 3. Não constando da base de dados a sua entrega, deve regularizar a situação entregando a respetiva declaração no prazo de 30 dias, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º do código do IRS, contados a partir do 3.º dia útil posterior ao do registo, ou do 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil, como estabelece o n.0 1 do artigo 39.º do CPPT.” (cfr. Doc. n.º 1 e PA)
  14. Na sequência de tal notificação, o Requerente justificou a falta de entrega da declaração de rendimentos modelo 3, da seguinte forma: "O envio da declaração de IRS não foi efectuado, uma vez que no ano em questão não me encontrava a residir em Portugal. Junto envio em anexo declaração da minha entidade empregadora a comprovar que residi em Angola mais de 183 dias no ano de 2017. ", juntando para o efeito a declaração entidade patronal. (cfr. Doc. n.º 2 e PA)
  15. A AT apresentou oficiosamente a declaração de IRS de 2017 (...-2017-...-...), e no anexo J fez constar como país da fonte França, com o rendimento de € 81.881,00. (cfr. PA)
  16. A declaração oficiosa deu origem à liquidação n.º ... que considerou o rendimento global de € 81.881,00. (Cfr. Doc. n.º 4 e PA)
  17. Não concordando com esta liquidação do IRS o Requerente apresentou reclamação graciosa n.º ..., parcialmente deferida por despacho de 14/09/2022 da Chefe de Divisão de Justiça Tributária, da Direção de Finanças de Aveiro.
  18. Face à prova apresentada na Reclamação Graciosa, a AT considerou que embora valor bruto total do rendimento do trabalho dependente pago ao Requerente, no ano de 2017, tenha sido no montante de € 81.881,00, terão sido sujeitos a imposto angolano, em função do critério económico (Estado do exercício do emprego por mais de cento e oitenta e três dias, ainda que interpolados) AOA 2.123.628,27 (correspondentes a € 11.454,60), com correspetivo imposto pago, por retenção na fonte no montante de AOA 217.502,16 (equivalente a € 1.173,15), a tomar em conta, para efeitos de eliminação da dupla tributação jurídica, ao abrigo do artigo 81.º do CIRS, dado que têm a fonte em Angola. (cfr. PA e Resposta)
  19. Em consequência a reclamação graciosa foi parcialmente deferida, e os serviços efetuaram uma declaração oficiosa (...-2017-... -...), na qual foram considerados os rendimentos comunicados pela AFF (€ 81.881,00) e o montante de € 1.172,34 a título de imposto suportado sobre aqueles rendimentos e que deu origem à liquidação n.º ..., na qual foi efetuada a dedução por dupla tributação internacional. (cfr. PA e Resposta)
  20. Não se conformando com a decisão de deferimento parcial, em 20/10/2022 o Requerente apresentou recurso hierárquico (n.º …), o qual foi indeferido por despacho de 24/03/2024 proferido pelo Diretor da Direção de Serviços das Relações Internacionais, que manteve a liquidação de IRS do ano de 2017, efetuada ao Contribuinte na qualidade de residente fiscal de Portugal em conformidade com o CDT Portugal França e de acordo com o disposto no Código do IRS. (Cfr. PA)
  21. Discordando desta decisão o Requerente apresentou o pedido arbitral a 15 de maio de 2023.
  22. O imposto e os respetivos juros compensatórios encontram-se pagos. (cfr. Doc. 9)

 

  1. Factos Não Provados

 

 

Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.

 

 

  1. Motivação da Matéria de facto

 

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal e a sua convicção relativamente à matéria de facto dada como provada ou não provada, resulta das peças processuais apresentadas pelas partes, do reconhecimento de factos pelas mesmas, e resultou da análise crítica dos documentos juntos com o pedido arbitral, do processo administrativo apenso, os quais não foram impugnados pelas partes, bem como da prova testemunhal produzida em sede de audiência realizada no dia 15.02.2024, tendo o depoimento sido gravado, como consta na correspondente ata.

