Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 667/2022-T
Data da decisão: 2023-12-27  IRC  
Valor do pedido: € 23.272,58
Tema: IRC; liquidação oficiosa; e princípio da tributação das empresas pelo rendimento real.
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SUMÁRIO:

 

I – A falta de apresentação no prazo legal da declaração de rendimentos “Modelo 22 de IRC” determina que a Autoridade Tributária e Aduaneira proceda à liquidação oficiosa (artigo 89.º, alínea b), e artigo 90.º, n.º 1, alínea b),  ambos do CIRC).

II – É dever da Autoridade Tributária e Aduaneira inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspetivos, da real situação económica do sujeito passivo, de modo a poder promover a liquidação adicional ou a anulação de parte do imposto devido segundo o determinado na liquidação provisória.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A..., lda., doravante designada por  “Requerente”, pessoa coletiva..., com sede no ...,  ..., Albufeira, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 10.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado em 13 de abril de 2022 sobre a liquidação oficiosa de IRC n.º 2020..., do exercício de 2018, no montante de 11 639,73 euros (incluindo 191,94 euros de juros compensatórios) e da liquidação oficiosa n.º 2020..., do exercício de 2019, no montante de 11 632,85 euros (incluindo 185,06 euros de juros compensatórios), por entender que se encontram viciadas por excesso de quantificação. 

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor  Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 7 de novembro de 2022 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), todos do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 29 de  dezembro de 2022, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral  foi constituído em 16 de janeiro de 2023, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta no dia 17 de janeiro de 2023.

 

  1. A Requerida apresentou, em 20 de fevereiro de 2023, Resposta,  na qual  defendeu  que: (i) o pedido de revisão oficiosa apresentado contra os atos de liquidação  não comporta a apreciação da legalidade (das liquidações), pois foi liminarmente rejeitado por inidoneidade do meio processual utilizado e, assim, o Tribunal Arbitral seria incompetente para apreciar a presente impugnação; (ii) o pedido de constituição de Tribunal Arbitral é intempestivo, pois decorreu um prazo superior a noventa dias, com termo inicial no dia seguinte ao fim do prazo de pagamento voluntário da prestação tributária; e (iii) não ocorreu um erro imputável aos serviços, pois a AT viu-se obrigada a emitir as liquidações oficiosas, em face do comportamento negligente do contribuinte, traduzido na falta de entrega da declaração  periódica de rendimentos dos exercícios de 2018 e 2019  – circunstância que inviabiliza a revisão das liquidações. Juntou ainda o processo administrativo (“PA”).

 

  1. O  Tribunal Arbitral dispensou, no dia 17 de julho de 2023a  reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. O Tribunal Arbitral notificou, ainda, as partes para querendo apresentarem alegações finais escritas e simultâneas.

 

 

  1. Por despachos de 17 de julho de 2023, de 15 de setembro  de 2023, e de 16 de novembro de 2023 foi prorrogado o prazo de prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, com os fundamentos descritos nos respetivos despachos.

 

Posição da Requerente

 

  1. A Requerente alega que as liquidações oficiosas de IRC  devem ser anuladas por excesso de quantificação.

 

  1.  Vejamos, em concreto, os fundamentos:

 

  1.  As liquidações oficiosas em crise não incidiram sobre rendimentos reais da Requerente; a A..., Lda.  apurou uma matéria coletável de 10 103,36 euros, no exercício de 2018 e de 15 192,50 euros, no exercício de 2019 (e não de 54 513,31 euros que cada uma das liquidações oficiosas presume);

 

  1. Ainda que apresentadas fora de prazo, a AT não poderia desconsiderar as declarações de rendimentos entregues a 2 de novembro de 2021, pois a Requerente utilizou, de modo atempado, o mecanismo previsto no artigo 90.º, n.º 12, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“CIRC”);

 

  1. Caso a AT tivesse alguma dúvida quanto à veracidade das declarações de rendimentos (Modelo 22 de IRC) deveria ter encetado diligências adicionais – realização de inspeção.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que, em  primeiro lugar, se verificam as seguintes “exceções dilatórias”: a) incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o mérito; e b) intempestividade da apresentação do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Sustenta, em defesa, da inidoneidade do meio processual utilizado que:

 

  1.  O pedido de revisão oficiosa apresentado contra os atos de liquidação em causa não comporta a apreciação da sua legalidade;

 

  1. A impugnação deveria ter sido realizada através de uma ação administrativa especial;

 

  1. Verificando-se, assim, uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito – incompetência material do  Tribunal Arbitral.

