DECISÃO ARBITRAL
Carla Castelo Trindade, Árbitra designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar este tribunal arbitral toma a seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
Em 3 de Setembro de 2014, A, LDA., pessoa colectiva n.° …, com sede na Rua … , matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … (doravante “Requerente”), tendo sido notificada através do ofício n.° … de 30 de Maio de 2014, da decisão de indeferimento que recaiu sobre a Reclamação Graciosa n.° …, apresentada nos termos do artigo 68.° do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), com referência aos actos tributários de IRC n.° 2013 … do ano de 2010 e n.° 2013 … do ano de 2011, no valor total (a devolver) de 20.679,60 €, apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º n.° 1 alínea a), no artigo 5.º n.° 2 alínea a), no artigo 6.º n.° 1, no artigo 10.° n.° 1 alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (decreto-lei n.° 10/2011, de 20 de Janeiro), para apreciação da legalidade daqueles actos tributários.
As referidas liquidações adicionais de IRC que originam 20.679,60 € a devolver à Requerente resultaram da aplicação, pela Administração Tributária, do regime da transparência fiscal previsto nos Códigos de IRC e de IRS.
Não se conformando com as referidas liquidações de imposto e, bem assim, com a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, a Requerente solicitou a constituição de tribunal arbitral solicitando a anulação das liquidações adicionais de IRC com fundamento:
a) em erro na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC - já que deveria ter sido calculada de acordo com declarações enviadas pela Requerente, e autoliquidação feita por esta;
b) em erro na fundamentação, já que do relatório de inspecção não constam razões que permitam fundamentar as correcções efectuadas;
c) em erro de qualificação ao determinar erroneamente que a Requerente está sujeita ao regime da transparência fiscal.
Ao pedido de pronúncia arbitral a Requerente juntou 7 documentos, não tendo arrolado quaisquer testemunhas.
Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitra do tribunal arbitral singular a Dra. Carla Castelo Trindade que comunicou a aceitação em prazo aplicável.
As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro da Dra. Carla Castelo Trindade.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 26 de Novembro de 2014.
Em 6 de Janeiro de 2015, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta em que defendeu a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho, de 16 de Janeiro de 2015, o tribunal notificou os Requerentes da não realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo ainda notificado para em 10 dias serem apresentadas alegações, primeiro pela Requerente e depois pela Requerida.
Nem a Requerente nem a Requerida apresentaram alegações.
II. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas quaisquer questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas.
Tudo visto, cumpre decidir.
III. DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
Relativamente à matéria de facto, importa antes de mais salientar que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária).
Ora, atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental e ao Processo Administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. A Requerente, foi constituída em 1997, tendo como objecto a prestação serviços relacionados com a medicina, higiene e segurança no trabalho, sendo sócios B e C, marido e mulher, médico e professora de profissão, respectivamente.
2. O capital social da Requerente, no total de € 5.000,00, estava distribuído por duas quotas, de € 2.500,00 cada uma, pertencentes, em partes iguais, a ambos os sócios.
3. Em 9 de Fevereiro de 2009, ocorreu a cessão de uma das quotas, a de C, para B.
4. Esta cessão foi registada em 9 de Fevereiro de 2009, conforme consta da folha 3/5 da Certidão Permanente que consta como anexo 7 do Relatório de Inspecção junto com o processo administrativo.
5. Nos termos da acta Um (junta como documento 6 pela Requerente), em 9 de Fevereiro de 2009, foi cedida parte da quota de B a D.
6. Também nos termos da acta Um, nessa mesma data, a sociedade terá consentido na cessão.
7. D não exerce a actividade médica.
8. Pese embora o conteúdo da acta Um, a aquisição da quota por D não foi registada aquando da celebração do contrato.
9. Só em 12 de Janeiro de 2013 é que a Requerente procedeu ao registo do facto relativo à divisão, cessão e unificação de quotas
10. Assim, para efeitos de registo comercial, em 9 de Fevereiro de 2009, a Requerente passou a ter como único sócio B, por força da transmissão da quota de C…
11. …isto na medida em que a cessão de parte da quota a D não foi registada.
