DECISÃO ARBITRAL
Decide, nestes autos, a Juíza Árbitro Professora Doutora Clotilde Celorico Palma:
A - Relatório
A.., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, com o NIF … (Requerente), intentou contra a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT ou Requerida), um pedido de pronúncia arbitral solicitando a anulação da liquidação de IVA n.° ..., de 26 de Novembro de 2013, referente ao período de Fevereiro de 2010, no valor de € 2.226,51 e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.°..., no valor de €308,17, bem como a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.
Alega, em resumo, que foi objecto de uma acção de inspecção que determinou uma proposta de correcção relativamente a IVA deduzido indevidamente, IVA não liquidado e IVA liquidado, a uma taxa menor que a devida, que foi integralmente mantida no relatório final de inspecção, na sequência do qual foi notificada da liquidação n.º ..., no valor de € 2.226,51, relativa a IVA de Fevereiro de 2010, a qual incorporou, parcialmente, as correcções atrás referidas e cujo prazo de pagamento terminou a 31 de Janeiro de 2014, tendo procedido ao pagamento do referido IVA em 5 de Dezembro de 2013, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro, com dispensa de juros compensatórios.
Acrescenta que este procedimento está em consonância com o disposto na alínea a) do n.º 7 do artigo 6.º e na alínea r) do n.º 1 do artigo 14.º, ambos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), dado que o atraso na liquidação e dedução do imposto é permitido nos termos do disposto no n.º 14.º do artigo 78.º, do mesmo diploma, sem prejuízo da contra-ordenação aplicável, pelo que não se justificava a correcção e o acto tributário sindicado, tanto mais que não existiu qualquer prejuízo para o Estado.
Sustenta que a referida liquidação é ilegal, por erro nos pressupostos de facto e de direito, dado que ao IVA deduzido por despesas com estadias em hotéis e viagem de avião que suportou no período em causa correspondeu uma dedução apoiada na autoliquidação do imposto em causa, que a própria inspecção reconheceu, não existindo assim qualquer prejuízo efectivo para a receita fiscal na medida em que a declaração de substituição anulou o efeito da autoliquidação e dedução do imposto, declaração essa que o artigo 59.º, n.º 3, alínea b), § II, e n.º 5, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), permite no prazo da reclamação.
Termina pedindo que seja declarada a ilegalidade da liquidação sindicada, por violação do disposto nos artigos 6.º, 14.º e 78.º do CIVA e 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), com direito ao reembolso da quantia de € 2.226,51, acrescida de juros indemnizatórios ao abrigo do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Notificado do pedido o Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) veio comunicar, nos termos do artigo 13.º do (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária) RJAT, que procedeu “à revogação integral dos actos de liquidação de IVA e respectivos juros compensatórios”, informando que essa revogação seria dada a conhecer “aos serviços competentes para a sua execução, a fim de que os mesmos procedam às diligências necessárias à imediata e plena reconstituição da legalidade” e solicitando que fosse dado conhecimento à Requerente para esta se pronunciar sobre a revogação e interesse na manutenção do pedido de constituição do Tribunal Arbitral.
Pronunciando-se, a Requerente solicitou que a Requerida AT viesse aos autos pronunciar-se sobre o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, uma vez que peticionou não só a revogação da liquidação de IVA e o reembolso das quantias pagas mas também o pagamento dos juros indemnizatórios, “só assim ficando acauteladas as pretensões formuladas pela requerente nos presentes autos”.
Posteriormente (em 15 de Julho de 2014), por despacho do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, foi comunicada a constituição do Tribunal Arbitral singular e a designação do respectivo árbitro, a que se seguiu a notificação da AT para responder no prazo de 30 dias.
Nesse prazo a AT veio comunicar que, “na sequência da solicitação da Requerente vertida no requerimento em causa, vem, pelo presente comunicar-se que o Diretor-geral da AT se pronunciou no sentido de serem devidos juros indemnizatórios na sequência da revogação total dos atos de liquidação de IVA e respectivos juros compensatórios objecto do pedido de pronúncia arbitrai no processo em epígrafe promovida nos termos e prazos previstos no artigo 13.° do RJAT”.
