Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 322/2023-T
Data da decisão: 2023-12-30  IVA  
Valor do pedido: € 21.122,35
Tema: IVA – Art.º 86 CIVA – Venda de bens para sucata.
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SUMÁRIO: A comprovação da venda de bens para sucata afasta a presunção legal do art.º 86 do Código do IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL

A Árbitra do Tribunal Singular, Dra. Raquel Montes Fernandes, designada pelo Conselho Deontológico do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 10.07.2023, decide o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

A A..., LDA, doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal ... e sede na ..., ...-... ..., ..., tendo sido notificada dos atos tributários de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios e moratórios infra identificados, no valor total de € 19.027,55, apresentou, em 02.05.2023, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art.º 2, n.º 1, alínea e) e art.º 10, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com o art.º 99, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).

 

 

 

 

As liquidações adicionais objeto do presente pedido de pronúncia arbitral são as seguintes:

 

A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e de juros compensatórios e moratórios acima identificadas, no valor total de € 21.122,35.   

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os art.ºs 5, n.º 2, alíneas a) e b) e 6, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra singular deste Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 21.06.2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído, em 10.07.2023, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta em 26.09.2023, defendendo por impugnação que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. Na mesma data foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em 17.06.2022 foi proferido despacho arbitral a designar o dia 31 de outubro, pelas 14h30, para a realização da reunião prevista no art.º 18 do RJAT e inquirição da testemunha a apresentar pela Requerente, a qual, por indisponibilidade de agenda desta, foi reagendada para dia 10 de novembro de 2023, às 10h. Nesta audiência houve lugar à inquirição da testemunha apresentada pela Requerente.

 

Na reunião prevista no art.º 18 do RJAT foi clarificado que o objeto do pedido arbitral abrange as liquidações adicionais de IVA (no valor de € 19.027,55), bem como as liquidações de juros compensatórios (no valor de € 1.540,09) e de juros de mora (no valor de € 554,71), pelo que o valor do processo indicado originalmente pela Requerente, no montante de € 19.027,55, foi atualizado para € 21.122,35, em conformidade com o seu objeto.

 

Na audiência da prova testemunhal as partes prescindiram da apresentação de alegações.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea b) do CPPT.

 

As Partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

Face ao exposto, importa delimitar a questão a decidir, a qual versa sobre a prova apresentada pela Requerente para sustentar a venda de inventário para sucata, a fim de afastar a presunção legal de transmissão do art.º 86 do Código do IVA.

 