12. Entre 9 de Fevereiro de 2009 e 12 de Janeiro de 2013, a Requerente manteve o capital social de € 5.000,00, distribuído por duas quotas, de acordo com as alterações na estrutura societária da empresa infra:
|
|
Ouotas
|
Gerência
|
Home
|
1 IIP
|
Valor
|
%
|
Data
|
Data
|
Data
|
Data
|
|
|
Participação
|
Aquisição
|
Transmissão
|
Inicio
|
Fim
|
B
|
…
|
2.500,00
|
50,00%
|
16-03-1998
|
|
16-03-1998
|
|
C
|
…
|
2.500,00
|
50,00%
|
16-03-1998
|
09-02-2009
|
|
|
B
|
…
|
2.500,00
|
50,00%
|
09-02-2009
|
Ern13-01-2013
transmite €250,00
|
|
|
B
|
…
|
4.750,00
|
95,00%
|
13-01-2013
|
|
|
|
D
|
…
|
250,00
|
5,00%
|
13-01-2013
|
|
|
|
13. Em 29 de Novembro de 2012, teve início o procedimento inspectivo, nos termos do qual a Requerente foi confrontada com o facto de se encontrar abrangida pelo regime de transparência fiscal, desde 2009.
14. Durante os anos de 2009 a 2013, a Requerente cumpriu as suas obrigações fiscais nunca agindo, no entanto, como se de pessoa colectiva abrangida pelo regime de transparência fiscal previsto no Código de IRC se tratasse.
15. Em 21 de Janeiro de 2013, numa reunião havida entre os Serviços da Administração Tributária, a Requerente e seus representantes, estes vieram a exibir um contrato de divisão, cessão e unificação de quotas.
16. Nos termos do referido contrato, celebrado entre B (primeiro outorgante) e D (segundo outorgante), pai e filho, respectivamente, é referido, resumidamente, que:
17. “O primeiro declara que é o único sócio da empresa A Lda., com o capital social de cinco mil euros, distribuído por duas quotas iguais de valor nominal de dois mil e quinhentos euros, cada, as quais lhe pertencem;
18. O primeiro declara que procede à divisão de uma das quotas de valor nominal de dois mil e quinhentos euros em duas novas quotas, uma no valor nominal de duzentos e cinquenta euros a qual cede ao segundo, pelo preço de duzentos e cinquenta euros, e a outra de valor nominal de dois mil duzentos e cinquenta euros que permanece na sua titularidade;
19. Declarou ainda o primeiro outorgante que unifica numa única quota, a quota de valor de dois mil duzentos e cinquenta euros com aquela que já detinha no valor de dois mil e quinhentos euros, ficando a ser titular de uma só quota de valor nominal de quatro mil setecentos e cinquenta euros”;
20. O contrato data de 9 de Fevereiro de 2009.
21. No seguimento da apresentação do aludido contrato, a Requerida solicitou que fosse igualmente apresentado o livro de actas, de modo a que as deliberações societárias fossem também analisadas.
22. O sujeito passivo respondeu a esta solicitação 28 dias depois.
23. Do referido livro extrai-se que a primeira acta reporta precisamente ao dia 9 de Fevereiro de 2009.
24. Desta acta Um, já atrás referida, decorre que foi deliberada a divisão de uma das quotas de valor nominal de dois mil e quinhentos euros em duas novas quotas, uma no valor nominal de dois mil duzentos e cinquenta euros, que permanece na titularidade do sócio B, e outra no valor nominal de duzentos e cinquenta euros, que cede ao seu filho, pelo preço de duzentos e cinquenta euros.
25. Questionado sobre as actas anteriores, bem como sobre o facto de a primeira acta do livro exibido corresponder precisamente à deliberação de divisão e cedência de quotas datada de 9 de Fevereiro de 2009, foi referido que o livro de actas anterior se teria extraviado.
26. O livro de actas anterior nunca foi apresentado.
27. Diante do quadro fáctico acima exposto, a Requerida considerou a Requerente como uma sociedade de profissionais, enquadrável portanto no regime de transparência fiscal, previsto no artigo 6.° do Código do IRC, no período entre 9 de Fevereiro de 2009 e 11 de Janeiro de 2013…
28. … tendo efectuado correcções para efeitos de IRC dos anos 2009, 2010 e 2011.
29. Em consequência do procedimento inspectivo foram emitidas as liquidações de IRC n.° 2013 … do ano de 2010 e n.° 2013 … do ano de 2011.
30. Não concordando com as mesmas, a Requerente apresentou Reclamação Graciosa em 19 de Novembro de 2013.
31. Em 02 de Junho de 2014 foi a Requerente notificada da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa.
III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária).
Assim, não existe outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual desde logo porque não se colocou em causa a valoração probatória dos documentos juntos ao processo.
