Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 499/2023-T
Data da decisão: 2024-02-06  IRS  
Valor do pedido: € 300.313,06
Tema: IRS – Cláusula Geral Anti-abuso – Art. 38.º, n.º 2 da LGT.
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Sumário:

  1. A CGAA deve constituir um instrumento de último recurso. A sua aplicação trivializada fragiliza a previsível aplicação das normas jurídico-tributárias e o próprio sistema tributário ao invés de o fortalecer, pois abala de forma inevitável a confiança que os contribuintes repousam nas normas tributárias, substituindo o modelo de tributação assente em previsão legal, por uma tributação casuística de fonte administrativa ou judiciária, com os inerentes riscos de desvio do padrão do Estado de Direito (“rule of law”). 
  2. Demonstrando-se que as transações realizadas pelo Requerente tiveram genuíno propósito de negócio – impedir a degradação da situação financeira da sociedade C..., através da entrada de um novo sócio e gerente que, dada a experiência de 27 anos como diretor técnico desta, e reconhecido como um dos fatores de sucesso da sua atividade, reunia as condições necessárias para alcançar a sua recuperação – e cuja concretização confirmou todas as expetativas criadas, não se pode considerar que estamos perante atos ou negócios essencial ou principalmente dirigidos à obtenção de uma vantagem fiscal, mas antes, face a operações dotadas de substrato económico.
  3. As operações empreendidas não apresentam caráter artificioso, inusual ou anómalo, constituindo meio idóneo para alcançar o resultado pretendido de assunção de controlo pelo novo sócio e gerente, tendo em vista o desenvolvimento da atividade e a incremental valorização da sociedade C... .
  4. Os efeitos económicos alcançados não são equivalentes aos que se produziriam se se tivesse mantido a mera posição estática dos sócios da C..., pelo que não se divisa um negócio alternativo “não abusivo” de efeito equivalente ou adequado a atingir idêntico fim.
  5. Por fim, não se constata desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito das normas aplicadas (elemento normativo), pois a ordem jurídica não sinaliza a intenção de tributar de forma diferente a venda de participações sociais (quotas) detidas anteriormente a 1989.

 

DECISÃO ARBITRAL

                                                                                                 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Rui Miguel de Sousa Simões Fernandes Marrana e Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 12 de setembro de 2023, acordam no seguinte:

 

           

            I.         Relatório

 

A..., contribuinte número..., adiante “Requerente”, e B..., contribuinte número..., doravante “Segunda Requerente”, designados em conjunto por “Requerentes”, ambos residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

Os Requerentes pretendem que seja anulada a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) referente ao ano 2018, emitida em 9 de dezembro de 2022, sob o número 2022..., e as liquidações de juros compensatórios conexas, tudo no montante total a pagar de € 301.471,57, em relação às quais deduziu reclamação graciosa, que se presumiu tacitamente indeferida em 20 de junho de 2023. Deduzem, ainda, pedido dependente de reembolso do imposto e juros pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, pelo período em que se viram privados da quantia paga, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e nos artigos 43.º, n.º 1 e 100.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).

 

Em 7 de julho de 2023, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à AT.

 

De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 12 de setembro de 2023.

 

            Em 10 de novembro de 2023, a Requerida apresentou a sua Resposta, com defesa por impugnação, e posteriormente juntou o processo administrativo (“PA”).

 

            Em 10 de janeiro de 2024, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual foram inquiridas duas testemunhas indicadas, quer pela Requerente, quer pela Requerida. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas e o Tribunal indicou o dia 11 de março de 2024 como data-limite de prolação da decisão arbitral (v. ata que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).

 

Os Requerentes e a Requerida apresentaram as respetivas alegações em 25 de janeiro de 2024, reafirmando as posições expressas nos articulados antecedentes.

 

Posição dos Requerentes

 

Segundo os Requerentes, as correções à matéria coletável de € 514.250,00 relativas a rendimentos ficcionados da categoria E (v. artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 alínea h) do Código do IRS), resultantes da aplicação da cláusula geral anti-abuso (v. artigo 38.º da LGT, na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, em vigor à data), são inválidas por erro nos pressupostos.

 

Entendem os Requerentes que não estão preenchidas as condições necessárias para que se possa considerar que a venda das participações sociais que o Requerente detinha na sociedade C..., Lda. (adiante “C...”) seja representativa de um negócio jurídico principalmente dirigido, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização desses meios.

 

Consideram absurdo o entendimento, que perpassa do Relatório de Inspeção Tributária e que está na génese das correções, segundo o qual o Requerente não devia ter alienado as suas participações sociais, de maneira a que, sendo sócio à data da distribuição de lucros deliberada em 2018, tais dividendos pudessem ser tributados na sua esfera em IRS.

 

Neste âmbito, os Requerentes apresentam os seguintes argumentos:

  1. Inexiste motivação essencial, principal, marginal, ou mesmo incidental dirigida à obtenção de qualquer vantagem fiscal. A única motivação do Requerente foi a de prestar assistência na reorganização da C..., assegurando a continuidade das suas operações e do seu futuro;
  2. Não se verificou qualquer comportamento alternativo, nem foram identificados “atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico”:
    1. A única “alternativa” que a AT apresenta é a de que o Requerente não venderia a sua quota, ao contrário do que este fez e pretendia, em colisão com a liberdade dos agentes económicos de se autodeterminarem racionalmente;
    2. O Requerente e os outros detentores de participações na C... alienaram as suas participações à sociedade D... Unipessoal, Lda. (doravante “D...”), que não foi criada para a gestão das participações sociais de cada um, mas para concentrar nas mãos de um sócio em que todos acreditavam (E...) um bloco de participações sociais representativas de 70% da mesma sociedade;
    3. A circunstância de o Requerente se ter mantido transitoriamente como sócio da D... não constitui uma situação forçada, inusitada ou artificial. Caso o Requerente não vendesse a sua participação de 30% na C... à D..., esta sociedade ficaria apenas com uma participação de 40% na C..., o que não conferia a E... as condições de controlo por este exigidas para assumir o desafio de recuperação da C...;
    4. Assim, a venda das participações do Requerente foi essencial à assunção de uma posição maioritária de E... na C..., não existindo situação equivalente sem a efetivação dessa venda;
    5. O Requerente é, desta forma, um verdadeiro alienante e não um alienante fictício ou aparente, não tendo ocorrido transmutação de distribuição de lucros e reservas em pagamento do preço de quotas;
    6. Sobre o alegado papel determinante nas deliberações da C..., através da detenção indireta por via da D..., este é falso, pois o Requerente detinha uma participação de 49% no capital desta última e era E... que tinha o controlo efetivo, com a sua participação de 51%;
  3. Além disso, seguindo o raciocínio da Requerida, parece que o pretenso negócio jurídico teria afinal uma vantagem fiscal, mas não para o Requerente, e sim para a D..., por via da eliminação da dupla tributação económica (participation exemption) de lucros e reservas distribuídos (v. artigo 51.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas – “IRC”);
  4. Inexiste nexo de imputação entre o negócio realizado e a vantagem obtida, não podendo o Requerente ser tributado por factos, atos e negócios jurídicos que nunca pretendeu;
  5. A jurisprudência do CAAD sobre casos de “distribuição disfarçada de lucros” (dividend stripping transaction) tem decidido em sentido favorável ao preconizado pela Requerida em situações em que são criadas sociedades e vendidas participações sociais no seio do mesmo grupo, sem que nada se altere na respetiva estrutura organizacional. Os vendedores de participações ficam sócios nas mesmas proporções de uma sociedade recém-constituída que, depois, lhes adquire as participações da sociedade inicial (que tem lucros para distribuir), e não existe um contexto em que se identifiquem outros objetivos além de obstar à tributação em IRS dos rendimentos de capitais. Porém, este circunstancialismo não tem paralelo com o caso do Requerente;
  6. O facto de, no acordo de venda à D..., ter sido diferido o pagamento do preço da(s) quota(s) para data futura ficou a dever-se à falta de liquidez imediata da sociedade conjugada com a confiança depositada no seu sócio maioritário – E...;
  7. Pelo que falta o elemento intelectual de aplicação da cláusula geral anti-abuso, como a reprovação normativo-sistemática, quanto ao putativo recurso a meios artificiosos, fraudulentos ou com abuso das formas jurídicas.

 

            Não sendo devida a liquidação de IRS, os Requerentes concluem pela inexigibilidade de juros compensatórios e pelo direito a serem ressarcidos por juros indemnizatórios.

 

Posição da Requerida

 

            A Requerida, suportada na fundamentação do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), alega que o Requerente, embora tenha deixado de ser sócio da C... a partir de novembro de 2016, manteve o cargo de gerente nesta sociedade e continuou com uma importante participação no seu capital social, por via indireta, através da D... (a quem vendeu a quota da C...), exercendo até outubro de 2021, data em que alienou a participação detida na D..., uma influência significativa na gestão de ambas as sociedades.