Subsequentemente a AT apresentou a sua resposta suscitando a indevida constituição do Tribunal Arbitral e arguindo a excepção dilatória de inimpugnabilidade dos actos tributários de liquidação objecto do pedido arbitral, absolvendo-se em conformidade a Requerida da instância nos termos acima peticionados, com as demais consequências legais, por entretanto tais actos terem sido revogados nos termos do artigo 13.º do RJAT, com as custas do processo por referência ao pedido de juros indemnizatórios a ser imputadas à Requerente por inexistir decaimento da Requerida, por se ter pronunciado favoravelmente quanto a esse segmento do pedido.
Caso assim não se entenda, sustenta que deve ser julgada procedente a excepção dilatória de incompetência material deste Tribunal Arbitral por referência ao pedido de juros indemnizatórios, absolvendo-se em conformidade a Requerida da instância, com as demais consequências legais, na medida em que já não se está perante um pedido de reconhecimento de direito a juros indemnizatórios em conexão com um pedido de declaração de ilegalidade de algum dos atos nomeados nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 2.° do RJAT, visto que os actos de liquidação foram entretanto revogados.
Caso também assim não se entenda, invoca que então deve ser proferida decisão que declare extinta a instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide por referência ao pedido de juros indemnizatórios, com a imputação das custas processuais à Requerente.
Notificada, a Requerente veio pugnar pela extinção da instância com imputação das custas à Requerida.
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Questões a solucionar:
São as seguintes as questões a resolver:
· Se o Tribunal Arbitral é incompetente para conhecer da ilegalidade das liquidações impugnadas.
· Saber se foi indevida a constituição do Tribunal Arbitral.
· Apurar se ocorre uma inutilidade superveniente da lide.
· Aferir a quem deve ser imputada a responsabilidade pelo pagamento das custas.
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B – Saneamento do Processo
Vem suscitada pela Requerida a incompetência do Tribunal, por alegadamente não poder conhecer da questão relativa aos juros indemnizatórios.
Esta questão, como adiante melhor se explicitará, não é uma questão de competência material do Tribunal mas sim uma questão de eventual procedência, ou não, do pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
De facto, de harmonia com o RJAT [artigo 2.º, alínea a)], os tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa têm competência para apreciar essa questão, como consequência da competência para apreciar a legalidade de actos tributários de liquidação. Nesta ordem de ideias, a competência material do Tribunal Arbitral, - na acepção da doutrina de Antunes Varela[1] - resulta da possibilidade de incluir a relação jurídica na referida norma de recepção da competência. Outra questão será a eventual impossibilidade do Tribunal considerar procedente o pedido formulado pela Requerente. Mas tal impossibilidade não se confunde com a incompetência material do Tribunal, nem sequer com a (in)competência relativa.
O Tribunal é, pois, absolutamente competente.
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As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas. Não se verificam nulidades e questões prévias que atinjam todo o processo.
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C - Fundamentação
1) De facto:
a) Em 26 de Novembro de 2013, foi efectuada à Requerente, com base em correcção efectuada pelos serviços de Inspecção Tributária, a liquidação adicional n.º ..., relativa ao IVA do período de Fevereiro de 2010, no valor de €2.226,51, com data limite de pagamento de 31 de Janeiro de 2014;
b) Na mesma data foi efectuada à Requerente a liquidação n.º ..., relativa a juros compensatórios por atraso na liquidação do imposto referido em a), no período compreendido entre 12 de Abril de 2010 e 26 de Setembro de 2013, no valor de € 308,17;
c) Em 29 de Abril de 2014, a Requerente apresentou no CAAD um pedido de constituição de Tribunal Arbitral para apreciação da legalidade e anulação das liquidações referidas supra em a) e b), a devolução das quantias entretanto pagas e a condenação da Requerida AT em juros indemnizatórios;
d) Em 5 de Maio de 2014, a Requerida foi notificada do pedido após a aceitação deste;
e) Em 17 de Junho de 2014, foi apresentado pela AT, por e-mail, o despacho de designação de juristas e um requerimento comunicando que o Director-Geral da AT procedeu “à revogação integral dos actos de liquidação de IVA e respectivos juros compensatórios” e que tal revogação seria dada a conhecer “aos serviços competentes para a sua execução, a fim de que os mesmos procedam às diligências necessárias à imediata e plena reconstituição da legalidade”, solicitando que fosse dado conhecimento à Requerente para esta se pronunciar sobre a revogação e interesse na manutenção do pedido de constituição do Tribunal Arbitral;
f) Na sequência de tal requerimento, em 19 de Junho de 2014, o Presidente do CAAD notificou a Requerente para se pronunciar sobre o prosseguimento do processo;
g) Na mesma data as partes foram notificadas da designação de árbitro para Tribunal Arbitral singular;
h) Em 3 de Julho de 2014, a Requerida AT pronunciou-se no sentido de que “não devia promover-se a constituição do tribunal arbitral enquanto o Requerente não manifestasse a sua posição quanto à revogação dos atos de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral e ao eventual interesse no prosseguimento do processo”;
i) Em 9 de Julho de 2014, a Requerente solicitou que a Requerida AT fosse notificada para se pronunciar quanto ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, formulado no requerimento inicial, referindo que “só assim ficando acauteladas as pretensões formuladas pela requerente nos presentes autos”;
j) Em 14 de Julho de 2014, as partes foram notificadas da constituição do Tribunal Arbitral singular.