IV. DA MATÉRIA DE DIREITO
Questão prévia de ordem de conhecimento
Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente tribunal arbitral consiste em apreciar a legalidade dos actos de liquidação de IRC.
Tendo a Requerente imputado diversos vícios aos actos tributários impugnados há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada a ordem do artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º, nº 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária[1].
A procedência de qualquer dos vícios invocados pelos Requerentes conduzirá à anulação do acto tributário. Analisar-se-á em primeiro lugar ao vício de violação de lei na medida em que é aquele que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos”, isto porque a sua eventual procedência impedirá a renovação do acto, o que não sucede com a anulação decorrente dos demais vícios.
Em conformidade, o tribunal irá apreciar em primeiro lugar o vício de violação de lei, apreciando de seguida o vício de erro na fundamentação e de seguida o argumento de inconstitucionalidade.
Questão prévia – breve enquadramento
Em traços muito gerais, e em benefício de um enquadramento teórico, começa este tribunal por referir que na origem do regime de transparência fiscal está sempre uma sociedade, pessoa colectiva, ou entidade equiparada, que, não fora a sua subordinação ao regime de transparência fiscal, seria tributada em sede de IRC.
O regime de transparência fiscal é, então, alternativo ao regime geral de tributação do rendimento das sociedades e entidades equiparadas, daí que seja entendido, também por este tribunal, como um regime especial.
Assim, o legislador, por razões que se tentarão apurar mais à frente, criou em certos e determinados tipos de negócio/realidades empresarias/profissionais um regime composto de compromisso entre o apuramento da matéria colectável seguindo as regras do IRC e a imputação deste resultado aos sócios que assim serão tributados em sede de IRS ou de IRC dependendo do caso. Criou bem assim, por razões que também se verão de seguida, um regime de excepção a esta regra geral do regime especial.
Mas o regime de transparência fiscal é especial também porque, tendo por objectivos confessados a neutralidade fiscal, a eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos e o combate à fraude e à evasão fiscais, consiste num regime excepcional de tributação de certos entes colectivos e dos seus sócios.
A personalidade colectiva da entidade é, portanto, desconsiderada para efeitos de tributação do rendimento apurado, sendo este imputado, muitas vezes independentemente de distribuição efectiva, aos seus sócios ou membros, para serem tributados em sede de IRS ou de IRC, consoante se trate de pessoas singulares ou colectivas[2],[3].
Prevê-se no actual artigo 6.° do Código do IRC (anterior e originalmente, artigo 5.°) que:
Artigo 6.°
Transparência fiscal
1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direcção efectiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:
a) Sociedades civis não constituídas sob forma comercial;
b) Sociedades de profissionais;
c) Sociedades de simples administração de bens, cuja maioria do capital social pertença, directa ou indirectamente, durante mais de 183 dias do exercício social, a um grupo familiar, ou cujo capital social pertença, em qualquer dia do exercício social, a um número de sócios não superior a cinco e nenhum deles seja pessoa colectiva de direito público
(…)
4. Para efeitos do disposto no n.° 1, considera-se:
a) Sociedade de profissionais:
A sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que se refere o artigo 151.° do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa actividade”
Assim, não há dúvidas que este artigo estabelece que é imputada aos sócios das sociedades de profissionais, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria colectável, determinada nos termos deste Código.
A este propósito preceitua o artigo 15.°, relativamente às entidades sujeitas a IRC, que exercem a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, como é o caso, que se considera matéria colectável:
Artigo 15.°
Definição da matéria colectável
1 - Para efeitos deste Código:
a) Relativamente às pessoas colectivas e entidades referidas na alínea a) do n.° l do artigo 3.°, a matéria colectável obtém-se pela dedução ao lucro tributável, determinado nos termos dos artigos 17.° e seguintes, dos montantes correspondentes a:
1) Prejuízos fiscais, nos termos do artigo 52.°;
2) Benefícios fiscais eventualmente existentes que consistam em deduções naquele lucro;
27.°.
Daqui resulta que não existe uma norma própria, dita especial, para a definição de matéria colectável no regime de transparência fiscal, seguindo este, portanto, a regra geral prevista no artigo 15.º do Código do IRC.
Também não há dúvidas que por sociedade de profissionais se deverá entender toda a sociedade que seja constituída para o exercício de uma qualquer actividade profissional que conste da lista a que se refere o artigo 151.° do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa actividade.