           

            Invoca, neste âmbito, que:

 

  1. À data da alienação da quota da C..., esta sociedade dispunha de uma situação financeira e patrimonial equilibrada, que mantinha ao longo do tempo;
  2. Em contraposição, a situação financeira da D... era distinta, e entre 2016 e 2021, esta sociedade não desenvolveu qualquer atividade económica, nem tinha estrutura física, organizacional ou quadro de pessoal;
  3. A partir de 2 de novembro de 2016, a D... passou a deter 70% do capital social da C..., sendo praticamente o único ativo daquela sociedade, valorizado nos anos subsequentes conforme refletido pelo método de equivalência patrimonial;
  4. Porém, a D... adquiriu esta participação sem ter liquidez para pagar o seu preço, ficando acordada uma dilação do pagamento do preço das quotas pelo prazo mínimo de 13 meses;
  5. Só com a distribuição de lucros (resultados transitados e reservas) da C... em 2018 é que a D... passou a ter liquidez para pagar esse preço, e, mesmo assim,  uma parte do valor devido ao Requerente (€ 500.000,00) ficou pendente, só tendo sido saldada em 2021, quando da venda da D... a um grupo económico, muito além do prazo de pagamento contratualmente acordado.

            Na perspetiva da Requerida, a motivação da constituição da D... e a subsequente aquisição por esta de 70% das participações sociais da C... foi unicamente fiscal: o recebimento de dividendos sob a forma encapotada de preço de venda de quota, por forma a evitar a tributação de 28% que se suscita na primeira opção. 

 

            Considera a Requerida, que a operação é destituída de racionalidade económica e que se a intenção do Requerente fosse mesmo alienar a quota que detinha na C..., é estranho que não tivesse aceite as propostas de compra de empresas internacionais e sólidas no mercado e, por outro lado, que, tendo os sócios elevada idade, tenham decidido vender a uma empresa que não dava qualquer garantia de pagamento do preço (que tinha sido diferido).

 

            Assinala que, nos anos que antecederam a venda, com exceção de 2013 e 2014, a C... teve resultados líquidos positivos e se encontrava numa situação financeira confortável, sem que o descalabro do GES tivesse tido impacto na sua atividade operacional. Acrescenta que as desavenças com um dos sócios-gerentes, que alegadamente estariam na origem dos negócios realizados, não foram provadas e que, ainda que assim fosse, sempre existiriam meios legais para mitigar ou resolver os problemas com a gerência.

 

            Conclui que o Requerente recebeu importâncias monetárias com origem na C..., a título de preço contratual da quota alienada nesta sociedade, mas, que estas devem ser qualificadas, para efeitos fiscais, como lucros e reservas distribuídos, como se aquele tivesse continuado a ser sócio (direto) da C..., pois, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, estes negócios devem ser considerados ineficazes e os rendimentos obtidos tributados em IRS, na esfera do Requerente, como rendimentos de capitais (categoria E), ao abrigo do estabelecido no artigo 5.º, n.ºs  1 e 2, alínea h) do Código do IRS, à taxa especial de 28% prevista no artigo 72.º, n.º 1, alínea d) do mesmo diploma.

 

            O negócio ou ato com idêntico fim económico consubstancia-se na “não intervenção da D...“, i.e., na “não alienação” das participações da C... àquela sociedade, com  a manutenção no Requerente da qualidade de sócio da C... .

            A vantagem fiscal é a diferença entre a tributação da distribuição de lucros acima referida, à taxa de 28%, versus a não tributação, a título de preço de venda da quota por aplicação do regime transitório previsto quando da introdução do IRS.

 

            A Requerida pugna pela improcedência da ação, incluindo do pedido de juros indemnizatórios por não se constatar qualquer erro imputável aos serviços, com a consequente manutenção das liquidações de imposto e de juros compensatórios.

 

 

II.        Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de IRS e juros compensatórios impugnado, atenta a conformação do objeto do processo (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo e Procedimento Tributário (“CPPT”), i.e., dentro de 90 dias a contar da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa.

 

Não foram identificadas questões prévias a apreciar ou nulidades processuais.

 

 

            III.      Fundamentação de Facto

 

            1.         Matéria de Facto Provada

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se consideram provados:

 

  1. Em 1988, o Requerente, A..., constituiu com três sócios, todos pessoas singulares, a sociedade C..., Lda. (“C...”), com as participações constantes do quadro abaixo – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), junto como documento 2 e também constante do PA:

 

Sócios

Valor N. das Quotas (€)

%

A...

7 481,97

30

F...

7 481,97

30

G...

4 987,98

20

H...

4 987,98

20

Total

24 939,90

100

 

  1. O objeto social inicial da C... era a “comercialização de equipamentos para abastecimento de combustíveis e equipamentos eletrónicos”. Em 2006, por alteração do contrato de sociedade, o objeto foi alargado para passar a incluir a “instalação e manutenção” dos equipamentos e “o estudo, elaboração de projetos de construção de postos de abastecimento de combustíveis, líquidos e gasosos e de todos os restantes equipamentos que se relacionam com os mesmos” – cf. RIT.

 

  1. O Requerente foi designado gerente da C... desde a sua constituição, em 1988 – cf. RIT.

 

  1. Por motivo de óbito ocorrido em 2012, o sócio G... foi substituído pelos seus três herdeiros, I..., J... e K...– cf. RIT.

 

  1. Desde a sua constituição e durante mais de duas décadas, a C... foi uma entidade bem sucedida, com resultados positivos e rentável, financiada em grande medida por capitais próprios e dotada de elevado grau de liquidez – cf. RIT e depoimento das testemunhas. 
  2. Um dos fatores-chave deste sucesso foi a representação exclusiva, em território nacional, de uma empresa norte-americana – a L..., doravante “L...”, líder mundial de máquinas dispensadoras de venda ao público de combustíveis, e um dos principais players do mercado mundial em soluções – equipamentos  e sistemas informáticos e de controlo – para postos de abastecimento de combustíveis – cf. depoimento das testemunhas. 

 

  1. Entre 1988 e 2015, o Diretor Técnico da C... foi o Engenheiro E..., especialista em eletrónica, sistemas e soluções informáticas, que desenvolveu o software da L..., adaptando-o à realidade e legislação portuguesas – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. E... era a pessoa que, dentro da C..., melhor conhecia os sistemas da L..., pois ele próprio os tinha desenvolvido. Também do ponto de vista operacional, E... era reconhecido como elemento essencial ao sucesso da C..., sendo o interface desta com a representada L... e com os principais clientes, com quem estabeleceu relações de confiança – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Um dos principais clientes da C... era a O..., a quem fornecia sistemas, terminais de pagamento e manutenção dos equipamentos e do software, com um peso na faturação de, aproximadamente, 45%. Contudo, em 2009, a C... perdeu, por concurso, o contrato com a O.... A mudança e substituição dos equipamentos em campo (nos postos de abastecimento da ...) foi gradual e, a partir de 2012, a C... deixou, em definitivo, de prestar serviços e de faturar à O...– cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Logo a seguir, a C... perdeu o contrato com outro cliente, a M... – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Neste contexto, nos anos 2012 e 2013, a C... registou prejuízos. Em 2014, com a crise económica e o colapso do BES, sofreu perdas adicionais, pelos investimentos em aplicações/obrigações do universo BES – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Para ajustar a estrutura de custos a esta nova realidade, dada a redução de atividade, no final de 2014, a C... passou por uma restruturação, que se traduziu em despedimentos – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Em 2014, a C... teve alguma recuperação nas vendas, mercê de um contrato celebrado com a N..., que era cliente, a nível mundial, dos sistemas da L..., por via de um contrato global de fornecimento da L... . A C... prestava a assistência técnica, garantias e fazia as instalações de equipamento à N... . Mesmo assim, a C... teve um resultado líquido negativo de 664.497,00 (para o que contribuíram as perdas das aplicações financeiras relativas ao BES) – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

 

  1. Com as dificuldades associadas à perda de negócio (contrato da O... e M...), agudizadas pelo contexto de crise económica (2012-2014), as incompatibilidades e problemas de relacionamento entre o Requerente e o sócio-gerente F..., existentes há muito, intensificaram-se, e dificultaram os processos de decisão e gestão da C... que, em alturas de crise, são cruciais – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Estes desentendimentos eram públicos e começaram a afetar a confiança da L... e dos clientes na C... como parceiro comercial – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Esta situação era especialmente preocupante para a L..., pois uma má prestação podia afetar os seus clientes internacionais, como a P..., com impacto reputacional e repercussões importantes, muito além do mercado nacional – cf. depoimento das testemunhas.
  2. Assim, a L... chegou a considerar alternativas à C..., nomeadamente através de distribuidores que tinha em Espanha e, apesar de manter a C... como representante, contratou o seu diretor técnico, E... e um outro diretor, Q...– cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Em 2015, sem ver perspetivas de melhoria na gestão da C... , E..., aceitou o convite da L..., que sabia da sua insatisfação com o estado de coisas na C..., e começou a trabalhar na L... (bem como Q..., este, ainda hoje a trabalhar na L...) – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Com este recrutamento de E..., a L... assegurava ao seu serviço a pessoa que melhor conhecia os seus sistemas e que os tinha desenvolvido em Portugal e prevenia também que este fosse trabalhar para a concorrência – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Durante o período em que trabalhou para a L..., uma parte das funções de E... (e, portanto, do seu tempo disponível) consistia em acompanhar de perto a C... ajudando-a nas suas dificuldades, de forma a salvaguardar os interesses da L... e da sua carteira de clientes em Portugal – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Em 2016, a C... continuou a registar resultados operacionais negativos, que foram, todavia, compensados pelo efeito financeiro do acordo do BES, o que permitiu que, globalmente, o resultado líquido desse ano fosse positivo – cf. RIT conjugado com o depoimento das testemunhas.