k) Em 17 de Julho de 2014, a Requerida foi notificada para apresentar a sua resposta;
l) Em 23 de Julho de 2014, a Requerida informou que “o Diretor-geral da AT considerou serem devidos juros indemnizatórios na sequência da revogação total dos atos de liquidação de IVA e respetivos juros compensatórios”;
m) Após várias vicissitudes processuais a Requerida AT apresentou a sua resposta, que conclui nos seguintes termos:
- deve ser julgada procedente a excepção dilatória de inimpugnabilidade dos actos tributários de liquidação objecto do pedido arbitral, absolvendo-se em conformidade a Requerida da instância nos termos acima peticionados, com as demais consequências legais.
- devem as eventuais custas do processo por referência ao pedido de juros indemnizatórios ser imputadas à Requerente por inexistir decaimento da Requerida, nos termos acima peticionados.
Ou, caso assim não se entenda,
- deve ser julgada procedente a excepção dilatória de incompetência material deste Tribunal Arbitral por referência ao pedido de juros indemnizatórios, absolvendo-se em conformidade a Requerida da instância, com as demais consequências legais.
Ou caso assim não se entenda,
- deve ser proferida decisão que declare extinta a instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide por referência ao pedido de juros indemnizatórios, com a imputação das custas processuais à Requerente, nos termos acima peticionados.
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2) De Direito
Resolvida que foi a questão da alegada incompetência material do Tribunal para o conhecimento do pedido relativo aos juros indemnizatórios, a questão a que se impõe dar resposta de seguida diz respeito à alegada ilegalidade cometida na constituição do Tribunal Arbitral, por antes de tal constituição ter sido revogado o acto tributário impugnado.
A Requerida sustenta que o Tribunal Arbitral não podia ter sido constituído, nos termos do artigo 13.° do RJAT, na medida em que os actos tributários tinham sido revogados, o que determinou a sua inimpugnabilidade por inexistir qualquer direito e interesse legalmente protegido, uma vez que não são “suscetíveis de produzir qualquer eficácia externa [cf. artigo 95.°, n.° 1 e 2 da Lei Geral Tributária, bem como o artigo 133.°, n.° 2, alínea i) do CPA]”, tendo por isso sido constituído o Tribunal Arbitral sem que existisse, “à data da revogação, qualquer processo arbitral mas apenas um pedido de constituição de tribunal arbitral”.
Acrescenta que o Tribunal Arbitral “não pode ter por objeto os atos tributários de liquidação impugnados no pedido de pronúncia arbitral, porquanto os atos anulados não são mais impugnáveis por inexistir direito e interesse legalmente protegido, uma, por motivo não imputável à AT”.
Concluiu que os actos de liquidação não podem “ser objeto de pronúncia por parte deste Tribunal”, que o pedido arbitral deixou “de ter utilidade económica, uma vez que o valor atribuído inicialmente no pedido corresponde a atos totalmente revogados” e que, por isso, o valor do processo “será, necessariamente, nulo”, que não se está “perante a inutilidade superveniente da lide, tratando-se, antes, de matéria que já não é/pode ser submetida ao tribunal arbitral por força da revogação operada”, devendo outrossim ser absolvida da instância e que as custas do processo não lhe podem ser imputadas.