Em face do exposto, o que cumpre perceber no caso em análise é se, nos períodos de 2009 a 2013, a Requerente era ou não uma sociedade de profissionais qualificável para efeitos do artigo 6.º do Código do IRC.
A) Do vício de violação de lei – Erro na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC por errada qualificação da Requerente como um sujeito passivo sujeito ao regime da transparência fiscal
Com se referiu a Requerente solicitou a constituição de tribunal arbitral peticionando a anulação das liquidações adicionais de IRC com fundamento:
a) em erro na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC - já que deveria ter sido calculada de acordo com declarações enviadas pela Requerente, e autoliquidação feita por esta;
b) em erro na fundamentação, já que do relatório de inspecção não constam razões que permitam fundamentar as correcções efetuadas; e
c) em erro de qualificação ao determinar erroneamente que a Requerente está sujeita ao regime da transparência fiscal.
Em rigor, o primeiro e o terceiro vícios são prejudiciais – isto porque só existe o primeiro na medida em que o último subsista, sendo que, na realidade, ambos se reconduzem ao vício de violação de lei.
Por outras palavras, só haverá erro na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC caso se conclua que houve, por parte da Requerida, errada qualificação da situação jurídico-fiscal da Requerente ao considerá-la como um sujeito passivo sujeito ao regime da transparência fiscal. Caso isto se verifique o tribunal terá que declarar vício de violação de lei.
Alega a Requerente, a este propósito, que o relatório de inspecção concluiu erradamente que desde Fevereiro de 2009, a sociedade era detida exclusivamente por B, tudo porque desconsiderou que nessa data ocorreu a cessão de uma das quotas de C para B, tendo ainda havido, nessa data, a divisão da referida quota e cessão de parte da quota a D.
Alega ainda a Requerente, que como este último sócio não exerce a actividade médica, não é consequentemente aplicável o regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.° do Código do IRC.
Acrescenta ainda, que as quotas não foram unificadas por B, o que teria ocorrido caso este ficasse efectivamente como único titular das duas quotas.
A corroborar a sua defesa alega que, pese embora a aquisição da quota não tenha sido registada quando da celebração do contrato, tal registo não é constitutivo, pelo que a cessão de quotas deve considerar-se eficaz desde 9 de Fevereiro de 2009, data em que a sociedade consentiu na cessão de quotas.
Já a entidade Requerida alega, que entre 9 de Fevereiro de 2009 e 12 de Janeiro de 2013, a Requerente era enquadrável no regime da transparência fiscal uma vez que tem como objecto a prestação serviços relacionados com a medicina, higiene e segurança no trabalho e que o capital social, de €5000,00, estava distribuído por duas quotas ambas pertencentes a B, pessoa singular com a profissão de médico.
Assiste desde logo razão à entidade Requerida quando defende que para uma sociedade ser considerada, de acordo com a lei, como uma sociedade de profissionais basta que reúna duas condições:
1. Seja constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista anexa ao Código do IRS, e;
2. Todos os sócios, pessoas singulares, sejam profissionais dessa actividade.
Assiste ainda razão à Requerida quando defende que uma vez cumpridos estes requisitos, o regime de transparência fiscal é automaticamente aplicável, não dependendo de qualquer opção ou decisão do sujeito passivo em causa.
Assiste também razão à entidade Requerida quando refere que o facto de se tratar de uma sociedade com duas quotas, mas sendo estas detidas por um único titular, não a desqualifica como sociedade elegível para efeitos do regime da transparência fiscal.
Para esta última afirmação importa analisar o enquadramento de uma sociedade unipessoal por quotas, onde o único sócio exerce uma profissão constante da lista anexa ao Código do IRS, no que ao regime de transparência fiscal diz respeito. Ora, por força do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 257/96, de 31 de Dezembro, o Código das Sociedades Comerciais foi alterado, acrescentando-se o Capítulo X “Sociedades unipessoais por quotas” ao Título III “Sociedades por quotas", o qual contempla os artigos 270.°-A a 270.°-G. A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social, conforme determina o n.° 1 do artigo 270.°-A do Código das Sociedades Comerciais. Deste modo, na medida em que numa sociedade unipessoal por quotas há apenas um único sócio, não deixando portanto de ser uma sociedade, basta que esse sócio único exerça alguma das actividades elencadas na lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS para que a sociedade se considere enquadrável no regime de transparência fiscal. Dito de outro modo, não é portanto pelo facto de se tratar de uma sociedade unipessoal que se invalida a sua sujeição ao regime da transparência fiscal.