 

  1. Em 2016, a C... já tinha perdido metade do seu valor, pois chegou a ter ~10 milhões de euros em reservas em 2012 e em 2016 estava com ~5 milhões e, como acima referido, continuava a sua trajetória descendente, com resultados operacionais negativos. Por outro lado, o risco da perda da representação da L... (seu ativo fundamental); a elevada idade dos sócios e gerentes, todos mais velhos do que o Requerente que, em 2016, tinha 71 anos, à exceção dos herdeiros de G... que, porém, não tinham qualquer relação com a empresa ou a sua atividade, tornavam premente, na perspetiva do Requerente, a identificação de uma solução que impedisse a continuada da perda de valor da C... e a recuperasse, por forma a que pudesse realizar uma mais-valia na sua venda – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Os dois sócios desavindos, o Requerente e F..., eram os dois gerentes/gestores executivos da C..., não desempenhando os herdeiros de G..., nem H.., funções de facto naquela sociedade. Contudo, com a crescente conflitualidade entre os gerentes executivos, o sócio (e também gerente de direito) H..., começou a assinar, em conjunto com o Requerente, alguns contratos (vg. de leasing), necessários ao desenvolvimento da atividade da C..., pois a sociedade só se obrigava com a assinatura de dois gerentes – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. O Requerente, preocupado com a continuada quebra de valor da. C..., tentou encontrar compradores para a mesma, mas os valores das duas propostas obtidas não eram interessantes, sendo inferiores ao valor do património da empresa à data. Acresce que um dos proponentes pretendia que E... fizesse parte do negócio, mantendo-se na C..., quando este já estava na L... e tinha expressado a posição de que só regressaria como sócio e maioritário – cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Também falhou uma abordagem aos sócios para que cedessem uma parte das suas quotas a E... . O objetivo consistia em cada sócio ceder uma parte da sua quota a E..., de modo que este ficasse com a maioria do capital e assumisse a gestão. Subsequentemente, após a recuperação da C... sob a direção de E..., os sócios venderiam a sua participação com acréscimo de mais-valia.  O sócio F... não concordou com essa solução, inviabilizando-a – cf. depoimento das testemunhas.
  2. Nesta sequência, o Requerente e E... decidiram criar uma sociedade, controlada (51%) por E..., para adquirir as quotas dos sócios da C... que estavam disponíveis para vender, i.e., todos, exceto o sócio desavindo F...– cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Neste contexto, em maio de 2016 foi constituída a sociedade D..., Lda., que, a partir de 2021, passou a ter a designação de D... Unipessoal, Lda. (“D...”), com os seguintes sócios e capital social – cf. RIT:

Sócios

Valor N. das Quotas (€)

%

E...

1 275,00

51

A...

1 225,00

49

Total

2 500,00

100

 

 

 

  1. O objeto social da D... era a “comercialização e reparação de equipamentos para abastecimento de combustíveis”, mas nos exercícios de 2016 a 2021 esta sociedade não realizou essa atividade económica – cf. RIT:

 

  1. Ambos os sócios da D... foram designados gerentes desta sociedade, por deliberação de 4 de maio de 2016, obrigando-se a D... com a intervenção dos dois gerentes – cf. RIT.

 

  1. Em 2 de novembro de 2016, o Requerente, os herdeiros de G... e H... alienaram as quotas que detinham na C... (nas respetivas proporções de 30%, 20% e 20%) à sociedade D..., que ficou detentora de 70% do capital social da C..., conforme tabela infra – cf. RIT:

Participações detidas no capital social da C...

Sócios

Valor N. das Quotas (€)

%

D...

17 457,93

70

F...

7 481,97

30

Total

24 939,90

100

 

 

 

  1. O preço de venda das quotas da C..., em 2 de novembro de 2016, foi o seguinte – cf. RIT:

Alienantes

Valor N. das Quotas (€)

% de

capital

Preço das Quotas

Acréscimo Aditamento

Total

Requerente – A...

7 481,97

30

1 200 000,00

328 500,00

1 528 500,00

Herdeiros de G...

4 987,98

20

1 000 000,00

219 000,00

1 219 000,00

H...

4 987,98

20

1 000 000,00

219 000,00

1 219 000,00

 

17 457,93

70

3 200 000,00

766 500,00

3 966 500,00

 

    Valores em euros

 

  1. Foi acordado o diferimento do pagamento do preço das quotas, que só era devido a partir de 13 meses decorridos da celebração do contrato e até ao termo do 21.º mês após essa data. O acréscimo de valor previsto no aditamento ficou condicionado à concretização de três operações com a sociedade C..., Lda. até ao 24.º mês a contar da assinatura do aditamento, as quais representariam um encaixe financeiro na C... de € 1 095 000,00 – cf. RIT.

 

  1. A referida dilação do pagamento do preço devido pela D... em relação às quotas adquiridas adveio do facto de esta sociedade ter um capital social reduzido (€ 2 500,00) e de não estar dotada de meios financeiros para o efeito, seja através de suprimentos dos sócios, ou do recurso a algum tipo de empréstimo. Esse pagamento só veio a acontecer quando, em 2018, a D... recebeu os dividendos da C..., subsistindo um valor em dívida de € 500.000,00 ao Requerente que só foi saldado com a venda da D... a um grupo francês em outubro de 2021– cf. RIT. 

 

  1. A participação financeira que a d... ficou a deter na C..., correspondente a 70% do capital social desta última, era praticamente o único ativo da D... – cf. RIT.

 

  1. Na sequência da referida alteração na titularidade das participações da C..., E... foi designado gerente desta sociedade (por deliberação de 30 de novembro de 2016) e F... afastado de funções efetivas – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

 

  1. Na declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, de 2016, entregue em prazo, os Requerentes optaram pela tributação conjunta e entregaram os anexos A (rendimentos de trabalho dependente e pensões), E (rendimentos de capitais), F (rendimentos prediais), G (mais valias e outros incrementos patrimoniais), G1 (mais valias não tributadas) e H (benefícios fiscais e deduções) – cf. RIT.

 

  1. No anexo G1 foi declarada a alienação onerosa da quota que o sujeito passivo, aqui Requerente, detinha na C..., pelo valor total da contraprestação acordada, de € 1 200 000,00, estabelecido no contrato de cessão de quotas, adicionado de € 385 500,00, previsto no aditamento ao contrato de cessão de quotas, ambos celebrados na mesma data: 2 de novembro de 2016 (valor de realização global de € 1 528 500,00) – cf. RIT.

 

  1. A não tributação destas mais-valias referentes a 2016 resulta do regime transitório aprovado com a entrada em vigor do Código do IRS, nos termos do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, por se tratar de quota adquirida antes de 1 de janeiro de 1989 – cf. RIT.

 

  1. Em 2018, a C... distribuiu o montante total de € 5 300 000,00 de lucros e reservas aos seus sócios, na proporção do capital respetivo – cf. RIT:

 

  1. D... € 3 710 000,00 (70%);
  2. F... € 1 590 000,00 (30%).

 

  1. O valor recebido pela D... (repartido em dois momentos, € 2 940 000,00, em fevereiro de 2018, e € 770 000,00, em junho de 2018) foi por esta utilizado para amortizar as dívidas pela compra das quotas da C..., ocorrida no final de 2016. No caso do Requerente, como acima referido, ficou ainda em dívida o valor de € 500 000,00, que este só veio a receber em outubro de 2021, quando este e E... alienaram a totalidade das participações no capital social da D... a investidores estrangeiros – cf. RIT e depoimento das testemunhas.

 

  1. Na declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, de 2018, entregue em prazo, os Requerentes optaram pela tributação conjunta e entregaram os anexos A (rendimentos de trabalho dependente e pensões), E (rendimentos de capitais) e F (rendimentos prediais) – cf. RIT.

 

  1. Em 2019, F... e H... cessaram funções de gerência na C..., por destituição – cf. RIT.

 

  1.  A recuperação do negócio e dos indicadores financeiros da C... sob a direção de E... foi quase imediata, tendo em poucos anos, duplicado a faturação e os funcionários (de 56 para 98), com o consequente aumento de valor da sociedade, o que permitiu a sua venda em condições favoráveis a um grupo francês – cf. depoimento das testemunhas inquiridas.

 

  1. Assim, em 21 de outubro de 2021, os dois sócios da D... (o Requerente e E...) alienaram a totalidade das respetivas quotas na D... à R..., S.A., sociedade não residente em Portugal – cf. RIT.

 

  1. E... mantém-se gerente da. C...– cf. depoimento das testemunhas.

 

  1. Em 29 de abril de 2022, foi registada a alienação à D... da quota detida por F... na C..., passando a totalidade do capital desta última a ser detido pela  D...– cf. RIT.

 

  1. Os Requerentes foram objeto de um procedimento inspetivo interno levado a efeito pela AT, que incidiu sobre o IRS do ano 2018, ao abrigo da ordem de serviço OI2022..., na sequência de um outro procedimento relativo ao ano de 2016 (ordem de serviço OI2019...). A notificação de início da ação inspetiva foi entregue na caixa postal eletrónica (viaCTT) do Requerente em 6 de abril de 2022 – cf. RIT.

 

  1. No decurso deste procedimento foi projetada a aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, do que os Requerentes foram notificados, tendo exercido o direito de audição – cf. RIT.

