Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 471/2023-T
Data da decisão: 2023-12-18  IVA  
Valor do pedido: € 280.195,28
Tema: IVA. Ilegitimidade material. Exceção perentória
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DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Júlio Tormenta e Prof. Doutora Ana Paula Marques Rocha (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral constituído em 19 de setembro de 2023, acordam no seguinte: 
 
1. RELATÓRIO
1.1. Da tramitação processual
a) Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado A... (doravante abreviadamente designado por “Fundo” ou “Requerente”), com o número de identificação fiscal ... e com sede na ..., n.º ..., ...‐... Lisboa, neste ato representado pela sociedade gestora B...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Colectivo, S.A. (doravante abreviadamente designada por “Sociedade Gestora”), com o número de identificação fiscal n.º ... e com sede na mesma morada acima referida, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo das disposições conjugadas do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, tendo em vista a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente com vista à contestação dos atos tributários de liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) que incidiu sobre os serviços de administração e gestão de fundos de investimento prestados ao Requerente durante o período compreendido entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022. O Requerente pede ainda juros indemnizatórios. 
b) É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “Requerida” ou “AT”).
c) O Requerente optou por não designar árbitros.
d) O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD a 3 de julho de 2023 e de imediato notificado à AT.
e) Ao abrigo do disposto no artigo 6.º do RJAT, o Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o Sr. Conselheiro Jorge Lopes de Lousa como árbitro presidente, bem como o Dr. Joaquim Silvério Dias Mateus e a Prof. Doutora Ana Paula Marques Rocha como árbitros vogais do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo os mesmos comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
f) A 23 de agosto de 2023 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, mais tendo sido notificadas pelo Sr. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, a 29 de agosto de 2023, da substituição do Dr. Joaquim Silvério Dias Mateus pelo Prof. Doutor Júlio Tormenta, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 5 do Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária em conjugação com o preceituado no artigo 6.º do RJAT. 
g) As partes não manifestaram vontade de recusar a designação dos árbitros nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, razão pela qual o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído a 19 de setembro de 2023. 
h) Por despacho arbitral proferido nessa mesma data, e nos termos do artigo 17.º do RJAT, a Requerida foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional, querendo. Mais foi notificada para, no mesmo prazo, apresentar o Processo Administrativo.
i) A 23 de outubro de 2023, a Requerida apresentou o Processo Administrativo e a Resposta, na qual suscitou a exceção de ilegitimidade material do Requerente e na qual defendeu, por impugnação, a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
j) Por despacho de 24 de outubro de 2023, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações, podendo a Requerente dar resposta, por escrito, à exceção suscitada pela Requerida. Foi ainda indicado o dia 27 de novembro de 2023 para prolação da decisão arbitral.
k) As partes nada opuseram relativamente à dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT nem à dispensa de alegações, tendo o Requerente respondido à exceção no dia 6 de novembro de 2023, com a junção de novos documentos.
l) Depois de concedido prazo para a Requerida, querendo, se pronunciar e impugnar os documentos juntos pelo Requerente em resposta à exceção e de ser atualizada a data de prolação da decisão arbitral para o dia 20 de dezembro de 2023, a Requerida AT veio exercer o seu direito ao contraditório por requerimento de 20 de novembro de 2023. 
 
1.2. Saneamento
a) O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), no artigo 5.º, n.º 3, alínea a) e no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), todos do RJAT.
b) O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado dentro do prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
c) O processo não enferma de nulidades.
d) A Requerida suscitou, contudo, a exceção de ilegitimidade material do Requerente, a qual importa apreciar prioritariamente.
 
2. DA EXCEÇÃO DE ILEGITIMIDADE MATERIAL DO REQUERENTE
2.1. Questão a decidir
Está em causa a questão de saber se o Requerente, na qualidade de repercutido legal, tem legitimidade material para requerer diretamente à AT o reembolso do IVA que lhe foi liquidado nas faturas emitidas pela C..., S.A. (doravante, C...) no decurso dos exercícios de 2021 e 2022.
 