No que se refere às custas referentes ao pedido de reconhecimento de juros indemnizatórios, entende que, tendo apresentado a sua resposta ao pedido formulado a este respeito pela Requerente e não lhe sendo imputável a constituição do Tribunal Arbitral, o requerimento que a esse respeito apresentou é tempestivo e referente à fase do procedimento arbitral, o pedido relativo aos juros indemnizatórios “não faz parte do objeto do presente processo arbitral”, pelo que as custas “não lhe podem ser imputadas”.
Vejamos:
Nos termos do disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, “Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º.” (Redação da Lei n.º 66-8/2012, de 31 de Dezembro).
Ou seja, inicia-se após a notificação do presidente do CAAD do acto revogatório ou acto substitutivo, o prazo de dez dias para a comunicação às partes da constituição do Tribunal Arbitral, prazo esse que, na ausência de acto revogatório ou substitutivo, se conta a partir da notificação da designação dos árbitros, se a tal designação as partes não se tiverem oposto.
Os actos substitutivos, como o próprio nome indica, são actos secundários desintegrativos que, tal como a revogação, visam produzir efeitos sobre um acto anterior mas que diferem desta por comportarem uma substituição, total ou parcial, do acto anterior[2].
Contudo, nem mesmo a substituição total impede a constituição do Tribunal Arbitral. Tal como resulta do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RJAT, mesmo que o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral seja total ou parcialmente, alterado ou substituído por outro, o procedimento arbitral pode prosseguir se, depois do dirigente máximo do serviço da Administração Tributária proceder à notificação do sujeito passivo para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, este nada disser ou declarar que mantém o seu interesse. E assim é porque, se o acto é substituído integralmente por outro, o requerente pode ter interesse na declaração de ilegalidade deste último. Se a substituição é parcial, mesmo que o requerente se conformasse com o acto substitutivo sempre subsistiria uma parte do acto substituído que (poderia) merecer a sua desaprovação.
As coisas passam-se de igual modo se em vez da substituição se operar a revogação, total ou parcial, do acto impugnado.
A revogação, que supõe uma desconformidade entre o padrão de actuação estabelecido anteriormente pelo autor do acto e o padrão que emerge das alterações de facto ou de direito supervenientes, constituindo também um acto secundário (acto sobre acto), provoca a desintegração do acto administrativo anterior, determinando o seu desaparecimento da ordem jurídica e extinguindo os seus efeitos. Quando originada pela prática de um novo acto tributário posterior, a revogação pode ser total ou parcial, consoante este último elimine na totalidade ou não o acto tributário anterior. Nestas duas situações a revogação integra-se no instituto da revisão. De facto, o artigo 54.º, n.º 1, alíneas c) e e), da LGT, estabelece uma nítida distinção entre a revisão do acto tributário e a emissão ou revogação de acto administrativos em matéria tributária. Distinção que também é feita na referência aos actos tributários stricto sensu constante do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CPPT e aos actos em matéria tributável, a que alude o artigo 9.º, n.º 2, do mesmo diploma, e bem assim aos actos administrativos em matéria tributável, a que se refere o artigo 10.º, n.º 1, alínea d), do CCPT. Daí que à revogação do acto tributário, por substituição, seja aplicável a disciplina do artigo 78.º da LGT e não o regime do artigo 79.º do mesmo diploma[3].
Claro está que nada impede que o acto tributário seja revogado por um acto administrativo em matéria tributaria, praticado pela entidade que praticou o primeiro ou pelo seu superior hirárquico, caso em que se aplica o disposto no artigo 79.º da LGT, cujo n.º 1 estabelece que, “O acto decisório pode revogar total ou parcialmente acto anterior ou reformá-lo, ratificá-lo ou convertê-lo nos prazos da sua revisão”.
O que parece seguro é que a revogação, seja resultado da substituição do acto tributário, seja da sua revogação pura e simples, constitui uma verdadeira revisão do acto tributário a favor da administração ou a favor do contribuinte e um meio de sanação dos vícios da liquidação. Por isso terá sempre de se fundar na ilegalidade ou invalidade do acto revogado, já que a revogação anulatória, fundada na inconveniência baseada no interesse público na eliminação de acto válido, não parece ser possível face ao disposto no artigo 30.º, n.º 2, da LGT, que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário, que só pode ser reduzido ou extinto “com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”; de facto, o princípio da indisponibilidade relativa das obrigações fiscais (aflorado também nos artigos 36.º, n.º 2 e 3, do mesmo diploma legal e 85.º do CPPT) impede que o acto tributário possa desaparecer da ordem jurídica por mera conveniência, ainda que fundada em interesse público, impossibilidade que se estende a outros estádios da relação jurídica tributária[4], porque à luz do princípio da legalidade tributária, consagrado nos artigos 8.º, n.º 1, da LGT e 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP, a renúncia total ou parcial ao crédito de imposto só poderá ser autorizada por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei aprovado ao abrigo de autorização legislativa.