Resta então apurar se as duas quotas eram ambas titularidade de B, tendo em conta os efeitos do contrato celebrado de divisão, cessão e unificação de quotas celebrado a 9 de Fevereiro de 2009 mas apenas registado a 12 de Janeiro de 2013.
A este propósito, a grande questão que importa resolver é a de saber se o facto de não ter havido o registo da cessão de quotas para D é ou não irrelevante para efeitos de qualificação da sociedade como uma sociedade transparente para efeitos fiscais. Por outras palavras, importa saber se uma cessão de quotas constante de acta e de contrato de sociedade ainda que não registada é ou não oponível a terceiros, designadamente à Administração Tributária.
Refira-se, antes de mais, que a questão que aqui se coloca ultrapassa a discussão em torno do efeito constitutivo do registo comercial. O efeito constitutivo do registo comercial consiste, sumariamente, no facto de a lei impor a ocorrência de um registo para que determinados actos possam produzir todos os seus efeitos, contrariando assim o princípio da consensualidade, i.e., da produção imediata de efeitos por mera decorrência do contrato (artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil)[4]. A este propósito, a larga maioria da doutrina e jurisprudência seguem a tese de que, no que respeita às sociedades comerciais, o registo é, em princípio, constitutivo. Contra este entendimento, Menezes Cordeiro entente os «registos “constitutivos” previstos no Código das Sociedades Comerciais (…) não são verdadeiras hipóteses de registo constitutivo», mas sim casos em que o registo é factor condicionante de eficácia plena, sendo necessária uma análise caso a caso[5].
Ora, o que aqui se pretende aferir é, única e exclusivamente, se o registo da divisão, cessão e unificação de quotas é ou não obrigatório, e se, não tendo sido promovido o respectivo registo, aquela divisão, cessão e unificação de quotas é ou não oponível a terceiros, designadamente à Administração Tributária. Caso se considere que a divisão, cessão e unificação de quotas é ou não oponível a terceiros mesmo antes do respectivo registo, é ainda necessário apurar se a Autoridade Tributária deve ser considerada “terceiro” para efeitos de registo comercial. Note-se, porém, que para o caso em litígio é irrelevante a qualificação ou não da própria sociedade Requerente como “terceiro” e mesmo a própria produção de efeitos do referido contrato entre as partes contratantes e a Requerente. A questão prende-se, tão-só, com a qualificação da Autoridade Tributária como “terceiro” para efeitos de registo comercial.
A cessão de quotas, enquanto transmissão voluntária inter vivos, deve ser reduzida a escrito (cfr. artigo 228.º n.º do Código das Sociedades Comerciais). Perante tal dispositivo conclui a Requerente, e bem, que “a cessão de quotas efectuada entre o único sócio e o seu filho por documento particular escrito e assinado pelas partes é, na perspectiva do direito das sociedades, plenamente válido”. A este propósito conclui também a Requerente que “nos termos das regras gerais do direito (vide artigo 406.º do Código Civil), que a transmissão da quota produz os seus efeitos entre as partes, sócio transmitente e sócio adquirente, a partir da data da sua celebração.”.
A Requerente conclui também “que a transmissão da quota se tornou eficaz para com a sociedade quando esta veio reconhecer tal transmissão (tacitamente) admitindo o novo sócio a participar nas Assembleia Gerais de sócios.” Assim, defende a Requerente que desde Fevereiro de 2009 que “a sociedade se configura como uma sociedade plurissocial com dois sócios com plenos deveres e direitos perante a sociedade”.
A Requerente não diz, porém, se este facto é oponível a terceiros.
É o que cumpre agora apurar.
Os factos sujeitos a registo encontram-se previstos no Código de Registo Comercial e Código das Sociedades Comerciais, e têm em vista dar cumprimento à função da instituição registal que é a publicidade, valor ao qual se prende.
O n.º 1 do artigo 3.° do Código do Registo Comercial, estabelece que “estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial: (...) c) A unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples".
Deste modo, decorre da lei a obrigatoriedade da sujeição a registo como se pode ler no n.° 1 do artigo 15.° do Código do Registo Comercial.
Artigo 15.°
Factos sujeitos a registo obrigatório
1 - O registo dos factos referidos nas alíneas a) a c) e e) a z) do n.° 1 e no n.° 2 do artigo 3.°, no artigo 4.°, nas alíneas a), e) e f) do artigo 5.°, nos artigos 6.°, 7.° e 8.° e nas alíneas c) e d) do artigo 10.° é obrigatório. (negrito nosso).