2.2. Síntese da posição das partes
Como fundamentos da exceção suscitada, a AT veio, em síntese, invocar e defender o seguinte:
No entendimento da AT, o direito à retificação de imposto em causa no caso sub judice deveria seguir o disposto nos artigos 78.º e seguintes do Código do IVA (referentes à regularização de IVA já liquidado), uma vez que a alegação em que o Requerente baseia a sua pretensão “se reduz” à existência de “um erro na liquidação de imposto aquando da emissão de facturas que foram emitidas, registadas”, e que determinaram que este, enquanto destinatário dos serviços titulados por tais faturas, alegadamente suportasse imposto superior ao devido.
Neste contexto, a AT sustenta que o direito de decidir pela possibilidade de regularização de imposto “cabe ao sujeito passivo do imposto e não, àquele a quem o imposto foi repercutido”, como é o caso do Requerente. Com efeito, a AT defende que o “Requerente é a pessoa a quem o imposto foi repercutido, mas não é sujeito na relação jurídico tributária da qual resultaram os actos em apreço”, ou seja, não ocupa em tais relações a posição de sujeito passivo.
A este respeito, a AT sublinha ainda que o Requerente não encetou “diligências no sentido de ver corrigidas as facturas” emitidas pelo seu fornecedor “antes da prepositura do PPA, tendo-o feito apenas mais de três meses após”, não se conseguindo extrair dos documentos juntos aos autos que “a correcção das facturas se mostra impossível”, ou que o fornecedor do Requerente tenha expressado “qualquer recusa” relativamente “à possibilidade de proceder à alteração das facturas”, deixando até “tal possibilidade em aberto”.
Assim, e considerando que para que o “Requerente tenha legitimidade, deve ter legitimidade formal, mas também, legitimidade material” (chamando à colação a decisão arbitral proferida no processo 513/2021-T), a Requerida conclui que “deve ser julgada verificada a excepção peremptória inominada, de conhecimento oficioso, de ilegitimidade material da Requerente (artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1 e) do RJAT), com todas as consequências legais”.
Por sua vez, o Requerente veio, em síntese, invocar e defender o seguinte:
O princípio de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, em geral, e o disposto no “n.º 1 dos artigos 20.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com os artigos 9.º, 18.º e 95.º LGT, e com o n.º 1 do artigo 9.º CPPT”, em particular, habilitam e conferem ao repercutido a possibilidade “para reclamar, recorrer ou impugnar, contanto que este possua um direito ou interesse legalmente protegido”.
In casu, esse interesse legalmente protegido decorre da circunstância de o Requerente “ter suportado indevidamente IVA na aquisição de serviços, cujos fornecedores incorreram em erro na determinação do enquadramento jurídico‐tributário a estes conferido”, o que justifica e sustenta a legitimidade processual ativa do Requerente no presente processo arbitral.
Embora o Requerente não seja, “ab initio, o sujeito passivo da relação tributária em apreço, atuando na mesma enquanto repercutido legal do IVA a esta subjacente”, tal circunstância “não preclude o seu direito de impugnação nos termos das normas tributárias supra elencadas, porquanto o sujeito abrangido pelas regras de incidência do IVA transferiu para o ora Requerente o encargo económico a este inerente enquanto “consumidor final” do serviço em questão”, razão pela qual não é “correto afirmar que o repercutido não assume qualquer ligação com a relação tributária subjacente”.
A este respeito, o Requerente chama à colação “o entendimento propugnado pelo TJUE, no âmbito do seu Acórdão de 7 de setembro de 2023, prolatado no processo C‐453/22 nos termos do qual este Tribunal veio prestar esclarecimentos acerca da possibilidade que o benificiário dispõe para, junto da AT, despoletar o reembolso dos montantes de IVA indevidamente faturados pelo fornecedor e a este pagos e, bem assim, a sua legitimidade para o fazer”. 
Assim, e por considerar que tal vai ao encontro do racional propugnado pelo TJUE, “e ao contrário do que fez crer a Requerida na sua Resposta, cumpre nesta sede notar que o Requerente logrou encetar os esforços necessários para que, junto do fornecedor em apreço, este procedesse à substituição das faturas previamente emitidas de tal modo que, aquando da anulação das mesmas e inerente emissão de novas faturas, estas passassem a refletir o correto enquadramento em sede de IVA, i.e., a isenção deste imposto, acompanhadas da correspondente devolução ao ora Requerente do imposto indevidamente pago”, tendo tal fornecedor expressado “veemente recusa em fazê‐lo”. No momento em que o fornecedor se recusa a substituir as faturas emitidas, a relação que se estabelece entre este e o adquirente repercutido (in casu, o Requerente) vê‐se extinta e, “por forma a que se efetivem os princípios da neutralidade e efetividade, forçosamente deverá ser considerado que se abre a porta ao nascimento da relação jurídico tributária entre o adquirente repercutido e a Requerida”.
Por todo o exposto, conclui o Requerente que não deverá proceder a exceção invocada pela Requerida na sua Resposta, porquanto o Requerente dispõe de legitimidade material para reclamar nesta sede, enquanto repercutido legal. 
 