 

 

  1. Defende, ainda, que o pedido de constituição de Tribunal Arbitral (e de pronúncia arbitral) é intempestivo quanto às liquidações impugnadas.

 

  1. Sustenta, em abono da tese, o seguinte:

 

  1. O prazo para apresentar o pedido de pronúncia arbitral é de noventa dias, com termo inicial no primeiro dia após o fim do prazo de pagamento voluntário;

 

  1. No caso sub iudice, o prazo de pagamento voluntário terminou a 1 de fevereiro de 2021 e 16 de fevereiro de 2021, tendo o pedido de constituição do Tribunal Arbitral sido apresentado a 4 de novembro de 2022.

 

QUESTÃO PRÉVIA

 

  1. A Requerida defende que se verificam duas exceções i)  incompetência material do Tribunal Arbitral, por inidoneidade do meio processual utilizado; e ii) intempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. A apresentação de pedido de pronúncia arbitral, para além do termo final do prazo, consubstancia uma exceção – a intempestividade do pedido de constituição de Tribunal Arbitral (e do pedido de pronúncia arbitral).

A doutrina entende[1], quanto à questão da consequência da intempestividade da petição, o seguinte:

 

A caducidade do direito de ação, em certos casos, no domínio do direito civil, importa a extinção do direito que se pretendia fazer valer em juízo, pelo que, se o tribunal entender que ocorre a caducidade, deverá absolver o réu do pedido, pois fica definitivamente resolvida entre as partes a questão da possibilidade de exercício do direito. Porém, no domínio dos processos de impugnação judicial, sendo o objeto do processo o ato de liquidação e havendo fundamentos de impugnação que não estão sujeitos a prazo, como é o caso da inexistência e dos vícios geradores de nulidade (artigo 102.º, n.º 3, do CPPT), parece que deverá entender-se que a ocorrência da caducidade do direito de impugnação com fundamento em determinado vício gerador de anulabilidade (só em relação a estes vícios há a possibilidade de caducidade do direito de impugnação) não implica a extinção do direito de impugnação com fundamento em inexistência ou em vícios geradores de nulidade, pois o contribuinte estará sempre em tempo de os suscitar.  (o destaque é nosso)…De qualquer forma, mais importante que a designação a atribuir à absolvição por caducidade do direito de impugnação é ter presente que, se for decidida a absolvição do pedido, o alcance da decisão será apenas o de obstar a que seja apreciado novamente o mesmo fundamento em impugnação judicial direta do ato de liquidação, não havendo obstáculo  a que sejam invocados noutra impugnação judicial, fundamentos não invocados…

 

  1. O Tribunal Arbitral acompanha a referida posição doutrinal, pois entende ser aplicável à arbitragem tributária, pelo que, a questão será conhecida infra.

 

  1. Importa, para conhecer a matéria de exceção, dar como assente que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 4 de novembro de 2022 e, paralelamente, a Requerente foi notificada do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa no dia 8 de novembro de 2022.

O despacho de indeferimento concluiu o seguinte: “[o] presente pedido de revisão não tem cabimento legal nos termos do artigo 78.º da LGT, propondo-se o seu indeferimento”, contudo, como resulta do parágrafo anterior, o ato foi proferido após a apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral pela Requerente.

A jurisprudência [2] quando à idoneidade do meio de impugnação de uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão observa que:

 

A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT - independentemente de ter sido ou não precedida de meio gracioso e, no caso de assim ter acontecido, independentemente do teor da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito – acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18/11/2020, proferido no processo 0608/13.4BEALM 0245/18. (o destaque é nosso) E visa a anulação total ou parcial do ato tributário (a liquidação).
Ao invés, a ação administrativa, meio contencioso comum à jurisdição administrativa e tributária, será o meio processual a usar quando a pretensão do interessado não implique a apreciação da legalidade do ato de liquidação.