 

  1. A AT manteve a proposta de correções, corrigindo a matéria coletável de IRS do ano 2018 dos Requerentes, com fundamento nos seguintes argumentos que constam do RIT:

 

 

V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

V.1 Cláusula Geral Anti-abuso

V.1.1 Do direito – Doutrina e Jurisprudência

[…]

V.1.2 Aplicação ao caso concreto – Enquadramento dos negócios e atos jurídicos realizados no regime jurídico CGAA

Descrição dos atos e negócios jurídicos e motivação para a sua celebração

À luz do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, e atendendo à doutrina e à jurisprudência já produzida sobre a matéria, em que se incluem os excertos apresentados no ponto anterior, consideram estes serviços que esta norma se aplica à sucessão de atos e negócios jurídicos em apreço, relacionados com a D... e pormenorizadamente descritos acima, que se enunciam:

  • A constituição, em Maio de 2016, da sociedade D..., na qual A... detinha 49% do capital (€1.225,00) e foi designado gerente;
  • Em Novembro de 2016, a celebração do contrato de cessão de quotas entre os detentores de três quotas da C... e a D... (cessionária), negócio de que destacamos:
  • a acordada dilação no pagamento do preço das quotas – prazo mínimo de treze meses – que permitiria à D... receber os lucros a distribuir pela C... pelo valor ilíquido, sem retenção de imposto na fonte beneficiando do regime de participation exemption previsto no 51.º do CIRC;
  • com a titularidade de 70% do capital da C..., a D... passou a deter o poder de decisão na C..., nomeadamente no respeitante à distribuição de lucros e reservas pelos sócios (montantes e datas);
  • Em 18-01-2018, os sócios da C... em assembleia geral deliberam a distribuição de lucros (resultados transitados) pelos sócios, no montante de €4.200.000,00 (transferências realizadas em Fevereiro) e, posteriormente, nova deliberação de distribuição de capitais próprios (reservas no montante de €1.100.000,00, transferidas em Junho);
  • Provida dos meios financeiros necessários, a D... pôde cumprir o estabelecido no contrato de cessão de quotas e no aditamento ao mesmo contrato:
  • pagou a totalidade do preço previsto no contrato aos anteriores titulares das duas quotas, cada uma representativa de 20% do capital da C...;
  • relativamente ao preço acordado com A..., o mesmo foi-lhe parcialmente pago em 2018, no montante de €1.028.500,00, tendo a D... permanecido em dívida pelo remanescente, no valor de €500.000,00.

Descrição do negócio ou ato com idêntico fim económico

A D... foi constituída, em 2016, com um objeto social, a comercialização e a reparação de equipamentos para abastecimento de combustíveis, atividade que nunca veio a desenvolver tal como se comprova pelas declarações anuais de informação contabilística e fiscal /IES entregues pela sociedade.

Sem estrutura física nem organizacional, sem quadro de pessoal e com um capital social de €2.500,00, nos períodos de 2016 a 2020, conforme se constata pela análise às demonstrações financeiras e aos demais elementos disponíveis no sistema informático central da AT, a sociedade esteve envolvida em negócios jurídicos e factos de índole económica e financeira que se resumem ao seguinte:

  • em 2016, a aquisição de três quotas da C... através da celebração de contrato de cessão de quotas e aditamento ao mesmo contrato;
  • em 2018, o recebimento da parte que lhe coube, enquanto sócio maioritário da C..., no montante de €3.710.000,00, que lhe permitiu pagar o preço (ainda que não na totalidade) pelo qual adquiriu as participações sociais nesta sociedade;
  • nos vários exercícios económicos, o registo contabilístico dos ganhos decorrentes da valorização da participação social detida na C... .

Em suma, desde a sua constituição, a D... limitou-se a adquirir três das quatro quotas representativas do capital social da C... . Sem meios financeiros, quer próprios, quer alheios por recurso a financiamento, o preço destas participações foi pago aos anteriores sócios da C... (cedentes das quotas), por utilização do encaixe financeiro operado pelo recebimento dos lucros e reservas distribuídos pela própria C..., direito que lhe assistia na qualidade de sócia, detentora de três quotas representativas de 70% do capital desta última.

Na realidade, a venda das quotas à D... por parte dos sócios da C... (detentores de três das quotas) teve como consequência que as importâncias monetárias com origem na C... tenham sido recebidas por aqueles sujeitos a título de quitação do preço contratual das referidas quotas, ao invés de o serem enquanto lucros e reservas distribuídos, a que os mesmos teriam direito caso tivessem continuado a ser sócios da C...:

           

 

A interposição da D... entre a C... e os seus anteriores sócios, ao transmutar os valores por eles recebidos, em 2018, de “distribuição de lucros e reservas” em “pagamento do preço das quotas da C...”, consubstancia os “(…) atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios (…)”, como previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

A não intervenção da D... implicaria que os valores de lucros transitados e reservas (capitais próprios) distribuídos pela C... seriam recebidos por todos os anteriores sócios, diretamente, enquanto tal. O recebimento de lucros e reservas por cada um dos anteriores sócios é o facto com fim económico - o recebimento de valores monetários com origem na C... - idêntico ao que resultou dos atos e negócios jurídicos artificiosos (venda das quotas à D..., com recebimento do preço não antes de treze meses após a data do contrato de cessão) realizados unicamente com o objetivo de eliminar a tributação em sede de IRS.

De facto, ao terem as quotas sido cedidas a uma sociedade – a D... – com a concordância expressa das partes cedentes, declarada no Contrato de Cessão de Quotas, de que o pagamento seria feito após decorridos treze meses a contar da celebração do contrato e até ao termo do vigésimo primeiro mês após a celebração do mesmo (que teve lugar em 02-11-2016), aquando da distribuição de lucros e reservas, em 2018, pela C..., este novo sócio (a D...) beneficiou da eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos, ao abrigo do regime da participation exemption, previsto no art.º 51.º do CIRC, já que foi cumprida a condição prevista na al. b) do n.º 1 daquele preceito legal: “a participação (…) tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição”.

Ineficácia dos atos e negócios jurídicos celebrados

O encaixe financeiro obtido pela D... permitiu aos anteriores sócios da C... receber os valores monetários pagos pela C... ao sócio D..., sob a forma “encapotada” de pagamento do preço das quotas alienadas, valores que, se tivessem sido recebidos diretamente a título de distribuição aos sócios de

lucros e reservas, teriam sido sujeitos a IRS, desde logo através da retenção na fonte à taxa de 28%, conforme previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS (CIRS).

Saliente-se que, conforme já foi referido anteriormente, foi esta a situação tributária que vigorou relativamente ao contribuinte F..., detentor de uma quota de 30% no capital social da C..., cujo rendimento auferido desta sociedade, com a natureza de “distribuição de lucros e reservas”, foi sujeito a tributação (retenção na fonte) à taxa de 28%.

A concretização dos atos jurídicos enunciados e a obtenção dos resultados pretendidos (o recebimento dos valores sem sujeição a tributação em sede de IRS) só foi possível com a intervenção direta e ativa do SP  A..., na sua esfera pessoal e jurídica, um dos anteriores sócios da  C...que alienou a sua quota à D... sendo também sócio desta entidade:

  • A... constituiu a D..., com uma quota representativa de 49% do capital, juntamente com um outro sócio,  E..., um colaborador da C...;
  • no mesmo contrato de cessão de quotas, para além de A... também os titulares de outras duas quotas, representativas de 40% do capital social (20% cada), as cederam à D..., que passou a deter 70% do capital da C...;
  • - sócio e gerente da D..., após a cessão da sua quota na C... a favor da primeira sociedade, A... manteve o seu cargo de gerente na C..., não já como sócio com uma quota de 30% do capital, mas como representante da sócia D... detentora de 70% do capital;
  • o seu duplo estatuto, com poder de decisão na D... e poder de decisão reforçado na C... ao representar a entidade detentora da maioria do capital, possibilitou a A... ser determinante na deliberação da C... sobre a distribuição de lucros e reservas aos sócios – o “quanto” e o “quando” – bem como nas decisões, na esfera da C..., conducentes à concretização das operações previstas no acordo de aditamento ao contrato de cessão de quotas.

A constituição da D..., sem qualquer atividade nem racionalidade económica, não teve outra motivação para além da aquisição das quotas da C..., operação concretizada apesar de a sociedade não possuir recursos financeiros para pagar aquelas participações sociais. Estes são os negócios jurídicos dirigidos, essencialmente, à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas sem a utilização dos mesmos, ao permitirem a obtenção de meios financeiros originados na C... e a sua canalização para os anteriores sócios desta sociedade, sem sujeição a tributação, pela transmutação de um fluxo financeiro de distribuição de lucros e reservas num fluxo financeiro de pagamento de dívida.

São estes por conseguinte os negócios que, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, se propõe sejam considerados ineficazes no âmbito tributário, de modo que seja efetuada a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência, anulando as vantagens fiscais obtidas.

Conforme antes exposto, na transcrição de excertos de textos doutrinários e da síntese do acórdão n.º 04255/10 do TCA Sul, não é a legitimidade de cada um dos atos e negócios jurídicos assinalados que está em causa – a constituição de uma sociedade comercial por quotas e a cessão de quotas de uma sociedade, pelos seus sócios, a outra sociedade – mas antes o conjunto articulado e a cadência temporal em que foram realizados, num contexto que se nos afigura de planeamento fiscal agressivo com vista à obtenção de vantagens fiscais, que na sua ausência não existiriam, que são objeto de censura do ordenamento fiscal, por constituírem uma forma de atuação abusiva contrária aos fins essenciais do ordenamento jurídico tributário.