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, registada desde 15.11.2000, que exerce a atividade principal de atividades de mecânica geral (CAE 25620) e a atividade secundária de fabricação de mobiliário para escritório e comercial.
  2. A Requerente é sujeito passivo de IRC e de IVA, enquadrada, no que respeita a este último, no regime normal de periodicidade trimestral.
  3. A Requerente tem sede social na ..., ...-... ... .
  4. Até 2006, a Requerente produziu máquinas para a indústria do calçado, nomeadamente para a secagem e reativação de colas, máquinas essas que eram produzidas e comercializadas com base em patentes ... .
  5. Na sequência das dificuldades financeiras do grupo B... e da impossibilidade de comercialização de produtos com as referidas patentes, a Requerente mudou de ramo de negócio e, entre 2006 e 2018, dedicou-se ao fabrico de componentes metálicas para a indústria de material hospitalar, sobretudo fabricação de peças para instrumentos.
  6. Por sua vez, a partir de 2019, a sua atividade consistiu no fabrico de colchões hospitalares, os quais eram vendidos, quase na sua totalidade (cerca de 97% da faturação), à entidade C..., S.A. (NIF...).
  7. Para efeitos de fabrico dos referidos colchões, a Requerente adquiria matéria-prima (espuma e outros materiais), que depois era incorporada para a produção do produto final (colchões hospitalares), através de uma máquina de costura industrial, entretanto adquirida para o efeito. Este negócio era complementar ao negócio da empresa C..., que produzia camas metálicas para unidades hospitalares e não tinha colchões para as mesmas.
  8. As mudanças de atividade acima referidas e, em particular, a suspensão abrupta do fornecimento ao grupo B... em 2006, originaram a manutenção em armazém, nos anos seguintes, de existências previamente adquiridas para o efeito. 
  9. O negócio do fabrico de colchões também durou apenas entre 2019 e 2020, uma vez que não se revelou rentável, tendo sido fechada a unidade fabril com o propósito de liquidar e dissolver a empresa.
  10. Em sede de inspeção, a AT confirmou que o estabelecimento da Requerente se encontrava fechado e sem qualquer atividade, funcionando apenas como armazém de depósito onde estão guardados materiais pertencentes à C... .
  11. A Requerente contabilizou (i) uma imparidade em inventários no montante de € 83.828,46, correspondente à perda na venda de matérias-primas e (ii) uma variação (negativa) de produção, no valor de € 2.257,15, correspondente à perda na venda de produtos acabados ou semiacabados.
  12. Durante o ano de 2019, a Requerente procedeu a vendas para sucata de bens com origem no stock de matérias-primas e no stock de produtos acabados e semiacabados (cfr. anexo 4 do PPA), as quais foram suportadas pelos seguintes documentos:
    1. Fatura n.º 3, de 14/06/2019, emitida a D..., Lda, no valor de € 216, com o descritivo “Sucatas – Referente a material de inventário danificado”, e a nota “1080 kgs a 0,20€”;
    2. Fatura n.º 5, de 17/09/2019, emitida a D..., Lda, no valor de € 220, com o descritivo “Sucatas – Abate inventário danificado, deteriorado ou descontinuado”, e a nota “1100 kgs a 0,20€”;
    3. Fatura n.º 9, de 5/12/2019, emitida a D..., Lda, no valor de € 228, com o descritivo “Sucatas – Abate inventário descontinuado” e a indicação da quantidade (1.140 kgs) e do respetivo preço unitário (€ 0,20).
  13. Face ao exposto, em sede de inspeção, a Requerente reconheceu ter incorretamente contabilizado como imparidade a venda, no decurso ao ano de 2019, como sucata, de matérias-primas e produtos inventariados.
  14. A Requerente emitiu, ainda, as seguintes faturas:
  1. Fatura n.º 4, de 02/08/2019, emitida a D..., Lda, no valor de € 200, com o descritivo “Sucatas – Diversas ferramentas, máquinas e mat. descontinuadas”, e a nota “1000 kgs a 0,20€”;
  2. Fatura n.º 7, de 22/10/2019, emitida a D..., Lda, no valor de € 236, com o descritivo “Sucatas – Materiais descontinuados”, e a nota “1180 kgs a 0,20€”.
  • As faturas em causa (n.ºs 4 e 7) respeitam, de acordo com a Requerente, à venda de sucata de imobilizado (equipamentos obsoletos e materiais descontinuados) e não de stock.
  • As listas de inventários disponibilizadas pela Requerente para suporte da venda para sucata evidenciam (i) os materiais objeto de venda e (ii) os materiais recolhidos gratuitamente pelo sucateiro no âmbito de cada lote de sucata.
  • Em sede de inspeção, a AT considerou o seguinte:

“De facto, verificou-se que os inventários iniciais de 2019, no valor total de €83.828,46, foram vendidos para a sucata à entidade “D..., Lda., NIF...”, que, de acordo com os extratos contabilísticos, totalizaram €1.100,00, e respeitam a 5 faturas (0003, 0004, 0005, 0007 e 0009), todas elas com referência a inventário descontinuado, com indicação do peso, mas sem qualquer descriminação dos produtos e suas quantidades. Assim, e tal como o SP refere, não deveria ter sido contabilizada uma perda por imparidades em inventários, mas sim o seu abate com a venda para sucata. Com vista a fazer prova da venda para sucata, foi apresentado no Anexo 2, uma tabela de conversão para peso, das unidades referenciadas no inventário, de forma a comprovar que todos aqueles bens foram faturados (em Kgs) ao sucateiro. Contudo, da análise à referida tabela apuramos que, contrariamente ao referido, nem todos os bens foram “vendidos para sucata”, mas antes terão sido “entregues”, uma vez que terão ocorrido duas situações distintas:

• A venda/faturação de bens em Kgs;

• A recolha gratuita pelo sucateiro sem qualquer documento associado.