Aliás, decorre do artigo 36.º, n.º 2, da LGT, que “os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes”, o que significa que a constituição, persistência e extinção da relação jurídica tributária escapa à vontade do contribuinte e mesmo da Administração Tributária, o que vale por dizer que se trata de uma obrigação estritamente vinculada com elementos legalmente definidos[5].
Mas embora a revogação tenha efeitos desintegrativos ou destruidores, no todo ou em parte, de acto anterior, mesmo em caso de revogação total o requerente pode ter interesse na declaração de ilegalidade do acto revogado como suporte para eventual pedido indemnizatório pelos danos que lhe foram causados até à produção de efeitos do acto revogatório. Com efeito, embora prima facie o artigo 13.º, n.º 2, do RJAT, não se refira aos actos revogados, o certo é que é indiscutível que os tribunais arbitrais têm competência para declarar a ilegalidade de um acto, ainda que este tenha já desaparecido da ordem jurídica. Posto que o requerente tenha algum interesse nessa declaração. Aliás, este tem sido o entendimento jurisprudencial do STA.
Mesmo no caso em que a revogação do acto tributário é resultado de um acto administrativo em matéria tributária posterior, como a eficácia deste em relação ao sujeito passivo depende de lhe ser notificado o acto revogatório, o requerente, se desconhecer a prática do acto por não lhe ter sido levado ao conhecimento, pode submete-lo a Tribunal Arbitral com vista à declaração da sua ilegalidade. Neste caso, ainda que o Tribunal venha a reconhecer que o acto não pode ser anulado, por entretanto ter desaparecido da ordem jurídica, não pode deixar de reconhecer que a actividade do Tribunal é inteiramente imputável à AT.
O mesmo se passa, de resto, se a revogação ocorre depois do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 13.º do RJAT.
Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, do CPPT, “Os actos em matéria tributária que afectem os direitos e interesses legítimos dos contribuintes só produzem efeitos em relação a estes quando lhes sejam validamente notificados”.
Como observa Jorge Lopes de Sousa, face à “supremacia da LGT sobre o CPPT (art. 1.º deste) [esta norma] tem de ser interpretada em sintonia com o preceituado no n.º 6 do art. 77.º da LGT, em que se determina que a eficácia da decisão do procedimento tributário depende da notificação, sem se estabelecer qualquer restrição às decisões que afectem direitos e interesses legítimos”[6].
Isto é, independentemente de o acto afectar não direitos ou interesses legítimos, a sua eficácia externa depende da notificação efectuada pelos serviços da Administração Tributária, como de resto é imposto pelo artigo 268.º, n.º 4, da CRP e resulta também do artigo 68.º do CPA.
E como acentua o autor acima referido “[p]erante esta exigência expressa de notificação como condição de eficácia dos actos em matéria tributária que afectem direitos ou interesses legítimos, não poderão considerar-se aplicáveis no domínio do procedimento tributário os casos de dispensa e notificação previstos no art. 67.º do CPA.
Também não dispensa a notificação, como condição de eficácia do acto, a eventual publicação, mesmo que seja obrigatória”.
Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 36.º do CPPT, “as notificações conterão sempre a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências”.
Não cumpre esta exigência a mera comunicação de que a liquidação impugnada foi revogada, desacompanhada dos elementos exigidos por esta norma, feita no âmbito do procedimento arbitral. Neste contexto o acto revogatório não tem eficácia perante a impugnante, atento o disposto no referido artigo 36.º, n.º 2, do CPPT e artigo 77.º da LGT.
Mas mesmo que assim não fosse, como o acto de revogação das liquidações impugnadas não se pronunciou sobre o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e como, notificada do requerimento da AT em que (simplesmente) comunicou essa revogação, a Requerente veio peticionar que fosse apreciada pela AT o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, pois só assim ficariam “acauteladas as pretensões formuladas pela requerente nos presentes autos”, não tendo essa revogação dado satisfação a todos os pedidos da Requerente objectivamente impunha-se a constituição do Tribunal Arbitral, de resto em consonância com a posição implícita e subjectivamente manifestada pela Requerente.