Normas de incidência aplicáveis ao ato com idêntico fim económico

A convocação do regime legal da CGAA implica que, face a todo o descrito, se opere para e com efeitos tributários, a ineficácia da cessão da quota da C... realizada pelo SP A, A... a favor da D... . Tal significa, para efeitos de tributação em imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, a desconsideração das verbas contratualmente recebidas por A... a título de pagamento parcial do preço da quota da C..., e a sua qualificação enquanto lucros e reservas e distribuídos, que àquele assistiria, enquanto direito inerente à sua qualidade de sócio da C... .

Expurgado o “efeito D...”, sociedade criada para e efetivamente utilizada como veículo com o objetivo de furtar à tributação os fluxos monetários com origem na C..., deverá, de acordo com o artigo 38.º da LGT, efetuar-se “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas“.

Ao ser desconsiderada a cessão da quota de A... na C..., temos em 2018 este contribuinte, não como credor da D... pelo preço acordado da cessão da quota efetuada em 2016, mas antes como detentor da referida quota, com direito a receber a parte que proporcionalmente lhe caberia no valor de lucros e reservas cuja distribuição foi deliberada pela sociedade (total de €5.300.000,00). Deste modo, os fluxos monetários com origem na C... e recebidos por A..., seriam considerados rendimentos do SP A, enquadrados nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS – rendimentos de capitais (categoria E de IRS).

[…]

A não celebração do contrato de cessão de quotas, a favor da D..., por parte de A..., conduziria a que este tivesse recebido parte dos valores distribuídos pela C..., a título de lucros e reservas, na qualidade de sócio. Com a sua efetiva colocação à disposição, esses valores constituiriam rendimentos de capitais na esfera do sócio, sendo sujeitos a retenção na fonte pela entidade pagadora, à taxa liberatória de 28%, conforme previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS. Assim, A... teria recebido os montantes que lhe caberiam a título de lucros e reservas distribuídos, pelo valor líquido, subtraídas as retenções de IRS ao valor ilíquido. Tal não aconteceu já que os fluxos monetários entregues à D..., e que por essa via chegaram à esfera de A..., não foram pela C... sujeitos a retenção na fonte, por aplicação do artigo 51.º do CIRC.

Face às operações praticadas, a C... atuou legitimamente no cumprimento das obrigações de retenção na fonte, enquanto entidade pagadora dos rendimentos, conforme o legalmente previsto no CIRS e no CIRC.

A aplicação do artigo 38.º da LGT não implica nem permite a ineficácia dos atos e negócios no plano jurídico, mas antes a desconsideração desses atos e negócios para efeitos tributários. Pretende-se com a CGAA, que a qualificação devidamente comprovada dos atos e negócios como ineficazes para efeitos fiscais, leve à tributação dos atos que correspondam à substância ou realidade económica, na esfera dos beneficiários, anulando as vantagens fiscais obtidas por meios artificiosos.

Como tal, sendo beneficiário das vantagens fiscais obtidas o SP A,  A..., também responsável e ator na sucessão de negócios considerados como meios artificiosos criados com vista à elisão fiscal, é a tributação ao abrigo da CGAA efetuada na sua esfera.

A requalificação, para efeitos fiscais, dos valores recebidos por A..., por aplicação da CGAA, implica a consideração daquelas verbas como rendimentos de capitais, nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, tributáveis por via da aplicação do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, à taxa especial de 28%.

Determinação dos rendimentos por força da desconsideração dos atos e negócios jurídicos celebrados - Vantagem fiscal obtida

A aplicação da CGAA traduz-se, na prática, na reconstituição da situação tributária do beneficiário caso não tivessem ocorrido os factos artificiosos que geraram as vantagens fiscais apuradas. Como tal, deverá ser desconsiderada, para efeitos fiscais, a operação realizada por A... relativa à cessão a favor da  D... da quota de que era titular no capital da C... .

Nessa situação alternativa, os valores monetários recebidos pelo SP A, seriam qualificados como rendimentos da Categoria E - Rendimentos de capitais, suscetíveis de tributação na sua esfera pessoal, em sede de IRS, a título de retenção na fonte pela entidade pagadora, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS.

Deste modo, consistindo a vantagem económica obtida, na não sujeição a retenção na fonte à taxa de 28%, a que os valores recebidos da D... a título de pagamento do preço da quota transmitida, teriam sido sujeitos caso fossem enquadrados como lucros distribuídos, ascendendo o valor recebido por A..., da D..., em 2018, a €1.028.500,00, foi obtida uma vantagem fiscal de €287.980,00:

Apuramento da vantagem fiscal obtida por A... em 2018

 

Pagamento pela D..., a título de pagamento pela cessão de quota da C...

 

(1)

Pagamento diretamente pela C..., a título de lucros e reservas distribuídos ao sócios

(*)

(2)

 

Vantagem Fiscal obtida

(1-2)

 

(negócio desconsiderado)

(negócio c/idêntico fim económico

 

Valor recebido pelo SP A

€ 1.028.500,00

€ 740.520,00

€ 287.980,00

 

          (*) O recebimento de valores a título de lucros e reservas teria sido sujeito pela C..., a retenção na fonte de IRS, à taxa de 28% [(740.520,00 = 1.028.500,00 x (1-28%)];

V.1.3 Conclusão

Em suma, face a todo o exposto, tendo sido explanados os termos da realização de uma sucessão de atos e negócios jurídicos, cujo desenho se encontra determinado em função da obtenção de um dado resultado fiscal, que não se verificaria caso estes não tivessem ocorrido com os contornos verificados, tal como previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, considera-se que estes atos e negócios jurídicos devem ser considerados ineficazes no âmbito tributário, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dita o referido preceito legal.

Em termos de requisitos regimentais, para aplicação da citada norma antiabuso é exigido o cumprimento das regras de procedimento administrativo ínsitas no artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Em particular no que respeita aos elementos que devem obrigatoriamente constar do projeto e do relatório final de inspeção, encontram-se os mesmos plasmados no n.º 3 do artigo 63.º do CPPT […]

Atento todo o acima exposto no presente relatório de inspeção, consideram-se cumpridos os requisitos, cumulativos, previstos naquela norma, concretamente os três pontos em que se divide a alínea a) e o previsto na alínea b) do n.º 3, como segue:

     (i) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado

Encontra-se amplamente explanado, acima, os negócios e atos jurídicos praticados, de forma conjugada - designadamente a constituição da D..., a celebração do contrato de cessão de quotas e a amortização dos créditos dos cedentes por utilização dos meios financeiros obtidos, pela D..., no processo de distribuição de lucros e reservas pela C... .

(ii) A descrição dos negócios ou atos de idêntico fim económico

Conforme explicado acima, os intervenientes nos referidos negócios, delineados de modo artificioso, obteriam idêntica finalidade económica – recebimento dos lucros e reservas distribuídos pela C... – caso tivessem mantido as respetivas posições enquanto detentores de partes do capital da sociedade.

(iii) A indicação das normas de incidência que se lhes aplicam

Também para efeitos do previsto na parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, encontram-se acima indicadas as normas aplicáveis na tributação dos valores recebidos, que, desconsiderando os negócios referidos em (i), serão qualificados como rendimentos da Categoria E de IRS - Rendimentos de capitais nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.

No que respeita ao cumprimento da alínea b) do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT ficou, pelo acima exposto no presente documento demonstrado que os negócios e atos jurídicos praticados foram-no principal ou essencialmente dirigidos à obtenção de vantagem fiscal, consubstanciada na eliminação de imposto (IRS), que seria devido no caso de ato ou negócio com idêntico fim económico.

Ficou demonstrado que os atos e negócios em causa praticados pelos intervenientes, anteriores detentores de três quotas da C..., numa atuação concertada e concertados entre si, na forma e sequência em que foram celebrados, num diagrama artificioso pré-definido, tiveram como último desiderato a obtenção da vantagem fiscal pelos ditos intervenientes (a eliminação da tributação, em sede de IRS, dos lucros e reservas distribuídos pela C...).

Foi pormenorizadamente revelado que a D... enquanto foi detida, até Outubro de 2021, por A... e por outro sócio, E..., não exerceu qualquer atividade económica, concluindo-se que a sua criação teve como único escopo a aquisição de capital da C... (70%), constituindo desta forma um instrumento de interposição entre a C... e os cedentes das quotas desta sociedade, no que respeita à distribuição de lucros e reservas, permitindo a eliminação da tributação em IRS dos valores distribuídos, ao proporcionar a transmutação de “lucros e reservas distribuídos” em “amortização de créditos”. A concretização do objetivo de poupança fiscal, só foi possível mediante a atuação concertada de todos os anteriores detentores de três das quotas representativas do capital da C..., ao tomarem a decisão de as cederem à D..., nas específicas condições da transação, designadamente em termos do prazo de recebimento do preço. Adicionalmente, foi relevante o particular papel de A... que enquanto sócio-gerente da D... e gerente da  C..., deteve o necessário poder de decisão em ambas as sociedades, essencial à concretização da vantagem fiscal pretendida.

Desta forma se encontra demonstrado que os atos e negócios jurídicos que compõem a estrutura delineada de modo artificioso, não obstante serem, quando tomados de forma isolada, em si mesmos válidos, legítimos e lícitos, não se lhes vislumbra, como detalhadamente descrito no presente relatório de inspeção, qualquer substância económica, tendo somente servido, na sua forma conjugada, ao cumprimento do objetivo pré-definido de elisão fiscal.

