Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 158/2023-T
Data da decisão: 2023-12-05   
Valor do pedido: € 1.154.605,25
Tema: Incompetência em razão do valor da causa. Tribunal singular e tribunal colectivo.
Versão em PDF

consultar versão completa no PDF

SUMÁRIO:

 

1. Peticionada a anulação total de diversos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, em cumulação de pedidos, aos quais correspondeu a correcção, pela AT, do valor global de € 1.154.605,25 de imposto, verifica-se a incompetência relativa do Tribunal Arbitral, em razão do valor.

2. Atendendo a que o valor da causa corresponde ao somatório dos valores dos pedidos - artigo 297.º, n.º 2,  do CPC -, conclui-se que aquele ultrapassa o dobro do valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, pelo que o tribunal competente é o tribunal arbitral colectivo - artigo 5.º, n.º 3, alínea a), do RJAMT.

3. A fixação do valor do processo, nos termos expostos, resulta na incompetência relativa do tribunal arbitral singular em razão do valor, a qual é do conhecimento oficioso - artigo 104.º, n.º 2, do CPC -, e configura uma excepção dilatória - artigo 577.º, alínea a) do CPC -, a qual obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância da Requerida AT - artigo 576.º, n.º 2, do CPC.

 

 

DECISÃO ARBITRAL:

 

Martins Alfaro, designado pelo Conselho Deontológico do CAAD para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 23-05-2023, profere a seguinte Decisão:

 

 

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., SGPS, S.A., pessoa colectiva n.º ..., com sede social na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa.

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

A.3 - Objecto do pedido de pronúncia arbitral: Nos termos do pedido de pronúncia arbitral, «o presente Pedido de Pronúncia Arbitral tem como objeto os seguintes atos de liquidação adicional de IVA (cfr. cit. Documentos n.º 1):

».

 

 

A.4 - Pedido: A Requerente formulou o seguinte pedido: «Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve o presente pedido de  pronúncia arbitral ser considerado totalmente procedente, por provado e fundado e, em consequência, ser determinada a anulação dos atos de liquidação adicional de imposto sobre o valor acrescentado referentes aos anos de 2018, 2019, 2020 e, bem assim, aos trimestres 03t, 06t e 09t do ano de 2021, das quais resultou imposto a pagar no valor de € 7.956,84, com as necessárias consequências legais».

 

A.5 - Fundamentação do pedido:

A Requerente funda o pedido de pronúncia arbitral nos seguintes vícios:

  1. Falta de fundamentação dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral.
  2. Dedutibilidade do IVA, relativamente a certas despesas gerais, porque têm nexo com o conjunto da actividade económica da holding.
  3. Violação do princípio da neutralidade em sede de IVA.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

Notificada para apresentar Resposta, a Requerida veio dizer o seguinte:

 

  1. Inexiste falta de fundamentação dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, uma vez que que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance do acto, como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que fez através do presente pedido de pronúncia arbitral.
  2. Os gastos gerais da actividade não são elementos constitutivos do preço das operações realizadas pela Requerente, que conferem direito à dedução, não sendo possível estabelecer uma relação directa e imediata com o conjunto da actividade económica realizada pela Requerente e esta não demonstrou qualquer nexo de causalidade entre aquilo que entende serem despesas gerais e a sua actividade económica sujeita e não isenta, que confere direito à dedução do imposto suportado a montante.
  3. Carece de qualquer fundamento a argumentação da Requerente quando invoca a seu favor o princípio da neutralidade, em sede de IVA.

 

 

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto dos artigos 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea b), ambos do RJAMT, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAMT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 23-05-2023.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, atenta a conformação do objecto do processo e face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAMT.

 

Por despacho de 20-11-2023, devidamente notificado às partes, foi determinada a prorrogação do prazo para decisão arbitral, por dois meses.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Por despacho de 20-11-2023, notificado às Partes em 21-11-2023, o Tribunal suscitou a sua incompetência em razão do valor e determinou a notificação da Requerente e da Requerida para se pronunciarem - artigo 3.º, n.º 3, do CPC e alínea a) do artigo 16.º do RJAMT -, no prazo de dez dias.

 

Nem a Requerente, nem a Requerida se pronunciaram.

 

Tal como o Tribunal fez constar, em despacho arbitral de 20-11-2023, devidamente notificado às partes, suscita-se nos presentes autos uma questão prévia, de conhecimento oficioso, a qual, a proceder, constituirá excepção dilatória que obstará a que se conheça de mérito, pelo que haverá, antes de mais, que apreciar tal questão.