           

Sustenta  igualmente a jurisprudência[3]:

 

Apresentado pedido de constituição do tribunal arbitral, com fundamento em indeferimento tácito do procedimento de revisão oficiosa, e sendo proferida posteriormente decisão final expressa de indeferimento no referido procedimento, é este ato expresso que passa a vigorar na ordem jurídica como definidor da situação concreta do particular, dado que a prolação de ato expresso de indeferimento implica a revogação do ficcionado indeferimento tácito. (o destaque é nosso)

 

 

Deste modo, a utilização da arbitragem tributária, através da apresentação do pedido de constituição do Tribunal Arbitral (e de pronúncia arbitral), no dia 4 de novembro de 2022 constitui um meio idóneo de reação à formação do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

Sucede, no entanto, que a Requerente foi, no dia 8 de novembro de 2022, notificada da decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa dos atos tributários, tendo reagido à mesma, perante o facto de ter deixado de vigorar na ordem jurídica o ato ficcionado, por impugnação recebida nos autos a 18 de novembro de 2022. Ou, dito de outro modo, deu cumprimento ao previsto no artigo 64.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”).

O indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa alicerçou-se nos seguintes fundamentos:

 

25. De acordo com o previsto na 2ª parte do n.º 1 do art.º 78º da LGT, o prazo para proceder à revisão oficiosa é de 4 anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, se o imposto estiver pago ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago.

 

 26. Não foi identificado qualquer erro imputável aos serviços, uma vez que as liquidações de IRC foram emitidas, de acordo com a alínea b) do art.º 89º e alínea b) do n.º 1 do art.º 90º, ambos do CIRC.

 

27. A revisão com fundamento no n.º 4 do art.º 78º da LGT, o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave e notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. O n.º 5, considera apenas notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional, importa ter presente que no pedido à luz desse preceito legal apenas está em causa a revisão da matéria tributável e não qualquer ilegalidade da liquidação que deveria ser suscitada em sede própria — reclamação graciosa ou impugnação judicial. No entanto, este preceito estabelece também uma condição, que é a do erro não ser imputável a comportamento negligente do contribuinte. Ora, na situação em apreço, as liquidações oficiosas foram emitidas precisamente atendendo a comportamento negligente do sujeito passivo já que, conforme referido anteriormente não entregou à AT dentro do prazo as Mod. 22 a que estava legalmente obrigado. (o destaque é nosso) Assim sendo, também aqui, não se verificam os pressupostos pare se proceder à revisão oficiosa da liquidação com base no n° 4 do artigo 76°[78.º] da LGT.

 

28. A revisão com fundamento no n.º 6 do art.º 78º da LGT, por motivo de duplicação de coleta, pode efetuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos. De acordo com o art.º 205º do CPPT, haverá duplicação de coleta quando estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo, o que não se verifica no caso em apreço.

 

Reforça-se, a jurisprudência[4] entende quanto à utilização da impugnação judicial o seguinte:

 

[o] meio processual adequado, para os interessados atacarem, contenciosamente, as decisões de indeferimento dos aludidos processos/procedimentos administrativos e, concomitantemente, verem analisados os vícios colados ao ato de liquidação (de impostos, taxas….) em causa, é, unicamente (Em vez da utilização, como se defende na sentença aprecianda, da ação administrativa para uma pretensão e da impugnação judicial, para outra.), o processo de impugnação judicial, com as condições e trâmites, positivados nos artigos (arts.) 99.º a 133.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). O exclusivo requisito/condição exigida, para que, sempre, seja esta a forma de processo a utilizar, é a verificação e conclusão de o, prévio, procedimento administrativo, casuisticamente, ativado, envolver, dizer respeito, à liquidação de tributos, estaduais, regionais e/ou locais. Portanto, numa formulação genérica, o meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar (o destaque é nosso); por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode [ser] utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.

 

O Tribunal Arbitral adere a toda a jurisprudência, neste âmbito,  citada, e, por isso, tal fundamentação é bastante para que se conclua pela idoneidade do meio utilizado, improcede, assim, a exceção dilatória de incompetência (do Tribunal Arbitral), por  inidoneidade do meio processual utilizado.

 

           

20. Questão a Apreciar

 

  1. Se se  verifica a caducidade do direito de ação;
  2. Se as liquidações oficiosas de IRC são ilegais, por excesso de quantificação.

 

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

21. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

 

21.1 A Requerente é um sujeito passivo de IRC, enquadrada no  regime geral e com contabilidade organizada, com período de tributação correspondente ao ano civil.

(PA)

 

21.2 A Requerente não cumpriu a obrigação declarativa (entrega da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC) – até ao último dia do mês de maio de 2019 e de 2020, conforme previsto no artigo 117.º, n.º 1,  alínea b) e no artigo 120.º, n.º 1, ambos do CIRC.