Como o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi notificado à Requerida em 5 de Maio de 2014, esta tinha 30 dias para se pronunciar integralmente sobre o pedido da Requerente nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do RJAT. Ora, a pronúncia sobre o pedido de juros indemnizatórios só veio a ser manifestada em data posterior ao referido prazo de 30 dias (em 23 de Julho de 2014), pelo que também por esta via se justificava a constituição do Tribunal Arbitral.
A tese da Requerida de que a revogação dos actos tributários preclude o direito à apreciação da sua ilegalidade não tem qualquer sustentáculo. Embora a revogação de um acto administrativo acarrete, em regra, a eliminação dos seus efeitos jurídicos, isso não significa que, num passe de mágica, desapareçam os seus efeitos práticos ou materiais. Esses efeitos produzem-se em consequência de uma liquidação que enferme de erro imputável aos serviços e de que resultou o pagamento de um imposto que não era devido, como sucede no caso presente. Nesta situação o contribuinte esteve temporariamente desapossado da quanta paga, o que obviamente lhe causa um prejuízo, seja pela impossibilidade de aplicar o respetivo montante, seja pelos juros que o mesmo lhe proporcionaria se fizesse um mero depósito bancário.
Por isso, é necessário apreciar a legalidade do acto, ainda que este já se encontre revogado, já que é necessário determinar a causa que justifica o pagamento de juros indemnizatórios que não surge pela prática do acto revogatório.
Como se decidiu no acórdão do TCA Sul de 3 de Julho de 2012[7]:
“(…)
3. Constituindo elemento nuclear dos atos de liquidação tributária o apuramento do montante de imposto a pagar/devolver, o foco tem, desde logo, de incidir na verificação do montante do imposto apurado das confrontadas liquidações, perscrutando, designadamente, se se mantém inalterado e se não, por que motivo.
4. Traduz jurisprudência consolidada, da Secção de Contencioso Tributário do STA, que, quando o ato de liquidação impugnado é anulado apenas por vício de forma, não há suporte, ao abrigo do disposto no art. 43.º da LGT, para atribuir juros indemnizatórios ao impugnante.
5. Outrossim, nos casos em que a anulação da liquidação impugnada tenha por fundamento, único, a caducidade do direito de liquidar, por falta de notificação da liquidação dentro do prazo de caducidade, não existe apoio, conferido pelo art. 43.º LGT, para condenação no pagamento desse tipo de juros.”
Nesta senda, como a atribuição de juros indemnizatórios não resulta de um procedimento automático do acto de revogação, a apreciação da ilegalidade das liquidações no caso em concreto era incontornável, o que justificava a constituição do Tribunal Arbitral.
E, nesta ordem de ideias, carece de qualquer suporte o argumento de que as custas devem não devem ser suportadas pela AT, sendo precisamente o contrário, já que foi esta que deu causa ao processo arbitral.
Obviamente que a argumentação acima expendida se aplica, mutatis mutandis, à questão da competência material do Tribunal Arbitral referente ao pedido de reconhecimento de juros indemnizatórios, que para a AT não seria possível de conhecer porque não conexionado “com um pedido de declaração de ilegalidade de algum dos atos nomeados nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 2.° do RJAT”, porque tal pedido “não está em conexão com um ato tributário de liquidação cuja legalidade possa ser discutida pelo Tribunal”, por efeito da revogação. Como se disse e repete, a revogação de um ato tributário não impede a apreciação da sua ilegalidade para determinação da consistência jurídica dos efeitos materiais que essa mesma ilegalidade projectou e dos prejuízos que deles possam resultar para o interessado.
Quanto à questão da extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade da lide e das custas não poderem ser imputadas à Requerida, também esta não tem qualquer razão.
De facto, o princípio vigente na ordem jurídica portuguesa é o de que suporta as custas do processo a parte que lhe tenha dado causa (artigo 447.º-D, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Como se salientou, a constituição do Tribunal Arbitral é inteiramente imputável à Requerida, que não eliminou todos os efeitos produzidos pelas liquidações revogadas no prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT. Não é, por isso, aplicável o disposto no artigo 535.º do CPC, que estabelece a responsabilidade do autor/requerente pelas custas mas, outrossim, o disposto no artigo 537.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, que estabelece que nos casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em é este o responsável pela totalidade das custas.