Por outro lado, no que respeita às faturas emitidas, verifica-se que o total de Kgs nelas referido, não confere com o total que se apura na tabela apresentada – coluna “Peso sucata (Kg)”, apurando-se o seguinte:

 

 

 

Concluindo-se assim que o peso total faturado ao sucateiro (5.500 kg), não tem correspondência com o peso total que o SP apresenta na tabela de conversão (1.140,91 kg). Relativamente à “recolha gratuita pelo sucateiro”, na referida tabela não foi indicada qualquer conversão das unidades em peso, nem foi apresentado qualquer outro documento que valide a sua recolha, quer por via da descrição dos bens quer, como foi feito para os bens faturados, em termos de peso, concluindo-se não estar comprovada a alegada entrega para sucata, por falta de documentação válida. Os bens identificados como “sucateiro recolhe grátis” totalizam o valor de inventário de 18.726,00€.

• Enquadramento

Aqui chegados, a questão que se coloca é qual o tratamento contabilístico e fiscal da desvalorização de bens de inventário, e eventual abate ou venda para sucata.

 (…)

Concluímos pela elevada probabilidade da efetiva existência de inventários com desvalorização associada à sua condição de inutilização.

Contudo:

- Não houve qualquer comunicação prévia à AT para o abate do inventário como sucata.

- Não foi emitida/apresentada, qualquer Guia de Acompanhamento de Resíduos (e-GAR), que se mostra devida quando se trata do transporte de resíduos e que pode ser emitida pelo SP ou pelo operador de recolha dos mesmos, quer no que respeita aos bens faturados quer, em particular, no que respeita aos bens “recolhidos grátis pelo sucateiro”.

- As faturas emitidas ao sucateiro não descriminam as quantidades e designações dos materiais recolhidos, apenas referindo em OBS, o peso de cada carga, o qual, tendo em conta a análise da tabela de conversão de unidades em peso, não foi possível validar.

- O SP não apresentou quaisquer outros elementos, pareceres, relatórios, autos ou outro tipo de informação, que comprove quais os bens, e permita validar serem aqueles os bens que foram entregues e faturados como sucata e que os mesmos não poderiam ter outra utilização, ainda que desmantelados e reclassificados com vista ao seu reaproveitamento como matéria prima.

• Correções

Reconhecendo o SP que a contabilização adotada, não se apresenta adequada aos factos ocorridos, uma vez que não se verificou a ocorrência de imparidades, mas, antes, a venda como sucata, mas não sendo os elementos apresentados, suscetíveis de comprovar que os bens em causa não eram passíveis de reutilização ou comercialização por obsolescência, danos ou qualquer outro motivo, que terá levado à sua entrega como sucata, nem tendo comunicado tal operação à AT, de forma a ilidir a presunção do artigo 86.º do CIVA, não é possível avaliar e validar a operação de abate.

Em sede de IVA:

Não ficando provado o efetivo destino dos bens, uma vez que:

• as faturas emitidas como sucata não identificam os bens que tiveram esse destino e a documentação complementar apresentada não permite validar essa entrega, nomeadamente por incongruência dos pesos apurados;

• os bens recolhidos gratuitamente pelo sucateiro não têm qualquer documento associado que identifique os bens ou o seu peso, concluímos que não está ilidida a presunção legal prevista no artigo 86º do CIVA, pelo que, considera-se, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA, que os bens foram afetos a fins alheios à empresa. E, tendo havido dedução de imposto aquando da sua aquisição, essa afetação é assimilada a transmissão de bens sujeita a IVA sobre o seu valor de custo, ou seja, pelo valor registado como inventários, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA.

Apura-se então IVA não liquidado no montante de €19.027,55, com referência ao período 2019.12T, considerando que o valor faturado como sucata está incluído no valor global dos inventários regularizados, conforme se apresenta:

 

  1. Em 16.11.2022 a Requerente foi notificada para exercer direito de audição prévia, o que veio a suceder, em 30.11.2022.
  2. Os Serviços de Inspeção da Requerida mantiveram as correções propostas e emitiram as liquidações de IVA e de juros objeto deste processo.
  3. A Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral em 02.05.2023.

 

  1. Factos não provados

Com relevo para a decisão do presente processo, não existem factos que se tenham considerado como não provados.