Deste modo, o registo da unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades comerciais por quotas (alínea c) do n.° 1 do artigo 3.° do Código do Registo Comercial) é, sem sombra de dúvida, obrigatório.
O que significa que o contrato de divisão, cessão e unificação de quotas celebrado a 9 de Fevereiro de 2009 estava sujeito a registo obrigatório.
Veja-se ainda que, nos termos do n.º 1 do artigo 14.º do Código do Registo Comercial “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo”(negrito nosso).
Dito de outro modo, o registo dos actos sujeitos a registo obrigatório – designadamente do contrato de divisão, cessão e unificação de quotas de sociedade por quotas – é condição de oponibilidade a terceiros desses mesmos actos.
Nesse sentido, o facto relativo à divisão, cessão e unificação de quotas – máxime a cessão de quotas para D – só é oponível a terceiros a partir de 12 de Janeiro de 2013, data do respectivo registo. Com efeito, entre 9 de Fevereiro de 2009 – data da celebração do contrato – e 12 de Janeiro de 2013 – data do registo do facto – a cessão de quotas para D, produziu efeitos, quanto muito, apenas entre as partes contratantes e a própria sociedade.
Quanto à noção de “terceiro” para efeitos de registo comercial, cumpre perceber que esta não corresponde, de todo, àquela de “terceiros com direitos ou interesses incompatíveis entre si recebidos de autor comum”. De facto, como bem tem notado a jurisprudência,
“A noção de terceiros para efeitos de registo comercial não se confunde com a que é feita no sentido técnico-registral (de terceiros com direitos ou interesses incompatíveis entre si e recebidos de autor comum).
É terceiro, para efeitos de registo comercial, quem não seja parte no facto sujeito a registo, seu herdeiro ou representante.” (cfr. Acórdão do STJ de 2012-03-15, processo n.º 954/06.3T CLRS.L1.S1)
Perante este enquadramento, a Autoridade Tributária é, pois, um terceiro para efeitos de registo comercial. Nesse sentido, a divisão, cessão e unificação de quotas só produz efeitos perante a Autoridade Tributária após o registo daquele facto por força dos artigos 15.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, alínea c) e 14.º n.º 1, todos do Código do Registo Comercial.
Conclui-se, então, que o referido contrato em que ocorre a cessão de parte de uma das quotas para D é inoponível à Administração Tributária, aos credores e a quaisquer outros terceiros, até à data do seu registo.
Que consequências se retiram da referida inoponibilidade?
Entre 9 de Fevereiro de 2009 e 12 de Janeiro de 2013, ocorrida a cessão da quota de Ca favor de B, este último passou, então, a ser o único titular de ambas as quotas da Requerente. Recuperando então o que acima se disse, a Requerente passou a ser detida por um sócio único – B – que era o titular da totalidade do capital social (cfr. 270.º-A do Código das Sociedades Comerciais).
Acresce que B é, como era à data, médico de profissão. Profissão essa que consta da lista a que se refere o artigo 151.º do Código de IRS. Por esta razão. Assim, e do que acima ficou exposto, é forçoso concluir que a Requerente passou a estar, entre 9 e Fevereiro de 2009 e 12 de Janeiro de 2013, sujeita ao regime de transparência fiscal, devendo o seu sócio único ser tributado em sede de IRS acordo com as regras especiais aplicáveis a este regime da transparência fiscal.
Andou bem a entidade Requerida ao enquadrar a Requerente no regime de transparência fiscal nos anos de 2009 a 2013.
Em face de tudo o exposto, conclui-se pela inexistência de um qualquer erro de qualificação da situação jurídico-fiscal da Requerente ao considera-la como sujeito passivo sujeito ao regime da transparência fiscal o que prejudico a declaração do alegado erro na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC por parte da Requerida. Em suma, o tribunal conclui pela inexistência do vício de violação de lei improcedendo nesta parte o pedido da Requerente.
B) Do erro na fundamentação
Alega a Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral que ocorreu “um erro de fundamentação, já que do relatório de inspecção não constam razões que permitam fundamentar as correcções efectuadas”, sem contudo fundamentar esta conclusão a que chegou. Na sua resposta a Requerida não se pronunciou sobre este vício.
A jurisprudência corrente do STA, tomando como referência o Acórdão de 10 de Fevereiro de 2010, processo n.º 01122/09, tem entendido que
“a fundamentação do acto administrativo é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas só é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é; quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação”.