 

A questão prévia a decidir é a seguinte: Deve este Tribunal singular tenciona declarar a sua incompetência relativa, em razão do valor?

Vejamos:

 

 

C -  FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Factos provados, no que interessa à apreciação da questão prévia:

 

Os factos relevantes para a apreciação da questão prévia que ora se suscita e que são tidos como assentes são os seguintes:

 

A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, constituindo objecto do pedido - e cita-se:

O presente Pedido de Pronúncia Arbitral tem como objeto os seguintes atos de liquidação adicional de IVA (cfr. cit. Documentos n.º 1):

 

 

 

A Requerente fundou o pedido de pronúncia arbitral nos seguintes vícios das liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral:

  1. Falta de fundamentação dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral.
  2. Dedutibilidade do IVA, relativamente a certas despesas gerais.
  3. Violação do princípio da neutralidade em sede de IVA.

 

No artigo 8.ºss, do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente escreveu o seguinte:

 

CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

8.º Com o presente Pedido pretende-se contestar a legalidade dos atos de liquidação de IVA e, praticados com referência aos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021

 

No final do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente formulou o seguinte pedido de pronúncia:

 

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve o presente pedido de  pronúncia arbitral ser considerado totalmente procedente, por provado e fundado e, em consequência, ser determinada a anulação dos atos de liquidação adicional de imposto sobre o valor acrescentado referentes aos anos de 2018, 2019, 2020 e, bem assim, aos trimestres 03t, 06t e 09t do ano de 2021, das quais resultou imposto a pagar no valor de € 7.956,84, com as necessárias consequências legais.[1]

 

Os referidos actos de liquidação adicional de IVA perfazem, em cumulação, o valor global de € 1.154.605,25, de imposto.

 

O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 14-03-2023 - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

O Tribunal Arbitral foi constituído em 23-05-2023 - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

Por despacho de 20-11-2023, devidamente notificado às partes, foi determinada a prorrogação do prazo para decisão por dois meses - Informação constante do Sistema Informático de Gestão Processual (SGP) do CAAD.

 

 

C.2 - Matéria de facto - Factos não provados:

 

Não existem factos relevantes para a decisão da presente questão prévia, que não se tenham provado.

 

C.3 - Motivação quanto à matéria de facto:

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados em função da sua relevância jurídica, face às soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAMT e fixados com base nos documentos dos autos.

 

C.4 - Matéria de direito:

 

C.4.1 - Apreciação da questão prévia da competência do Tribunal singular, em razão do valor:

 

O presente litígio, submetido a arbitragem, tal como conformado pela Requerente, tem como objecto as correcções de imposto (IVA) a que a AT procedeu, relativamente aos 4 trimestres de 2018, 4 trimestres de 2019, 4 trimestres de 2020 e 3 primeiros trimestres de 2021.

 

Tais correcções resultam no valor global de € 1.154.605,25 de imposto.

 

No artigo 8.ºss do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente deixou expresso o seguinte:

 

CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

8.º Com o presente Pedido pretende-se contestar a legalidade dos atos de liquidação de IVA e, praticados com referência aos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021

 

Nos termos do artigo 297.º, n.º 2, primeiro segmento, do CPC: «Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles […]»

 

No artigo 38.º, do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente deixou expresso que, com base na falta de fundamentação:

[…] os atos de liquidação sub judice devem ser anulados, por padecerem de vício de falta de fundamentação.

 

E o pedido de pronúncia arbitral consistiu em dever: […] o presente pedido de  pronúncia arbitral ser considerado totalmente procedente, por provado e fundado e, em consequência, ser determinada a anulação dos atos de liquidação adicional de imposto sobre o valor acrescentado referentes aos anos de 2018, 2019, 2020 e, bem assim, aos trimestres 03t, 06t e 09t do ano de 2021, das quais resultou imposto a pagar no valor de € 7.956,84, com as necessárias consequências legais.[2]

 

Daqui resulta que, pelo menos quanto ao vício de falta de fundamentação, a Requerente peticionou a anulação total dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, dos quais, como se viu, resultou a correcção, pela AT, do valor global de € 1.154.605,25 de imposto.