V.2 Correções propostas

Encontrando-se assim reunidos os pressupostos legais para aplicação da norma geral anti-abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária, implicando a consequente desconsideração, para efeitos fiscais, no ano em análise, dos valores entregues pela D... com a natureza de pagamento (parcial) do preço da quota transmitida por A... e a sua qualificação tributária, enquanto lucros distribuídos ao mesmo, propõe-se que seja efetuada a correção que reponha a tributação devida:

Cheque n.º

à Ordem de

Data

Valor

...

A...

04-03-2018

700.000,00

...

A...

20-06-2018

328.500,00

 

 

 

1 028 500,00

 

 

A requalificação dos atos para efeitos tributários, conforme acima descrito neste relatório, implica a tributação em IRS na esfera do SP A, A..., e concomitantemente do SP B, por força da entrega da declaração de IRS em que foi exercida a opção pela tributação conjunta.

Consideradas as verbas recebidas em 2018 pelo SP A, como rendimentos de capitais, nos termos do n.º 1 e al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, a respetiva tributação é efetuada por via da aplicação do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, à taxa especial de 28%.

Deste modo, propõe-se a correção da declaração de rendimentos dos sujeitos passivos relativa ao ano de 2018, acrescendo os referidos rendimentos, sem englobamento nos termos do artigo 22.º, n.º 3, al. b), nos seguintes moldes:

ANO DE 2018

Unid:euros

 

 

Declaração de 25-06-2019

Correção proposta

Valores corrigidos

(1)

Rendimento Global   (*)

219.848,02

0,00

219.848,02

(2)

Deduções Específicas

16.977,50

0,00

16.977,50

 

Rendimento Coletável (1) - (2)

202.870,52

0,00

202.870,52

(3)

Imposto relativo a Tribut. Autónomas (28%)

1.512,78

287.980,00

289.492,80

(4)

Rendimentos implícitos (4) = (3) / 28% (**)

5.402,79

1.028.500,00

1.033.902,79

 

(*) Rendimentos da Categoria A (trabalho dependente e pensões) e da Categoria E (rendimentos de capitais), do sujeito passivo A e do sujeito passivo B;

(**) Rendimentos da Categoria F (rendimentos prediais) (declarados pelos sujeitos passivos, sem opção pelo englobamento) e rendimentos da Categoria E (rendimentos de capitais) CORRIGIDOS, não englobados conforme resulta do artigo 22.º, n.º 3, al. b) do CIRS;

Prevê o artigo 22.º n.º 3, alínea b) in fine, a possibilidade de englobamento, por opção do sujeito passivo, do rendimento sujeito à taxa especial prevista no artigo 72.º, nº 1, alínea d), ambos do CIRS.

Considerando-se cumpridos os quesitos previstos no n.º 2 do art.º 40.º-A, em caso de opção pelo englobamento os rendimentos obtidos (corrigidos) serão considerados em apenas 50%, por aplicação do n.º 1 do mesmo articulado.

De sublinhar que sobre o imposto que vier a ser liquidado na sequência da correção proposta, serão devidos juros compensatórios, nos termos do artigo 35.º da LGT, por remissão do artigo 91.º do CIRS. […]

 

  1. Subsequentemente, os Requerentes foram notificados da liquidação (adicional) de IRS n.º 2022..., respeitante ao ano 2018, e das demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas, tudo no montante total a pagar de € 301.471,57 (com data-limite de pagamento fixada em 25 de janeiro de 2023), em decorrência das correções à matéria coletável por aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT – cf. documento 1.

 

  1. Os Requerentes efetuaram o pagamento da quantia de € 301.471,57, em 23 de janeiro de 2023 – cf. Documento 1.

 

  1. Não se conformando com tais atos tributários, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa que, até ao momento, não foi decidida – cf. documento 4.

 

  1.  Em 6 de julho de 2023, inconformados com o ato tributário de liquidação (adicional) de IRS e juros compensatórios referentes ao ano 2018, os Requerentes  apresentaram no CAAD o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

            2.         Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros atendeu às posições assumidas por ambas as Partes e fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e na prova testemunhal produzida, conforme supra referenciado em relação a cada facto julgado assente.

 

O depoimento das testemunhas inquiridas (E... e H...) revelou-se importante na formação da convicção do tribunal, pois, em ambos os casos, participaram diretamente nos factos relatados e responderam de forma clara, objetiva e circunstanciada, permitindo apreender a dinâmica da sociedade C... ao longo do tempo, as relações entre os seus sócios e os objetivos das operações de cessão de quotas da C... à D... . Fundamental foi, de igual modo, constatar que com a entrada do “novo” sócio E... e com a sua gestão, a atividade da C... descolou, duplicando em pouco mais de 4 anos o seu valor e a sua dimensão.

 

Ficou patente que o sucesso e valia da C... durante décadas se ficou a dever ao facto de ser a representante exclusiva em Portugal da empresa líder mundial de fornecimento de sistemas e equipamentos a postos de abastecimento de combustíveis, a L... . Sem esta representação a C...  ficaria esvaziada da maior parte do seu negócio.

 

Por outro lado, do ponto de vista dos meios humanos, ficou ainda visível que a força motriz e a peça chave da C... era o seu diretor técnico,  E ..., que, até 2016, não era sócio nem gerente da sociedade. E... tinha conhecimentos profundos dos sistemas comercializados pela L..., representada da C..., que ele próprio tinha desenvolvido para o mercado nacional.

 

A gestão disfuncional em resultado da incompatibilidade entre os dois sócios com maior representatividade no capital social, o Requerente e F..., especialmente agravada a partir da perda do contrato com o principal cliente (a O...), degradou o ambiente de trabalho e acabou por motivar a insatisfação e a saída de E... da C... para a L... que, sabendo destas “guerras internas”, o convidou e contratou, assegurando, dessa forma, que ele continuasse a trabalhar para si (L...), agora de forma direta, e que não fosse para uma multinacional concorrente.

 

De notar que, como resulta dos depoimentos, do ponto de vista da L..., o impacto do mau funcionamento da C... não se circunscrevia ao mercado português, pois os clientes que usavam os seus sistemas em Portugal eram, como no caso da P..., clientes mundiais, pelo que as repercussões podiam ir muito além do mercado nacional, não podendo correr o risco das ineficiências da C... afetarem os clientes que servia à escala mundial. Por essa razão, mesmo a trabalhar para a L..., fazia parte das funções de E... acompanhar a C..., manter o contacto e assistir em todas as questões e problemas que surgissem. A par, a L... estava a equacionar, em simultâneo, soluções alternativas à representação em Portugal pela C..., se a situação não estabilizasse ou piorasse.

 

A descrição detalhada efetuada pela testemunha E..., corroborada pelo sócio da C... H..., totalmente coincidente e detalhada em pormenor, bem como os eventos subsequentes, confirmaram que o objetivo do Requerente sempre foi o de vender efetivamente a sua participação na C... (como o fez) e sair com uma mais-valia expressiva da sociedade que tinha co-fundado e na qual tinha trabalhado uma boa parte da sua vida (o que alcançou por duas etapas, em 2016 com a venda das participações da C..., e em 2021, com a alienação da sua quota-parte no capital da D...).

 

 

 

No entanto, para alcançar essa mais-valia, que implicava retomar o nível de negócio e os indicadores financeiros dos “anos de ouro” da C..., era necessária, na visão do Requerente, que se veio a revelar correta, uma reorganização e o regresso de E..., reconhecido pela L... e pelos clientes desta (que também eram os clientes da C...) como o factor-chave de sucesso desta sociedade. Ao que o sócio F... se opôs, pois não acedeu às condições de regresso de E... .

 

De facto, depois de várias tentativas de venda a terceiros, que se revelaram infrutíferas, pois os valores propostos eram diminutos, o Requerente, com a ajuda do sócio H..., (também aqui testemunha) tentou convencer os demais sócios a darem a E... as condições por este exigidas para regressar à C..., nomeadamente cedendo uma parte proporcional das suas quotas até este perfazer a maioria do capital social e o controlo desta entidade.

 

O sócio F... rejeitou essa solução que viabilizaria o regresso de E... à C... .

 

Resulta solidamente dos depoimentos das testemunhas e também dos elementos documentais que evidenciam as operações passo a passo (“step by step”) que, não desistindo do seu propósito, o Requerente, para ultrapassar o bloqueio do sócio F..., teve de encontrar uma alternativa cuja implementação passou por várias etapas.

 

Primeiro, foi criada uma sociedade – D... – detida por E... em 51% e pelo Requerente em 49%. Assegurava-se, assim, o controlo da maioria do capital e das decisões por E... (e não, saliente-se, pelo Requerente). Esta sociedade recém-criada adquiriu as participações de todos os sócios da C..., exceto a quota de F... (o qual não quis vender).

 

Deste modo, E..., ficou com o controlo, por via indireta, da C..., podendo iniciar a sua recuperação, acompanhado do necessário poder de decisão A partir daí, estando preenchida a condição estabelecida para o seu regresso (de controlo da sociedade), E... assumiu a gestão da C... e, conforme planeado, incrementou o negócio em termos tais que, em 2021, foi possível vender a –D...–, que (apenas) detinha a C..., em condições muito favoráveis a um grupo francês, alcançando de forma cabal o objetivo inicial do Requerente, de encaixe de uma considerável mais-valia, que, como se disse anteriormente, teve de ser alcançado por fases, dada a oposição do sócio de bloqueio.

