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SUMÁRIO:
I - Não tendo o Tribunal de Justiça, no Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21) colocado em causa a qualificação da CSR como uma imposição indireta para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, conclui-se que, para todos os efeitos, aquele tributo é um desdobramento do ISP e, como tal, um imposto.
II - Pretendendo o legislador a repercussão da CSR sobre os utilizadores da rede rodoviária nacional, está em causa uma repercussão legal, no sentido de prevista e querida pelo ordenamento jurídico, embora não obrigatória, diferentemente do que sucede em sede de IVA.
III - A lei processual tributária não circunscreve a legitimidade processual à titularidade da relação jurídica tributária, abrangendo todos quantos possam ser diretamente afetados pelo que possa vir a ser decidido no processo, como é o caso do repercutido.
IV - A repercussão de um imposto – obrigatória ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício dos contribuintes.
V - De acordo com o Despacho Vapo Atlantic (processo C-460/21), não estando subjacente à CSR um motivo específico, devem as normas da Lei n.º 55/2007, de 31 de dezembro, ser desaplicadas pelos tribunais nacionais, porque incompatíveis com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE.
VI - O direito da União não obriga os Estados-membros a prever uma via processual direta em benefício do comprador / adquirente (repercutido), desde que assegurada uma ação civil de repetição do indevido. Não impede, contudo, os Estados-membros de consagrarem uma tal via processual de reação, no exercício da autonomia que lhes é reconhecida nestas matérias.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. No dia 04.07.2023, A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Maia, Porto, B..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em Rua ... a Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, C..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em..., s/n.º, ...-... Lisboa, D..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., n.º ..., ...-... Faro, E..., LDA., pessoa coletiva n...., com sede em ..., ...-... Portimão, F..., UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede em Rua ..., n.º..., ...-... Maia, G..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede em Rua ..., n.º ..., ...-... ..., Loures, H..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede em Avenida ..., n.º ..., ..., ..., ...-... Viseu, I..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., ...-... ..., J..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., n.º ...– ..., ...-... Lisboa, K..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., ..., Avenida ...-... Évora, L..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., .../..., ..., ...-... Rio Tinto e M..., LDA., pessoa coletiva n.º ..., com sede em ..., ..., ...-... Barcarena (doravante “Requerentes”), vieram, requerer ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação das liquidações respeitantes a Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), referentes aos meses de novembro de 2018 a outubro de 2022, incidentes sobre a N..., S.A., pessoa coletiva n.º..., cujo encargo tributário alegam ter sido repercutido na esfera das Requerentes, na sequência da aquisição por estas de 66.998.878 litros de gasóleo, em face da qual as Requerentes suportaram 7.436.875,66 EUR a título de CSR conforme cópias das faturas emitidas pela N..., S.A., que as Requerentes juntaram como documento n.º 1.
As Requerentes peticionam, ainda, o reembolso do montante que alegam ter pagado indevidamente, bem como o juros indemnizatórios, computados sobre aquele montante, a contar desde o dia 1 de dezembro de 2023 (um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa que apresentou contra os atos de liquidação) até à emissão das respetivas notas de crédito.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros a Senhora Professora Doutora Carla Castelo Trindade como árbitro presidente, a Senhora Professora Doutora Marta Vicente e o Senhor Dr. Marcolino Pisão Pedreiro, como árbitros adjuntos, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 12.09.2023.
3. Os fundamentos apresentados pelas Requerentes, em apoio da sua pretensão, foram, no essencial, os seguintes:
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As Requerentes são sociedades comerciais portuguesas que se dedicam ao transporte rodoviário de passageiros.
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Entre novembro de 2018 e outubro de 2022, as Requerentes adquiriram à N..., S.A. 66.998.878 litros de gasóleo.
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Por força da repercussão efetuada pela N..., S.A., o preço pago pelas Requerentes incluiu os montantes suportados por aquela entidade, a título de CSR, aquando da introdução do combustível no consumo, ascendendo o encargo tributário feito impender sobre as Requerentes à quantia de € 7.436.875,66.
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No entender das Requerentes, tais atos tributários e decisórios são ilegais e, consequentemente, anuláveis, em virtude:
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Da preterição do artigo 1.º, n.º 2, da Diretiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 (“Diretiva IEC”) e, por via disso, da violação do princípio do primado do Direito da União Europeia ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”); e
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Da violação do princípio da igualdade fiscal, decorrente da violação do subprincípio da capacidade contributiva, ínsito no artigo 13.º da CRP.
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Estatui o artigo 100.º, n.º 1, da LGT:
«A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».
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De acordo com o artigo 43.º, n.º 3, al. c), da LGT:
«São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: […] [q]uando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
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Assim, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, al. c), e 100.º da LGT, para além do reembolso do montante indevidamente pago, as Requerentes têm direito à perceção de juros indemnizatórios, computados sobre aquele montante, a contar desde o dia 1 de dezembro de 2023 (um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa) até à emissão das respetivas notas de crédito.
4. A AT – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão das Requerentes, defendendo-se por exceção e por impugnação, essencialmente com os fundamentos seguintes:
Por exceção,
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Verifica-se a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria pois, dado tratar-se de uma contribuição financeira e não de um imposto, a CSR encontra-se excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.
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Por outro lado, porque pretendendo as Requerentes, em rigor, a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, o que extravasa o âmbito da Ação Arbitral prevista no RJAT, e em concreto do artigo 2.º, o qual não consente o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, que, conforme decorre da restrição do perímetro desta forma processual à mera ilegalidade face a atos de liquidação de impostos, determina a exclusão do âmbito da jurisdição arbitral a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa.
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Ocorre ineptidão da Petição inicial na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer ato tributário, violando o requisito da al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT
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Os Requerentes são partes ilegítimas, uma vez que, apenas o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo a quem foi liquidado o imposto e que efetuou o correspondente pagamento, reúne condições para solicitar, em caso de erro, a revisão desses atos de liquidação com vista ao reembolso dos montantes cobrados (cf. artigos 15.º e 16.º do CIEC) e não existindo efetiva titularidade do direito, como se verifica, carecem as Requerentes de legitimidade substantiva que sustente a sua pretensão.
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A Requerida suscita, ainda, incidente de intervenção provocada caso o Tribunal arbitral considere que as ora Requerentes gozam de legitimidade para a interposição do presente pedido de pronúncia arbitral, mas considerando que a intervenção em processos arbitrais é facultativa para a generalidade de potenciais interessados, apenas existindo vinculação legal para a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos definidos na Portaria n.º 112-A/2011, de 22, de março, emitida ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, não há fundamento legal para impor a intervenção da N..., S.A., e caso esta não aceite intervir no processo, há que concluir que o presente processo arbitral não se adequa ao seu fim, não podendo o mesmo prosseguir por ser inviável obter uma solução global e justa do litígio.
Por impugnação,
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No âmbito de decisões arbitrais proferidas no CAAD, com fundamento igualmente na desconformidade da CSR com o direito da União Europeia, em processos suscitados por sujeitos passivos do imposto, aquelas têm vindo a entender que a repercussão efetiva, parcial ou total, não pode ser presumida.
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Por identidade de razões e critérios, também não poderá, nos presentes autos, ser presumida a repercussão da CSR nas ora Requerentes.
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É que, sempre caberia às Requerentes a demonstração, de forma inequívoca, dos montantes efetivamente suportados a título de repercussão em cada uma das transações comerciais (aquisições de produtos sujeitos a CSR, ao respetivo sujeito passivo/fornecedor).
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Quer as faturas, quer as declarações do sujeito passivo, nos moldes em que foram emitidas, isto é, sem identificação das liquidações e dos montantes alegadamente repercutidos, não podem ser consideradas como prova bastante dos montantes que as Requerentes alegam ter suportado a título de CSR.
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Sendo que as Requerentes B..., S.A. e a I..., Lda., não obstante já terem beneficiado de reembolso em sede de ISP, incluindo de CSR, no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93.º-A, do CIEC, omitiram tal facto, não tendo refletido esse crédito no cálculo do montante de CSR que alegam ter suportado.
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Ainda que a repercussão viesse a ser provada no âmbito do presente processo, entende o TJUE que um Estado-Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.
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Com efeito, de acordo com a jurisprudência do TJUE (a este propósito assume particular relevância o Acórdão de 20 de outubro de 2011, proferido no âmbito do processo C-94/10 do TJUE), ainda que se verificassem os pressupostos legais e processuais, e se considerasse efetuada a prova da repercussão da CSR, o Estado-membro, pode recusar/opor-se a um pedido de reembolso, apresentado pelo comprador repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo, tal como ocorre no direito nacional.
5. Por despacho de 16.10.2023 foi determinada a notificação das Requerentes para se pronunciarem sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida.
6. Em 09.11.2023 as Requerentes responderam à matéria de exceção.
7. Em 19.02.2024, foi proferido despacho arbitral que, além do mais, determinou o seguinte:
“Porque não se suscita a necessidade de produção de prova testemunhal, porque a apreciação da matéria de excepção pode ser feita no âmbito da decisão final e porque a posição das partes já se encontra devidamente fixada, dispensa-se a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT”.
8. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na al. e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
9. Importa apreciar prioritariamente as exceções, começando pela de incompetência, que é de conhecimento prioritário [artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT].
II – A matéria de facto relevante
10. Consideram-se provados os seguintes factos:
10.1. Entre novembro de 2018 e outubro de 2022, as Requerentes adquiriram à N..., S.A. 66.998.878 litros de gasóleo (documentos n.º 1 e 6 juntos com o pedido de pronuncia arbitral).
10.2. Por força de repercussão efetuada pela N..., S.A., o preço pago pelas Requerentes incluiu os montantes suportados por aquela entidade, a título de CSR, aquando da introdução do combustível no consumo, ascendendo o encargo tributário global feito impender sobre as Requerentes a 7.436.875,66 EUR, sendo a quantidade de gasóleo adquirido por cada uma das Requerentes, bem como o encargo tributário de CSR suportado por cada uma delas, o que resulta do seguinte quadro:
(Documentos n.ºs 1, 2 e 6 juntos com o pedido de pronuncia arbitral e documento emitido pela N..., S.A. junto com o requerimento das Requerentes de 10.11.2023).
10.3. A 30 de novembro de 2022, por não se conformarem com as referidas liquidações de CSR, as Requerentes apresentaram pedido de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º, n.ºs 1 e 4, da LGT, em sede do qual peticionaram a anulação de tais atos tributários e a restituição do imposto pago indevidamente, no montante global de 7.436.875,66 EUR, com fundamento em erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira e, bem assim, em injustiça grave e notória (documento n.º 3 junto com o pedido de pronuncia arbitral).
10.4. Até à data da apresentação do pedido de pronuncia arbitral, a Autoridade Tributária e Aduaneira não se havia pronunciado sobre o pedido de revisão oficiosa, não tendo as Requerentes sido, sequer, notificadas do respetivo projeto de decisão.
11. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provou que as Requerentes B..., S.A. e a I..., Lda., tenham beneficiado de reembolso em sede de ISP, incluindo de CSR, no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93.º-A, do CIEC.
12. Fundamentação da decisão da matéria de facto.
Os factos dos pontos 10.1., 10.2 e 10.3 foram dados como provados com base nos documentos que se indicaram. O facto do ponto 10.4 foi dado como provado por ter sido alegado pelas Requerentes, não ter sido contestado pela Requerida e não emergir do processo qualquer circunstância de que resulte dúvidas sobre a sua veracidade.
Especificamente no que respeita à repercussão da CSR nas Requerentes, afigura-se que os documentos juntos pelas Requerentes como documento n.º 2 e com o requerimento apresentado em 10.11.2023, constituem prova bastante, já que não se vislumbra qualquer razão para duvidar que correspondam à realidade.
Face às declarações constantes de tais documentos, subscritos pela fornecedora de combustível, em que esta, genericamente, declara ter repercutido o tributo às Requerentes e que não foram objeto de impugnação, nem de contraprova, por parte da Requerida, em conjugação com as regras da experiência e da indicação da própria lei que aponta no sentido de que o imposto deve ser suportado pelo contribuinte que utiliza o combustível, constitui prova suficiente.
Na verdade, não se deteta motivo para que os fornecedores de combustíveis procedessem à declaração de que repercutiram o tributo a quem a própria lei indica que o deve suportar, caso tal declaração não correspondesse à realidade. A circunstância de as declarações serem genéricas, e não fornecimento a fornecimento, e delas não constar o período temporal a que se reportam, deve ser entendido, à luz do artigo 236.º do Código Civil, no sentido de que se reportam a todos os fornecimentos de combustíveis efetuados pela declarante às Requerentes.