2.3. Matéria de facto relevante para apreciar a exceção suscitada
2.3.1. Factos provados
Com relevo para a apreciação e decisão da exceção suscitada, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
A. A 27 de janeiro de 2015, o Requerente, representado pela sua sociedade gestora à data, celebrou um contrato de Mediação Imobiliária com a entidade C..., S.A. (doravante designada C...).
B. A 23 de abril de 2021, o Requerente, igualmente representado pela sua sociedade gestora à data, celebrou um contrato de Property Management de Ativos Imobiliários com a entidade C... .
C. Pela prestação dos serviços incluídos no âmbito dos contratos referidos em A. e B., a  C... faturou diversos valores ao Requerente durante os anos de 2021 e 2022, tendo sujeitado tais valores a tributação em sede de IVA à taxa de 23%.
D. A C... não requereu a regularização do IVA liquidado nas faturas referidas em C..
E. A 2 de janeiro de 2023, e através da sua sociedade gestora, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de liquidação do IVA efetuados nas faturas referidas em C.
F. A 4 de abril de 2023, o Requerente foi notificado, na pessoa da sua sociedade gestora, do indeferimento expresso da reclamação graciosa por si apresentada. Entre outras considerações, pode ler-se em tal indeferimento que “da conjugação do disposto no n.º 1 do artigo 20.º e 205.º da CRP, com os artigos 9.º, 18.º, n.º 4, alínea a) e 95.º da LGT, bem como, do artigo 9.º do CPPT, resulta que ao repercutido é conferido o direito de reclamar, recorrer e impugnar. De facto, este, muito embora não seja o sujeito passivo de imposto, é titular de um direito ou interesse legalmente protegido, dado que foi ele que procedeu ao pagamento do IVA liquidado e entregue ao Estado. Este é o entendimento defendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores e com a qual concordamos: veja-se neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STA proferidos no âmbito dos processos n.º 12.102, de 4 de julho de 1990, n.º 1898/02, de 2 de julho de 2003 e n.º 957/03, de 1 de outubro de 2003. Sucede, porém, que não podemos esquecer qual o alcance que o legislador teve em vista ao consagrar na alínea a) do n.º 4 do art. 18.º da LGT esse mesmo direito. Conforme refere Bruno Botelho Antunes, no âmbito do IVA “o direito do repercutido previsto no art. 18.º, n.º 4 al.) a, da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado (…)”.
G. A 29 de junho de 2023, e através da sua sociedade gestora, o Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, pedindo a anulação do indeferimento da reclamação graciosa.
H. A 12 de outubro de 2023, e através da sua sociedade gestora, o Requerente endereçou à C..., por carta registada com aviso de receção, um “pedido de substituição de facturas” com o seguinte teor:
 