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, ao invés, o dever de (i) selecionar os factos que importam para a decisão e (ii) discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

Os factos foram dados como provados ou não provados com base (i) nos documentos juntos aos autos, (ii) no processo administrativo apresentado e (iii) na prova testemunhal em audição realizada em 10.11.2023, pelas 10h, nas instalações do CAAD. Neste âmbito, foi ouvida a seguinte testemunha:

  1. E... (Responsável financeiro e comercial da empresa principal do grupo a que pertence a Requerente).

A testemunha aparentou depor com isenção e conhecimento dos factos que relatou.

Todas as provas deste processo foram criticamente analisadas por este Tribunal.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão decidenda

É solicitado a este Tribunal que se pronuncie sobre o enquadramento jurídico-fiscal a conferir, em sede de IVA, às vendas para sucata efetuadas pela Requerente em 2019.

 

 

  1. Apreciação do Tribunal

 

  1. Fundamentos das correções (resumo)

 

Os fundamentos da AT subjacentes às correções efetuadas foram, em suma, os seguintes:

  • Tendo analisado os inventários disponibilizados pela Requerente, os Serviços de Inspeção concluíram que os bens aí referidos se mantiveram inalterados (quer quanto ao tipo de bens, quer quanto às quantidades) durante os anos de 2011 a 2019;
  • Os bens em causa eram sobretudo produtos e matérias não suscetíveis de reutilização ou comercialização, dadas as suas características particulares, pelo que a AT concluiu “pela elevada probabilidade da efetiva existência de inventários com desvalorização associada à sua condição de inutilização” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária);
  • Inexistiu comunicação prévia à AT “para o abate o inventário como sucata” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária);
  • Não foram apresentadas/emitidas Guias de Acompanhamento de Resíduos para o transporte dos bens para o sucateiro;
  • As faturas emitidas ao sucateiro não descriminam as quantidades e designações dos materiais recolhidos, “apenas referindo em OBS, o peso de cada carga, o qual, tendo em conta a análise da tabela de conversão de unidades em peso, não foi possível validar” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária);
  • O SP não apresentou quaisquer outros elementos, pareceres, relatórios, autos ou outro tipo de informação, que comprove quais os bens, e permita validar serem aqueles os bens que foram entregues e faturados como sucata e que os mesmos não poderiam ter outra utilização, ainda que desmantelados e reclassificados com vista ao seu reaproveitamento como matéria prima” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária);
  • E “não sendo os elementos apresentados, suscetíveis de comprovar que os bens em causa não eram passíveis de reutilização ou comercialização por obsolescência, danos ou qualquer outro motivo, que terá levado à sua entrega como sucata, nem tendo comunicado tal operação à AT, de forma a ilidir a presunção do artigo 86.º do CIVA, não é possível avaliar e validar a operação de abate” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária);
  • Face ao exposto, não foi provado o efetivo destino dos bens porque (i) as faturas não identificam os bens que tiveram esse destino e a documentação complementar apresentada não permite validar essa entrega, nomeadamente por incongruência dos pesos apurados e (ii) os bens recolhidos gratuitamente não têm qualquer documento associado que os identifique e ao seu peso;
  • Como tal, concluiu-se no Relatório de Inspeção Tributária “que não está ilidida a presunção legal prevista no artigo 86º do CIVA, pelo que, considera-se, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do CIVA, que os bens foram afetos a fins alheios à empresa. E, tendo havido dedução de imposto aquando da sua aquisição, essa afetação é assimilada a transmissão de bens sujeita a IVA sobre o seu valor de custo, ou seja, pelo valor registado como inventários, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA” (páginas 18-19).

 

  1. Enquadramento legal subjacente aos atos tributários contestados

 

Dispõe o art.º 86 do CIVA, que [s]alvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua atividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais”.

 

Por sua vez, determina a alínea f) do n.º 3 do art.º 3 do CIVA que se consideram ainda transmissões de bens (equiparadas a onerosas) os bens da sociedade que, entre outras situações aí expressamente mencionadas, sejam afetos a fins alheios à atividade da mesma, bem como aqueles em relação aos quais, tendo sido objeto de transmissão gratuita, tenham sido objeto de dedução total ou parcial do imposto aquando da sua aquisição.