 

Assim sendo - e, pelo menos no que toca ao invocado vício de falta de fundamentação -, parece indiscutível que a procedência do pedido implicaria a anulação dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, no valor total de € 1.154.605,25 de imposto.

 

Daqui resulta que a utilidade económica do pedido, em caso de procedência do pedido arbitral, se cifra no valor de € 1.154.605,25.

 

É sabido que o tribunal arbitral funcionará com árbitro singular nos casos em que o valor do pedido não ultrapasse duas vezes o valor da alçada do TCA, ou seja, € 60.000,00.

 

Tendo em consideração que, no caso dos presentes autos, o valor do pedido de pronúncia ultrapassa duas vezes o valor da alçada do Tribunal Central Administrativo - ou seja, o valor de € 60.000,00 -, a competência arbitral para o presente litígio cabe ao Tribunal colectivo - artigo 5.º, n.º 3, alínea a), do RJAMT.

 

As regras de competência em razão do valor da causa não podem ser afastadas por vontade das partes - artigo 95.º, n.º 1, do CPC - e a incompetência em razão do valor da causa é de conhecimento oficioso - artigo 104.º, n.º 2, do CPC -, pelo que pode ser decidida independentemente de ser arguida pelas partes.

 

Em consequência, este Tribunal singular considera-se incompetente em razão do valor.

Nestes termos, o Tribunal entende que se verifica a excepção dilatória incompetência relativa do Tribunal, em razão do valor da causa - artigos 102.º e 577.º, alínea a), ambos do CPC - pelo que irá decidir não conhecer do pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida, da instância, já que, nos termos do artigo 576.º, n.º 2, do CPC, «as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal».

 

No caso, não é aplicável a norma atinente à remessa do processo para outro tribunal, pelo que a consequência só pode ser a da extinção da instância.

 

Dando provimento à verificação da excepção da incompetência do tribunal arbitral em razão do valor, a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de ser absolvida da instância.

 

A solução dada a esta questão prévia prejudica a apreciação das demais questões suscitadas pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 660.º, n.º 2, primeiro segmento, do CPC, aplicável ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT.[3]

 

 

D - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide declarar a incompetência do Tribunal em razão do valor da causa e, em consequência, absolver a Requerida da instância.

 

 

E - VALOR DA CAUSA:

 

No decurso do que já anteriormente se prolatou, fixa-se à causa o valor de € 1.154.605,25 -

artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, nrs. 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAMT.

 

 

F - CUSTAS:

 

Considera o Tribunal que, para efeito de determinação de custas, o valor relevante é o indicado no pedido de pronúncia arbitral que levou à constituição deste tribunal arbitral singular - € 7.956,84 -, o qual se distingue do valor do processo fixado oficiosamente - € 1.154.605,25.

 

Conforme é referido na Decisão arbitral proferida no processo n.º 649/2021-T, «[…] o funcionamento deste tribunal envolve custas que devem ser suportadas pelas partes - e daí que o Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária estabeleça regras próprias para cálculo do valor do processo, mais próximas do princípio de que o valor da ação é aquele que existe no momento em que ela é proposta (art. 299º CPC)», pelo que «[…] não obstante o Tribunal basear a sua decisão no reconhecimento de que o valor da causa, para efeitos de competência, é {diferente daquele] inicialmente atribuído pela Requerente, é este último que terá que servir de referência ao cálculo das custas».

 

No mesmo sentido, a Decisão arbitral proferida no processo n.º 151/2013-T, na qual se refere que o «facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada, e, como se disse, a regulamentação do regime de custas foi deixada pelo artigo 12.º do RJAT, na sua exclusiva disponibilidade, ao estabelecer que “é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objectiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa”».

Assim, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00, indo a Requerente, que foi vencida, condenada nas custas do processo.

 

Notifique.

 

Lisboa, 05 de Dezembro de 2023.

 

O Árbitro,

 

 

 

 

(Martins Alfaro)

Assinado digitalmente

 



[1] Realçados do Tribunal.

[2] Realçados do Tribunal.

[3] Neste sentido, embora quanto à intempestividade, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07-12-2011, processo n.º 0241/11, onde se concluiu que «a intempestividade do meio impugnatório implica a não pronúncia do tribunal sobre as questões suscitadas na petição inicial, ainda que de conhecimento oficioso, na medida em que a lide impugnatória não chega a ter o seu início». Disponível em: https://blook.pt/caselaw/PT/STA/372187/