(PA)

 

21.3 Em face da omissão declarativa da Requerente, a AT notificou-a, em 11 de novembro de 2019 (Aviso n.º...) no sentido de entregar a declaração em falta, com vista à regularização da sua situação tributária respeitante ao ano de 2018; e em 6 de dezembro de 2020  (Aviso n....), relativamente ao exercício de 2019.

(PA)

 

21.4. A AT recolheu, perante a omissão declarativa, as declarações oficiosas n.º... e n.º ..., dos anos de 2018 e 2019, respetivamente.

(PA)

 

21.5. Em resultado das referidas declarações foram emitidas as liquidações n.º 2020... (exercício de 2018), no montante de 11 447,79 euros, com prazo de pagamento voluntário até 1 de fevereiro de 2021;  e n.º 2020... (exercício de  2019), no montante 11 447,79 euros, com prazo de pagamento voluntário até 16 de fevereiro de 2021, acrescidas de juros compensatórios.

(PA)

 

21.6 A Requerente apresentou, em 2 de novembro de 2021, as declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC, referentes aos períodos de tributação de 2018 e de 2019, assinalando o sistema informático da Requerida que existiam erros de validação, devido aos prejuízos declarados.

(PA)

 

21.7 Em 13 de abril de 2022, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da  Lei Geral Tributária (“LGT”), a solicitar a revisão das liquidações oficiosas de IRC, exercícios de 2018 e de 2019, fundamentando o seu pedido com base nos elementos e dados constantes nas declarações de rendimentos apresentadas em 2 de novembro de 2021.

(PA)

 

21.8 Em face do decurso do prazo de quatro meses, previsto no  artigo 57.º, n.º 1,  da LGT, em 13 de agosto de 2022 formou-se o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão apresentado pela Requerente, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

(PA)

 

21.9 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 4 de novembro de 2022. (Sistema informático do CAAD)

 

21.10 A AT notificou a Requerente do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, por despacho de 8 de novembro de 2022.

(PA)

 

21.11 A Requerente veio aos autos peticionar, em 18 de novembro de 2022, “[o] prosseguimento da presente impugnação contra este indeferimento, agora expresso, a par das liquidações de IRC igualmente impugnadas que já constituíam seu objeto mediato, …”.

(Sistema informático do CAAD)

 

22. Fundamentação dos factos provados e não provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [cfr. artigo 123.º, n.º 2,  do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”); e  artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º,  n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a respetiva fonte.

Não se deram como provadas, nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

23.MATÉRIA DE DIREITO

 

i) Caducidade do direito de ação

 

A Requerente alega que se verifica a intempestividade do pedido de constituição do Tribunal Arbitral, na medida em que o prazo de pagamento voluntário terminou a 1 de fevereiro de 2021 e 16 de fevereiro de 2021, tendo o pedido de constituição do Tribunal Arbitral sido apresentado a 4 de novembro de 2022.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado contra o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, formado no dia 13 de agosto de 2022, pelo que, tendo o  referido pedido sido apresentado a 4 de novembro de 2022,  a ação arbitral é tempestiva.  Diga-se até que a Requerente, como supra se fundamentou, perante o facto de o ato de indeferimento tácito ter desaparecido da ordem jurídica, deu cumprimento ao previsto no artigo 64.º, n.º 3, do CPTA.

Em resumo, não se verifica a caducidade do direito de ação.

 

ii) Questão de determinar se as liquidações oficiosas são ilegais, por excesso de quantificação.

 

O IRC é devido, regra geral, por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, assim, os sujeitos passivos do imposto que adotem esta modalidade de tributação estão obrigados a apresentar a declaração anual de rendimentos até ao último dia do mês de maio, ainda que o termo final ocorra em dia não útil – artigo 120.º, n.º 1, do CIRC.

O procedimento de liquidação é instaurado com fonte nas declarações apresentadas pelos contribuintes ou, perante a omissão ou vício, com fundamento em todos os elementos que a AT detenha ou venha a deter no exercício das suas competências.

Deste modo, a determinação da matéria tributável é realizada, por via de regra, com base nas declarações apresentadas, desde que aportem à AT os elementos necessários à verificação da situação tributária do contribuinte.