É de notar que o referido documento n.º 2 é omisso quanto à data. Porém, a possível dúvida quanto à circunstância de se tratar de declaração efetuada após os fornecimentos em causa e referentes aos mesmos foi dissipada pelo mencionado documento junto em 10.11.2023, datado de 09.11.2023, em que expressamente é declarado “ Não ter solicitado, nem pretender solicitar, perante a Autoridade Tributária e Aduaneira e Tribunais Tributários, a declaração de ilegalidade (e, concomitante, restituição) da Contribuição de Serviço Rodoviário por si repercutida às empresas do GRUPO O..., aquando da introdução no consumo do combustível que lhes vendeu". Conjugando os dois documentos é de considerar que as declarações se reportam a todos os fornecimentos de combustíveis efetuados pela declarante às Requerentes até essa data.
A não se entender assim, sempre poderia o Tribunal, ao abrigo da al. e) do art. 16.º do RJAT e do artigo 99.º, n.º 1, da LGT, notificar as Requerentes para juntar aos autos documentos complementares aos elementos julgados necessários, ou diretamente à entidade declarante, a fim de serem prestados os esclarecimentos adicionais julgados pertinentes,[1] o que, no caso, não se afigura necessário, face ao acima exposto.
Acresce que, este tribunal acompanha as considerações que se seguem, constantes das decisões arbitrais proferidas nos processos 294/2023-T[2] e 410/2023-T[3]:
“Para além disso, a existência de repercussão do tributo no consumidor final numa situação em que a lei pretende que ela exista, como sucede com a CSR, tem de se presumir, à face das regras da experiência que os árbitros devem aplicar na fixação da matéria de facto, nos termos da alínea c) do artigo 16.º do RJAT, pois trata-se de uma situação normal, que corresponde ao andamento natural das coisas, quod plerumque accidit.
Neste contexto, deve dizer-se que a presunção de ocorra repercussão quando ela está prevista na lei e não há qualquer facto que permita duvidar da correspondência do facto presumido à realidade, não é incompatível com o Direito da União, designadamente à face do Despacho do TJUE de 07-02-2022, proferido no processo C-460/21.
O que aí se refere, relativamente a prova de uma situação de enriquecimento sem causa, que constitui excepção ao direito ao reembolso de quantias cobradas em violação do Direito da União, é que «o direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42)».
Isto é, o que o TJUE considera incompatível com o Direito da União é a utilização exclusiva de uma presunção de repercussão para prova de uma situação excecional de enriquecimento sem causa, derivada de omissão de repercussão, impedindo ao operador que devia fazer a repercussão a apresentação de elementos de prova destinados a demonstrar que não ocorreu.
Mas, no caso em apreço, o que esta em causa não é a prova de uma situação de excepção, mas sim a prova da situação normal e não há obstáculos a que seja apresentada prova de que a repercussão não ocorreu. O que sucede, é que nenhuma prova foi apresentada que permita entrever que a repercussão não tenha ocorrido.”
Assim, considera-se provada a repercussão do imposto às Requerentes.
Relativamente aos factos não provados, a decisão assenta na circunstância de não ter sido feito qualquer prova dos mesmos.
Efetivamente, a Requerida – que nem sequer concretizou quais os valores dos reembolsos que alega – não juntou qualquer documento comprovativo de que as Requerentes B..., S.A. e a I..., Lda beneficiaram de reembolso em sede de ISP, incluindo de CSR, no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93.º-A, do CIEC, nem do processo administrativo consta qualquer menção a tal respeito.
O que não surpreende pois se eventualmente a AT o tivesse feito, entraria em contradição com aquilo que alega, in casu, não ser possível realizar: identificar os montantes de ISP / CSR efetivamente suportados por empresas que, como as Requerentes, se dedicam ao transporte coletivo de passageiros. Aliás, a AT em momento algum esclarece por que razão lhe é possível proceder ao reembolso parcial do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (e demais imposições calculadas com base nesse imposto) suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, com sede ou estabelecimento estável num Estado-Membro, mas não lhe é possível, no presente processo, por óbices e dificuldades práticas de variada índole, identificar os montantes de ISP / CSR suportados por essas mesmas empresas, que, segundo a própria AT, reentram no âmbito subjetivo de aplicação do artigo 93.º-A do CIEC.
III- O Direito aplicável
13. Questões de competência
13.1. Questão da incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria
Na Resposta, a AT argui a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria (pontos 110.º e ss. da Resposta). Entende, em síntese, que a CSR é uma contribuição financeira, estando a sua sindicância, por conseguinte, excluída da competência dos tribunais arbitrais tributários, à luz do disposto no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. As Requerentes pugnaram pela improcedência da exceção de incompetência relativa, alegando que a CSR deve, apesar do nomen iuris, ser qualificada como um imposto, atento o seu caráter “inequivocamente unilateral”.
O âmbito da jurisdição arbitral tributária conhece as limitações impostas por lei e por Regulamento. Com efeito, segundo a al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação de pretensões de declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de retenção na fonte e de pagamento por conta. Por sua vez, o artigo 4.º do mesmo regime faz depender a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais a portaria dos membros do Governo responsáveis, onde se estabeleça, designadamente, “o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”. Em cumprimento desta delegação legislativa, a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, definiu o objeto da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD como abrangendo “as pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”.
A referência aos “impostos” que se encontra no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, pode ser interpretada de duas formas.
Para uma linha jurisprudencial, a designação relevante para efeitos de definição de competência é a designação adotada pelo legislador, e não aquela que o intérprete ou aplicador do direito possam reputar mais adequada. Pretende-se, com esta posição, obstar a que a jurisdição dos tribunais arbitrários se veja dependente da incerteza inerente às diversas perspetivas doutrinais sobre a destrinça entre taxa, imposto e contribuição financeira (cf. acórdão do CAAD de 29-05-2023, processo n.º 31/2023-T; e já antes, com idêntico entendimento, os acórdãos do CAAD de 22-07-2022, processo n.º 788/2021-T, e de 16-10-2018, processo n.º 115/2018-T). Ao passo que, num outro entendimento jurisprudencial, a aferição da jurisdição dos tribunais arbitrais já dependerá do entendimento que o intérprete alcance através da qualificação dos tributos em função das suas caraterísticas e do seu regime jurídico (cf., por exemplo, acórdão do CAAD 05-01-2023, processo n.º 304/2022-T; e acórdão do CAAD de 15-01-2024, processo n.º 375/2023-T). Sobre esta questão, o Tribunal arbitral entende que, havendo jurisprudência que aponte para uma determinada classificação, não pode o intérprete e aplicador do direito deixar de daí retirar as devidas conclusões em matéria de jurisdição.
A Constituição refere-se abertamente a três modalidades de tributos – impostos, taxas e contribuições financeiras (artigo 165, n.º 1, al. i) da CRP). Para cada um destes tributos, em razão do tipo de ablação patrimonial que representam para o contribuinte, prevê a Constituição um acervo de regras formais, orgânicas e materiais distinto, embora com semelhanças no plano dos tributos bilaterais (taxas e as contribuições financeiras).
A divisão tripartida dos tributos afirmou-se com a revisão constitucional de 1997, por oposição à summa divisio, até aí vigente, entre impostos e taxas. Com a inclusão de um segundo tipo de tributos bilaterais (as contribuições financeiras) o teste da bilateralidade, segundo qual os tributos rigorosamente bilaterais seriam taxas e os tributos não rigorosamente bilaterais seriam impostos, deixou de ser determinante no processo de qualificação. Se antes da revisão de 1997 o processo de qualificação não era simples, uma vez que uma plêiade de tributos merecia uma qualificação distinta daquela para que remeteria o seu nomen iuris (princípio da irrelevância do nomen iuris), o contencioso constitucional da qualificação dos tributos tornou-se, a partir dessa data, ainda mais complexo, atenta a proliferação de tributos híbridos, a meio-caminho entre taxas e impostos.
Assim, o imposto é uma prestação pecuniária e coativa, com estrutura unilateral. Cada um é chamado a contribuir para os encargos da comunidade independentemente de receber algo em troca, na medida da sua força económica ou da sua capacidade de pagar (princípio da capacidade contributiva). Os impostos pretendem arrecadar receitas para custear as despesas públicas gerais do Estado (artigo 5, n.º 1 da LGT). Coerentemente, visto que os impostos agridem o património do particular de forma mais intensa que outros tributos, a Constituição sujeita-os a um regime formal e orgânico bastante rigoroso (reserva de lei integral), colocando sob a alçada do legislador parlamentar todo o regime jurídico de cada um dos impostos.
Já as contribuições financeiras são prestações pecuniárias coativas, assentes numa estrutura bilateral ou sinalagmática, exigidas como contrapartida de uma prestação administrativa de que presumivelmente os respetivos sujeitos passivos, por integrarem um determinado grupo homogéneo, beneficiaram ou causaram.
Com base na evolução supramencionada, a constitucionalização das contribuições financeiras, promovida pela revisão de 1997, visou abarcar uma categoria de tributos que, embora não possuíssem uma estrutura unilateral, não compartilhavam da bilateralidade rigorosa das taxas. Todavia, a circunstância de o legislador de revisão ter optado por subordinar as contribuições financeiras a um regime formal e orgânico semelhante ao das taxas é suficientemente revelador de que a estrutura e a finalidade das contribuições financeiras se aproximam mais dos tributos bilaterais do que dos tributos unilaterais.
Como se esclarece no acórdão n.º 344/19, do Tribunal Constitucional, a propósito da “taxa” SIRCA:
“A criação de tributos dirigidos à compensação de prestações presumidas e admissibilidade de um quadro amplo de incidência das taxas torna mais diluída a fronteira entre as diferentes categorias de tributos e muito mais delicada a respetiva qualificação. Se atendermos à «natureza» que assume a prestação do ente público, a linha de fronteira entre as diferentes categorias de tributos públicos pode demarcar-se do seguinte modo: se o pressuposto de facto gerador do tributo é alheio a qualquer prestação administrativa ou se traduz numa prestação meramente eventual, estamos perante um imposto; se o facto gerador do tributo consubstancia uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada por um grupo em que o sujeito passivo se integra, estamos perante uma contribuição; se o facto gerador do tributo é constituído por uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo causador ou beneficiário, ou por um facto que, de acordo com as regras da experiência, constitui um indicador seguro da existência daquela prestação, estamos perante uma taxa”.
A “prova do algodão” entre imposto e contribuição financeira é dada, portanto, pela identificação expressa ou implícita de uma prestação administrativa – ainda que grupal ou presumida, no caso das contribuições financeiras. Em termos coadjuvantes, a jurisprudência constitucional reconhece igualmente a importância do critério finalístico, admitindo que a consignação da receita do tributo – por oposição ao financiamento das despesas públicas gerais – pode constituir uma orientação relevante no esclarecimento da sua natureza. Como se lê no acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional, a propósito da Contribuição sobre o setor bancário:
“A distinção entre as três categorias tributárias parte da consideração simultânea de um critério finalístico a par de um critério estrutural ou do pressuposto e da finalidade do tributo (...). Em linha com a conclusão que antecede, tem sido sublinhada pela jurisprudência do Tribunal a importância de atender, ainda, ao elemento teleológico do tributo (critério finalístico), na medida em que este pode constituir um indicador determinante no esclarecimento da sua natureza (...). Nesta perspetiva, a consignação de receitas à entidade pública competente para financiar as prestações subjacentes aos tributos que as geram constitui, por regra, «uma qualidade reveladora da natureza comutativa destes tributos, por tal consignação significar que a receita não pode ser desviada para o financiamento de despesas públicas gerais» (Acórdãos nºs 539/2015, 320/2016, 7/2019, 255/2020). Todavia, o Tribunal Constitucional reconhece que a consignação da receita do tributo não constitui, por si só, um elemento determinante na qualificação de um tributo – não é uma condição nem necessária nem suficiente (v. Acórdãos n.ºs 344/2019 e 255/2020)”.
Com base nestes critérios, o Tribunal Constitucional qualificou como contribuições financeiras tributos tão variados como as taxas de regulação e supervisão económica (acórdão n.º 365/2008), a taxa pela utilização do espectro radioelétrico (acórdão n.º 152/2013), as penalizações pela emissão de carbono (acórdão n.º 80/2014), a Contribuição extraordinária sobre o setor energético (acórdão n.º 7/2019), a taxa de segurança alimentar mais (acórdão n.º 539/2015) ou a contribuição sobre o setor bancário (acórdão n.º 268/2021). Foram ainda qualificadas como contribuições financeiras a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (cf. acórdão do STA de 10.05.2023, processo n.º 0191/20.4BEVIS), assim como a taxa de promoção e de coordenação do Instituto da Vinha e do Vinho (cf. acórdão do STA de 26.09.2018, processo n.º 0299/13.2BEVIS 01007/17), ou a taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (acórdão do TCA de 29.09.2022, Processo n.º 21/13.3 BELRS);
Uma vez denotada a estrutura bilateral ou pelo menos comutativa do tributo, as eventuais inconsistências ou incoerências do seu regime jurídico – designadamente o facto de terem como sujeito passivo pessoas que não são presumíveis beneficiários ou causadores da prestação administrativa – deverão ser tratadas no âmbito do princípio da igualdade material, tomado como critério de equivalência, ferindo de inconstitucionalidade material as normas do regime jurídico do tributo que o contrariem (cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/2019, sobre a taxa SIRCA, e n.º 101/2023, sobre a Contribuição extraordinária do setor energético).
