Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 240/2023-T
Data da decisão: 2023-12-13  IVA  
Valor do pedido: € 144.379,85
Tema: IVA – cedência de exploração de residência para estudantes – juros compensatórios
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SUMÁRIO:

  1. A cessão de exploração de uma residência para estudantes está sujeita a IVA pelas regras gerais, não lhe sendo aplicável a isenção de imposto prevista no n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA.
  2. Como tal, a dedução do IVA incorrido com a construção do imóvel objeto de contrato de cessão de exploração de residência de estudantes não está subordinada aos requisitos temporais do Regime da Renúncia à isenção de IVA.
  3. As liquidações de juros compensatórios e moratórios controvertidas, que têm subjacente um errado enquadramento factual e de direito promovido pela AT, não podem subsistir na ordem jurídica.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Raquel Montes Fernandes e José Nunes Barata, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

            1. A..., UNIPESSOAL, LDA, NIF.,.., com sede na..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”) e dos artigos 99.º e 102.º, n.º 1, alínea a) do Código do Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), relativamente ao acto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra os actos de liquidação de juros compensatórios e moratórios de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) com o n.º 2021... referente ao período 2019/06T, n.º 2021 ... referente ao período 2019/09T, n.º 2021 ... referente ao período 2019/12T, n.º 2021 ... referente ao período 2020/03T, n.º 2021 ... referente ao período 2020/06T e n.º 2021 ... referente ao período 2020/09T, bem como contra as correspondentes demonstrações de acerto de contas, das quais resultou um montante total a pagar de € 144.320,70.

 

            2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 4 de Abril de 2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

 

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo os árbitros Carla Castelo Trindade (Presidente), Eva Dias Costa e Raquel Montes Fernandes (vogais), que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 26 de Maio de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 14 de Junho de 2023, sendo que no dia seguinte foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.

 

            5. Em 4 de Setembro de 2023, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e requerido a sua absolvição do pedido.

 

            6. Em 14 de Setembro de 2023, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Naquele despacho foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentarem alegações finais, direito que as mesmas não pretenderam exercer.

 

            7. Em 26 de Setembro de 2023, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD proferiu despacho no qual aceitou a renúncia justificada da Professora Eva Dias Costa às funções arbitrais para as quais foi designada, determinando a sua substituição pelo Dr. José Nunes Barata. Uma vez que as partes não manifestaram vontade de recusar a referida designação, foi o mesmo nomeado enquanto árbitro-adjunto no presente processo em 17 de Outubro de 2023.

 

II. SANEAMENTO

 

8. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112‑A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

§1 – Factos provados

 

            9. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

  1. O objecto social da Requerente consiste na compra, venda e arrendamento de imóveis, incluindo a sua revenda, adquiridos para esse fim, na urbanização, construção e administração de bens imóveis próprios ou alheios, bem como na exploração de residências de estudantes e estabelecimentos de alojamento local, na elaboração de projectos e na prestação de serviços relativos à actividade imobiliária;
  2. A Requerente é um sujeito passivo de IVA que, entre o primeiro trimestre de 2018 e o quarto trimestre de 2020, adquiriu bens e serviços destinados à construção de uma residência para estudantes na cidade do Porto;
  3. No contexto da sua estratégia comercial, a Requerente decidiu que, uma vez concluída a construção da residência para estudantes, o imóvel não seria vendido, arrendado, nem objecto de locação financeira, sendo antes a sua exploração cedida a um terceiro;
  4. A Requerente assegurou a obtenção das autorizações e licenças necessárias à exploração da residência de estudantes (designadamente, a respectiva licença de utilização), tendo igualmente mobilado e equipado o imóvel construído para o efeito, o qual tem 349 quartos totalmente mobilados, zonas comuns como recepção, piscina, ginásio, lavandaria, sala de jantar e salas de estar, entre outras, inteiramente mobiladas e equipadas;
  5. A Requerente celebrou com a B... S.à.r.l. – Sucursal em Portugal (“B...”) um contrato designado por Lease Agreement of student housing residence (“Locação de Estabelecimento”), no âmbito do qual se determinou que as instalações seriam usadas para alojamento de estudantes ou para qualquer outra utilização permitida, desde que a mesma não resultasse na não sujeição a IVA das instalações e desde que a Requerente desse o seu consentimento prévio por escrito para o efeito;
  6. À data da cedência da exploração o imóvel encontrava-se plenamente apto para o exercício de uma actividade económica, no caso, a de exploração de uma residência de estudantes;
  7. No contrato de Locação de Estabelecimento estipularam-se diversos tipos de renda a pagar pela B... à Requerente, designadamente “basic rent”, “variable rent”, “fixed rent” e “annual rent”, alguns dos quais calculados com base na rentabilidade do negócio;
  8. No contrato de Locação de Estabelecimento é feita referência a certificados emitidos pela AT a confirmar a renúncia à isenção de IVA relativamente a cada fracção autónoma que compõe o imóvel;
  9. A Requerente procedeu, entre 2018 e 2020, à dedução do IVA suportado com a aquisição dos bens e serviços para a construção da residência para estudantes;
  10. A Requerente renunciou à isenção de IVA nos termos previstos nos n.ºs 4 e 6 do artigo 12.º do Código do IVA e do regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis aprovado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de Janeiro (“Regime da Renúncia à Isenção”), por referência ao contrato de Locação de Estabelecimento;
  11. No seguimento da renúncia à isenção, a Requerente efectuou um pedido de reembolso de IVA no valor total de € 828.070,40 na declaração periódica relativa ao primeiro trimestre de 2021;
  12. Em resultado deste pedido, foi iniciado pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa (“SIT”) um procedimento de inspecção tributária sob a ordem de serviço n.º OI2021...;
  13. Em 14 de Outubro de 2021, os SIT enviaram à Requerente mensagem de correio electrónico com o seguinte teor: “no âmbito do pedido de reembolso efetuado pela C... LDA, NIF ..., após análise dos elementos/esclarecimentos remetidos em resposta à nossa notificação enviada com o n/ofício n.º ... de 2021‑05‑21 e em resposta aos emails (…) verifica-se que a C... deduziu indevidamente imposto nos períodos 201809T, 201812T, 201903T, 201906T, 201909T, 201912T, 202003T, 202006T e 202009T. Considerando que os transmitentes ou locadores podem deduzir o IVA relativo ao bem imóvel na declaração do período de imposto ou de período posterior àquele em que, nos termos do n.º 1 do art.º 5.º do regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis, tem lugar a renúncia à isenção, e tendo em conta o prazo a que se refere o n.º 2 do artigo 9.º8.º do Código do IVA, só a partir desse momento é que a empresa poderá deduzir o IVA suportado na construção (n.º 2 do art.º 8.º do regime da renúncia à isenção do IVA nas operações relativas a bens imóveis). Assim, a fim de deferir o pedido de reembolso no montante de € 828.070,41 solicitado pela C... na declaração periódica do IVA do período 202103T, venho por este meio solicitar a substituição das declarações periódicas do IVA dos períodos 201809T, 201812T, 201903T, 201906T, 201909T, 201912T, 202003T, 202006T, 202009T e 202012T. Deste modo, nas declarações periódicas do IVA dos períodos 201809T, 201812T, 201903T, 201906T, 201909T, 201912T, 202003T, 202006T e 202009T deverão ser corrigidos todos os montantes de IVA deduzido nos campos 20, 24 e 40 das referidas declarações periódicas no montante total de € 4.199.340,68 e incluídos aqueles montantes nos campos respetivos da declaração periódica do IVA do período de 202012T”;
  14. A Requerente procedeu em conformidade com o solicitado pelos SIT e, em 14 de Outubro de 2021, substituiu as declarações periódicas de IVA dos períodos compreendidos entre o primeiro trimestre de 2018 e o terceiro trimestre de 2020 de forma a retirar das mesmas as importâncias de imposto dedutível, que totalizavam € 4.199.340,68;
  15. Em 18 de Outubro de 2021, os SIT solicitaram à Requerente que substituísse a declaração periódica respeitante ao quarto trimestre de 2020 para que nela fosse incluído, como IVA dedutível, o mesmo montante de imposto que havia sido retirado das declarações periódicas dos períodos compreendidos entre o terceiro trimestre de 2018 e o terceiro trimestre de 2020;
  16. A Requerente procedeu em conformidade com o solicitado pelos SIT e substituiu a declaração periódica do quarto trimestre de 2020;
  17. Por intermédio de ofício da Direcção de Finanças de Lisboa com o n.º..., datado de 10 de Novembro de 2021, a Requerente foi informada que “da ação de inspeção levada a cabo por este Serviço, ao abrigo da Ordem de Serviço acima referida, não resultam quaisquer atos tributários ou em matéria tributária que lhe sejam desfavoráveis”;
  18. A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IVA n.º 2021..., de 3 de Novembro de 2021, por referência ao primeiro trimestre de 2021, de onde resultou um montante de imposto a reembolsar de € 828.070,40, o qual corresponde à diferença entre o montante total de IVA a deduzir entre o terceiro trimestre de 2018 e o quarto trimestre de 2020 (os € 4.242.751,77 indicados no campo 94 como crédito de imposto a recuperar) e o montante que efectivamente deduziu ao longo destes períodos e que depois anulou com substituição das respectivas declarações periódicas (os € 3.414.681,37 indicados no campo 96);
  19. A quantia de € 828.070,40 foi restituída à Requerente, a título de crédito de IVA, entre os dias 4 e 7 de Janeiro de 2022 através de três transferências nos montantes de € 15.136,00, € 549.133,82 e € 263.800,58;
  20. A Requerente foi citada no processo de execução fiscal n.º ...2021... e apensos para a cobrança coerciva da quantia exequenda de € 3.409.486,12 a título de IVA de 2019 e 2020 e acréscimos legais, num total de € 3.421.205,18;
  21. A Requerente foi notificada das demonstrações de liquidação de juros compensatórios e de juros moratórios relativamente ao período compreendido entre o segundo trimestre de 2019 e o terceiro trimestre de 2020 com um montante total a pagar de € 144.320,70;
  22. Os juros compensatórios foram calculados desde o termo do prazo de entrega do imposto até à data em que foram substituídas as declarações periódicas (14 de Outubro de 2021);
  23. Os juros de mora foram calculados pela AT desde o dia seguinte ao da substituição das declarações periódicas até à data do acerto de contas (20 de Outubro de 2021);
  24. A Requerente foi citada no processo de execução fiscal n.º ...2021... e apensos para cobrança coerciva da quantia exequenda de € 143.167,78, referente a juros compensatórios e juros de mora dos períodos 2019/06T, 2019/12T, 2020/03T, 2020/06T e 2020/09T, acrescida de juros de mora de € 416,36 e de custas processuais de € 795,71, num total de € 144.379,85;
  25. Em 17 de Janeiro de 2022, a Requerente procedeu ao pagamento voluntário da quantia exequenda e dos acréscimos legais, num total de € 144.379,85;
  26. A Requerente foi citada no processo de execução fiscal n.º ...2021... e apensos para cobrança de € 1.152,92 a título de juros compensatórios e os juros de mora do terceiro trimestre de 2019, montantes esses que também foram pagos;
  27. Em 2 de Março de 2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os actos de liquidação de juros de IVA (juros compensatórios e juros moratórios) que são objecto dos presentes autos;
  28. A Requerente foi notificada do projecto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa e exerceu o direito de audição;
  29. Em 1 de Julho de 2022, a Requerente alterou a sua designação social de C..., UNIPESSOAL para A..., UNIPESSOAL, LDA;
  30. A Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa através de ofício datado de 29 de Dezembro de 2022;
  31. Em 16 de Janeiro de 2023, a Requerente foi reembolsada do montante de IVA cujo reembolso havia pedido na declaração periódica do quarto trimestre de 2021 (€ 3.334.406,54), ou seja, parte do IVA suportado entre o terceiro trimestre de 2018 e o terceiro trimestre de 2020 na construção da residência para estudantes no Porto (€ 4.199.340,68), tendo os restantes € 828.070,40 sido reembolsados na sequência de um pedido feito na declaração periódica do primeiro trimestre de 2021;
  32. Em 4 de Abril de 2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

§2 – Factos não provados

 

            10. Com relevo para a decisão do presente processo, não existem factos que se tenham considerado como não provados.

 

§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

11. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

12. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

            13. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do PA junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

            14. A questão a dirimir nos autos prende-se, no essencial, com a legalidade dos atos de liquidação de juros compensatórios e moratórios emitidos pela AT à Requerente na sequência de uma inspeção tributária efetuada no âmbito de um pedido de reembolso de IVA. Por sua vez, o crédito de imposto acumulado na esfera da Requerente, e objeto do referido pedido de reembolso, teve subjacente a dedução por esta de IVA incorrido na aquisição de bens e serviços aquando da construção de um imóvel destinado à prestação de serviços de alojamento para estudantes.

 

15. A fim de aferir da legalidade dos atos tributários controvertidos, importa delimitar o quadro legal aplicável, confirmando a natureza da actividade desenvolvida pela Requerente e o momento em que nasceu o seu direito à dedução do IVA pago a montante. Em particular, afigura-se vital determinar se a actividade imobiliária por si exercida tem, ou não, enquadramento na isenção de imposto prevista no n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA. 

 

  1. Dos conceitos de sujeito passivo, actividade económica e direito à dedução de IVA

 

16. Conforme resulta do artigo 9.º, n.ºs 1 e 2 da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006 (“Directiva IVA”), matriz do sistema comum do IVA:

 

  • Entende-se por sujeito passivo de IVA qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa actividade;

 

  • Entende-se por actividade económica qualquer actividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada actividade económica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência.

 

17. Estas regras de incidência objectiva e subjectiva do sistema do IVA foram transpostas para os artigos 1.º a 5.º do Código do IVA português.

 

18. No exercício da sua actividade económica, os sujeitos passivos incorrem em IVA na aquisição de bens e serviços. O direito à dedução deste imposto suportado a montante constitui um pilar essencial do sistema comum do IVA, enquanto imposto indirecto de matriz europeia, e tem por objectivo principal garantir a neutralidade do imposto nas operações realizadas pelos sujeitos passivos, pelo que apenas pode ser limitado ou restringido nos casos legalmente previstos.

 

19. Não obstante, o exercício do direito à dedução de IVA não é livre ou incondicionado e, entre outros requisitos, o artigo 20.º do Código do IVA enquadra o direito à dedução de IVA por referência a determinadas operações que conferem esse direito, quer por serem sujeitas a IVA e dele não isentas, quer por se tratar de operações isentas às quais, por motivos vários, o legislador entendeu reconhecer direito à dedução. 

 

20. Face ao exposto, para que o IVA suportado por um sujeito passivo na aquisição de bens e serviços necessários à realização da sua actividade possa ser deduzido, exige-se, regra geral, um nexo de causalidade entre os bens ou serviços adquiridos (inputs) e a realização de operações (outputs) tributáveis (ou equiparáveis para efeitos do direito à dedução), o qual pode fundamentar-se numa relação direta e imediata entre inputs e outputs ou, pelo menos, entre os inputs e o exercício do conjunto da actividade económica do sujeito passivo (pressupondo, neste último caso, a incorporação do seu custo nos preços dos bens e serviços fornecidos pelo sujeito passivo no âmbito das suas actividades económicas)[1].

 

  1. Do conceito de locação de imóveis para efeitos de IVA

 

21. A disponibilização temporária de bens imóveis por um sujeito passivo a uma pessoa singular ou colectiva, mediante o pagamento de uma contrapartida pelo direito à utilização desse espaço, configura, de acordo com o conceito residual adoptado pelo legislador no artigo 4.º do Código do IVA, uma prestação de serviços sujeita a IVA. Não obstante, a alínea l) do n.º 1 do artigo 135.º da Directiva IVA determina que as locações de bens imóveis são isentas de IVA. E, nessa medida, também o Código do IVA consagra, no n.º 29 do artigo 9.º, uma isenção de imposto para os serviços de locação de imóveis.

 

22. Face ao exposto, sem prejuízo das excepções previstas nas alíneas a) a e) da mencionada norma do artigo 9.º, não há lugar à liquidação de IVA nas contrapartidas (rendas) cobradas pelo locador ao locatário, quando a respectiva operação de locação seja enquadrável nesta isenção. E, em consequência, uma vez que esta isenção assume a natureza de uma isenção incompleta, o sujeito passivo locador não tem direito à dedução do IVA incorrido a montante (por exemplo, em obras de construção ou de reabilitação do edifício em causa) por conta do exercício desta actividade.

 

23. Tem sido largamente discutido pela doutrina e pela jurisprudência, quer ao nível nacional, quer ao nível europeu, o âmbito desta isenção de imposto e, em particular, o que se deve entender por “locação de bens imóveis” para efeitos da mesma.

 

24. A nível do direito europeu, é essencialmente o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) que, através da sua jurisprudência, tem dado maiores contributos a esta temática. Conforme se refere no processo arbitral 528/2018-T:

o TJUE vincou em vários acórdãos que as isenções previstas no artigo 135º da Directiva IVA constituem conceitos autónomos de direito europeu, que têm como objetivo evitar divergências na aplicação do regime de IVA. 

No que se refere à isenção prevista no artigo 135.º da Directiva IVA, o TJUE sublinha que esta disposição não define o conceito de «locação» nem remete para a respetiva definição adoptada na matéria pelos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros.  A referida disposição deve portanto ser interpretada à luz do contexto em que se inscreve, das finalidades e da economia da Directiva, tendo especialmente em conta a ratio legis da isenção que prevê.

Adicionalmente, prosseguindo quanto à metodologia a empregar na interpretação das regras de isenção, entende o TJUE de que estas possuem um caráter excecional no contexto do sistema do IVA, que como se referiu, está subordinado a um princípio de generalidade, devendo por isso ser interpretadas de modo estrito, i.e. de modo literal, ficando vedada a interpretação extensiva ou a analogia. 

O Tribunal tem contudo lembrado que esta interpretação estrita não se confunde com uma interpretação restritiva, e que as regras de isenção constantes da Directiva IVA não devem ser interpretadas de maneira a privá-las dos seus efeitos. Além do elemento literal, a jurisprudência do TJUE tem vindo a fazer apelo a outros elementos interpretativos, desde logo à necessidade de ponderar as finalidades – elemento finalístico - das regras de isenção no seu contexto.

Assim, no caso específico da locação de imóveis, o TJUE determina que a caraterística fundamental do conceito em análise “consiste em conferir ao interessado, por um período acordado e mediante remuneração, o direito de ocupar um imóvel como se fosse proprietário e de excluir qualquer outra pessoa do benefício desse direito. Para apreciar se uma determinada convenção responde a esta definição, devem tomar-se em consideração todas as caraterísticas da operação e as circunstâncias em que se desenvolve. A este respeito, o elemento decisivo é a natureza objectiva da operação em causa, independentemente da qualificação que lhe atribuem as partes”. 

O TJUE observaria que a operação de locação de um imóvel “constitui normalmente uma actividade relativamente passiva ligada ao simples decurso do tempo e que não gera um valor acrescentado significativo”, por oposição a outras prestações de serviços próximas à locação, mas que excedem a simples disponibilização passiva de um bem imóvel por contrapartida de uma remuneração.

Refira-se ainda que o TJUE considera que a isenção de IVA em apreço não poderá ser aplicada genericamente à “cedência de locais e outras instalações e à colocação à disposição de elementos acessórios ou outros equipamentos”, i.e. locação de bens imóveis acompanhadas de outras prestações de serviços, afigurando-se relevante nestes casos, a suscetibilidade ou não da dissociação destas outras prestações de serviços à operação de locação per se do bem imóvel.

Nesta matéria, conforme consta das Conclusões do Advogado-Geral Antonio Tizzano, proferidas no processo C-409/98, e apresentadas em 23 de Janeiro de 2001, “a opinião segundo a qual as características da locação devem ser predominantes num dado contrato, a fim de que este possa beneficiar da correspondente isenção, parece-nos muito importante para o objectivo ora em causa. De facto, isso significa excluir da isenção os contratos que, se bem que partilhem de alguns elementos do contrato de locação, se caracterizam essencialmente por uma prestação de serviços conexa à fruição do imóvel”.

 

Seguindo as palavras do Advogado-Geral, “para avaliar quais são os elementos predominantes num determinado contrato, não nos podemos limitar a um exame abstrato ou puramente formal do mesmo. Sendo necessário identificar a função económica do contrato, isto é, a função concreta que o mesmo é objectivamente chamado a desempenhar para satisfazer os interesses das partes. Por outras palavras, é necessário que seja identificado aquilo que, na tradição jurídica dos vários países europeus, é definido como a causa do negócio jurídico, que é precisamente entendida como a função económica do mesmo, destinada à composição dos interesses em jogo. No caso do contrato de arrendamento, como ficou dito, essa função consiste na transferência, de um sujeito para outro, por um dado período de tempo, da fruição exclusiva de um imóvel”.

 

25. Por sua vez, a nível do direito interno, vigora um conceito civilístico de locação, previsto nos artigos 1022.º e seguintes do Código Civil, o qual pressupõe igualmente uma colocação passiva do imóvel pelo locador, ao seu locatário, por contrapartida de um montante contratualmente acordado, para que este (locatário) possa usufruir do imóvel em causa como se dele fosse proprietário.

 

26. Não obstante, a interpretação dada pela AT ao conceito de locação de bens imóveis para efeitos de aplicação da isenção de IVA do n.º 9 do artigo 9.º não tem sido consistente ao longo dos anos, o que não tem contribuído para a segurança jurídica necessária ao bom funcionamento do sector. Sem prejuízo, conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 13.07.2021 no processo 01991/16.5BEPRT:

“sobre esta matéria a Administração Tributária tem assumido uma posição que pode ser resumida no seguinte:

- Tem sido utilizado um critério preciso que permite distinguir as situações de locação de imóvel pura e simples – mero arrendamento – das outras situações em que esse arrendamento, nas condições em que é utilizado, proporciona ao locatário um determinado valor acrescentado;

- Só se encontra isenta de IVA a locação de bens imóveis para fins não habitacionais, ou seja, para fins comerciais, industriais ou agrícolas, quando for efectuada “paredes nuas”, no caso de prédios urbanos ou de parte urbana em prédios mistos, ou “apenas solo” no caso de prédios rústicos;

- O conceito de paredes nuas não se limita ao facto de a locação ser acompanhada, ou não, de bens de equipamento, mobiliário ou utensílios, estando intrinsecamente relacionado com a aptidão produtiva do imóvel, ou seja, a preparação para o exercício de uma actividade empresarial.

Para a Administração Tributária, a própria noção – de paredes nuas – exige o estabelecimento de uma fronteira entre a mera disponibilização do imóvel nas condições referidas e uma eventual disponibilização do mesmo acompanhada de outros elementos constitutivos do contrato ou contratos complementarmente, sob pena de, a pretexto da criação de condições favoráveis à concretização do negócio, se desvirtuar a caracterização da operação, assimilando nestas locações de natureza comercial ou industrial que não se enquadram no objectivo da isenção.”

 

27. Concluindo, os contratos de locação em que se verifique a disponibilização pelo locador de um espaço em versão “paredes nuas” – aqui entendido no sentido de traduzir uma mera colocação passiva do imóvel, sem ser acompanhada de elementos, equipamentos e/ou serviços adicionais que permitam uma aptidão produtiva – são enquadráveis na isenção de IVA do n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA. Diferentemente, os contratos de locação ou figuras similares de cedência de espaços que não reúnam estas condições são sujeitos a IVA nos termos gerais, ao abrigo do artigo 4.º daquele diploma, não sendo subsumíveis na referida isenção.

 

  1. Da renúncia à isenção de IVA nas operações de locação isentas

 

28. Sem prejuízo do disposto no referido n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA, consagra‑se no n.º 4 do artigo 12.º, a possibilidade de os sujeitos passivos que procedam à locação de prédios urbanos ou fracções autónomas a outros sujeitos passivos, que os utilizem, total ou predominantemente, em actividades que conferem direito à dedução, renunciarem à isenção, cumpridos os requisitos legais de natureza objectiva, subjectiva e temporal previstos no Regime de Renúncia à isenção.

 

29. Nas locações isentas em que se verifique a renúncia à isenção ao abrigo deste quadro legal, os imóveis objeto de renúncia são trazidos para o circuito do IVA, com as seguintes consequências:

  • Liquidação de IVA nas rendas;
  • Dedução do imposto suportado a montante para o exercício da actividade.

 

30. Importa, ainda, recordar que o Regime da Renúncia à isenção de IVA prevê que tanto a liquidação de IVA nas rendas, como a dedução do imposto incorrido a montante, apenas podem ocorrer após a efectivação do procedimento de renúncia. Esta condição é particularmente relevante quanto à dedução do imposto, porquanto, ao contrário das regras gerais de dedução, o IVA incorrido na aquisição ou construção de um imóvel poderá não ser imediatamente dedutível.

 

  1. Apreciação do caso

 

31. Conforme resulta da matéria de facto provada, a Requerente foi deduzindo, entre 2018 e 2020, o IVA incorrido na aquisição de bens e serviços destinados à construção do imóvel destinado a residência de estudantes. Como tal, infere-se que a Requerente entendeu ter pleno direito à dedução imediata desse imposto, em virtude de pretender destinar o imóvel em construção a uma actividade sujeita, e não isenta de IVA.

 

32. Sem prejuízo, no final da construção, a Requerente tomou a decisão de ceder a exploração do referido imóvel – entretanto por si plenamente equipado, apetrechado e apto ao exercício de uma actividade de alojamento / residência de estudantes – à B..., tendo para o efeito, celebrado um contrato de locação / cessão de exploração / disponibilização de espaço comercial equipado. E nessa sequência, optou igualmente por solicitar os respectivos certificados de renúncia à isenção para a operação. 

 

33. Conforme acima referido, dada a existência de certificados de renúncia à isenção de IVA a tutelar a operação, os SIT enquadraram o contrato de Locação de Estabelecimento como uma locação isenta e solicitaram à Requerente que, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 8.º do Regime de Renúncia à isenção de IVA, substituísse as declarações periódicas anteriores à data da efectivação da renúncia à isenção, nas quais a Requerente havido deduzido IVA à medida em que as respectivas despesas (aquisições de bens e serviços) foram sendo contabilizadas.

 

34. Sucede, porém, que a prestação de serviços subjacente ao contrato de Locação de Estabelecimento foi incorrectamente enquadrada pela AT, para efeitos de IVA.

 

35. De facto, o contrato de Locação de Estabelecimento celebrado entre a Requerente e a B... para a exploração de uma residência estudantil não tem a natureza de arrendamento passivo ou “paredes nuas”, não estando, por isso, isento de IVA ao abrigo do já referido n.º 29 do artigo 9.º do código daquele imposto.

 

36. Da análise do próprio contrato depreende-se, desde logo, que este não apresenta as características de um contrato de arrendamento “típico”, sendo todo ele construído no pressuposto da aptidão produtiva do espaço para o exercício de uma actividade económica (de residência para estudantes). A B... manifesta interesse na utilização daquele espaço precisamente pelas características que o mesmo apresenta, e proporciona, enquanto residência estudantil.

 

37. Nessa medida, as respectivas contrapartidas a pagar pela B... à Requerente também não assumem a natureza de uma renda típica de um contrato de locação isento, sendo, ao invés, calculadas com base nas receitas do negócio que se pretende desenvolver nesse espaço. O contrato prevê, por isso, diversos tipos de renda – basic rent, variable rent, fixed rent, annual rent – a pagar pela B... à Requerente, em função da rentabilidade do negócio, ao invés de uma renda “tradicional” de arrendamento. E também prevê uma obrigação de entrega, pela B... à Requerente, de monthly statements das receitas do negócio, para que esta possa ter a informação necessária sobre a evolução do mesmo, bem como a possibilidade de a Requerente poder solicitar auditorias independentes à contabilidade e negócio da B... .

 

38. Resulta igualmente do processo, conforme já referido supra, que o espaço em causa foi disponibilizado pela Requerente à B... com todo o mobiliário e equipamento necessário à realização de uma actividade económica de exploração de residência estudantil - o que, quer de acordo com as regras e jurisprudência aplicáveis, quer de acordo com o entendimento mais recente da AT, não permite o enquadramento deste contrato no âmbito da isenção de IVA.

 

39. Tudo isto indicia, portanto, existir entre estas duas entidades uma relação contratual que, independentemente de assumir a natureza de uma cessão de exploração ou de uma locação, não é enquadrável no conceito de arrendamento passivo da isenção de IVA prevista no n.º 29 do artigo 9.º (nem é abrangida pelo âmbito do Regime de Renúncia à isenção) e, como tal, encontra-se sujeita às regras gerais do IVA (mormente, aos artigos 4.º, 19.º, 20.º e seguintes do Código do IVA).

 

40. Não ignoramos, conforme afirmam os SIT, que foi a própria Requerente que (erradamente) solicitou certificados de renúncia à isenção de IVA para titular o contrato de Locação de Estabelecimento celebrado pela B..., e que a eles se faz referência no próprio contrato (quer juntando-os como anexo, quer nas cláusulas respeitantes ao cálculo da renda), em contradição com a decisão de dedução imediata do IVA incorrido a montante.

 

41. Não obstante, a obtenção, pela Requerente, de certificados de renúncia à isenção de IVA, no pressuposto de que o contrato de Locação de Estabelecimento celebrado podia ser entendido pela AT como isento de IVA (o que, de resto, se pode justificar, desde logo, pela incerteza jurídica reinante no sector, fruto de interpretações administrativas evolutivas por parte da AT e dos tribunais nacionais), não altera a substância da operação e dos serviços em causa, nem afasta a aplicação das regras gerais de imposto aos mesmos.

 

42.  E a propósito da referida incerteza jurídica sobre o âmbito de aplicação da isenção de IVA do n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA e do conceito de “paredes nuas” aí subjacente, veja-se, a título de exemplo, o disposto no ponto 31 da Resposta, que afirma que “o arrendamento de imóvel "paredes nuas", não tem que ver com o facto de o espaço locado estar dotado ou não de móveis e equipamentos, estando antes relacionado com o facto de o imóvel locado não estar preparado para o exercício de uma actividade comercial, industrial ou de serviços, sendo prestados outros serviços para além do mero arrendamento”, citando, para o efeito, a Informação Vinculativa n.º 15479, sancionada por despacho de 2019.06.06, da Directora de Serviços do IVA. Não obstante, o nível de substância requerido para se concluir se determinado imóvel tem, ou não, a aptidão exigida para o exercício de uma actividade económica pelas regras gerais tem variado consideravelmente ao longo dos tempos (por exemplo, nalguns casos, a existência de meras instalações eléctricas, de ar condicionado, condutas, etc. foi suficiente para a AT permitir a não aplicação da isenção de IVA, enquanto que noutros casos se exigiu a prestação de serviços conexos).

 

43.  Face ao exposto, é de concluir, in casu, pela não aplicação da isenção de IVA do n.º 29 do artigo 9.º do Código do IVA, uma vez que estamos na presença de um contrato de Locação de Estabelecimento sujeito às regras gerais do IVA. E, como tal, a mera obtenção de certificados de renúncia à isenção de IVA pela Requerente por referência à operação em causa não altera este enquadramento em sede de IVA, revelando-se, apenas, um expediente desnecessário e inconsequente.

 

44. Neste sentido, quer pretendesse explorar directamente a residência estudantil, quer pretendesse recorrer a terceiros para a operacionalizar por via de um contrato com as características do celebrado com a B..., a Requerente tinha direito à dedução integral, e imediata, do IVA incorrido na aquisição dos bens e serviços necessários à construção do imóvel e à instalação do seu equipamento e mobiliário, não estando tal dedução limitada temporalmente ao período de imposto em que os certificados de renúncia à isenção (que, como concluímos supra, não são relevantes in casu) foram obtidos.

 

45. Face ao exposto, e ao contrário do concluído pelos SIT, também não se afigurava necessária a entrega, pela Requerente, de declarações de substituição para correcção dos valores de IVA deduzidos entre 2018 e 2020. De facto, inexistindo limitações (temporais, ou outras) ao exercício do direito da Requerente à dedução do imposto por si incorrido entre 2018 e 2020 por conta da actividade acima descrita, é de concluir também não ter existido IVA em falta nesses períodos após a entrega das respectivas declarações de IVA pela Requerente.

 

46. E, como tal, laborou a AT em erro de facto e de direito quando solicitou à Requerente, em sede de inspeção, a substituição das declarações de IVA onde as respectivas deduções de imposto foram efectuadas.

 

47. Tendo a Requerente actuado, ao abrigo dos princípios de cooperação e de boa-fé, por instrução dos SIT, e em conformidade com as indicações por estes dados, os quais validaram os procedimentos adoptados e deram por finda a inspecção com o consequente deferimento do pedido de reembolso solicitado na declaração periódica do primeiro trimestre de 2021, no montante de € 828.070,40, não se afigura razoável pretender, agora, fazer recair sobre a Requerente uma consequência directamente resultante da conduta por esta adoptada em estrito cumprimento de instrucções específicas da AT.

 

48. De facto, conforme resulta do disposto no disposto no n.º 1 do artigo 96.º do Código do IVA, “sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação ou tenha sido recebido reembolso superior ao devido, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios nos termos do artigo 35.º da lei geral tributária.”.

 

49. No caso em apreço, não se verificou retardamento da liquidação (stricto sensu) do imposto (a questão controvertida coloca-se ao nível do direito à dedução) nem houve, em termos técnicos, um reembolso de imposto superior ao devido (razão pela qual não está em causa a devolução, pela Requerente, de qualquer montante de imposto por si recebido em excesso). Nem o diferimento temporal da dedução do IVA incorrido a montante pela Requerente ocorreu por facto imputável ao sujeito passivo, na medida em que, não obstante ter sido por esta (tecnicamente) promovido, tal apenas ocorreu por indicação e instrução expressas dos SIT. Foi, portanto, a própria Requerida que solicitou e instruiu a correcção das declarações periódicas de IVA de 2018 a 2020 (que, conforme se concluiu supra, não padeciam de vícios ao nível do exercício do direito à dedução de imposto), induzindo em erro a Requerente. Inexiste, portanto, um facto culposo – doloso ou negligente – imputável ao sujeito passivo na sua actuação, na medida em que esta resultou (somente) do erro de facto e de direito em que laboraram os SIT.

 

50. Conforme se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão de 03.03.2022, proferido no processo 00374/11.8BEBRG:

constitui entendimento jurisprudencial pacífico (Neste sentido podem ver­se os seguintes acórdãos do STA: de 8-7-92, proferido no recurso n.º 12147; de 28-6-95, proferido no recurso n.º 19014; de 20-3-96, proferido no recurso n.º 20042; de 2-10-96, proferido no recurso n.º 20605; de 18-2-98, proferido no recurso n.º 22325; de 3-10-2001, proferido no recurso n.º 25034; de 16-02-2005, proferido no recurso n.º 1006/04; de 12-07-2005 proferido no recurso n.º 12649 e de 19-11-2008, proferido no recurso n.º 325/08.) que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a actuação do contribuinte e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua actuação (a título de dolo ou negligência). Ou seja, depende, da existência de culpa, a qual consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto (face à diligência de um bom pai de família) e que, por isso, tem de ser apreciada segundo os deveres gerais de diligência e aptidão de um bónus pater famílias (Sobre a matéria pode ler-se o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa in “Juros nas relações tributárias”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, pág. 145, bem como o Professor Casalta Nabais no parecer junto aos presentes autos.). Deste modo, e apesar de a doutrina e a jurisprudência também sufragarem a tese de que quando uma determinada conduta constitui um facto qualificado por lei como ilícito se deve fazer decorrer dessa conduta – por ilação lógica – a existência de culpa (não porque a culpa se presuma, mas por ser algo que, em regra, se liga ao carácter ilícito-típico do facto praticado) e que, por essa via, se deve partir do pressuposto de que existe culpa sempre que a actuação do contribuinte integra a hipótese de qualquer infracção tributária, o certo é que essa culpa pode e deve ser excluída quando se mostre, à luz das regras de experiência e das provas obtidas, que o contribuinte actuou com a diligência normal no cumprimento das suas obrigações fiscais. E, por essa razão, a jurisprudência firmou-se no entendimento de que não são devidos juros compensatórios quando o retardamento da liquidação se ficou a dever, por exemplo, a compreensível divergência de critérios entre a AF e o contribuinte quanto ao enquadramento e/ou qualificação de determinada situação tributária (como, por exemplo, a nível de custos fiscais) ou a erro desculpável do contribuinte (cfr. os acórdãos referidos em nota de rodapé). (…) Neste contexto, e tornando-se inadmissível imputar um juízo de censura à actuação da Impugnante em relação ao retardamento da liquidação de IVA à taxa normal devida, há que considerar como excluída a sua culpa e, consequentemente, afastada a sua responsabilidade pelo pagamento de juros compensatórios por falta de verificação de um dos pressupostos consagrados no artigo 35.º da LGT, para o qual remete o artigo. 89.º do CIVA” (in acórdão do STA de 16.12.2010, proferido no âmbito do processo n.º 0587/10; sublinhados nossos)”.

 

51. E conclui que “in casu, as liquidações de juros compensatórios foram emitidas considerando como imposto em falta o valor da dedução que, em cada um dos períodos, se considerou indevida e não, como se impunha, o valor da prestação tributária que, por força da dedução indevida, deixou de entregar-se nos cofres do Estado (itens 13, 20 e 22 dos factos provados). Assim, porquanto as liquidações de juros compensatórios impugnadas no efectivo prejuízo que a dedução indevida do IVA comportou para a AT, é de concluir pela ilegalidade das mesmas, por erro nos pressupostos de facto e de direito, nos exactos termos em que foi considerado pelo tribunal a quo. Confirmação que aliás decorria da falência de junção do documento junto com as alegações pela Recorrente.

Em suma, mesmo no caso de as liquidações adicionais de IVA, serem legais (como resultou do decido em 1ª instância e, não colocado em crise em sede de recurso) as liquidações de juros compensatórios são ilegais, por falta de verificação de um dos pressupostos consagrados no artigo 35.º da LGT, para o qual remete o artigo. 89.° do CIVA, qual seja não estar demonstrada a culpa da recorrida (sujeito passivo).”

 

52. Em conclusão, sendo inadmissível imputar à Requerente um juízo de censura na entrega de declarações de substituição de IVA para correcção, por indicação e instrução dos SIT, de imposto por aquela (Requerente) atempadamente deduzido, não estão reunidos os pressupostos para manter na ordem jurídica as liquidações de juros compensatórios e de mora controvertidas. Como tal, encontrando-se tais actos tributários feridos de ilegalidade por erro nos pressupostos de facto e de direito, devem, em consequência, ser integralmente anulados.

           

V. DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

53. Dispõe o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT, que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”. Tal norma permite, portanto, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º do RJAT.

 

54. A obrigação de pagamento de juros indemnizatórios tem o seu fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual do Estado, constituindo a contra face dos juros compensatórios a favor da administração fiscal. Assim, a natureza dos juros indemnizatórios é substancialmente idêntica à dos juros compensatórios, sendo, como estes, uma indemnização atribuída com base em responsabilidade civil extracontratual. Os juros indemnizatórios vencem-se a favor do contribuinte, destinando-se a compensá-lo do prejuízo provocado por um pagamento indevido de uma prestação tributária.

 

55. Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são os seguintes os requisitos do direito ao pagamento de juros indemnizatórios pela AT aos sujeitos passivos:

a) Que haja um erro num acto tributário de liquidação;

b) Que o erro seja imputável aos serviços;

c) Que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial;

d) Que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

56. Conforme resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22.05.2019, proferido no processo 1770/12.9BELRS, “cremos que a interpretação da expressão "erro imputável aos serviços" que melhor se estriba na letra da lei, considerando que a LGT e o CPPT não distinguem os conceitos de "erro" e de "vício", deve reconduzir-se a qualquer "ilegalidade" fundante da anulação, total ou parcial, do ato tributário”.

 

57. No caso em apreço resultou demonstrado que (i) as liquidações de juros de IVA emitidas pela AT e controvertidas neste processo são ilegais, por erro nos pressupostos de facto e de direito, e que (ii) o erro em causa resultou de instruções e orientações directas dos SIT à Requerente, (iii) tendo daí resultado o pagamento por esta de uma dívida tributária não devida.

 

58. Reconhece-se, assim, à Requerente o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante dos juros compensatórios e moratórios pagos em excesso, no valor de € 144.379,85, desde a data dos respectivos pagamentos até ao momento do efectivo reembolso desta quantia (cfr. artigo 43.º, n.º 1 da LGT e artigo 61.º do CPPT), a calcular pela Requerida em sede de execução de sentença.

 

VI. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente;
  2. Anular os actos de liquidação contestados pela Requerente nos presentes autos;
  3. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
  4. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

           

            Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 144.379,85.

 

VII. CUSTAS

 

            Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.060,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de Dezembro de 2023

 

A Árbitra Presidente,

 

 

Carla Castelo Trindade

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

Raquel Montes Fernandes

 

 

O Árbitro Adjunto,

 

 

José Nunes Barata

 

 



[1] A este respeito, veja-se, entre outros, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no caso C-405/19.