 
A. A 26 de outubro de 2023, os responsáveis da C... responderam via e-mail dizendo que “estivemos a analisar a informação que nos remeteram, legislação e jurisprudência existente e não identificamos base para a regularização que nos solicitaram, podem p.f. partilhar qual a informação adicional que têm da AT que permita efetuar esta regularização?”, tendo mais tarde, a 30 de outubro de 2023, enviado novo e-mail dizendo que “na sequência da nossa conversa de sexta-feira necessitamos de obter o resultado da consulta feita à AT sobre esta regularização para que possamos analisar e, caso estejamos de acordo, avançar com a mesma. Com o enquadramento atual consideramos não estarem reunidas condições para se avançar com as regularizações solicitadas”.
 
2.3.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados. 
 
2.3.3. Motivação da matéria de facto
Os factos dados como provados fundam-se no acervo documental junto aos autos pelo Requerente e no Processo Administrativo junto pela Requerida. Não há controvérsia sobre a matéria de facto.
 
2.4. Apreciação da exceção suscitada
Ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 7 do Código do IVA, quando “o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura”. No mesmo sentido, o artigo 78.º, n.º 1 do Código do IVA prevê que as “disposições dos artigos 36.º e seguintes [referentes aos prazos e às formalidades de emissão das faturas] devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”, prevendo-se depois, nos restantes números desta norma legal, as exatas condições para o exercício deste direito por parte do sujeito passivo de imposto. A este respeito, Clotilde Celorico Palma in Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (N.º 1 da Colecção) – 6.ª Edição, p. 80 esclarece que “os sujeitos passivos deverão proceder à regularização do IVA” precisamente nos termos previstos nesta disposição legal sendo que, “caso não se cumpram os requisitos previstos no artigo 78.º, as rectificações são consideradas nulas, com os efeitos legais daí subjacentes”.
Ora, no presente caso está em causa a questão de saber se a retificação/restituição do IVA incorrido em fatura pode ser diretamente solicitada à AT por alguém que, não sendo o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, assume a posição de repercutido legal do valor liquidado por aquele sujeito passivo.
Afigura-se-nos pacífico que, como refere Rui Duarte Morais in Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2016, p. 58, a verificação de uma situação em que seja liquidado imposto de montante superior ao devido terá para o repercutido “consequências económicas negativas (daí o serem, muitas vezes, designados por contribuintes de facto)”. Nesta medida, e em decorrência do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 18.º, n.º 4, alínea a) da LGT, em conjugação com o artigo 9.º do CPPT, reconhece ao repercutido legal o direito de reclamar, recorrer, impugnar ou requerer pronúncia arbitral nas questões legais em que tenha um interesse legalmente protegido, isto é, em que tenha interesse direto em contradizer.
Sucede que, por expressa previsão da norma da LGT acabada de referir, tal reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral deve ser realizada “nos termos das leis tributárias”, sendo mister tomar ainda em consideração a posição assumida pela doutrina nacional e, principalmente, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) a este respeito.
Ora, sendo parcos os estudos, em território nacional, sobre os direitos processuais do repercutido legal, importa chamar à colação a posição defendida já em 2008 por Bruno Botelho Antunes in Da repercussão fiscal no IVA, Almedina. No âmbito do IVA, defende este Autor que “o direito do repercutido previsto no art. 18.º, n.º 4 al. a), da LGT foi consagrado para fazer face a situações em que, o sujeito passivo, após ter sido instado pelo repercutido para retificar o imposto que lhe foi liquidado em excesso, não agiu nesse sentido. Nessa base, consagrou-se a possibilidade de o repercutido reaver o seu dinheiro diretamente do Estado (…)”. E esta posição afigura-se concordante com a posição assumida pelo TJUE a este respeito.
Com efeito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, TJUE) de 26 de abril de 2017, Farkas, C‑564/15, EU:C:2017:302 que:
“50   A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, não havendo regulamentação da União em matéria de pedidos de restituição de impostos, cabe ao ordenamento jurídico interno de cada Estado Membro prever as condições em que esses pedidos podem ser exercidos, devendo estas condições respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a impossibilitar na prática o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 37).
51     Uma vez que cabe, em princípio, aos Estados Membros determinar as condições em que o IVA indevidamente faturado pode ser regularizado, o Tribunal de Justiça reconheceu que um sistema em que, por um lado, o vendedor do bem que pagou por erro o IVA às autoridades tributárias pode exigir o seu reembolso e, por outro, o adquirente do bem pode intentar uma ação cível para repetição do indevido contra esse vendedor respeita os princípios da neutralidade e da efetividade. Com efeito, esse sistema permite ao referido adquirente que suportou o encargo do imposto faturado por erro obter o reembolso dos montantes pagos indevidamente (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.os 38, 39 e jurisprudência referida).
52     Além disso, segundo jurisprudência constante, na falta de regulamentação da União na matéria, as vias processuais destinadas a garantir a proteção dos direitos que decorrem para os cidadãos do direito da União dependem da ordem jurídica interna de cada Estado Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados Membros (v., designadamente, acórdãos de 16 de maio de 2000, Preston e o., C 78/98, EU:C:2000:247, n.o 31, e de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 40).
53     No entanto, se o reembolso do IVA se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor, o princípio da efetividade pode exigir que o adquirente possa requerer o reembolso diretamente às autoridades tributárias. Por conseguinte, os Estados Membros devem prever os instrumentos e as vias processuais necessárias para permitir ao referido adquirente recuperar o imposto indevidamente faturado, de modo a que o princípio da efetividade seja respeitado (v., neste sentido, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167, n.o 41)”. (nosso negrito)
Portanto, e de acordo com este entendimento do TJUE (já anteriormente sufragado no acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken, C 35/05, EU:C:2007:167), o repercutido legal pode requerer diretamente o reembolso do IVA à AT se e na medida em que a regularização do IVA por parte do sujeito passivo de imposto “se tornar impossível ou excessivamente difícil, designadamente em caso de insolvência do vendedor”. Mais recentemente, o TJUE voltou a reafirmar esta posição no acórdão de 13 de outubro de 2022, HUMDA, C 397/21, EU:C:2022:790, no qual se pode ler que “a Diretiva IVA, lida à luz dos princípios da efetividade e da neutralidade do IVA, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro em aplicação da qual um sujeito passivo, ao qual outro sujeito passivo prestou um serviço, não pode pedir diretamente à Autoridade Tributária o reembolso do montante correspondente ao IVA que lhe foi indevidamente faturado pelo referido prestador e que este último pagou à Fazenda Pública, quando a recuperação desse montante junto do prestador de serviços for impossível ou excessivamente difícil pelo facto de este último ter sido objeto de um processo de liquidação, e quando não for possível imputar a estes dois sujeitos nenhuma fraude ou abuso, de modo que não há risco de perda de receitas fiscais para este Estado-Membro” (nosso sublinhado).
Como decorre que vem de ser dito, o acórdão do TJUE de 7 de setembro de 2023, Schütte, C453/22, ECLI:EU:C:2023:639 (por diversas vezes citado pelo Requerente) insere-se no espírito das anteriores decisões do TJUE sobre o tema em apreço, sufragando que “se for impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago, este adquirente, não lhe sendo imputado nenhum abuso, fraude ou negligência, tem o direito de dirigir o seu pedido de reembolso diretamente à Autoridade Tributária”, esclarecendo, contudo, que “(…) quanto à questão de saber se o facto de não haver insolvência dos fornecedores pode ter uma incidência sobre o direito ao reembolso do IVA à luz da jurisprudência mencionada no n.o 23 do presente acórdão, é pacífico que a utilização sistemática do advérbio «designadamente» nesta jurisprudência demonstra que a hipótese da insolvência dos fornecedores é apenas uma das circunstâncias em que pode ser impossível ou excessivamente difícil obter o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago (…)” (§ 26 e 29).