 

  1. Apreciação do Tribunal

 

Conforme resulta do supra exposto, a Requerida considerou transmitidos (a título oneroso) os bens dos inventários regularizados, em 2019, pela Requerente, que não se encontravam nas instalações desta no momento da inspeção, por entender não ter sido provado o efetivo destino desses bens.

 

Os bens em causa são produtos e matérias que não poderiam ser reutilizados ou comercializados para outros clientes, dadas as suas características, e cujos produtos e respetivas quantidades se mantiveram inalterados ao longo dos anos, conforme comprovado pelos Serviços de Inspeção em análise aos inventários da Requerentes de 2011 a 2019. É, aliás, a própria AT que conclui “pela elevada probabilidade da efetiva existência de inventários com desvalorização associada à sua condição de inutilização” (pág. 18 do Relatório de Inspeção Tributária).

 

Não é totalmente claro se a Requerida enquadrou os factos em discussão como (i) uma operação de abate não devidamente comprovada, (ii) uma afetação (gratuita) de bens a fins alheios à atividade da empresa equiparada a operação onerosa pela alínea f) do n.º 3 do art.º 3, ou (iii) uma transmissão gratuita de bens em relação aos quais se verificou, a montante, dedução total ou parcial do imposto, igualmente equiparada a operação onerosa pela alínea f) do n.º 3 do art.º 3. Todas estas referências são usadas, quer no Relatório de Inspeção Tributária, quer na Resposta apresentada pela AT, de modo aparentemente indistinto. Tal como parece existir alguma confusão, na fundamentação da Requerida, entre operações de abate de inventário, por um lado, e de vendas de bens para sucata, por outro lado.

 

Em qualquer dos casos, o entendimento da Requerida fundou-se, em sede de inspeção, na convicção de estarem em causa operações (de abate, afetação ou transmissão) gratuitas, em relação às quais deveria ter existido liquidação de imposto, o que não se verificou.

 

O entendimento da Requerida encontra-se, no entanto, em total discordância com a situação factual considerada provada nos autos.

 

Conforme se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 11.02.2021, proferido no processo n.º 273/10.0BELRS, a “presunção prevista no artigo 80.º, do CIVA [atualmente art.º 86], tem presente a existência de uma discrepância não justificada entre o inventário contabilístico e realidade”. Vejamos, então, se a discrepância aparente entre o inventário contabilístico e a realidade neste processo arbitral foi devidamente justificada pela Requerente.

 

Tendo em vista comprovar o destino dos bens objeto de regularizações de inventários efetuadas em 2019 – prova que lhe competia – a Requerente prestou os seguintes esclarecimentos à AT: “Na falta de outra opção, em 2019, procedeu-se às referidas vendas com a única natureza possível (sucata), tendo, no geral o respetivo preço sido determinado com base no peso dos produtos” (página 15 do Relatório de Inspeção Tributária).

 

Em complemento a estes esclarecimentos, a Requerente apresentou as faturas n.ºs 3, 5 e 9 por si emitidas a D..., Lda., bem como as respetivas listagens de inventário, provando, por via documental, que os bens identificados no conjunto desses dois elementos probatórios foram objeto de venda para sucata em junho, setembro e dezembro de 2019.

 

Por sua vez, a prova testemunhal produzida em audiência foi, igualmente, no sentido de tais bens terem sido, na sua totalidade, enquanto lote, sujeitos a vendas a granel para sucata, ocorridas em 2019. A testemunha negou, portanto, que parte dos bens tenha sido sujeita a operações gratuitas adicionais ou objeto de abate.

 

Face à prova produzida, considera o Tribunal ser de afastar a presunção de abate, transmissão ou afetação gratuitas quanto aos bens incluídos nessas operações de venda, não podendo, assim, concluir-se pela aplicação in casu da norma constante da alínea f) do n.º 3 do art.º 3, nem da presunção legal do art.º 86 do CIVA.