Por outro lado, o artigo 75.º da LGT prescreve que se presumem verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei; bem como os elementos e apuramentos inscritos na sua contabilidade e escrita, quando se encontrem organizados de acordo com a legislação comercial e fiscal. Todavia,  o n.º 2 do referido artigo prevê diversas hipóteses em que ocorre a quebra da presunção de veracidade, de que são exemplo:

 

  1. as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados que não reflitam ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo; e

 

  1.   o contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da lei, for legítima a recusa da prestação de informações.

 

Regra geral, as situações patológicas previstas no artigo 75.º, n.º 2, alíneas a) e b) da LGT somente serão passíveis de deteção através do exercício do poder inspetivo  -artigo 63.º da LGT, a exercer até ao termo do prazo de caducidade dos tributos emergentes da relação jurídica tributária - artigo 36.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”).

A tributação das empresas incide, nos termos do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), por via de regra,  sobre  o rendimento real, apurado com base na contabilidade do sujeito passivo, se se encontrar organizada de acordo com as normas e regras do sistema normalização contabilística e da legislação comercial e fiscal.

A AT tem o poder-dever de realizar procedimentos de inspeção tributária, com vista a confirmar os elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, bem como o de investigar sobre  factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados (tributários).

Se no âmbito de um procedimento inspetivo forem identificadas situações de omissão, erro ou inexatidão, dever-se-ão efetuar as necessárias correções meramente aritméticas e, em consequência,  a matéria coletável do sujeito passivo é corrigida, em ordem a que a tributação seja feita em função da sua real capacidade contributiva  - artigo 4.º, n.º 1,  da LGT.

Por outro lado, se o sujeito passivo não respeitar os seus deveres de colaboração (prestando os esclarecimentos solicitados e remetendo os documentos pedidos), e existam indícios fundados de que a declaração emergente do cumprimento da obrigação  não reflete ou obsta ao conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo, é possível recorrer à avaliação indireta.

Deste modo, a utilização pela AT da metodologia indireta de determinação da matéria tributável fica legitimada quando o sujeito passivo não cumpriu, de acordo com o padrão normativo, as suas obrigações tributárias.

Foi o que aconteceu no caso sub iudice, na medida em que  a Requerente não apresentou até ao último dia do mês de maio de 2019 e de 2020, a declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, relativa ao período de tributação de 2018 e de 2019, respetivamente, não efetivou a autoliquidação e não entregou nos cofres do Estado o imposto – artigo 89.º, n.º 1, alínea a); artigo 90.º, n.º 1, alínea b); e  artigo 117.º, n.º 1, alínea b), todos do CIRC.

Deste modo, a liquidação oficiosa – artigo 89.º, n.º 1,  alínea b) e artigo 90.º, n.º 1, alínea b), ambos do CIRC – tem por fonte o incumprimento do sujeito passivo e, assim, pretende acautelar o interesse público e, em segundo lugar, evitar a caducidade do direito à liquidação do imposto. Paralelamente, configura uma modalidade de tributação indireta.

O artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, na redação em vigor à data dos factos, dispunha que:

 

1 — A liquidação do IRC processa-se nos seguintes termos:

(…)


b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o maior dos seguintes montantes

1) A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75;

2) A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;

3) O valor anual da retribuição mínima mensal. (Aditado pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)

c) (Revogada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)

 

Paralelamente, o artigo 60.º, n.º 2, alínea b), da LGT determina a dispensa do direito de audição quando: “[a] liquidação se efetuar oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito”.

Assim, a liquidação oficiosa exige que o sujeito passivo seja chamado a participar na sua efetivação, salvo se o contribuinte persistir no incumprimento, após notificação para apresentar a declaração em falta.

Utiliza a jurisprudência as palavras de RUI DUARTE MORAIS[5] quanto à liquidação oficiosa:

Pensamos que o seu sentido mais não é do que prevenir uma eventual caducidade do direito à (a qualquer) liquidação.

O montante assim fixado será, necessariamente, provisório (como de resto é também a autoliquidação, uma vez que fica sempre sujeita a uma eventual correção posterior pela administração tributária). Na realidade, não faria qualquer sentido que a liquidação oficiosa feita em tais termos pudesse ser havida como adequado substituto da declaração a que o sujeito passivo não procedeu. Para além de tal poder redundar numa vantagem incompreensível do contribuinte faltoso (ao ser tributado com base no resultado de um exercício anterior poderia pagar menos do que aquilo a que estaria obrigado, por ter acontecido uma evolução positiva dos resultados do seu negócio), significaria abdicar de qualquer pretensão de basear a tributação em causa no lucro (no resultado) real ou, mesmo, normal, desse sujeito passivo.