 

            Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

 

            IV.       Direito

 

            1.    Questões a Decidir

 

A questão submetida à apreciação deste Tribunal Arbitral prende-se com a invocada falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, que, à data dos factos[1], sob a epígrafe “Ineficácia de atos e negócios jurídicos”, estabelecia o seguinte: 

 

“2 – São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”

 

O enquadramento das operações desenvolvidas pelo Requerente na norma em apreço envolve a aferição das seguintes condições:

  1. Existência de motivação essencial ou principal de natureza fiscal, quer na constituição da D..., quer na subsequente alienação a esta entidade da quota detida pelo Requerente na C...;
  2. Existência de negócio alternativo “não abusivo” de efeito equivalente ou adequado a atingir idêntico fim;
  3. Desconformidade do resultado obtido com a ratio legis das normas aplicadas.

 

Além da apreciação da legalidade dos atos tributários de liquidação de IRS e dos juros compensatórios relacionados, o Tribunal tem, ainda, de decidir sobre a condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

            2.    Cláusula Geral Anti-abuso – Enquadramento

 

A figura da cláusula geral anti-abuso (“CGAA”) surgiu pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, que conferiu precisamente a redação do artigo 38.º, n.º 2 da LGT à data dos factos. A CGAA enquadra-se num quadro interventivo do Estado no combate à elisão fiscal, “constituindo uma válvula de escape de respiração do valor da injustiça, um instrumento adequado de combate à mera engenharia financeira ostensivamente violadora da igualdade fiscal[2] ”.

 

Como salienta Saldanha Sanches, que trata a matéria no âmbito do instituto do abuso de direito, a lei desconsidera, para efeitos fiscais, certos negócios celebrados pelas partes quando estas contornam a lei para evitar a tributação que seria devida por atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico (look through provision). Pelo que temos de considerar os efeitos económicos do negócio e verificar se se obteve uma equivalência de efeitos, i.e., se se seguiu um caminho diverso para obter o mesmo resultado[3].

 

O que a norma “procura evitar é a vantagem fiscal de um comportamento em que se põe em causa a totalidade do ordenamento jurídico-tributário, como sistema de partilha de encargos tributários, exigindo por isso que o aplicador da lei considere os princípios estruturantes do sistema de onde deve ser extraída uma intenção inequívoca de tributação daquela particular situação ainda que tal intenção não encontre uma expressão correspondente na formulação da lei.[4]

 

            Ainda segundo Saldanha Sanches, em termos que aqui se acompanham, sobre as manifestações principais da fraude à lei em matéria fiscal: [n]uma primeira manifestação, a escolha de um negócio jurídico ou mesmo de factos ou actos jurídicos fiscalmente relevantes, como forma jurídica de atingir um certo objectivo com menor oneração jurídica [rectius, fiscal] implica a opção por determinado caminhos para a obtenção de certos objectivos finais numa lógica alternativa: seguiu-se o caminho B em lugar do caminho A, para atingir o mesmo objectivo, X”; “[n]a outra das suas principais manifestações, podemos ter um conjunto de operações em que não há alternatividade (a escolha alternativa seria a ausência de negócio jurídico), o que acontece quando, por exemplo, se faz operações com o único objectivo de obter um custo dedutível para a redução do lucro tributável”.

 

Explica este Autor que: “Na previsão normativa do n.º 2 do artigo 38.º da LGT essas duas vias estão claramente prefiguradas”, pois a “primeira encontra-se prevista na lei quando esta contrapõe o negócio jurídico artificioso, com a sua desoneração fiscal, e “os factos, actos ou negócios jurídico de idêntico fim económico” (a via normal foi preterida por mera razões fiscais)” e a segunda “encontra-se igualmente prevista na lei quando esta refere “a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”, concluindo, então, que: “Se, no primeiro caso, a consequência é “a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência”, no segundo temos uma consequência de mera anulação de efeitos, “não se produzindo as vantagens fiscais referidas”, aquelas que se procura alcançar por meio dos negócios jurídicos artificiosos, sendo que o carácter artificial da segunda parte, marcado pela construção deliberada do efeito, é geralmente constituído por uma perda dedutível do lucro tributável”. [5]

 

            De acordo com Sérgio Vasques, a CGAA consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns[6].

 

            Gonçalo Lopes Courinha faz uma subdivisão mais pormenorizada e distingue cinco elementos[7]:

  • O elemento meio, que tem a ver com a forma utilizada, ou seja, com a prática de certos atos ou negócios dirigidos à obtenção da vantagem fiscal;
  • O elemento resultado, que visa a vantagem fiscal como fim da atividade do contribuinte (redução, eliminação ou diferimento temporal de tributos);
  • O elemento intelectual, que se reporta à intenção fiscal do contribuinte, que pratica os atos ou negócios essencial ou principalmente dirigidos à vantagem fiscal;
  • O elemento normativo, que representa a anti-juridicidade do resultado atingido, a desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito da lei; e, por fim,
  • O elemento sancionatório, que corresponde à estatuição da CGAA dirigida à neutralização dos efeitos fiscais da conduta abusiva.  

 

Nos termos expostos, não basta, assim, que se verifique a obtenção de uma vantagem fiscal. É necessário que essa vantagem frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável.

 

De notar que a aplicação deste regime deve constituir um instrumento de último recurso, de natureza excecional. Na verdade, os alicerces do sistema tributário, e do Estado de Direito em geral, reclamam o equilíbrio entre o princípio da igualdade tributária e da justiça na repartição dos encargos tributários, por um lado, e o pilar da segurança jurídica, por outro. Com efeito, a aplicação trivializada da CGAA fragiliza a previsível aplicação das normas jurídico-tributárias e o próprio sistema tributário ao invés de o fortalecer, pois abala de forma inevitável a confiança que os contribuintes repousam nas normas tributárias, substituindo o modelo de tributação assente em previsão legal, por uma tributação casuística de fonte administrativa ou judiciária, com os inerentes riscos de desvio do padrão da “rule of law”. 

 

A escolha de vias fiscalmente menos onerosas, em relação a operações cujo móbil não seja predominantemente fiscal efetivadas através de meios normais e típicos não deve merecer tal desvalor, que se reserva para situações de flagrante contorno (abusivo) da lei fiscal.

 

           

            3.    Análise dos Negócios Realizados pelo Requerente

 

            As liquidações de IRS e de juros compensatórios sob apreciação fundam-se no entendimento expresso pela Requerida no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) de que o Requerente alienou a quota que detinha na C... a uma sociedade veículo por si constituída (D...), para se furtar à tributação, em sede de IRS, dos lucros e reservas disponíveis na C... para distribuição aos sócios (rendimento da categoria E), transmutando-os em preço de venda da quota (rendimento da categoria G). A vantagem fiscal correspondente consiste na não sujeição a IRS das mais-valias obtidas na alienação da quota, ao abrigo do regime transitório adotado com a entrada em vigor do Código do IRS, nos termos do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, por se tratar de participação adquirida antes de 1 de janeiro de 1989.

 

            Resulta deste entendimento da AT que o Requerente pretenderia unicamente permanecer sócio da C... e receber os dividendos e reservas nessa qualidade, sem qualquer tributação. E, ainda, que o efeito económico de permanecer sócio da C... com uma participação social de 30% é equivalente ao que se produziu com a venda da sua quota à D... .

           

Demonstrou-se, porém, que o circunstancialismo simplista assumido pela AT não condiz com as reais motivações subjacentes às operações levadas a efeito pelo Requerente. Estas operações consistiram na constituição de uma sociedade em parceria minoritária (49%) com E... (51%), a quem os sócios da C... (incluindo o Requerente), exceto o sócio de bloqueio, venderam as suas participações.

 

 De acordo com o adquirido processual, tais operações foram gizadas com o objetivo de superar o impasse gerado por um sócio-gerente em posição divergente e conflituosa com o Requerente (que também detinha a qualidade de sócio-gerente), com a inerente impossibilidade de tomada de decisões de fundo e a progressiva perda de valor da sociedade.

 

Este status quo era causador de mau estar na empresa e deu origem à saída do recurso humano mais importante da C..., o seu diretor técnico, que nela estava desde a sua constituição em 1988, e que era imprescindível para o seu sucesso e regeneração. De tal ordem era a relevância de E... que a L..., líder mundial do setor em que operava a C..., e que esta representava (em exclusivo) em Portugal, procedeu à sua contratação. Com a saída de E..., a expetativa de melhoria na C... seria dificilmente alcançável, senão mesmo inexistente.

 

Apesar de a C..., conforme salienta a AT, ter durante décadas registado resultados positivos e dispor de uma posição financeira sólida, certo é que, desde 2012, tinha passado a sofrer resultados operacionais negativos (prejuízo) e que a sua robustez financeira estava a erodir-se, tendo em poucos anos perdido metade do seu valor.

 

Situação que exigia uma intervenção e gestão consistentes, com tomada de decisões para o retorno aos lucros operacionais, que o conflito existente entre os dois sócios-gerentes executivos, agudizado com a conjuntura económica adversa, não permitiu.