Ora, a Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (artigo 1.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto) e constitui “a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis” (artigo 3.º, n.º 1). Por financiamento da rede rodoviária entende-se “a respetiva conceção, projeto, conservação, exploração, requalificação e alargamento” (artigo 3.º, n.º 2).
A incidência objetiva do tributo coincide com a do ISP, ou seja, o tributo incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e dele não isentos (artigo 4.º, n.º 1). E o mesmo sucede com a incidência subjetiva, uma vez que os sujeitos passivos do tributo coincidem com os sujeitos passivos do ISP (artigo 5.º, n.º 1). Além disso, é aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações (artigo 5.º, n.º 1). Finalmente, o produto da CSR constitui receita própria da concessionária da rede rodoviária nacional, a EP – Estradas de Portugal, E. P. E, que, entretanto, passou a denominar-se Infraestruturas de Portugal, S.A (artigo 6.º).
Não obstante a operação “cosmética” que o legislador ensaia na Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, ao identificar como facto tributário a utilização da rede rodoviária nacional, consignando a receita do tributo à respetiva concessionária, a Infraestruturas de Portugal, a CSR aproxima-se de um simples desdobramento do ISP, partilhando com este a incidência objetiva e subjetiva, bem como os aspetos da liquidação e cobrança (cf. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.º ed., reimpressão, Almedina, 2021, p. 384, nota n.º 8).[4]
Esta conclusão é corroborada pelo Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, o qual, em razão dos princípios da interpretação conforme e do primado do Direito da União Europeia, se projeta como elemento determinante na qualificação do tributo. Efetivamente, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a qualificação de uma tributação, um imposto, uma taxa ou um direito, à luz do Direito da União Europeia, compete ao Tribunal de Justiça, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. acórdãos Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, §107, entre outros).
É certo que, no processo arbitral que motivou o pedido de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça (Processo n.º 564/2020-T), o Tribunal qualificou a CSR como um imposto, formulando as questões prejudiciais com base nesse pressuposto. Parece-nos, todavia, que na decisão em que culminou esse pedido de reenvio – o Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21 – o Tribunal de Justiça não colocou em causa essa qualificação, precisamente por considerar que, pela sua estrutura e regime jurídico, a CSR preenchia as caraterísticas de uma imposição indireta, concretamente, de um imposto indireto sobre os produtos petrolíferos. Por outras palavras, foi o legislador português que, não obstante apelidar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva, objetiva, liquidação e cobrança em termos análogos às do ISP. Em condições que levaram o Tribunal de Justiça a assumir que a CSR teria uma finalidade exclusivamente orçamental para efeitos do artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE, e que poderia entravar as trocas comerciais pondo em causa o efeito útil da harmonização levada a cabo pela Diretiva no domínio do imposto sobre produtos petrolíferos (Despacho Vapo Atlantic, §26).
Caso a qualificação da CSR consistisse numa uma questão puramente interna, para o qual apenas o Direito e a jurisprudência constitucionais relevassem, não estaria posta de parte, atenta a latitude que vem sendo conferida ao conceito, a qualificação como contribuição financeira. Não se tratando, contudo, de uma questão puramente interna, há que concluir que a CSR é um imposto indireto para efeitos da Diretiva 2008/118/CE, e consequentemente, também para efeitos da legislação portuguesa que se enquadre no âmbito de aplicação da Diretiva, como é o caso da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto. Ou seja, se o Tribunal de Justiça tratou a CSR como um desdobramento do ISP, não pode o intérprete e aplicador português deixar de fazer o mesmo, procurando uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União.
Termos que se julga improcedente a exceção de incompetência relativa do tribunal arbitral em razão da matéria.
13.2. Exceção da incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria
A AT suscita, na sua resposta, a incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria, exceção dilatória cuja procedência acarreta a absolvição da ré da instância (artigo 576.º e 577.º, al. a) do CPC). Sustenta-se que o pedido formulado pelas Requerentes, que passa pela declaração de ilegalidade do regime da CSR “no seu todo” (ponto 134.º da Resposta), extravasa o âmbito da jurisdição arbitral tributária prevista no artigo 2.º do RJAT. Este não consente “o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-administrativa do Estado, que, conforme decorre da restrição do perímetro desta forma processual à mera ilegalidade face a atos de liquidação de impostos, determina a exclusão do âmbito da jurisdição arbitral a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de atos praticados no exercício da função política e legislativa”. Uma interpretação do artigo 2.º do RJAT que permita a apreciação dos pedidos formulados pelas Requerentes seria, no entender da AT, inconstitucional, porquanto vedada pela letra e pelo espírito da lei (ponto 138.º da Resposta).
As Requerentes contra-argumentam lembrando que “o objeto da presente ação arbitral não é a impugnação da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto (nem a declaração de “ilegalidade”) mas sim a decisão (de indeferimento tácito) do pedido de revisão oficiosa (objeto imediato) e os atos de liquidação de CSR (objeto mediato)” (ponto 99.º da pronúncia sobre as exceções).
Entende o Tribunal arbitral que a exceção dilatória invocada pela AT não procede. Vejamos.
As Requerentes não pedem a declaração de ilegalidade do regime jurídico onde está consagrada a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto). Pedem, na verdade, a anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e, bem assim, a anulação dos atos de liquidação de CSR inerentes às faturas juntas com o PPA. Fazem assentar, porém, a anulação das liquidações num vício de ilegalidade abstrata, por oposição à ilegalidade concreta, porquanto o que está em causa é a ilegalidade do tributo (por desconformidade do ato legislativo que o criou com a CRP ou por incompatibilidade com o Direito da União Europeia), e não a ilegalidade do ato que faz aplicação da lei ao caso concreto (cf. acórdão do STA de 20-03-2019, processo n.º 0558/15.0BEMDL 0176/18).
O controlo incidental ou concreto da constitucionalidade das normas assenta, precisamente, na destrinça entre questão principal e questão de constitucionalidade. Como se lê no artigo 204.º da CRP, pedra angular do modelo de fiscalização concreta português, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas contrárias à Constituição”.
In casu, mesmo que a inconstitucionalidade ou a incompatibilidade com o DUE seja o catalisador da impugnação, o feito submetido a julgamento não é a inconstitucionalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, nem tão-pouco a sua incompatibilidade com o Direito da União, mas a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR (artigo 99.º do CPPT).
A idiossincrasia do modelo português de fiscalização concreta é a de que todos os juízes, em todos os tribunais, têm não só o poder-dever de verificar a conformidade constitucional das normas legais aplicáveis (poder-dever de exame), mas também de recusar a sua aplicação caso concluam pela sua inconstitucionalidade (poder-dever de rejeição). Não podendo, então, o juiz, nos termos do artigo 204.º CRP da Constituição, aplicar normas inconstitucionais, ele fica obrigado a decidir, seja a pedido das partes seja oficiosamente, a referida questão de constitucionalidade, isto é, tem de decidir previamente se a norma em causa é ou não inconstitucional.
Aliás, num modelo como o português, que não conhece a figura da ação direta de constitucionalidade, entendida como o direito dos cidadãos de pedirem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade de normas, a possibilidade de os particulares, nos feitos submetidos a julgamento, suscitarem a questão de constitucionalidade é imprescindível para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça constitucional e a uma tutela jurisdicional efetiva em matéria constitucional. Por essa razão, não poderia o RJAT – agora sim, sob pena de inconstitucionalidade – deixar de consagrar a figura do recurso de constitucionalidade quando, na decisão arbitral, se recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade ou se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo (artigo 24.º, n.º 1 do RJAT).
Idêntico raciocínio é aplicável, mutatis mutandis, à incompatibilidade com o Direito da União. Também aqui, por força do princípio do efeito direto, conjugado com o princípio do primado, estão todos os tribunais nacionais, nos feitos submetidos a julgamento, sob o dever de desaplicar as normas de direito interno incompatíveis com o Direito da União. Não podendo um tal dever ficar na dependência de regras internas que atribuam aos tribunais superiores competência exclusiva para afastar a aplicação de normas. Foi esse o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Simmenthal, processo C-106/77: “[Q]ualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição eventualmente contrária ao direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária” (§21).
A sustentar o seu argumento, a AT invoca o acórdão do STA, processo n.º 01390/17. Mas também aqui sem acerto, porquanto o que estava em causa nesse processo era uma ação popular administrativa na forma de providência cautelar de suspensão de eficácia do disposto na norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos, na redação introduzida pelo artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 29 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2017. O que, facilmente se percebe, nada tem que ver com um pedido de ilegalidade de um ato de liquidação de um imposto.
Termos em que julga improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal arbitral em razão da matéria.
14. Questão da ineptidão do pedido de pronúncia arbitral
A Requerida alega a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo, ao abrigo dos artigos 186.º, n.º 1, 576, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. b) do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT. Acrescenta que o PPA não cumpre os pressupostos vertidos no artigo 10.º, n.º 2 do RJAT porquanto não identifica “o ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral”. Destarte, apesar de identificar as faturas de aquisição dos combustíveis ao fornecedor (in casu, a N..., S.A.), as Requerentes não identificam as liquidações de CSR pela AT à N..., S.A., que pagou o tributo aquando da introdução do combustível no consumo. A AT não tem forma de suprir esta omissão, atenta a “impossibilidade absoluta” de estabelecer qualquer correspondência entre os atos de liquidação de CSR junto do fornecedor de combustível e as faturas de aquisição de combustível apresentadas pelas Requerentes. Isto acontece porque raramente a entidade que vende o combustível ao consumidor final coincide com o sujeito passivo que introduziu os combustíveis no mercado. Por outro lado, a falta de identificação dos atos de liquidação de CSR por parte das Requerentes obsta, ademais, a que possa ser aferida a tempestividade do pedido de revisão oficiosa e, consequentemente, a tempestividade do PPA ora apreciado.
As Requerentes, na resposta às exceções arguidas pela Requerida, argumentam que não têm na sua posse quaisquer outros documentos, não podendo, por essa razão, a sua apresentação ser-lhes exigida. A proceder a argumentação da AT no sentido de que não dispõe de documentos que lhe permitam identificar os atos de liquidação, estaria comprometido o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.
O RJAT não contém regime próprio em matéria de exceções e nulidades processuais, aplicando-se, nesta matéria, a título subsidiário, o disposto no CPPT, no CPTA e no CPC, como decorre do previsto no artigo 29.º, n.º 1, a), c) e e) do RJAT.
A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória cuja verificação conduz à abstenção de conhecimento do mérito da causa e à absolvição do réu da instância (artigo 278, n.º 1, al. b) do CPC). Trata-se de uma exceção de conhecimento oficioso, conforme preceituado no artigo 196.º do CPC e também no artigo 89.º, n.ºs 2 e 4, al. b), do CPTA e no artigo 98.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPPT.
Do artigo 186.º, n.º 1 do CPC consta uma lista fechada de situações geradoras de ineptidão da petição inicial: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. De acordo com o n.º 3 do mesmo dispositivo, ainda que os factos essenciais alegados sejam insuficientes, se a ré contestar, decorrendo da contestação que interpretou convenientemente a petição inicial e os pedidos, impugnando expressamente o que foi alegado pelo Autor e, em consequência, requerendo a sua absolvição daqueles, não procede a arguição de ineptidão da petição inicial que eventualmente seja arguida.
Ora, a exceção relacionada com a ineptidão da petição inicial não procede, porquanto não se verifica nenhuma das situações elencadas no artigo 186.º do CPC. Nem, aliás, a Requerida identifica, na sua resposta, qual das situações elencadas naquele normativo é geradora da nulidade de todo o processo.
Quanto à questão da identificação dos atos de liquidação impugnados, a que alude a al. b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, sempre se diria as faturas apresentadas pelas Requerentes incluem o montante que a N... S.A., enquanto sujeito passivo, pagou ao Estado a título de CSR e que foi depois repercutido – como também se considera provado neste processo – nas Requerentes, sendo facilmente apuráveis os montantes indevidamente liquidados cuja anulação se ambiciona.
A eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não pode ser imputado nem trazer desvantagem às Requerentes. As Requerentes fizeram tudo quanto poderiam ter feito, juntando os documentos que tinham à sua disposição. Exigir às Requerentes a identificação dos atos de liquidação numa situação com este recorte, em que o repercutido não tem meios para proceder a essa identificação nem ela se assume como imprescindível para a apurar da legalidade da liquidação de CSR que as faturas coonestam, constituiria uma interpretação dos normativos sob apreciação em desalinho com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP.
Improcede, portanto, a exceção de ineptidão da petição inicial.
15. Questão da tempestividade do pedido de revisão oficiosa
A AT invoca, seguidamente, vários argumentos relacionados com a tempestividade do pedido de revisão oficiosa, que foi objeto de indeferimento tácito e cuja anulação as Requerentes peticionam.
Argumenta, em primeiro lugar, que não logrando as Requerentes a identificação dos atos de liquidação impugnados, não é possível apurar da tempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado em 30.11.2022. Depois, ainda que superado este obstáculo, é entendimento da AT que o pedido de revisão é intempestivo, não sendo aplicável o prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, uma vez que inexiste in casu “erro imputável aos serviços”. Ao proceder às liquidações de CSR impugnadas, a AT manteve-se fiel ao princípio da legalidade da administração, estando-lhe vedado atuar de forma diversa daquela através da qual atuou (ponto 70.º da Resposta). Alega, finalmente, que o artigo 15.º do CIEC, onde estão previstas regras gerais de reembolso em caso de erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, é lex specialis relativamente ao artigo 78.º da LGT. De acordo com aquele normativo, só os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução do consumo dos produtos em território nacional têm, no prazo de três anos a contar da liquidação do imposto, legitimidade para apresentar o pedido de reembolso.
As Requerentes respondem argumentando que a data relevante para efeitos de contagem do prazo de revisão oficiosa é a data que consta das faturas emitidas pela N... S.A., ou seja, a data em que os repercutidos tomaram conhecimento dos atos de liquidação. O procedimento de revisão oficiosa, enquanto garantia dos contribuintes, estende-se a atos tributários relativos a todo e qualquer tributo, sendo por isso aplicável às liquidações de CSR independentemente das regras especiais que o CIEC possa prever. As Requerentes sublinham ainda a incoerência da argumentação da AT, que ao mesmo tempo que sustenta que a CSR é uma contribuição financeira (para obstar à jurisdição do tribunal arbitral), recorre aos artigos 15.º e 16.º do CIEC, normas que regulam os impostos especiais sobre o consumo, para fundar a não aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso concreto.
É entendimento do Tribunal Arbitral que também esta exceção, relacionada com a intempestividade do pedido de revisão oficiosa – e correspondente intempestividade do PPA – deve ser julgada improcedente.
O artigo 15.º do CIEC contém um conjunto de disposições comuns às várias modalidades de reembolso previstas no Código, seja o reembolso por erro (artigo 16.º), o reembolso na expedição (artigo 17.º), o reembolso na exportação (artigo 18.º), reembolso na retirada do mercado (artigo 19.º) e outros casos de reembolso (artigo 20.º). Dispõe o seguinte:
Artigo 15.º
Regras gerais do reembolso
1 - Constituem fundamento para o reembolso do imposto pago, desde que devidamente comprovados, o erro na liquidação, a expedição ou exportação dos produtos sujeitos a imposto, bem como a retirada dos mesmos do mercado, nos termos e nas condições previstas no presente Código.
2 - Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.
3 - O pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente no prazo de três anos a contar da data da liquidação do imposto, sem prejuízo do disposto na alínea a) do artigo 17.º e na alínea a) do artigo 18.º.
4 - O reembolso só pode ser efectuado desde que o montante a reembolsar seja igual ou superior a (euro) 25.
Já o artigo 78.º, n.º 1, da LGT tem a seguinte redação: «A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços».
Daqui resulta que a revisão do ato tributário prevista naquele n.º 1 constitui um meio de correção de erros na liquidação de tributos levado a cabo pela própria administração tributária (a revisão é da competência de quem praticou o ato tributário), e que pode partir da iniciativa do sujeito passivo, no prazo da reclamação administrativa (reclamação graciosa) e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou da iniciativa da administração, no prazo de 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
É entendimento pacífico da jurisprudência do STA que, para efeitos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT e em face da teleologia que subjaz ao instituto da revisão, este não abrange apenas os pedidos de revisão oficiosa da iniciativa da administração tributária, mas também a revisão do ato de liquidação requerida pelo sujeito passivo e como tal abrangida pelo prazo alargado de 4 anos. A revisão é, portanto, um afloramento do dever de revogação de atos tributários ilegais, que encontra arrimo nos princípios da legalidade, da justiça, da igualdade e da imparcialidade, que são princípios fundamentais da atividade administrativa (cf. artigo 266.º, n.º 2 CRP e artigo 55.º da LGT). E «face a tais princípios, não se vê como possa a Administração demitir-se legalmente de tomar a iniciativa de revisão do acto quando demandada para o fazer através de pedido dos interessados já que tem o dever legal de decidir os pedidos destes» (acórdão do STA, 11.05.2005, processo n.º 0319/05).
Neste sentido, tal como este Tribunal arbitral a compreende, a revisão do ato tributário prevista no n.º 1 do artigo 78.º da LGT é um modo de reação complementar aos meios administrativos e contenciosos gerais e especiais, que tem o seu campo primordial de aplicação naquelas situações em que já não é possível a impugnação do ato tributário, ou seja, em todos os casos em que o contribuinte, não logrou lançar mão, por sua iniciativa, dos processos impugnatórios previstos na lei (cf. decisão arbitral do CAAD de 24.06.2021, processo n.º 500/2020-T). Como se lê no acórdão do STA de 08.06.2022, processo 0174/19.7BEPDL, “[e]m função do respetivo, integral, conteúdo normativo, o art. 78.º da LGT consubstancia, no âmbito da proteção dum Estado de Direito, um depósito de garantias, acrescidas, de defesa e reposição da legalidade, concedidas aos sujeitos de relações jurídico-tributárias”.
Os mecanismos de reembolso previstos nos artigos 15.º e ss. do CIEC não constituem lex specialis que afaste a aplicação do artigo 78.º da LGT ao caso sub judice. O procedimento de revisão oficiosa assume-se, tanto pela sua localização sistemática (na LGT), como pelo substrato teleológico que lhe preside, como uma garantia dos contribuintes que acresce às previstas no CIEC ou noutra legislação especial.
Esta modalidade de revisão do ato tributário só é possível nas situações em que haja “erro imputável aos serviços”, aqui compreendido não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como, também, o erro de direito, do qual tenha resultado, para o contribuinte, uma liquidação de imposto superior ao devido. Essa imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro (cf., entre outras, a decisão arbitral do CAAD de 24.03.2022, processo n.º 615/2021-T, e, entre outros, os acórdãos do STA de 12.02.2001, recurso n.º 26233, de 11.05.2005, recurso n.º 0319/05, de 26.04.2007, recurso n.º 39/07, de 14.03.2012, recurso n.º 01007/11 e de 18.11.2015, recurso n.º 1509/13).
Como se lê no acórdão do STA de 12.02.2001, recuperado recentemente no acórdão do STA de 03.06.2020, «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efetuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte (...)» (cf. acórdão do STA de 03.06.2020, processo n.º 018/10).
E não valerá a pena invocar que, ao contrário dos tribunais – que têm, nos termos do artigo 204.º da CRP, acesso direto à Constituição – não tem a Administração Tributária o poder-dever de desaplicar normas inconstitucionais e, por maioria de razão, normas contrárias ao direito da União. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a uma norma de direito da União que goze de efeito direto (acórdão Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular, § 31).
Assim, havendo – como se demonstrará claramente infra – erro imputável aos serviços, o prazo para apresentar o pedido de revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, e não de 120 dias, como sustenta a AT (ponto 68.º da Resposta). Como se disse, a eventual dificuldade que a AT possa ter na identificação das liquidações a que ela própria procedeu junto dos fornecedores de combustíveis é um problema de organização dos seus serviços, que não deve ter impacto na situação processual das Requerentes. Se a AT, como diz, não tem forma de identificar os atos de liquidação de CSR e as declarações de introdução no consumo que terão estado na base dos montantes repercutidos sobre as Requerentes, então não poderá o apuramento do prazo de submissão do pedido de revisão oficiosa ter outro referente que não seja a data constante das faturas.
O pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 30.11.2022 e recebido pela AT em 05.12.2022 (cf. Documentos n.ºs 4 e 5, junto com o PPA), tendo por objeto atos de liquidação de CSR relativos a faturas emitidas pela N... S.A. entre novembro de 2018 e outubro de 2022. O pedido foi apresentado tempestivamente, isto é, antes de decorridos quatro anos desde a data da liquidação, que é o prazo que releva à luz do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, em face da ocorrência de “erro imputável aos serviços”.
O indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa formou-se em 05.03.2023, ou seja, quatro meses após a AT ficar constituída no dever de decidir (artigo 57.º, n.º 1 da LGT). O PPA, apresentado em 04.07.2023, é também tempestivo.
Pelo que, pelas razões expostas, improcede a exceção relacionada com a intempestividade do pedido de revisão oficiosa.
16. Questão da ilegitimidade das Requerentes e da necessidade de intervenção provocada
A Requerida sustenta, em síntese:
- Apenas o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo a quem foi liquidado o imposto e que efetuou o correspondente pagamento, reúne condições (e pode identificar os atos de liquidação), para solicitar em caso de erro, a revisão desses atos de liquidação com vista ao reembolso dos montantes cobrados (cf. artigos 15.º e 16.º do CIEC).
- Os requerentes de reembolso que não correspondem à entidade responsável pela introdução dos produtos no consumo e pelo pagamento da CSR, carecem de legitimidade para solicitar a anulação das referidas liquidações com fundamento em erro e consequente reembolso do montante correspondente (artigo 16.º).
- É o que resulta, de forma clara, do n.º 2, do artigo 15.º do CIEC, o qual estabelece que o reembolso só poderá ser solicitado pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na al. a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto, o que bem se compreende por força das caraterísticas dos impostos em causa.
- Assim sendo, não se vislumbra que assista às Requerentes legitimidade para requerer a anulação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e a anulação da liquidação (ou liquidações) de CSR e o consequente reembolso dos montantes de CSR que as Requerentes alegam ter suportado.
- Não existindo efetiva titularidade do direito, como se verifica, carecem as Requerentes de legitimidade substantiva que sustente a sua pretensão, devendo o Tribunal arbitral abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver a AT da instância, em conformidade com os artigos 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º todos do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 2.º, alínea e), do CPPT e do 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
- A considerar-se que as Requerentes têm legitimidade para interpor a presente ação, a AT considera que é obrigatória a intervenção do sujeito passivo desta espécie tributária em juízo, indicado pelas Requerentes, ou seja, a N..., S.A.
- De facto, a matéria relativa à discussão da legalidade de um ato de liquidação desta natureza implica, necessariamente, que seja chamado à demanda aquele operador, enquanto sujeito passivo, o único que tem legitimidade para pôr em crise o ato ou atos de liquidação, identificando-os.
- Todavia, considerando que a intervenção em processos arbitrais é facultativa para a generalidade de potenciais interessados, apenas existindo vinculação legal para a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos definidos na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, emitida ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, não há fundamento legal para impor a intervenção da N..., S.A.
- Ora, caso a N..., S.A. não aceite intervir no processo há que concluir que o presente processo arbitral não se adequa ao seu fim, não podendo o mesmo prosseguir por ser inviável obter uma solução global e justa do litígio.
Por sua vez, as Requerentes defendem, em resumo:
- A legitimidade das Requerentes para propor a presente ação arbitral e intervir no processo arbitral tributário resulta da aplicação conjugada das normas ínsitas na LGT, no CPPT e no CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a), b) e c), do RJAT.
- A legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, sendo certo que, como os n.ºs 3 e 4 do artigo 18.º da LGT imediatamente indiciam, é atribuída legitimidade processual a entidades que não se qualificam como sujeitos passivos, designadamente em situações de repercussão do pagamento do imposto, como sucede na presente situação.
- Assim, o repercutido será, independentemente da modalidade de repercussão, titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária, tudo nos termos, designadamente, dos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, da LGT e 9.º, n.º 1, do CPPT.
- Tal consubstancia uma decorrência do princípio fundamental do acesso ao Direito e à tutela
jurisdicional efetiva, ínsitos nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP, assumindo-se como basilar no recorte dos direitos dos contribuintes, não podendo, em consequência, a sua aplicação ser restringida ou coartada sem um motivo atendível.
- Aquele que demonstrar ter efetivamente suportado o encargo do imposto terá legitimidade procedimental e/ou processual para contestar a legalidade das liquidações, quer detenha ou não a qualidade de sujeito passivo.
- Neste contexto, sendo indiscutível a repercussão efetiva do encargo tributário na esfera das
Requerentes, e tendo disso a Autoridade Tributária e Aduaneira perfeito conhecimento, necessariamente se conclui, nos termos dos supra referidos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 95.º, n.º
1, da LGT, e 9.º, n.º 1, do CPPT (ex vi n.º 4 do mesmo preceito legal), terem as Requerentes legitimidade para propor a ação arbitral em causa e, por conseguinte, para intervir no
processo arbitral tributário, o que se invoca para os devidos efeitos legais.
Vejamos.
Para decisão da questão da legitimidade da impugnante, afigura-se de especial relevo, o seguinte:
-
De acordo com o art. 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto “O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, E.P.E., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável”
-
Nos termos do previsto no artigo 3.º, “a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como está verificada pelo consumo dos combustíveis”
Daqui resulta que a lei pretende tributar os consumidores de combustíveis, como utilizadores da rede rodoviária nacional. A repercussão a estes da CSR foi o propósito do legislador pelo que esta repercussão é legal, no sentido de prevista e querida pelo ordenamento jurídico (embora não obrigatória, diferentemente do que sucede em IVA).
Acresce que, com a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro (diploma que também extinguiu a CSR), o legislador introduziu no artigo 2.º do CIEC uma referência expressa à imposição legal de repercussão dos impostos especiais de consumo, tendo, no artigo 6.º da referida lei, sido atribuída natureza interpretativa a tal alteração legislativa. Tal corresponde ao reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre decorreu da lei nos impostos especiais de consumo, no qual se enquadrava materialmente a CSR.
Assim, a natureza legal da repercussão do imposto que já resultava clara dos arts. 2.º e 3.º da Lei n.º 55/2007, veio a ser reforçada pelo art. 2.º do CIEC, na redação do redação dada Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.[5]
Apesar da controvérsia constitucional em torno das leis interpretativas em matéria fiscal, nem todas as leis a que o legislador atribua natureza interpretativa serão retroativas e, consequentemente, inconstitucionais. No acórdão n.º 121/2023, tirado em Plenário, o Tribunal Constitucional consolidou a distinção entre leis “genuinamente” interpretativas, que são aquelas que vêm fixar um do sentidos possíveis de uma norma controvertida e que, por isso, não frustram as legítimas expetativas dos contribuintes, e as leis “falsamente” interpretativas, ou seja, leis às quais o legislador atribui caráter interpretativo, mas que têm conteúdo inovador desfavorável para o contribuinte, que são proibidas à luz do artigo 103.º, n.º 3 da CRP. E como de seguida se demonstrará o alcance subjetivo das garantias atribuídas ao repercutido não era, antes da aprovação da lei nova, aspeto isento de controvérsia.
Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa escreveu, ainda antes da alteração legislativa de que resultou a atual redação do art. 2.º do CIEC:
“Nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o do direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18º, nº 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face dos respetivos regimes legais, a lei exige o pagamentos dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende Tributar” [CPPT, anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 106 (anotação ao art. 9.º)].
Também Sérgio Vasques pugna pela indistinção, para efeitos da aplicação do n.º 2 do artigo 54.º da LGT (“As garantias dos contribuintes previstas no presente capítulo aplicam-se também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, na parte não incompatível com a natureza destas figuras”), entre a repercussão obrigatória prevista para o IVA e a repercussão facultativa que vale para os impostos especiais sobre o consumo:
“O artigo 54.º, n.º 2 da LGT acrescenta ainda que as garantias dos contribuintes se aplicam também à autoliquidação, retenção na fonte ou repercussão legal a terceiros da dívida tributária, “na parte não incompatível com a natureza destas figuras”. A. Lima Guerreiro (2001), 254, observa a propósito que as normas de procedimento da LGT se aplicam à repercussão obrigatória que podemos dizer existir no contexto do IVA em virtude da obrigação geral da menção em factura, e a uma repercussão facultativa, que mais frequentemente encontramos na área dos impostos especiais sobre o consumo, taxas e contribuições. E, bem vistas as coisas, faltam razões para distinguir entre uma e outra modalidades de repercussão, quando está em jogo facultar defender o repercutido contra a exigência de tributo superior ao devido (...)”.[6]
Assim, é de considerar que do art. 18.º, n.º 4, al. a) resulta, desde logo, a consagração do direito à impugnação por parte dos consumidores/utilizadores de combustíveis, como repercutidos.
Mesmo que assim não fosse e se entendesse que os consumidores de combustíveis utilizadores da rede rodoviária nacional não suportam a CSR por repercussão legal, seria de considerar que, face ao art. 9.º, n.ºs 1, in fine, e 4, do CPPT, e ao princípio da tutela judicial efetiva, as Requerentes dispõem de legitimidade processual. Como reconhecido na doutrina, o CPPT parte de um conceito de legitimidade processual mais amplo que o da lei processual civil (artigo 26.º CPC), que não assenta na titularidade da relação jurídica tributária, antes abrange todos quantos possam ser diretamente afetados pelo que possa vir a ser decidido no processo [Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, vol. I, 2006, p. 120 (anotação ao art. 9.º)].[7]
Efetivamente, afigura-se que, face a estas regras e princípios, tendo as Requerentes suportado por repercussão um imposto cujo regime jurídico visa tributar a sua capacidade contributiva, não existe fundamento jurídico para que lhes seja negado o direito de invocar a sua ilegalidade e impugnar o tributo na jurisdição fiscal, com base em pretensa ilegitimidade processual, tanto mais que, nos termos do art. 7.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c) do RJAT e por força do princípio da tutela judicial efetiva “[P]ara efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
Acresce que se acompanham as seguintes considerações constantes da decisão arbitral do processo 410/2023-T[8]:
“(...) O regime da CSR, na versão anterior à Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, foi criado tendo em vista a repercussão nos consumidores das quantias cobradas a esse título pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos.
Na verdade, no artigo 2.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, vigente em 2018 e 2019) estabelece-se que «o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da IP, S. A., tendo em conta o disposto no Plano Rodoviário Nacional, é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável» e no n.º 3 do mesmo artigo (na redacção inicial) estabelece-se que «a contribuição de serviço rodoviário constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis».
Como se refere no despacho do TJUE de 07-02-2022, processo n.º C-460/21,
«39 A obrigação de reembolsar os impostos cobrados num Estado-Membro em violação das disposições da União conhece apenas uma exceção. Com efeito, sob pena de conduzir a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito, a proteção dos direitos garantidos na matéria pela ordem jurídica da União exclui, em princípio, o reembolso dos impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando seja provado que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente noutras pessoas».
«42 Por conseguinte, um Estado-Membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por uma pessoa diferente do sujeito passivo e quando o reembolso do imposto conduzisse, para este sujeito passivo, a um enriquecimento sem causa. Daqui resulta que, se só tiver sido repercutida uma parte do imposto, as autoridades nacionais só estão obrigadas a reembolsar o montante não repercutido»
43 «... a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos».
Como decorre desta jurisprudência, há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.
Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso.
No caso em apreço, ocorreu efectivamente repercussão completa da CSR (….)pelo que apenas cada uma das Requerentes é titular do direito ao reembolso repercutido nas vendas de combustível que adquiriu.
É corolário desta jurisprudência do TJUE que, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem legitimidade para impugnar os actos que a concretizem ou os que a antecedam, pois apenas o repercutido é afectado na sua esfera jurídica pelo acto lesivo e o substituto só terá legitimidade na medida em que não tenha repercutido integralmente o tributo que suportou nessa qualidade.
É essencialmente este o regime que no artigo 132.º do CPPT se prevê para os casos de impugnação em caso de substituição com retenção na fonte, que deve considera-se aplicável, por analogia, a todos os casos de substituição. Na verdade, como foi esclarecido na redacção do n.º 2 do artigo 20.º da LGT introduzida pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, ao dizer que «a substituição tributária é efetivada, designadamente, através do mecanismo de retenção na fonte do imposto devido», a retenção na fonte do imposto devido é apenas uma das formas de substituição tributária.
Assim, no caso em apreço, tendo havido repercussão do tributo, são os repercutidos quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram as suas esferas jurídicas, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).
Essa legitimidade é assegurada, a nível do direito ordinário, tanto a nível procedimental como processual, pelos artigos 18.º, n.º 4, alínea a), 54.º, n.º 2, 65.º e 95.º, n.º 1, da LGT, conjugados com os n.ºs 1 e 4 do artigo 9.º do CPPT, aplicáveis aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, na medida em que reconhecem legitimidade procedimental e processual a quem for titular de um interesse legalmente protegido (...)”.
No que respeita à questão da intervenção provocada, acompanha-se, ainda, a mesma decisão, onde se pode ler:
“De qualquer modo, a intervenção provocada nem seria admissível no contencioso arbitral tributário, pois a intervenção nos processos arbitrais, como é próprio deste tipo de processos, assenta em manifestações de vontade das partes, seja através da apresentação voluntária de um pedido de constituição do tribunal arbitral ou um requerimento de intervenção espontânea, no caso dos sujeitos passivos, quer através de vinculação genérica, no caso da AT.
Pelo exposto, improcede a excepção da ilegitimidade e indefere-se o requerimento de intervenção provocada.”
Assim, julga-se improcedente a exceção da ilegitimidade e indefere-se o requerimento de intervenção provocada.
17. Da ilegalidade das liquidações: a questão da violação do Direito da União
A questão da relação entre os artigos 15.º e ss. do CIEC e o procedimento de revisão oficiosa do artigo 78.º da CIEC foi tratada supra, pelo que se dão por reproduzidas, quanto a este ponto da defesa por impugnação da AT (pontos 167.º ss.), as considerações e juízos aí vertidos.
A AT defende-se por impugnação contrariando a asserção de que a CSR não tem um “motivo específico” na aceção do 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE (pontos 195.º ss. da Resposta). Invoca que o contrato de concessão da rede rodoviária nacional adstringe a CSR à prossecução de objetivos não orçamentais, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
As Requerentes, louvando-se no Despacho do Tribunal de Justiça, Vapo Atlantic, processo C-460/21, e em jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, alegam que não preside à CSR qualquer “motivo específico”, distinto do subjacente ao ISP. Solicitam, por conseguinte, ao Tribunal arbitral que, em linha com o princípio do primado do Direito da União, ínsito no artigo 8.º, n.º 4 da CRP, desaplique as normas da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto, e declare a ilegalidade dos atos de liquidação de CSR.
O Despacho Vapo Atlantic, já se disse, foi proferido na sequência de um pedido de reenvio prejudicial efetuado por um Tribunal arbitral do CAAD, no processo n.º 564/2020-T. Entre outras, o Tribunal de Justiça foi chamado a responder à seguinte questão: “O artigo 1.°, n.º 2, da Diretiva [2008/118], e designadamente a exigência de “motivos específicos”, deve ser interpretado no sentido de que a finalidade de um imposto é meramente orçamental quando a sua criação é feita com o objetivo de financiar empresa pública concessionária da rede nacional de estradas, por ocasião da renovação da sua concessão, e à qual a receita do imposto fica genericamente afetada, e a sua estrutura não atesta a intenção de desmotivar um qualquer consumo?”.
Entendeu o Tribunal de Justiça que a resposta à questão prejudicial poderia ser claramente deduzida da jurisprudência ou não suscitava qualquer dúvida razoável, pelo que estariam verificados os pressupostos para que pudesse pronunciar-se através de Despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. O que aconteceu, em termos que o Tribunal arbitral sintetiza da seguinte forma (§§ 20-36):
a) A Diretiva 2008/118/CE não se opõe a que os Estados-membros estabeleçam outras imposições indiretas para além do imposto especial sobre o consumo mínimo. Mister é que tais imposições, no sentido de não entravar as trocas comerciais, sejam cobradas por “motivos específicos” e sejam conformes com as normas fiscais da União aplicáveis ao imposto especial de consumo e ao imposto sobre o valor acrescentado no que diz respeito à determinação da base tributável, à liquidação, à exigibilidade e ao controlo do imposto (artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva).
b) O facto de um imposto ter uma finalidade orçamental não obsta a que possa ter uma finalidade específica na aceção da Diretiva. Mas a existência de um motivo ou finalidade específicos pressupõe que se possa estabelecer, a partir do regime jurídico do tributo, uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa.
c) A alocação da receita do tributo ao financiamento de atribuições administrativas, em particular a adjudicação da receita da CSR ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional, constitui um elemento relevante, ainda que insuficiente, para que se logre identificar um motivo específico.
d) Para que se considere que a imposição indireta prossegue efetivamente uma finalidade específica, mormente de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental, é necessário que o produto desse imposto seja obrigatoriamente utilizado para reduzir os custos sociais e ambientais associados à utilização da rede rodoviária nacional. O que não acontece com a CSR, cuja receita se destina, mais amplamente, a assegurar o financiamento da atividade de conceção, projeto, construção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Acresce que a estrutura da CSR, nomeadamente a matéria coletável ou a taxa de tributação, não espelha, em termos suficientemente precisos, o propósito de reduzir a sinistralidade, dissuadir os sujeitos passivos do tributo de utilizarem a rede rodoviária nacional ou incentivar a adoção de comportamentos menos nocivos para o ambiente.
e) A CSR tem uma finalidade puramente orçamental, na aceção da Diretiva 2008/118/CE.
É certo que, em sede de reenvio prejudicial de interpretação, o Tribunal de Justiça se limita a esclarecer o modo como devem ser interpretadas as disposições de Direito da União (originário ou derivado) pertinentes para a resolução do caso concreto, não se debruçando sobre a questão principal do processo, que é reduto de competência do órgão jurisdicional nacional.