A falta de cumprimento pelo sujeito passivo parece impor à administração, para além de proceder oficiosamente a uma tal liquidação “provisória”, o dever funcional de, dentro do prazo de caducidade de tal direito, efetuar uma ação inspetiva visando determinar qual o lucro obtido por esse sujeito passivo no exercício em causa e, também, a sua situação atual» (Apontamentos ao IRC, Almedina, 2007, págs. 208/209.).

De tudo o que vimos de dizer, resulta manifesto que o prazo previsto para a liquidação oficiosa de IRC no caso de falta de apresentação pelo contribuinte da declaração de rendimentos não é um prazo de caducidade. É, isso sim, um prazo meramente dirigido aos serviços da AT, impondo-lhes um prazo curto para a liquidação oficiosa, em ordem a prevenir a caducidade do direito de liquidar (que fica sujeita ao prazo normal).

Mas, como resulta do que deixámos já dito, a AT não só pode, como deve, diligenciar, designadamente através de ação inspetiva, no sentido de apurar qual a matéria tributável do período em causa (o valor real ou presumido dos rendimentos sujeitos a tributação), de modo a, dentro do prazo da caducidade do direito de liquidar, proceder às correções que se mostrem pertinentes e à consequente liquidação adicional ou anulação da liquidação oficiosa (consoante seja positiva ou negativa a diferença entre o montante de imposto liquidado oficiosamente nos referidos termos e o que venha a mostrar-se devido) […]”. (o destaque é nosso).

 

A liquidação  oficiosa reveste uma natureza provisória, tem por substrato um rendimento presumido pelo facto de inexistirem elementos declarados, no prazo legal, pelo sujeito passivo. Constitui, assim, uma limitação ao princípio da tributação de acordo com o rendimento real, a qual deve ser adequada, necessária e proporcional para salvaguardar o interesse público de arrecadação de receita e de prevenção na erosão da base tributária.

Sucede, no entanto que, após a entrega da declaração de rendimentos subsequente à emissão da liquidação oficiosa,  antes da verificação da caducidade do direito à liquidação, a AT fica obrigada, por força do princípio da tributação pelo rendimento real, à realização de diligências que lhe permitam a aferição de todos os elementos subsequentemente apresentados pelo sujeito passivo[6], sob pena de excesso de quantificação de rendimentos.

Em resumo, quando um sujeito passivo não cumpre a obrigação declarativa,  a AT deve, com fundamento nos seus poderes inspetivos, aferir a real situação económica, de molde a poder promover a liquidação adicional ou a anulação de parte do imposto devido segundo a liquidação provisória.

No caso sub iudice, a AT ignorou as declarações apresentadas a 2 de novembro de 2021 pela Requerente respeitantes aos exercícios de 2018 e 2019, preferindo manter as liquidações oficiosas com fundamento no incumprimento da obrigação declarativa,  em violação da obrigação de tributação das empresas pelo rendimento real.

O pedido de pronúncia arbitral é assim julgado procedente, anulando-se as liquidações oficiosas de IRC (2018 e 2019) e de juros compensatórios.

 

24. Conclusão

 

O facto de a AT não se ter inteirado, após a apresentação das declarações de IRC omitidas, por via do exercício dos seus poderes inspetivos, da real situação económica do sujeito passivo, de modo a poder promover a liquidação adicional ou a anulação de parte do imposto devido segundo o determinado naquelas liquidações provisórias conduz à sua anulação, por excesso de quantificação.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido da Requerente;
  2. Determinar a anulação do ato de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado;
  3. Determinar a anulação das liquidações oficiosas de IRC de 2018 e de 2019 (2020... e 2020..., respetivamente), com as legais consequências;
  4. Condenar a Requerida no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 23 272,58 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas no montante de 1224 euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 27  de  dezembro  de 2023

 

 

O árbitro,

                                                                                               

 

Francisco Nicolau Domingos

 

 

 



[1] JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Volume II, 6.ª edição, Áreas Editora, 2011, p. 164.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo  de 13 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo  n.º 0129/18.9BEAVR.

[3] Decisão arbitral  n.º 727/2021-T, de 14 de julho de 2022.

[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 0608/13.4BEALM0245/18.

 

 

[5] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de fevereiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º  0276/11.8BELRS.

 

[6] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29 de setembro de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 252/08.8 BELRS.