 

Refira-se que a presunção do art.º 86 apenas atua quando não seja possível à AT, após verificação física do inventário, confirmar o destino de bens que não se encontrem nos locais de atividade do sujeito passivo. Sem prejuízo, estamos perante uma presunção ilidível pelo sujeito passivo, que pode demonstrar que os bens em causa foram objeto de transmissão (onerosa), ou inutilizados ou destruídos ou abatidos.

 

In casu, depreende-se do Relatório de Inspeção que os elementos probatórios documentais (faturas e listagens complementares de inventários) apresentados pela Requerente para comprovar o destino desses bens (i.e., venda para sucata) foram (parcialmente) desconsiderados pela AT por (i) as faturas emitidas ao sucateiro não discriminarem individualmente os bens objeto da transação e (ii) existir uma alegada discrepância entre os pesos faturados e os listados. Entendemos, no entanto, não assistir razão à Requerida nestes pontos.

 

Sendo certo que as faturas não identificam nem listam os bens incluídos em cada operação de venda, tal verificação e validação é possível no confronto destas com as respetivas listagens.

 

De facto, os cálculos efetuados pela AT – que mostram discrepâncias face aos elementos da Requerente – pressupõem que as listagens de inventários disponibilizadas correspondem às vendas tituladas pelas faturas n.ºs 3, 4, 5, 7 e 9. Não obstante, já em sede de direito de audição no processo inspetivo, a Requerente havia esclarecido o seguinte: “Pelas razões que já constaram dos esclarecimentos prestados, a empresa viu-se confrontada com a necessidade de venda para a sucata de matérias-primas e de produtos acabados ou semi- acabados.

Tais vendas, como já se fez constar dos esclarecimentos prestados, foram realizadas através das seguintes faturas:

• N° 1003 ------- de14/06/2019--------------------- no valor de € 216,00:

• N° 1005 --------de 17/09/2019-------------------- no valor de € 220,00:

• N°1009 --------de 05/12/2019-------------------- no valor de € 228,00.

Não se percebe, assim, como é que a AT vem considerar outras faturas que nada têm a ver com a venda para a sucata dos bens que se apresentavam relevados nos inventários de matérias-primas e de produtos acabados ou semi-acabados”.

 

E, posteriormente, na sua Resposta, a AT admitiu que “o sujeito passivo informou no âmbito do procedimento e reiterou no direito de audição que as vendas para a sucata de matérias primas e produtos acabados e semiacabados, apenas respeitam às faturas n.ºs 1003, 1005 e 1009, cujo peso global perfaz um total de 3.321,91 kg, tendo em conta o preço de 0,20€/kg, origina o valor faturado de 664,00€”. E, como tal, “se atendermos apenas às três faturas (n.ºs 1003, 1005 e 1009) referidas pelo sujeito passivo, confirma-se que o peso total, constante nas mesmas, é de 3.321,91kg” (pontos 22 e 23 da Resposta).

 

Confrontando, assim, os pesos indicados nas faturas nºs 3, 5 e 9 com as listagens de inventário disponibilizadas pela Requerente para prova do destino dos bens, concluímos o seguinte:

  • Das faturas n.ºs 3, 5 e 9 resulta que os kgs vendidos para sucata foram, respetivamente, 1.080, 1.100 e 1.140, totalizando 3.320 kgs;
  • Por sua vez, as listagens de inventário juntas como anexo 3 (produtos intermédios e semi-fabricados) e anexo 5 (matérias e materiais) totalizam 3.321,91 kgs (2.228,87 + 1.093,04).

 

Inexiste, portanto, uma discrepância de peso entre as faturas emitidas (n.ºs 3, 5 e 9) e as listagens fornecidas para suporte documental destas operações (como se conclui também nos pontos 22 e 23 da Resposta acima mencionados). De resto, não resulta claro qual o critério utilizado pela Requerida para considerar apenas o peso de 47,87 kgs (ao invés de 2.228,87 kgs) quanto aos produtos acabados e semiacabados.

 

Refere, ainda, a AT que “para os bens que foram recolhidos sem serem faturados, que constam referenciados nas tabelas apresentadas como «sucateiro recolhe grátis», não foi feita a respetiva conversão em peso e também não foi apresentado qualquer documento de transporte ou guia de acompanhamento” (ponto 24 da Resposta).