Ora, como resulta do n.º 4, “considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior…”.
No caso em concreto a satisfação total da pretensão da Requerente ocorreu já depois da constituição do Tribunal Arbitral e depois também do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, pelo que não ficam quaisquer dúvidas de que as custas devem ser, na sua totalidade, postas a cargo da Requerida.
Para terminar resta dizer que tendo ocorrido, como se disse, a satisfação total dos pedidos formulados pela Requerente, verifica-se uma inutilidade superveniente da lide, que determina a extinção da instância arbitral, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC.
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Dispositivo
Em face de todo o exposto julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, com custas pela Requerida AT.
Valor da causa: € 2.226.51 (dois mil, duzentos e vinte e seis euros e cinquenta e um cêntimos).
Custas no montante de € 612 (seiscentos e doze euros), a suportar pela Requerida, de acordo com o artigo 12.º, n.º 2, do Regime de Arbitragem Tributária, do artigo 4.º, n.º 3, do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último.
Notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 19 de Dezembro de 2014
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por nós revistos.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.
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A Juíza Árbitro
Clotilde Celorico Palma
[1] Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Ed.ª, 1985, pp. 194 e ss.
[2] Cfr. João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, Lisboa, Âncora Ed.ª, 2000, p. 201. Este autor inclui o acto substitutivo na categoria dos actos administrativos modificativos. Não assim para Marcelo Rebelo de Sousa (Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, Lex, 1999, p. 469), que separa a modificabilidade da substituição. Seja como for, partindo da clássica definição de acto tributário de Alberto Xavier, segundo o qual o acto tributário é aquele “pelo qual a Administração aplica a norma tributária num caso concreto” (Conceito de Natureza do Acto Tributário, Coimbra, Almedina, 1972, p. 109), quer a revogação, quer a substituição, provocam uma alteração no elemento inovador que o acto tributário acrescenta ao facto tributário, mas deixando este intocado.
[3] Assim, Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, Ed.ª Rei dos Livros, 2001, p. 343. Parece, de facto, que essa é a melhor interpretação, já que o artigo 78.º alude expressamente aos actos tributários enquanto o artigo seguinte apenas abrange os actos decisórios. Se bem que o acto tributário não deixe de ser um acto decisório, parece que o intuito do legislador foi o de confinar a disciplina da revisão do acto tributário ao artigo 78.º e a revogação (que é também uma forma de revisão dos actos) dos actos administrativos em matéria tributária, se bem que num caso e noutro o fundamento possa ser a ilegalidade do acto anterior.
Mas mesmo que se defenda que o instituto da revogação do acto tributário está exclusivamente compreendido na economia do artigo 79.º da LGT, o resultado será sempre o mesmo: o de se conferir à Administração Tributária, observados que sejam certos condicionalismos, o poder de rever a sua própria actuação, expurgando da ordem jurídica, no todo ou em parte, acto tributário anterior. Em sentido contrário acórdão do TCAS de 15 de Fevereiro de 2011, rec. n.º 04480/11, José Correia.
[4] Cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 3.ª Ed.ª. Coimbra, Almedina, 2003, p. 160, com todas as referências doutrinais e jurisprudenciais.
[5] Escrevem A. José de Sousa e Silva Paixão, in Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, 1ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, p. 196, “Não podem, com efeito, os órgãos da Administração Tributária – contrariamente ao que acontece com a generalidade dos credores privados – negociar sobre as dívidas de imposto, renunciar a elas ou perdoá-las, no todo ou em parte, nem tão pouco conceder moratórias para o seu pagamento ou sequer aceitar que este se faça antecipada ou parcialmente – a menos, claro, que o próprio legislador o consinta.
São ilegais todos os actos da administração fiscal, inclusive do Ministro das Finanças, a autorizar moratórias, suspensão da execução, mesmo em regime de pagamento em prestações, relativamente a impostos já liquidados, sem qualquer norma legal em que se apoie.”
[6] Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, 1.º Vol., 6.ª ed., Lisboa, Áreas Ed.ª, 2011, p. 341.
[7] Rec. n.º 04076/10, Rel. Aníbal Ferraz.