Contudo, no Despacho analisado, o Tribunal de Justiça afirma claramente que as finalidades específicas apontadas pela AT – a redução da sinistralidade e a sustentabilidade ambiental – não se mostram suficientemente respaldadas na estrutura do tributo, em termos de matéria coletável ou da taxa de tributação aplicável. Esta asserção não é infirmada pelo que eventualmente resulte do clausulado do contrato de concessão da rede rodoviária nacional, ao contrário do que sugere a Requerida. O Tribunal de Justiça é muito claro no sentido de que não se prova uma relação direta entre a utilização das receitas e a finalidade da imposição em causa só porque a entidade a quem está legalmente alocada a respetiva receita assumiu compromissos no âmbito da redução da sinistralidade ou da proteção do ambiente.
Não tendo sido alegados elementos que permitam chegar a outra conclusão, entende o Tribunal arbitral que a CSR é uma imposição indireta que não prossegue um motivo específico na aceção da Diretiva 2008/118/CE. Consequentemente, as liquidações emitidas pela AT à N..., que estão subjacentes à cobrança de CSR às Requerentes, enfermam de vício de lei, por incompatibilidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, com o artigo 1.º, n.º 2 da Diretiva 2008/118/CE. Esta ilegalidade justifica a anulação das liquidações, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, al. c), da LGT.
18. Restituição do imposto
A Requerida insiste, ainda, na defesa por impugnação, que não deve haver lugar à restituição do imposto indevidamente liquidado por, segundo o acórdão Danfoss, processo C-94/2010, do Tribunal de Justiça, um Estado-membro poder “opor-se a um pedido de reembolso de um imposto indevido apresentado pelo comprador final sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, quem tiver suportado afinal o encargo possa, nos termos do direito interno, exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo”.
Vejamos:
O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que os Estados-membros estão, em princípio, obrigados a restituir os impostos cobrados por um Estado-membro em violação do Direito da União. Esta obrigação conhece apenas uma exceção, reiterada no Despacho Vapo Atlantic: um Estado-membro só se pode opor ao reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da UE quando as autoridades nacionais provarem que o imposto foi suportado na íntegra por pessoa diferente do sujeito passivo e que o reembolso do imposto implicaria um enriquecimento sem causa deste último (Despacho Vapo Atlantic, §39-42; acórdão Weber’s Wine, processo C-147/01, §93-94).
A repercussão de um imposto não se presume mesmo quando seja legalmente exigida a incorporação do imposto no preço de venda dos bens (repercussão legal obrigatória), ou mesmo que, habitualmente, no domínio do comércio, o imposto seja parcial ou totalmente repercutido. Neste sentido, para o Tribunal de Justiça, a repercussão tributária – obrigatória, ou não – é uma questão de facto, que depende de fatores inerentes a cada transação comercial e será mais ou menos provável consoante as caraterísticas do mercado, mormente a sua elasticidade ou inelasticidade (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44; Weber’s Wine, processo C-147/01, §96).
Mesmo quando se prove a ocorrência de repercussão, a restituição do imposto ao sujeito passivo não consubstancia necessariamente um enriquecimento sem causa, porquanto o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição das suas vendas, por comparação com produtos sucedâneos não sujeitos a idêntica imposição. A circunstância de a lei prever a repercussão não dispensa a AT ou o particular (consoante os casos) de demonstrar que essa repercussão ocorreu, cabendo a decisão ao órgão jurisdicional nacional decidir, a partir da livre apreciação dos elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (Despacho Vapo Atlantic, processo C-460/21, §44).
Em nome da autonomia processual dos Estados-membros, o Direito da União não reclama que o direito processual dos Estados-membros preveja um mecanismo de reação do suportador económico do imposto (o adquirente ou comprador) diretamente junto das autoridades fiscais dos Estados-membros, desde que este possa exercer uma ação civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso não seja na prática impossível ou excessivamente difícil (acórdão Danfoss, processo C-94/10, §29). No entanto, caso a reparação do dano sofrido pelo comprador que suportou o encargo económico do imposto indevido nele repercutido se revelar impossível ou excessivamente difícil, o princípio da efetividade exige que esse comprador tenha a possibilidade de dirigir o seu pedido de indemnização diretamente contra o Estado, sem que este possa validamente opor-lhe a falta de nexo direto de causalidade entre a cobrança do imposto indevido e o dano sofrido pelo comprador (idem, §38).
Tudo isto a demonstrar que, mesmo aqueles Estados-membros que não confiram legitimidade direta ao adquirente / comprador, terão, em certas circunstâncias, de acautelar vias processuais que permitam a restituição do imposto, não podendo, nesses casos, invocar obstáculos jurídicos à compensação do dano sofrido. Ou seja, na eventualidade de a ação civil de restituição do indevido tornar impossível ou excessivamente difícil a recuperação do que foi indevidamente suportado, o Estado-membro tem de estar preparado para receber e dar satisfação ao pedido de reembolso, não lhe bastando alegar que não houve repercussão do imposto sobre o adquirente / comprador, ou – acrescente-se – que não lhe é possível identificar os atos de liquidação do imposto a montante praticados.
Por outro lado, o Direito da União não se opõe a que o suportador económico do imposto possa obter diretamente das autoridades fiscais nacionais a restituição do montante de imposto cujo encargo suportou, caso em que a questão do reembolso ao sujeito passivo (prestador ou fornecedor de bens e serviços) não chega, dessa forma, a colocar-se (acórdão Comateb, processo C-192/95 a C-218/95, §24).
O Tribunal arbitral deu como provada a repercussão da CSR sobre as Requerentes, pelas razões expostas supra e que não interessa repetir. Conforme jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça, a repercussão de um imposto – obrigatória ou não – é uma questão de facto, sobre a qual não recai qualquer presunção nem em benefício da AT nem em benefício da Requerente. O Tribunal arbitral não presumiu a repercussão da CSR sobre as Requerentes. Fazê-lo constituiria um evidente atropelo à interpretação veiculada pelo Tribunal de Justiça, à qual este Tribunal arbitral está vinculado. Mas não pode o tribunal arbitral obnubilar os meios de prova que as Requerentes submeteram à sua apreciação. Isso sim constituiria, sob várias perspetivas, uma violação do Direito da União Europeia e da Constituição da República.
Ora, se os factos provados evidenciam que houve repercussão da CSR pela N... S.A, não demonstram, todavia, que tenha havido repercussão da CSR pelas Requerentes sobre os seus clientes. E não é por estar em causa outro momento da cadeia comercial que são diferentes as regras sobre o ónus da prova: a repercussão não se presume – eis o dito do Tribunal de Justiça. Esta asserção não varia ao sabor do tipo de repercussão tributária, como também é insensível aos segmentos do circuito económico do bem ou serviço transacionado.
Finalmente, nada obsta a que o Estado-membro preveja vias processuais que assegurem ao adquirente / comprador recuperar o imposto indevidamente suportado diretamente junto das autoridades fiscais nacionais. O entendimento amplo de legitimidade processual constante do artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT, que abrange qualquer pessoa que possa dizer-se diretamente afetada pelo que no processo possa vir a ser decidido, dá arrimo à pretensão do adquirente / comprador. Por essa razão, de nada vale evocar o dito do Tribunal de Justiça no acórdão Danfoss, processo C-94/10. O que aí se diz é que o direito da União não obriga os Estados-membros a assegurar uma via processual direta em benefício do comprador / adquirente, desde que assegurada uma ação civil de repetição do indevido. Mas não inibe, bem entendido, os Estados-membros de consagrarem uma tal via processual de reação, no exercício da autonomia que lhes é reconhecida nestas matérias. E é isso que, no entender do Tribunal arbitral, acontece no caso português.
Destarte, não se verifica qualquer obstáculo à restituição do imposto indevidamente suportado, nem a condenação da AT em tal restituição se mostra, ao contrário do alegado, arredada das competências dos tribunais arbitrais (artigo 100.º, n.º 1 da LGT, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT).
19. Juros indemnizatórios
A par do pedido de anulação das liquidações de CSR, e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagaram em excesso, as Requerentes pedem ainda que se lhes seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º, n.ºs 1 e 3, al. c) da LGT.
Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
Ora, conforme resulta de tudo quanto vem de ser dito, as liquidações (agora anuladas) assentaram em erro imputável aos serviços, da qual resultou o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Assim, tendo havido um pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação (agora anulados), os juros indemnizatórios são devidos desde da data em que se se tenha completado um ano sobre a formulação do pedido, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 3 do mesmo preceito, conforme jurisprudência firmada (cf., entre outros, os acórdãos do STA de 20.05.2020, processo 05/19.8BALSB, prolatado pelo pleno da Secção de contencioso tributário; e de 03.06.2020, processo n.º 018/10.5BELRS 095/18).
Alicerça o STA este arrazoado na circunstância de o contribuinte, podendo ter obtido anteriormente a anulação do ato de liquidação, se ter temporariamente desinteressado da recuperação do que foi liquidado em excesso pela administração tributária, até à apresentação do pedido de revisão oficiosa «(...) A reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não desenvolveu, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão, nomeadamente nos três meses seguintes ao termo do prazo de pagamento voluntário usando o processo de impugnação do acto de liquidação» – cf. acórdão do STA de 11.12.2019, processo 058/19.9BALSB.
Neste conspecto, uma vez que o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 30.11.2022, conclui-se que são devidos juros indemnizatórios a partir de 01.12.2023.
IV- Decisão
De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela AT;
b) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
c) Anular as liquidações de CSR subjacentes às faturas indicadas nos documentos n.ºs 1 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, emitidas pela N..., S.A., bem como os atos de repercussão consubstanciados em cada uma destas faturas;
d) Julgar procedente o pedido de reembolso de quantias indevidamente pagas formulado pelas Requerentes, quanto ao valor de € 7.436.875,66, e condenar a Administração Tributária a pagar-lhes essa quantia;
e) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a AT a pagá-los às Requerentes a partir de 01.12.2023.
Valor da ação: € 7.436.875,66, nos termos do disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas pela Requerida, no valor de € 92.718,00, nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de Março de 2024
Os Árbitros
(Carla Castelo Trindade, vencida conforme declaração em anexo)
(Marcolino Pisão Pedreiro)
(Marta Vicente)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Com a devida vénia pelo presente colectivo, voto vencida por discordar do entendimento que fez vencimento quanto à (i) ineptidão do pedido arbitral, (ii) ilegitimidade das Requerentes e (iii) prova da repercussão da CSR. Vejamos cada uma das questões.
(i) Ineptidão do pedido arbitral
A arbitragem tributária – à semelhança do contencioso tributário em geral – é um contencioso de plena jurisdição “mitigada”, de natureza ou matriz predominantemente “objectivista”, que tem no acto tributário, maxime de liquidação, o seu elemento central (neste sentido vide Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ª ed., Coimbra Editora, 2014, pp. 292-293).
Quer isto dizer que através da arbitragem tributária os particulares não visam uma tutela da relação jurídico-tributária estabelecida com AT, considerada na sua plenitude, mas tão só dos concretos actos tributários que nos termos conjugados do artigo 2.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março podem ser objecto de contestação.
O recurso à arbitragem tributária depende necessariamente da imputação de vícios a um determinado acto tributário previamente praticado e devidamente identificado que consiste no objecto do processo, cuja anulação ou declaração de nulidade ou inexistência se requer (em sentido próximo ainda que relativamente à impugnação judicial vide o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.12.2020, proc. n.º 0545/13.2BEVIS).
É por isto que se exige na alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT que o pedido de constituição de tribunal arbitral deve ser acompanhado da “identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral”.
Ora, no pedido arbitral as Requerentes contestaram a legalidade de actos de liquidação de CSR incidentes sobre a N..., referentes ao período compreendido entre Novembro de 2018 e Outubro de 2022, contudo, não identificaram quais os concretos actos impugnados.
No decurso dos autos as Requerentes juntaram apenas facturas que titulam aquisições de combustíveis rodoviários à N... e declarações por esta emitidas onde se alega ter sido o encargo da CSR totalmente repercutido nas Requerentes.
Ora, mesmo que se admitisse que as referidas facturas e declarações provam a repercussão da CSR – o que, como se verá, considero não ter sido demonstrado –, certo é que aqueles não são actos tributários, muito menos de liquidação. Não são actos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria colectável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto. E não são actos tributários de liquidação stricto sensu porque não tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada (quanto ao desenvolvimento destes conceitos vide Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, Contencioso Tributário, vol. I, Almedina, 2017, p. 278).
Consequentemente, as facturas e as declarações juntas pelas Requerentes aos autos não se subsumem a nenhum dos “tipos” de actos considerados arbitráveis nos termos do já referido artigo 2.º do RJAT.
Acresce que ao contrário do defendido pelas Requerentes e sufragado pelo Tribunal Arbitral, aqueles actos também não permitem identificar e caracterizar perfeita e cabalmente as liquidações impugnadas incidentes sobre a N... .