Em sede de reunião, foi ouvida a testemunha C..., esposa do Requerente, que de forma isenta, coerente e espontânea, prestou o seu depoimento com segurança e conhecimento dos factos. Disse estar casada com o Requerente desde 1991, com quem tem uma filha. Explicou que o Requerente trabalha em Angola desde 2003, data em que celebrou contrato de trabalho “efetivo” com a B..., onde vive maior parte do ano num apartamento da entidade empregadora, vinha a Portugal três vezes por ano, cerca de duas semanas e meia, para gozo de férias. Sempre esteve registado nas finanças como emigrante, e quando teve de fazer o cartão de cidadão indicou a morada de Portugal, desconhecendo que alterando a morada no cartão de cidadão também alterava o estatuto de não residente nas finanças.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 317.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, a prova documental junta aos autos, consideram-se provados com relevo para esta decisão arbitral, os factos acima elencados.

 

  1. Do Mérito

 

Objeto dos Autos

 

 

            O thema decidendum consiste em saber se o Requerente deve, ou não, ser considerado residente fiscal em Portugal no ano de 2017 ou seja, se preenche ou não, algum critério legal suscetível de determinar a sua residência fiscal em Portugal no período em causa, face ao previsto no artigo 16.º, n.º 1 alínea b) do CIRS, concluindo (ou não) pela manutenção da liquidação de IRS em causa.

Atenta as posições assumidas pelas partes nos argumentos apresentados, constituem questões centrais a decidir:

  1. Saber se o Requerente tinha residência fiscal em Portugal no ano de 2017;
  2. Declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2021..., e juro compensatório, tudo no montante de € 35.297,68;
  3. Do direito a juros indemnizatórios.

 

Não se equaciona o recurso à CDT celebrada entre Portugal em Angola, uma vez que entrou em vigor em 2019 e, em conformidade com o disposto no seu artigo 29.º, apenas produz efeitos a partir do ano de tributação de 2020.

 

  1. Do Direito

 

 

C.2 Enquadramento jurídico

 

O conceito de residência assume a natureza de elemento de conexão por excelência, expressando, por isso, a “mais intensa ligação económica entre uma pessoa e o Estado

É a residência que baliza o âmbito da sujeição a IRS, consagrada no artigo 16º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), desde a adoção do referido Código pelo Decreto-lei n.º 442-A/88 de 30 de Novembro.

A incidência subjetiva do IRS, conforme o disposto no artigo 13º do CIRS, abrange quer as pessoas singulares residentes em território português quer aquelas que não residindo em território português obtenham aqui rendimentos, optando o legislador, assim, por uma conjugação do critério da residência com o critério da fonte para a tributação dos rendimentos das pessoas singulares. Portugal faz do critério residência o elemento de conexão entre o contribuinte e o Estado e é através do elemento residência que expressa a ligação económica apta a fundamentar a tributação numa base mundial.

Nesse seguimento determina o artigo 15.º do CIRS que sendo as pessoas residente em território português o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluídos os obtidos fora desse território. O nosso ordenamento prevê o princípio da universalidade ou do rendimento mundial para os residentes em território português, sem prejuízo dos mecanismos de eliminação da dupla tributação jurídica, decorrentes da legislação interna ou da aplicação das CDT. 

Por seu turno o artigo 19.º da Lei Geral Tributária (LGT), na redação à data dos factos, consagrava a presunção, ilidível, de que o domicílio fiscal é o local da residência habitual que, com a entrada em vigor da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro passou a ser a morada registada no cartão de cidadão[1].

Ora, residência e domicílio fiscal não são conceitos unívocos. Exprimindo a residência uma realidade da vida social – o local onde determinada pessoa tem a sua vida organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida[2] e o domicílio fiscal, um domicílio especial, pelo qual se expõe a um lugar determinado o exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias.[3]

A este propósito, do conceito de domicílio vs residência, pode ler-se o seguinte no acórdão do TCAS[4]:“ (…) os actos ou factos que demonstram a ligação do Impugnante ao imóvel não se esgotam na ligação à circunscrição fiscal onde se situa o prédio ou na correspondência da habitação com o domicílio fiscal registado nos serviços de finanças. É certo que estes elementos são indícios de que o impugnante pretende fixar ou fixou a sua morada real e efectiva naquele imóvel. Todavia, a morada em certo lugar, a habitatio, deve demonstrar-se através de “factos justificativos” de que o impugnante fixou no imóvel o centro da sua vida pessoal(…)”

Nas doutas palavras de Alberto Xavier[5]: “A noção de residência ou domicílio para efeitos de delimitação da esfera de incidência das normas tributárias de cada Estado é também distinta da noção de domicílio tributário de direito interno e que é um domicilio especial pelo qual a lei refere a um lugar bem determinado, o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres estabelecidos pelas normas tributárias, localizando o sujeito passivo com vista a fixar a circunscrição territorial em cuja área se situem os serviços de administração competentes para a prática de actos relativos à situação fiscal do contribuinte”.