Mais recentemente, e por outras palavras, defendeu aquele tribunal que
“O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.” (Acórdão do STA de 12-03-2014, processo n.º 01674/13)
No caso dos autos, afigura-se que o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela Autoridade Tributária no Relatório de Inspecção, que fundamenta os actos administrativos em análise, não contém qualquer erro de fundamentação. Com efeito, do Relatório de Inspecção constam as razões que permitem fundamentar as correcções efectuadas, designadamente, as razões pelas quais a Autoridade Tributária entende ser de aplicar à Requerente o regime da transparência fiscal.
Aliás, como se referiu, a Requerente limita-se a alegar, a final, o vício de “erro de fundamentação”, sem contudo justificar, dizendo apenas que não lhe foi efectivamente possível “conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de maneira diferente”. Aliás, do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente, resulta claro que esta, ainda que não concorde com o resultado final do Relatório de Inspecção, percebeu as razões pelas quais as correcções foram efectuadas – designadamente, a aplicação à Requerente do regime da transparência fiscal – sendo, portanto, evidente, que apreendeu o itinerário cognoscitivo e valorativo da Requerida.
C) Da invocada inconstitucionalidade
A Requerente questiona ainda a constitucionalidade da aplicação do regime da transparência fiscal a sociedades unipessoais, porquanto, entende que “viola o princípio da boa fé, da segurança jurídica, da igualdade e o princípio da capacidade contributiva”.
Entende a este propósito a Requerente que o regime da transparência fiscal a sociedades unipessoais prejudica, desde logo, o sócio individual face a empresas que exercem a sua actividade com dois sócios e que não estão sujeitas ao regime de transparência. Justificando uma violação dos princípios da certeza e segurança jurídicas, alega ainda a Requerente que sempre exerceu a sua actividade no pressuposto de que seria tributada em sede de IRC, e, consequentemente, os seus sócios só seriam tributados na medida em que houvesse efectiva distribuição dos lucros.
Sobre esta questão, pronunciou-se a Requerida, em sede de resposta ao pedido de pronúncia arbitral, sustentando sumariamente que não alcança a alegada violação de tais princípios constitucionais, tendo em especial conta a ratio do regime em apreço – as já referidas neutralidade fiscal, combate à evasão e à fraude fiscais e a eliminação de dupla tributação – e que a incerteza e insegurança jurídicas invocadas pela Requerente derivam de um desconhecimento negligente da lei por parte daquela.
Cumpre agora a este tribunal pronunciar-se sobre a alegada inconstitucionalidade da aplicação do regime da transparência fiscal a sociedades unipessoais.
A este propósito adianta-se desde já que não tem razão a Requerente quando afirma que a aplicação do referido regime às sociedades unipessoais contraria os princípios constitucionais da boa fé, da segurança jurídica, da igualdade e ainda o princípio da capacidade contributiva.
Com efeito, deve olhar-se, antes de mais, à própria ratio do regime da transparência fiscal: alcançar a neutralidade fiscal; combater a evasão fiscal e eliminar a dupla tributação económica dos lucros distribuídos aos sócios. A este propósito, veja-se o Acórdão do STA de 21 de Março de 2012, processo n.º 0830/11:
“No que se refere à neutralidade fiscal, tal objectivo traduz-se num efeito imediato do regime da transparência fiscal porque ao imputar-se os rendimentos da sociedade aos seus sócios, principalmente no caso em que estes são pessoas singulares, está-se precisamente a pôr em evidência a sua capacidade de produzir rendimento, relegando para segundo plano a sua organização em sociedade.
Quanto ao combate à evasão fiscal o mesmo resulta de por esta via se evitar que se formem sociedades apenas com o objectivo de se diminuir a carga fiscal sobre determinada actividade.
Finalmente, quanto ao objectivo da eliminação da dupla tributação económica, a transparência fiscal traduz-se num veículo adequado a esse propósito na medida em que ao não permitir que o rendimento de determinadas sociedades seja tributado em IRC, imputando-o antes aos sócios que a compõem, e tributando esse rendimento na esfera de cada sócio, consegue-se que o rendimento só seja tributado uma única vez, isto é, sempre na esfera do sócio ou membro em causa.”
Em segundo lugar, e no que respeita ao princípio da capacidade contributiva,
compreenda-se que o rendimento a tributar, através deste regime da transparência fiscal, já se encontra revelado através de uma capacidade contributiva que se manifesta através da matéria colectável em IRC, na esfera da própria sociedade, ainda que o lucro correspondente não tenha sido distribuído entre os sócios.