Portanto, da jurisprudência do TJUE acabada de referir, resulta à saciedade que o direito ao pedido direto de reembolso do IVA liquidado apenas surge na esfera do repercutido legal nas situações em que se afigure “impossível ou excessivamente difícil para o adquirente obter, junto dos fornecedores, o reembolso do IVA indevidamente faturado e pago”. Como tal, e descendo ao caso concreto, cumpre então perceber se se verifica no caso sub judice a impossibilidade ou dificuldade excessiva relatada na jurisprudência do TJUE. E entendemos que não.
Com efeito, o que resulta do probatório é que o Requerente apenas contactou a C... já depois de apresentado o pedido de constituição do presente processo arbitral, tendo encetado conversações com esta entidade no sentido de regularização do IVA liquidado apenas no passado mês de outubro do corrente ano (i.e., há sensivelmente dois meses). Nesta medida, e ao contrário do alegado pelo Requerente, não se encontra no probatório qualquer “recusa veemente” dos responsáveis da C... em seguirem as regras legais previstas no ordenamento jurídico português para a regularização do IVA, antes se encontrando, no último e-mail que consta do probatório (datado de 30 de outubro), a disponibilidade para manter a discussão sobre o tema em análise mediante a prestação de determinadas informações por parte do Requerente.
Nesta medida, não se encontra no probatório qualquer elemento que permita concluir pela impossibilidade ou excessiva dificuldade em cumprir os normais trâmites dos pedidos de restituição de IVA previstos no ordenamento jurídico português, tanto mais que ainda não decorreu o prazo de quatro anos previsto no artigo 98.º n.º 2 do Código do IVA para o efeito, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo que se aplica nos casos de erros de direito (conforme Acórdãos deste Tribunal proferidos a 28-06-2017 no processo n.º 01427/14, a 03-06-2020 no processo n.º 0498/15.2 BEMDL, a 17-06-2020 no processo n.º 0443/13.0BEPRT, a 07-04-2021 no processo n.º 0796/15.5BEVIS, a 12-05-2021 no processo n.º 01023/15.0BELRS e a 07-04-2022 no processo 0379/16.2BEVIS). Ademais, e do ponto de vista da justiça material, não se vislumbra qualquer razão para “forçar” uma interpretação distinta, já que o Requerente não só contactou a C... já depois de apresentada a reclamação graciosa e o pedido de pronúncia arbitral (sendo que poderia ter, por sua exclusiva iniciativa, antecipado tal contacto) como foi precisamente o Requerente que, por esquecimento ou negligência, não deu continuidade à conversa encetada com a C... nesses termos (não respondendo ao e-mail de 30 de outubro com as informações que lhe são pedidas por esta entidade).
Nestes termos, e considerando que o Requerente não cumpre os pressupostos que lhe permitam ser titular direto do direito ao reembolso do IVA que alega ter suportado em montante superior ao devido, não tem o mesmo legitimidade material, substantiva ou ad actum para figurar no presente processo arbitral. Como tal, e considerando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 5297/12.0TBMTS.P1.S2 e a decisão arbitral proferida a 14 de fevereiro de 2022 no Processo n.º 513/2021-T), julga-se verificada a exceção perentória inominada de ilegitimidade material do Requerente arguida pela Requerida, ao abrigo do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Improcede, por isso, o pedido arbitral, por verificação da exceção perentória referida.
 
3. QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO
Procedendo a exceção de ilegitimidade material suscitada pela AT, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no processo.
 
4. DECISÃO
Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados, decide-se:
a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, com todas as legais consequências;
b) Condenar o Requerente no pagamento das custas do processo.
 
*
 
Valor: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de EUR 280.195,28. (duzentos e oitenta mil, cento e noventa e cinco euros e vinte e oito cêntimos).
 
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Custas: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em EUR 5.202, as quais ficam a cargo do Requerente.
 
*
 
Notifique-se.
 
 
Lisboa, 18 de dezembro de 2023.
 
Os Árbitros,
 
Jorge Lopes de Sousa
 
 
 
Júlio Tormenta
 
 
Ana Paula Marques Rocha
(relatora)