Tal como evidenciou a Requerida, sem contestação ou contraprova das Requerentes, a fornecedora N... apresentou declarações de introdução no consumo (“DIC”) diárias em diferentes alfândegas, sendo cada uma delas competente para emitir a DIC globalizada e consequente liquidação (artigos 10.º, n.º 6, 10.º-A e 11.º do Código dos IEC ex vi artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto). Portanto, as facturas a que aludem as Requerentes podem corresponder a qualquer uma das DIC globalizadas submetidas pela N... nas diferentes alfândegas.
Isto sem contar que a liquidação e pagamento da CSR situam-se no circuito económico a montante das vendas de combustíveis rodoviários efectuadas pela N... às Requerentes, inexistindo uma correspondência temporal entre liquidações e facturas emitidas. Portanto, as facturas a que aludem as Requerentes podem estar associadas a várias das liquidações que foram emitidas à N..., sem que a factura de um determinado mês corresponde à liquidação globalizada desse mês.
Isto sem contar ainda que no giro comercial é comum que um operador económico declare para introdução no consumo a partir de um seu Entreposto Fiscal produtos que são propriedade de outro fornecedor de combustíveis. Nestas situações, o operador económico que apresenta a DIC é o sujeito passivo a quem é liquidada a CSR, ainda que seja o outro fornecedor de combustíveis quem irá vender, através do Entreposto Fiscal do sujeito passivo que apresentou a DIC, os produtos aos seus clientes. Portanto, as facturas a que aludem as Requerentes podem respeitar a liquidações de que foi objecto a N... ou qualquer outro fornecedor de combustíveis a quem aquela possa ter solicitado a declaração para introdução no consumo.
Este conjunto de circunstâncias demonstra os óbices e dificuldades práticas que tornam excessivamente difícil ou até mesmo inviável a identificação pela AT dos actos de liquidação que as Requerentes pretendem contestar sem a intervenção da N..., que é a entidade que está verdadeiramente capacitada para estabelecer um nexo causal entre as facturas emitidas às Requerentes que alegadamente titulam a repercussão da CSR e as liquidações que lhe estão a montante. E assim é porque, conforme se verá, é a N... que na qualidade de sujeito passivo do imposto tem legitimidade para contestar a sua legalidade, existindo no ordenamento jurídico formas específicas de tutela dos direitos dos repercutidos – qualidade que, conforme se verá também, não assiste às Requerentes.
Dito isto, certo é que a posição que fez vencimento neste colectivo desconsiderou a violação pelas Requerentes do ónus de identificação dos actos de liquidação que decorre da alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT. Violação esta que por aplicação das regras de distribuição do ónus da prova fixadas no artigo 74.º, n.º 1 da LGT deve ser processualmente valorada contra quem pretende demonstrar os factos constitutivos dos seus direitos, isto é, contras as Requerentes que pretendem a declaração de ilegalidade e consequente anulação de actos de liquidação que não lograram identificar.
Admitir como válido o incumprimento deste ónus que a lei faz especificamente recair sobre aquele que tem o impulso processual de impugnação significaria permitir a existência de uma acção com um objecto processual inexistente ou, pelo menos, insuficientemente delimitado.
Com efeito, pergunta-se: que actos de liquidação julgou o Tribunal Arbitral ilegais? Que actos de liquidação deve a AT anular para executar a decisão proferida por este Tribunal Arbitral? Todos os actos de liquidação emitidos à N... no período compreendido entre Novembro de 2018 e Outubro de 2022? Todos os actos de liquidação emitidos naquele período mas apenas no quantum de CSR que se presume repercutido nas facturas emitidas às Requerentes? Tais actos de liquidação ainda existem sequer na ordem jurídica ou terão já sido contestados e eventualmente anulados? E se as facturas emitidas às Requerentes respeitarem a actos de liquidação emitidos a outros fornecedores de combustíveis ainda que comercializados pela N...? Deverá a AT anular actos de liquidação não relacionados com as facturas juntas pelas Requerentes aos autos? No limite, tal identificação terá de ser feita em sede de execução de sentença, já que o Tribunal Arbitral não dispõe de elementos para identificar os actos cuja anulação determina…
Tudo isto são questões a que o Tribunal Arbitral não dá resposta e que, em bom rigor, não tem como responder. Tudo isto são questões que demonstram a consequência da prossecução de uma acção sem objecto processual. Tudo isto demonstra que a decisão do presente Tribunal Arbitral será desprovida de efeitos úteis práticos. Tudo porque o Tribunal declara a ilegalidade e consequente anulação de actos de liquidação que desconhece.
Tal solução não pode, evidentemente, ser admitida, como bem evidenciou o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 7.2.2018, proc. n.º 01400/17 ou o Tribunal Arbitral no acórdão de 28.9.2021, proc. n.º 693/2020-T, cujas considerações se dão aqui por integralmente reproduzidas.
Por fim, convém ter presente que mais do que impedir a prolação de uma decisão arbitral com efeitos práticos úteis, a inexistência de objecto processual impede antes de mais que o Tribunal possa apreciar o mérito da causa. É que é por referência aos actos tributários de liquidação contestados que o Tribunal Arbitral afere o preenchimento dos pressupostos processuais.
Sem acto tributário, não pode o Tribunal Arbitral aferir em concreto se é competente em razão da matéria e do valor, se o pedido arbitral foi tempestivamente apresentado ou se as partes são legítimas. Qualquer conclusão formulada a esse respeito corresponderá a um mero exercício académico, feito em termos abstractos e hipotéticos, que por muito notável que seja configura uma pronúncia indevida que extravasa as funções jurisdicionais conferidas aos Tribunais Arbitrais.
Para efeitos elucidativos, questiona-se: como pode considerar o Tribunal Arbitral que o pedido é tempestivo se não sabe e não tem como saber se a revisão oficiosa apresentada pelas Requerentes – que indevidamente se admite como válida, já que é aplicável o regime especial de reembolso por erro na liquidação previsto no artigo 15.º do Código dos IEC – respeitou o prazo de 4 anos após a liquidação a que alude a 2.ª parte, do n.º 1, do artigo 78.º da LGT?
Conforme se referiu supra, a liquidação da CSR é feita na sequência da apresentação da DIC pelo sujeito passivo daquele imposto, inexistindo uma necessária e inequívoca correspondência temporal entre tal momento e a posterior venda desses combustíveis pela N... às aqui Requerentes. As facturas juntos aos autos são, portanto, inócuas para aferir a tempestividade da revisão oficiosa e, consequentemente, do pedido arbitral.
Por conseguinte, se não sabe o Tribunal Arbitral quando foram praticadas as liquidações, como é que julgou o pedido tempestivo?
Tudo isto são questões que o Tribunal Arbitral ignorou e que, no meu entender, justificam a procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e a absolvição da Requerida da instância, nos termos conjugados do artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, do artigo 89.º, n.º 4, alínea b) do CPTA e dos artigos 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a), c) e e) do RJAT.
(ii) Ilegitimidade das Requerentes
Na posição que fez vencimento considerou-se que as Requerentes tinham legitimidade para contestar os actos de liquidação de CSR emitidos à N... porque, no entender do Tribunal Arbitral, aquelas suportaram o encargo da CSR por repercussão legal.
Para sustentar o sentido decisório defendido aludiu o Tribunal Arbitral aos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, defendendo que o propósito do legislador foi o de “tributar os consumidores de combustíveis, como utilizadores da rede rodoviária nacional”. Propósito este que o Tribunal considerou reforçado pela Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro que alterou o artigo 2.º do Código dos IEC de forma a clarificar que o intuito subjacente aos impostos especiais de consumo é a ocorrência de repercussão.
Enquanto ponto de partida, convém registar que se o intuito do legislador fosse estabelecer a repercussão da CSR como uma imposição legal tê-lo-ia feito expressamente na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, à semelhança do que acontece no âmbito do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), onde o legislador determinou no artigo 37.º, n.º 1 do Código daquele imposto que “A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da fatura, para efeitos da sua exigência aos adquirentes dos bens ou destinatários dos serviços”. No entanto, no domínio da CSR apenas se determina que esta é devida pelos sujeitos passivos de ISP, nada se dizendo sobre quem deve suportar economicamente o encargo do imposto.
O Tribunal Arbitral procura justificar a diferença de regimes alegando que em ambas as situações a imposição legal de repercussão foi o propósito do legislador mas que só no caso do IVA é que esta surge como obrigatória.
Salvo o devido respeito, que sentido faria estabelecer uma previsão legal de repercussão, como forma de garantir a oneração dos utilizadores da rede rodoviária nacional a cargo da Infraestruturas de Portugal pelo consumo de combustíveis rodoviários ali realizado e, simultaneamente, não assegurar a afectação do imposto que é pretendida? Se o legislador determinou que a CSR deve ser repercutida, porque é que deixa na disponibilidade do sujeito passivo de imposto a decisão sobre em que esfera irá incidir a sua oneração?
Não se compreende, enfim, porque considera o Tribunal Arbitral que resulta do regime jurídico da CSR que esta deve ser repercutida apesar de, estranhamente, considerar indiferente se esta efectivamente é repassada ou não. De acordo com o Tribunal Arbitral, parece resultar do regime jurídico da CSR a existência de uma “obrigação legal facultativa” de repercussão.
A existir uma imposição legal de repercussão da CSR, seria lógico que o legislador tivesse estabelecido formas de controlar e provar a sua ocorrência, como acontece no domínio do IVA onde o encargo do imposto tem de constar da factura emitida pelo fornecedor de bens ou prestador de serviços. No domínio da CSR tal obrigação apenas surgiu com a Lei n.º 5/2019, de 11 de Janeiro, que no seu artigo 16.º passou a exigir a discriminação em factura dos impostos suportados pelos consumidores nas aquisições de GPL e de combustíveis derivados do petróleo comercializados em postos de abastecimento.
Conforme se compreende, tal exigência não se aplica à generalidade das transacções de combustíveis rodoviários em que a CSR pode ser repercutida mas apenas a um específico conjunto de operações, onde não se incluem as transacções praticadas entre a N... e as aqui Requerentes.
Fica assim evidente que não resulta de qualquer norma jurídica uma imposição legal de repercussão da CSR.
Para fundamentar o carácter legal da repercussão o Tribunal Arbitral alude ainda às alterações promovidas pelo artigo 3.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, que conferiu ao artigo 2.º do Código dos IEC a seguinte redacção “Os impostos especiais de consumo obedecem ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública, sendo repercutidos nos mesmos, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”.
O que esta alteração torna evidente é que o legislador sentiu necessidade de deixar claro que no domínio dos IEC se pretende que ocorra a repercussão dos tributos liquidados. O que apenas se compreende pelo facto de a obrigação de repercussão não estar legalmente consagrada e não resultar igualmente implícita para a generalidade dos tributos abrangidos pelo Código dos IEC, designadamente a CSR.
Por conseguinte, não pode proceder o argumento de que esta alteração “corresponde ao reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre decorreu da lei nos impostos especiais de consumo, no qual se enquadrava materialmente a CRS”, como pretende o Tribunal Arbitral.
Mas mesmo que assim fosse, a verdade é que tal alteração legislativa, que se aplica retroactivamente e que tem natureza meramente interpretativa por força do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, nunca poderia ser admitida. Isto porque a referida alteração viola o princípio da segurança jurídica e a proibição de aplicação de leis fiscais retroactivas prevista no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa pelo que é, nessa medida, materialmente inconstitucional. Neste sentido vide o acórdão do Tribunal Arbitral de 24.10.2023, proc. n.º 644/2022-T, onde a este respeito se referiu o seguinte:
“A Requerente encara a Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, como um reconhecimento da invalidação da CSR pelo TJUE, e a consequente ilegalidade da CSR – e daí a abolição da CSR através da sua “reincorporação” no ISP, consumada naquele diploma.
Para a Requerida, a Lei nº 24-E/2022 determina que a repercussão dos IEC nos consumidores é um efeito legal, ou seja, passa a presumir-se “iuris et de iure” que a repercussão é inerente à tributação especial do consumo – sustentando a Requerida que a retroacção que essa norma interpretativa acarreta terá necessariamente de se fazer sentir nos casos pendentes, como nos presentes autos, tendo por único limite as sentenças transitadas em julgado.
Só que essa leitura do art. 6º da Lei nº 24-E/2022 é inconstitucional, como resulta
claramente do supracitado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 751/2020, de 25 de Janeiro de 2021.”.
Conclui-se, portanto, que ao contrário do defendido na posição que fez vencimento, a CSR não configura um caso de repercussão legal pelo que, a existir, a repercussão sempre representará uma mero fenómeno económico.
Esta conclusão tem consequências no que respeita à legitimidade (procedimental e processual) das Requerentes, já que estas não são nenhum dos “tipos” de sujeito passivo a que alude o artigo 18.º, n.º 3 da LGT nem lhes é reconhecido o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” previsto na alínea a), do n.º 4 do artigo 18.º da LGT para os “contribuintes de facto”, isto é, para os repercutidos que suportam o encargo do imposto por repercussão legal.