 

Assim, de um lado, temos o conceito de domicílio fiscal previsto no artigo 19.º da LGT, cuja relevância mais evidente se situa ao nível dos contactos entre o contribuinte e a AT (aliás, cabe atualmente no conceito de domicílio fiscal o domicílio fiscal eletrónico), recaindo sobre o Contribuinte o dever de manter atualizado junto da AT o seu domicílio fiscal (artigo 43.º do CPPT), não sendo oponível à AT a falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação expedidos para o domicilio registado junto da AT.

Refira-se, no entanto, que o dever de comunicação da alteração do domicílio, previsto quer no n.º 1 do artigo 43.º do CPPT quer no então artigo 19.º, n.º 2, da LGT (atual n.º 3), não se trata de uma formalidade ad substanciam, o que significa que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação.

Já o conceito de residência fiscal tem subjacente outros pressupostos, como decorre do art.º 16.º do CIRS, a saber, designadamente:

a) Permanência em território português mais de 183 dias seguidos ou interpolados (nas palavras de Alberto Xavier, o corpus[6]; ou

b) Permanência por menos tempo, se aí se dispuser, em 31 de dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual, nas palavras de Alberto Xavier, o animus[7].

            Ora, estando assumido por ambas as Partes que no ano de 2017 o Requerente não permaneceu em território português mais de 183 dias (não se verificando o elemento corpus) impõe-se aferir se estão reunidas as condições cumulativas da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS que à data dos factos dispunha o seguinte:

 

Artigo 16.º

Residência

 

1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) (…)

 

Como referido, à data dos factos, o Requerente tinha uma habitação em Portugal, onde residiam mulher e filha, não existia convenção para eliminar a dupla tributação internacional entre Portugal e Angola, e o Requerente não permaneceu em Portugal mais de 183 dias, impondo-se, por isso, responder à questão de saber se o Requerente pode considerar-se residente em Portugal à luz dos critérios contidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS.

A Alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º exige a verificação de três condições cumulativas para que uma pessoa seja considerada residente fiscal em território português, a permanência em Portugal por um período inferior a 183 dias, a disposição de uma habitação e a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.

Verificando-se duas das três condições enunciadas nesta norma, a saber: a permanência em Portugal (inferior a 183 dias) e a propriedade de um imóvel, é necessário confirmar se existia uma intenção de ocupar uma habitação em Portugal como residência habitual, no exercício em causa.

A circunstância de o Requerente vir a Portugal regularmente, no gozo das suas férias, não permite, por si só, extrair da sua condição de emigrante a intenção de ocupar uma residência como habitual, naquele ano em concreto e não apenas para o futuro.

            Nas palavras de Manuel Faustino[8], o critério legal previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 16º do CIRS “exige a reunião do “corpus” e do “animus”. (...) um “corpus”, constituído por um local de residência, associado a um animus”, que consiste na “intenção” de a manter e ocupar como residência habitual (...)”, pelo que “(…) ao integrar-se na previsão a manutenção e ocupação dessa casa como residência habitual desde logo se excluem da condição de residentes os que dispõem em Portugal de uma simples habitação secundária (desde que nela não permaneçam mais de 183 dias por ano) ou de férias, bem como aqueles que, nomeadamente os emigrantes, dispondo aqui de uma habitação que poderão vir a ocupar como sua residência habitual quando, em definitivo, regressarem a Portugal, apenas a ocupam por ocasião das suas férias ou em deslocações pontuais e fortuitas. Não parece, pois, lícito considerar que um emigrante é residente em território português pelo simples facto de ele, em 31 de Dezembro de cada ano, dispor em Portugal de uma casa de habitação, retirando daí, e da sua condição de emigrante — a intenção “de a vir a ocupar” como sua residência habitual. A intenção que a lei exige não é uma intenção para o futuro, é, desde logo, uma intenção imediatista, para o presente.”

           

Sobre a matéria em dissídio nos presentes autos, realçamos a decisão do CAAD proferida no processo n.º 457/2021-T, de cujo teor salientamos o seguinte excerto[9]:

O conceito de residência habitual deve ser interpretado no contexto em que se insere, ou seja, o art.º 16.º do Código do IRS deve ser lido como um todo. Tal como referido, tanto a al. a) como a al. b) do n.º 1 do art.º 16.º do Código do IRS impõem uma conexão efetiva com o território português.

Se a qualidade de residente, nos termos da al. a) resulta, automaticamente, de um critério fáctico, meramente numérico, a presença em Portugal, a al. b) exige, pela falta de maior presença no território, um elemento adicional de intenção. O referido artigo impõe, assim, a vontade de estar regularmente presente no território nacional, utilizando, para o efeito, uma determinada habitação.”

            Tendo ficado demonstrado, testemunhal e documentalmente, ter o Requerente residência fiscal em Angola no ano de 2017 aí tendo declarado e pago os seus impostos, a que acresce o facto de ter alterado a sua residência fiscal no ano de 2018, não se extraindo dos autos que era sua intenção regressar a Portugal nesse ano e ocupar o imóvel de que era proprietário como sua residência habitual no ano de 2017, ou mesmo no ano seguinte, considerando a alteração do domicílio fiscal pelo Requerente, não estão preenchidas as condições da alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS.

Atento tudo o que cima se expendeu é entendimento deste tribunal que a liquidação impugnada é ilegal por violação de lei, procedendo o pedido do Requerente de declaração de ilegalidade da liquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares referente ao ano de 2017.

 

  1. Dos Juros indemnizatórios

 

 

Pede o Requerente a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo da legislação em vigor.

Nos termos desta alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, independentemente de a ilegalidade ser ou não imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, há direito da Requerente a juros, em caso de procedência do pedido que determine a ilegalidade da liquidação.

Dispõe ainda a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, que a AT fica vinculada a, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que impõe a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, no caso de procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial.

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, lugar ao reembolso dos montantes pagos, seja a título de imposto pago, seja dos correspondentes juros compensatórios e coimas, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 24.º do RJAT que remete para a Lei Geral Tributária e para o Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Na sequência da declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS há assim lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º da LGT e do 61.º n.º 5 do CPPT, estando a AT está obrigada ao seu pagamento desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, calculado sobre a quantia indevidamente paga, à taxa de juros legais.

 

  1. Decisão

 

 

Nestes termos, em conformidade com o acima exposto, decide-se, julgar procedente o pedido de pronuncia arbitral e, em consequência:

  1. Declarar a ilegalidade e, consequentemente, anular e a liquidação de IRS n.º 2021...e juros compensatórios no valor de € 35.297,68;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre as quantias pagas pela Requerente a título de imposto na decorrência das liquidações impugnadas, nos termos legais.

 

  1. Valor do processo

 

 

Fixa-se em € 35.297,68 (trinta e cinco mil duzentos e noventa e sete e sessenta e oito cêntimos) nos termos do disposto nos artigos 315.º do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT bem assim como do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

  1. Custas

 

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de março de 2024

 

A Árbitra Singular

 

Cristina Coisinha

 



[1] Artigo 13.º da Lei n.º 7/2007, de 5 de fevereiro

[2] CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol I, 2ª Ed, Lex, Lisboa, pag. 318; do mesmo autor, “Domícilio”, Polis, 2, Verbo, 1984

[3] António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária anotada, 2000, Rei dos Livros, pág.119; Diogo Leite de Campos e outros, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Vislis, 2003, pág.124

[4] Acórdão 06685/13, proferido no Tribunal Central Administrativo Sul, 08-10-2015 consultável em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/76f001bcd455692a80257ede005ec07c?OpenDocument

[5] Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 281

[6] ob. cit., p. 283

[7] ob. cit., p. 283

[8]  “Os Residentes no Imposto sobre o Rendimento Pessoal (IRS) Português” (CTF, nº 424, pág.124 e 125)

[9] Neste sentido também as decisões proferidas nos processos n.ºs 332/2016-T, 214/2017-T e 461/2021-T