 

Não obstante, do depoimento idóneo e claro da testemunha apresentada pela Requerente resultou que o negócio acordado com o sucateiro envolveu todo o lote referido nas listagens de inventário acima referidas, e não apenas os bens aí listados com valor associado. Ou seja, foi acordado entre a Requerente e o sucateiro a venda a granel e transporte (por conta e risco deste) de um determinado lote, pelo qual o sucateiro pagou um determinado preço, o qual incluiu todos os produtos e matérias listados – alguns com valor comercial e outros sem valor comercial, que faziam parte do lote e que foram recolhidos e transportados pelo sucateiro. Refira-se, aliás, ser prática comum este tipo de negócios, através dos quais os sujeitos passivos encontram o escoamento possível para bens e materiais que já não são passíveis de reutilização.

 

Face ao exposto, resultou provado que os produtos e materiais inventariados e listados nos anexos 3 e 5 – independentemente de terem, ou não, à data, algum valor comercial individual – foram objeto de venda para sucata durante o ano de 2019, cujas operações foram tituladas pelas faturas n.ºs 3, 5 e 9. E, como tal, a comprovação dessa venda ilidiu a presunção legal prevista no art.º 86 do Código do IVA, porquanto esta apenas se aplica salvo prova em contrário.

 

Inversamente, também não se produziu qualquer prova de que os bens inventariados tenham sido afetos a fins alheios à Requerente ou transmitidos gratuitamente sem liquidação de IVA, conforme alegou a Requerida para fundamentar as correções efetuadas.

 

Uma última nota para referir que o facto de as perdas de parte do inventário terem sido incorretamente contabilizadas pela Requerente como imparidades, bem como o facto de não ter existido um atempado desreconhecimento contabilístico-fiscal (para efeitos de IRC) destes bens, não assumem relevância fiscal para efeitos de IVA. Do mesmo modo, a circunstância de as faturas n.ºs 5 e 9 mencionarem, no seu descritivo, a expressão abate, em simultâneo com a expressão sucata, não permite concluir, per se, estarmos perante operações de abate de inventário e não de venda de bens para sucata.

 

De harmonia com o disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários pelo disposto no art.º 29, n.º 1, alínea c), do RJAT, quando não foram utilizados métodos indiretos, «sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado».

 

Conclui-se, assim, que a Requerida laborou em erro de facto e de direito quanto às correções efetuadas e consequentes liquidações de IVA, aqui contestadas, as quais, se encontram feridas de ilegalidade e devem, em consequência, ser integralmente anuladas.

 

Por sua vez, as liquidações de juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, tendo como pressuposto as respetivas liquidações de IVA (conforme dispõe o n.º 8 do art.º 35.º da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afetam estas, justificando-se também a sua anulação nos mesmos termos que as liquidações de imposto.

 

O mesmo vale, no caso em apreço, para a liquidação de juros moratórios, que deverá ser igualmente anulada.

 

  1. Questões de conhecimento prejudicado

 

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto às liquidações de IVA e juros compensatórios e moratórios, com fundamento em vício que proporciona estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões suscitadas no pedido arbitral, mormente quanto à preterição da aplicação de métodos indiretos e da falta de fundamentação dos atos tributários contestados.

 

 

  1. DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

O art.º 43 n.º 1 da LGT determina que são devidos juros indemnizatórios quando se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

No caso concreto, verifica-se ter existido erro nos pressupostos de facto e consequente errónea aplicação do direito imputável à AT. Como tal, encontram-se verificados os requisitos legais para a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, calculados à taxa legalmente prevista no n.º 4 do referido art.º 43, até à data da respetiva nota de crédito em que são incluídos.

 

 

  1. DECISÃO

Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide julgar integralmente procedente o pedido arbitral e, em consequência:

  1. Determinar a anulação das liquidações de IVA e de juros moratórios e compensatórios controvertidas;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre o IVA indevidamente pago, à taxa legalmente devida, desde a data da entrega das prestações tributárias até à data em que a Requerente for ressarcida desse imposto;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no art.º 97-A, n.º 1, do CPPT e art.º 3, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 21.122,35.

 

 

  1. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00 (mil, duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Lisboa, 30 de dezembro de 2023.

 

(Raquel Montes Fernandes)