A legitimidade processual das Requerentes apenas poderia advir da cláusula residual prevista na parte final do artigo 9.º, n.º 1 do CPPT, que atribui legitimidade a “quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”. As Requerentes fundamentaram tal interesse na existência de repercussão legal e no facto de serem os consumidores finais a quem foi repercutida a CSR. Sucede que, como se viu, não existe na lei qualquer obrigação legal de repercussão e, conforme se explicará infra, as Requerentes não assumem a posição de consumidores finais.
Acresce que mesmo que assim não se entendesse, sempre faltaria legitimidade processual às Requerentes por aplicação das normas especificamente previstas no domínio da CSR. É que o artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto remete para o Código dos IEC quanto à aplicação das normas relativas à “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, o que significa que é aplicável no presente caso o regime do reembolso por erro na liquidação previsto no artigo 15.º do Código dos IEC que prevê que apenas podem solicitar o reembolso no prazo de três anos a contar da data da liquidação (n.º 2) os sujeitos passivos que “tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto” (n.º 3), o que não é manifestamente o caso das Requerentes.
Para maiores desenvolvimentos a este respeito vide as conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão de 1.2.2024, proc. n.º 332/2023-T.
Por fim, considero pertinente registar que a tese que fez vencimento poderá levar a que, por absurdo, se verifiquem sucessivos e múltiplos reembolsos do mesmo quantum de CSR a todos os intervenientes no circuito económico de comercialização de combustíveis rodoviários, que se veriam indevidamente enriquecidos em claro prejuízo do erário público. Neste sentido, sublinhou o Tribunal Arbitral no acórdão de 15.1.2024, proc. n.º 375/2023-T o seguinte:
“compreende‑se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.”.
O Tribunal Arbitral contrapõe a ocorrência de tal possibilidade remetendo para o acórdão arbitral proferido no processo n.º 410/2023-T, onde se afirmou o seguinte:
“há uma obrigação de a Administração Tributária reembolsar os tributos cobrados em violação do Direito de União a quem efectivamente os suportou, pelo que no caso de tributos susceptíveis de repercussão, a titularidade do direito ao reembolso dependerá de ela ter sido ou não concretizada.
Assim, não se coloca a questão da plúrima possibilidade de reembolso pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pois, no caso de ter havido repercussão, apenas o repercutido tem direito ao reembolso”
(…)
Assim, no caso em apreço, tendo havido repercussão do tributo, são os repercutidos quem tem legitimidade para impugnar os actos que afectaram as suas esferas jurídicas, no exercício do direito de impugnação de todos os actos lesivos que lhe é constitucionalmente garantido (artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP).”.
Sem prejuízo de a legitimidade dos repercutidos económicos não resultar da lei e de esta apenas ser atribuída aos sujeitos passivos do imposto, tal como se viu, certo é que a interpretação deste último Tribunal não impede a hipótese de a CSR ser sucessivamente reembolsada.
No entender do Tribunal o reconhecimento do direito de contestar a legalidade das liquidações de CSR ao consumidor final do imposto exclui mutuamente a possibilidade de todos os demais intervenientes exercerem tal direito de impugnação. Esquece-se, porém, aquele e o presente Tribunal, que a prova da repercussão diz respeito à matéria de facto a dar como provada e não provada, sujeita à livre apreciação do julgador, não se formulando quanto à mesma autoridade de caso julgado que possa impor‑se de forma autonomizada e isolada noutros processos (neste sentido vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.11.2021, proc. n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1).
Portanto, a admitir-se como válida a tese que fez vencimento no presente processo, pode perfeitamente ocorrer que diferentes Tribunais cheguem a diferentes conclusões no que respeita à prova da repercussão e ao direito ao reembolso da CSR, com a ocorrência de múltiplos e cumulativos reembolsos.
Por tudo o exposto, conclui-se que as Requerentes não têm legitimidade para impugnar judicialmente a CSR liquidada à N... .
A idêntica conclusão chegaram os Tribunais Arbitrais nos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T e 408/2023-T, cujas considerações aqui se dão por integralmente reproduzidas.
Assim, teria julgado procedente a excepção dilatória de ilegitimidade das Requerentes e determinado a absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
(iii) Prova da repercussão da CSR
Por fim, considero que o Tribunal Arbitral efectuou uma errada valoração da prova produzida nos presentes autos, inexistindo elementos que permitam afirmar que foram as Requerentes a suportar economicamente o encargo da CSR.
Em primeiro lugar, não resultou sequer provado que tenha sido liquidada à N... um quantum de € 7.436.875,66 a título de CSR, muito menos por referência às facturas emitidas por aquela entidade às aqui Requerentes. Para realizar tal prova, as Requerentes limitaram-se a juntar aos autos declarações genéricas emitidas pela N..., que não foram acompanhadas das DIC globalizadas, dos consequentes actos de liquidação e dos respectivos comprovativos de pagamento. Sem esses elementos não é possível certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR, por referência ao período compreendido entre Novembro de 2018 e Outubro de 2022, pela introdução no consumo das quantidades de gasóleo rodoviário referidas no ponto 10.1. da matéria de facto dado como provada.
Em segundo lugar, não resultado provado que tenham sidos as Requerentes, enquanto consumidoras finais, a suportar economicamente o encargo da CSR, como referido no ponto 10.2. da matéria de facto dado como provada.
O Tribunal Arbitral deu como provada a ocorrência da repercussão com base nas declarações emitidas pela N..., com base no funcionamento expectável da CSR que permitiria presumir a existência de repercussão do tributo no consumidor final e com base no facto de não ter sido apresentada nenhuma prova que permitisse entrever que a repercussão não tenha ocorrido.
Ora, as declarações emitidas pela N... são caracterizadas por um elevado grau de abstracção e generalidade, sendo manifesto que as mesmas não versam as concretas transacções realizadas com as Requerentes. Aqueles declarações não estabelecem qualquer correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados. E também não permitem a conjugação das DIC com as consequentes liquidações emitidas pela AT. Isto sem contar que não demonstram a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasóleo rodoviário às Requerentes. Muito menos ainda permitem certificar o grau e/ou medida em que tal incorporação se processou.
A posição do Tribunal Arbitral quanto às referidas declarações não respeita, seguramente, o critério de prova da repercussão fixado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no despacho Vapo Atlantic, de 7.2.2022, proc. n.º C‑460/21. É que da jurisprudência do TJUE resulta que a repercussão, total ou parcial, da CSR, terá de resultar da análise das concretas transacções comerciais efectuadas e do contexto que as envolve, a fim de determinar quem suportou economicamente o encargo do imposto.
Compreenda-se que a necessidade de atender ao caso concreto deve-se ao facto de a repercussão, que representa a transferência do “peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, 2019, p. 399, consistir num fenómeno económico, de amplitude variável, que pode ou não verificar-se de operação para operação.
Acresce que da jurisprudência do TJUE resulta que a prova da repercussão não pode em caso algum ser presumida, mesmo que nos termos da legislação aplicável o fornecedor de combustíveis esteja obrigado a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa.
O que desde logo inquina o raciocínio do Tribunal Arbitral, que não só presume que a CSR foi repercutida pela N... na esfera das Requerentes, como ainda presume simultânea e contraditoriamente que as Requerentes não repercutiram o peso da CSR nos seus clientes.
O Tribunal Arbitral fundamenta a repercussão com base na falta de apresentação de provas de que a N... não repassou a CSR para as Requerentes. Estranhamente, não se pronunciou o Tribunal Arbitral sobre o facto de também não ter sido apresentada nenhuma prova de que a CSR não foi repercutida pelas Requerentes nos respectivos clientes.
Se para o Tribunal Arbitral é legítimo presumir, com base na lógica de funcionamento do imposto e com base em máximas de experiência, que a CSR será sucessivamente repercutida até onerar o consumidor final, porque é que seriam as Requerentes a suportar tal encargo se não são o último interveniente no circuito comercial?
As Requerentes são meros clientes comerciais do sujeito passivo a quem foi liquidada a CSR, isto é, são clientes da N... . As Requerentes não são o utilizador ou consumidor final dos combustíveis rodoviários transaccionados. Os verdadeiros e efectivos utilizadores ou consumidores finais dos combustíveis rodoviários são os clientes das Requerentes que adquirem as viagens, que não se apresentam como operadores económicos e que não têm como repassar o encargo do imposto a terceiros.
Se o Tribunal Arbitral parte do pressuposto que o intuito da CSR é onerar o consumidor final, porque razão não leva o fenómeno da repercussão descendente até ao fim da cadeia comercial?
As Requerentes são empresas que exercem como actividade comercial o transporte rodoviário de passageiros, pelo que os combustíveis rodoviários adquiridos à N... representam um factor de produção utilizado para a prestação daqueles serviços. Se assim é, porque é que as Requerentes não haveriam de incorporar o custo da CSR que alegadamente suportaram no preço das viagens que vendem?
O que é que leva o Tribunal Arbitral a admitir como válido que os operadores económicos que estão a montante das Requerentes se desonerem de suportar a CSR, repercutindo-a nos preços praticados, mas que as Requerentes, que também exercem actividades comerciais que visam um escopo lucrativo, tenham pura e simplesmente decidido suportar economicamente o encargo do imposto ao invés de o repassar aos seus clientes?
Porque elucidativas, vejam-se as seguintes considerações do Tribunal Arbitral no acórdão de 8.1.2024, proc. n.º 408/2023-T, onde estas mesmas interrogações encontram reflexo:
“afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (v. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
(…)
a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, e começando por esta última parte, a Requerente é uma sociedade que se dedica ao transporte, nacional e internacional, de mercadorias [no presente caso de passageiros]. Desta forma, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da atividade de prestação de serviços de transporte realizada pela Requerente, não configurando um consumo final. Nestes termos, se a CSR, conforme alega a Requerente, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida esta não faz parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos.
(…)
Sintetizando sobre o que até aqui se discorreu:
1. A Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
2. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
3. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, que nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).
(…)
Rigorosamente, a Requerente é tão-só um cliente comercial dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não é o sujeito passivo dos atos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
− Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos;
− Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto.”.
Em face do exposto, considero que não ficou demonstrado nos presentes autos que, em última instância, foram as Requerentes a suportar economicamente o encargo da CSR. Consequentemente, tal facto deveria ter sido dado como não provado.
Resulta assim reforçada a falta de legitimidade das Requerentes para contestar a legalidade dos actos de liquidação de CSR emitidos à N..., porquanto aquelas não sofreram qualquer lesão que careca de tutela.
Mas implica também isto que nunca poderia ter sido proferida uma decisão de mérito em sentido favorável às Requerentes, sob pena de estas se enriquecerem abusivamente por via do reembolso de um imposto que não suportaram, solução que não pode naturalmente ser tolerada pelo Direito.
Assim, sempre teria julgado improcedente o pedido arbitral formulado pelas Requerentes.
(Carla Castelo Trindade)
[1] Sobre a sintonia entre a al. e) do art. 16º do RJAT e do art. 99º, nº 1, da LGT, cfr. Jorge Lopes de Sousa, GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno de Villa-Lobos-Tânia Carvalhais Pereira, Revisto e atualizado, 2ª Ed., 2017, pag. 188.
[2] Em que foi árbitro-Presidente e relator o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, integrando também o coletivo os árbitros Dr. Fernando Miranda Ferreira e Dra. Catarina Belim.
[3] Em que também foi árbitro-Presidente e relator o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, integrando também o coletivo os árbitros Dra. Sílvia Oliveira e Professora Doutora Marta Vicente.
[4] Cf., igualmente, os acórdãos do CAAD de 08.11.2023, processo n.º 410/2023-T; de 03.08.2022, processo n.º 629/2021-T; de 16.01.2023, processo n.º 305/2022-T; de 09.02.2024, processo n.º 490/2023-T; de 01.02.2024, processo n.º 332/2023-T, entre outros.
[5] Confirmando, no caso das empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, que estas são repercutidas (conclusão extensível a qualquer contribuinte que proceda ao consumo dos combustíveis em causa) estabelece o art. 93.º-A do CIEC que “1 – É parcialmente reembolsável o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos suportado pelas empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros, com sede ou estabelecimento estável num Estado -Membro, relativamente ao gasóleo classificado pelos códigos NC 2710 19 43 a 2710 19 48 e 2710 20 11 a 2710 20 19 e relativamente ao gás classificado pelos códigos NC 2711 11 00 e 2711 21 00, quando abastecido em veículos devidamente licenciados e destinados exclusivamente àquelas atividades.”
[6] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2021, p. 402, nota n.º 35.
[7] Também Bruno Botelho Antunes, “Impugnação judicial em retenções na fonte – uma nova perspetiva sobre o interesse processual”, Fiscalidade, n.º 37, 2009, pp. 101-112.
[8] Idênticas às produzidas na decisão do Processo n.º 294/2023-T.