Por seu turno, o argumento segundo o qual haveria violação do princípio da igualdade – por se encontrarem prejudicados os sócios singulares face a sociedades com mais do que um sócio – também não colhe na medida em que, e como acima se referiu, mesmo numa sociedade com dois ou mais sócios, se todos exercerem profissão constante da lista a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, e se o objecto da sociedade em questão for a prossecução de actividades relacionadas com a profissão dos seus sócios, o regime da transparência fiscal será também aplicável. Exemplo paradigmático são as sociedades de advogados com dois ou mais sócios.
Por fim, no que respeita à alegada violação dos princípios da certeza e segurança jurídicas, entende este tribunal que tem razão a Requerida quando afirma que as eventuais incertezas e inseguranças jurídicas que pudessem ocorrer no caso em concreto só poderiam decorrer de um desconhecimento da lei por parte da Requerente. De facto, ainda que a Requerente alegue sempre exerceu a sua actividade no pressuposto de que seria tributada em sede de IRC – e, consequentemente, os seus sócios só seriam tributados na medida em que houvesse efectiva distribuição dos lucros – não existe aqui qualquer expectativa jurídica digna de tutela, ao que se julga ser de relembrar a máxima de que “a ignorância da lei não aproveita a ninguém”
Em suma, considera este tribunal que não procede o argumento de inconstitucionalidade alegado pela Requerente quando defende que a aplicação do regime da transparência fiscal às sociedades unipessoais viola os princípios constitucionais da boa fé, da certeza e segurança jurídicas e da igualdade e o princípio da capacidade contributiva.
***
V. DECISÃO
Termos em que se decide neste tribunal arbitral julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 20.679,60 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente.
Notifique-se.
Lisboa
6 de Maio de 2015
A Árbitro
(Carla Castelo Trindade)
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.
[1] Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pág. 202.
.
[2] ALVES PALMA, Ana Paula de Albuquerque, O Regime de Transparência Fiscal - Análise da Eficácia do Regime em Portugal e Perspectivas de Evolução, Dissertação de Mestrado no âmbito do Mestrado em Contabilidade, Fiscalidade e Finanças Empresariais, Lisboa, ISEG, School of Economics & Management, Setembro de 2013, orientação do Prof. Dr. Manuel Henrique Freitas Pereira, disponível na Internet.
Discute-se-lhe a natureza jurídica no quadro do IRC: Uma não sujeição? Uma isenção? Uma sujeição meramente instrumental? Para Saldanha Sanches e Casalta Nabais estar-se-ia perante um caso de não sujeição a IRC quanto à obrigação principal (dívida de imposto) e de sujeição a IRC quanto às obrigações acessórias (deveres de cooperação). Para Jorge Magalhães Correia, tratar-se-ia de uma isenção, pois a exigência legal de que a matéria colectável das entidades transparentes seja determinada nos termos do Código do IRC não teria cabimento se de um caso de não sujeição se tratasse. Esta é no entanto uma questão marginal à questão controvertida.
[3] A este propósito num dos primeiros Pareceres produzidos pelo Centro de Estudos Fiscais - Parecer n.º 18/89, in CTF n.º 354, ABR-JUN 1989, pp. 275/286, e de que foram Autores Maria de Lourdes Correia e Vale e Manuel Henrique de Freitas Pereira, tendo sido sancionado por despacho do DG de 21-03-1989 -, escreveu-se que: “Em consequência deste regime - que assume sempre, entre nós, um caráter obrigatório - as sociedades e outras entidades a que o mesmo se aplica não são tributadas (art.0 12.° do mesmo Código), mas permanecem como sujeitos passivos de IRC. Esta sujeição é necessária por ser instrumento essencial na definição do regime a). Com efeito, as sociedades e outras entidades transparentes são "centros unitários de referência" para calcular os valores de base que deverão ser imputados aos seus sócios ou membros, cálculo que se faz observando as disposições do Código do IRC (n.°s 1 e 2 do artigo 5.° do Código), incluindo as que possibilitam a sua correção (art. 78.° do Código).”
.
[4] Cfr. CORDEIRO, António Menezes, Direito das Sociedades – I – Parte Geral, 3ª edição, 2011, Coimbra: Almedina, p. 583.
[5] Cfr. CORDEIRO, António Menezes, Direito das Sociedades – I – Parte Geral, 3ª edição, 2011, Coimbra: Almedina, pp. 583, 586-588.