 

De notar que dos quatro sócios da C..., só os dois sócios em conflito (um dos quais o Requerente) eram gerentes de direito e “de facto”, pois os herdeiros de G... não tinham ligação à atividade da C... e H... tinha outra atividade. Aliás, este último referiu com clareza tal situação no seu depoimento, esclarecendo que quando o conflito se agudizou teve intervenção apenas para suprir a necessidade de duas assinaturas (a sua e a do Requerente), pois a C... só se vinculava com a assinatura de dois gerentes e se ele não assinasse não era possível celebrar os contratos indispensáveis à atividade (vg. contratos de leasing), pois o outro sócio-gerente (F...) não estava a assinar.

 

            Neste estado de coisas, impedir a degradação da situação financeira foi a prioridade do Requerente. Para isso, tinha de conseguir que E... regressasse à C... e que tal ocorresse antes que esta perdesse a representação da L... (que, como acima referido, estava a ponderar cenários de substituição desta como plano de contingência).

E... estava disponível para regressar à C..., na qual tinha investido muitos anos de trabalho (27), mas somente na condição de ter o controlo para  dirigir o destino da sociedade, o que implicava, a seu ver, uma posição de sócio maioritário e de gerente.

 

Todas as operações levadas a efeito pelo Requerente tiveram por finalidade dar este controlo a E... que, até aí, não era nem sócio, nem gerente da C... e apenas funcionário desta, embora em funções de direção. Tendo-o conseguido.

 

De assinalar que a alternativa de cedência direta das quotas a E..., na modalidade de todos os sócios cederem uma parte proporcional até que aquele atingisse a maioria do capital social tinha sido tentada, mas a abordagem não foi aceite pelo sócio de bloqueio, pelo que ficou sem efeito.  Assim, o Requerente teve de encontrar outra solução que não dependesse desse sócio e que os demais sócios aceitassem, o que veio a materializar-se nos moldes antes referidos.

 

Alcançada a posição de controlo de E... através da constituição da D..., na qual detinha 51%, e da aquisição por esta última de todas as quotas da C... em 2016, com ressalva da quota do sócio F... que manteve a sua participação na C..., E... passou, em representação da D... (que detinha 70% do capital da C...) a assumir a gerência desta última e a tomar as decisões, uma vez que detinha a maioria. 

 

Esta mudança teve efeitos imediatos com a C... a apresentar lucros operacionais logo no ano seguinte, em 2017, com o aumento progressivo do seu valor, que duplicou, até 2021, data em que as participações detidas pelo Requerente e por E... na D...  foram vendidas, com mais-valias, a um grupo francês.

 

Todo este percurso permite apreender e validar a tese do Requerente.

 

 

 

A mera posição estática de sócio da C..., detentor de uma quota de 30% do capital social, que a AT defende ser a situação de efeito económico equivalente, não tem paralelo ou similitude com a situação analisada e com os objetivos e efeitos económicos efetivamente alcançados pelo Requerente, com as operações descritas.

 

Objetivos com manifesto substrato económico e racional de negócio (tomada de controlo C... por E..., valorização da C... pela ação – gestão – deste e obtenção de mais-valias em resultado da venda efetiva depois de revalorizada a sociedade) que não teriam sido possíveis, dadas as circunstâncias concretas, se o Requerente tivesse mantido de forma estática a sua posição de sócio minoritário da C... .

 

Não estamos perante um típico “dividend stripping” em que o sócio fica, por interposição de uma entidade, na mesma posição que dispunha anteriormente, pois nem sequer o nível de participação indireta do Requerente na C... permaneceu idêntico.

 

No que se refere ao acordo de pagamento diferido do preço de transmissão das quotas de todos os sócios vendedores (e não apenas do Requerente), o mesmo não causa qualquer estranheza ou sugere artificialidade. Importa relembrar que E..., que ficou ao comando da D... e, por essa via, também da C..., tinha trabalhado 27 anos para a C... e era conhecido de todos os sócios vendedores, que conheciam a sua valia e confiavam nas suas capacidades. Este crédito de confiança que depositavam em E... permitiu-lhes concretizar o negócio, que, de outro modo, não seria possível, pois nem este, nem a D... tinham nesse momento fundos disponíveis para o efeito. E, de novo, a realidade mostrou que esse voto de confiança foi merecido permitindo-lhes realizar uma mais-valia nessa venda, cujo preço foi pago como acordado, e, no caso do Requerente, realizar uma mais-valia adicional quando, poucos anos depois, alienou a sua participação na D... nas condições financeiras favoráveis que tinha projetado.

 

Cumpre ainda fazer referência ao facto, salientado pela AT, de que a D... tinha um objeto social operacional – semelhante ao da  C...– que não exerceu, concluindo, erradamente, que a primeira não tinha qualquer atividade.

 

O facto de a D... não exercer atividade operacional não significa, como conclui a AT, que não tivesse atividade, pois a detenção e gestão de participações noutras sociedades constitui uma forma indireta de exercício de atividade económica, característica das sociedades holding[8] que a legislação comercial acolhe, não dependendo do contrato de sociedade nem de deliberação dos sócios, quando se trate de sociedades com objeto igual, como sucede neste caso (artigo 11.º, n.ºs 4 e 6 do Código das Sociedades Comerciais).

 

Em síntese, afigura-se não assistir razão à Requerida, pois não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação do regime da CGAA, previsto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, em concreto:

  • Quanto ao elemento meio, na situação escrutinada não se verificou a utilização de formas artificiosas, negócios inusuais ou anómalos face à prática jurídica comum e que exprimam abuso das formas jurídicas no sentido de ocultarem propósitos (dirigidos à obtenção da vantagem fiscal) divergentes dos manifestados / típicos das transações realizadas. Não se descortina um negócio alternativo “não abusivo” de efeito equivalente ou adequado a atingir idêntico fim, pois o resultado alcançado, dadas as circunstâncias antes enunciadas, não seria possível obter de outra forma, sendo manifesto que o objetivo foi sempre o de alienação da participação social detida na C...;
  • Também não se identificou uma motivação essencial ou principal de natureza fiscal, i.e., que o objetivo único ou predominante de através das operações realizadas fosse a obtenção de uma vantagem fiscal em detrimento de objetivos económicos reais (elemento resultado). Aliás, a valorização da sociedade C... para o seu dobro em pouco mais de quatro anos, na sequência das operações empreendidas e da tomada da maioria do capital e da gestão por E..., é de magnitude incomparável face à alegada poupança fiscal que estaria associada à não tributação a título de dividendos;
  • Por fim, não se constata desconformidade do resultado obtido com a ratio legis, o espírito ou propósito das normas aplicadas (elemento normativo), pois a ordem jurídica não sinaliza a intenção de tributar de forma diferente aquele resultado económico: a venda de participações sociais (quotas) detidas anteriormente a 1989.

 

À face do exposto, as liquidações de IRS e dos inerentes juros compensatórios com referência ao ano 2018 padecem de erro nos pressupostos, de facto e de direito, pelo que vão anuladas – v. artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

  1. Juros Indemnizatórios

 

Os Requerentes, peticionam, como decorrência da anulabilidade dos atos de liquidação de IRS e juros compensatórios, a restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

 

A jurisprudência arbitral tem reiteradamente afirmado a competência destes Tribunais para proferir pronúncias condenatórias derivadas do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios originados em atos tributários ilegais que aí sejam impugnados, ao abrigo do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) e n.º 5 do RJAT e 43.º e 100.º da LGT.

 

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

 

O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

 

O direito a juros indemnizatórios depende da ocorrência de “erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” (v. artigo 43.º, n.º 1 da LGT).

 

Na situação vertente, em relação ao ato de liquidação controvertido, conclui-se pela errada interpretação e aplicação pela Requerida do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, verificando-se um erro substantivo imputável à AT, pelo que é devida a restituição do montante pago de € 301.471,57 acrescido de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, para restabelecimento da situação que existiria se o ato tributário não tivesse sido praticado.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – v. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

V.        Decisão

 

            De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação procedente, com a consequente:

  1. Anulação dos atos de liquidação de IRS e juros compensatórios inerentes, reportados ao ano 2018;
  2. Condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais. 

 

 

VI.       Valor do Processo

 

Fixa-se ao processo o valor de € 301.471,57 correspondente ao valor da liquidação de IRS que foi impugnado, incluindo juros compensatórios – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

 

VII.     Custas

 

            Custas no montante de € 5.508,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de fevereiro de 2024

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, Relatora

 

 

 

 

 

Rui Miguel de Sousa Simões Fernandes Marrana

 

 

 

Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho

 



[1] Redação anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio.

[2] Pedro Menezes Cardoso, Os desafios da “maioridade” da cláusula geral anti-abuso: análise estática e dinâmica do seu estado evolutivo, 2017, AAFDL Editora, p. 385.

[3] Saldanha Sanches, Abuso de Direito em Matéria Fiscal, Natureza, alcance e limites, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 398 (Abril-Junho de 2020), Centro de Estudos Fiscais, DGCI, Ministério das Finanças, Lisboa, 2000 (separata p. 19-21).

[4] Saldanha Sanches, Abuso de Direito em Matéria Fiscal, Natureza, alcance e limites, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 398 (Abril-Junho de 2020), Centro de Estudos Fiscais, DGCI, Ministério das Finanças, Lisboa, 2000 (separata p. 28-29).

[5] Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2006, pp. 172-173.

[6] Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2018, pág. 374.

[7] Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário, Almedina, 2004, pp. 163-202. Seguindo esta linha de raciocínio v. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15 de fevereiro de 2011, processo n.º 04255/10.

[8] Quando esta atividade é exclusiva, as sociedades devem revestir a forma de sociedades gestoras de participações sociais – SGPS – v. artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro.