Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 379/2023-T
Data da decisão: 2023-12-18   Outros 
Valor do pedido: € 248.060,99
Tema: ASSB-Adicional de solidariedade sobre o setor bancário. Princípio da retroatividade da lei fiscal, da igualdade e da capacidade contributiva.
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SUMÁRIO:

I - A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição;

II - As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dr. Jesuíno Alcântara Martins e Drª Alexandra Mesquita (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

 

I.RELATÓRIO

1. A..., S.A., com o número único de matrícula, identificação fiscal e pessoa coletiva..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-...Lisboa, (doravante “Requerente”), tendo sido notificado, a 24 de Fevereiro de 2023, do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022..., contra a liquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário (doravante “ASSB”) efetuada através da guia n.º..., vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), bem como dos artigos 95.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”) e 99.º, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”), requerer a Constituição de Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do presente pedido, que  tem por objeto imediato o indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de ASSB n.º..., respeitante ao período de tributação de 2020, de onde resultou um valor a pagar de 248.060,99 Euros.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou regularmente constituído em 31 de julho de 2023, com a composição final.

 

2.A Requerente a fundamentar o pedido alega, entre o mais:

  1. A Requerente começa por demonstrar que o ASSB constitui, inequivocamente, um imposto.
  2. (…)  o ASSB foi criado pelo artigo 18.º e respetivo anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que procedeu à segunda alteração à LOE 2020, e que aprovou o Orçamento Suplementar para 2020 (“LOE Suplementar 2020”).
  3. Conforme resulta do artigo 1.º e do artigo 9.º do anexo VI da LOE Suplementar 2020, o ASSB foi criado com o propósito de reforço dos mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, operado através da consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (“FEFSS”) da receita arrecadada com a respetiva cobrança.
  4. Esta criação do ASSB, bem como a sua aplicação exclusiva ao sector bancário, foi justificada como forma de compensação pela isenção de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando, assim, supostamente, a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores, conforme estabelecido no n.º 2 do artigo 1.º do anexo VI da LOE Suplementar 2020.
  5. Para a Requerente, não obstante ter sido criado sob a ‘veste’ de um adicional à Contribuição sobre o Sector Bancário, o facto é que o ASSB preenche integralmente as notas típicas que definem o conceito de imposto, bem diferentes daquelas que correspondem ao conceito de tributo bilateral, onde se incluem então as contribuições financeiras a favor de entidades públicas. Por conseguinte, e tendo em conta todo o exposto, é claro que o ASSB é um imposto e um imposto especial sobre o sector bancário, como se concluiu na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 598/2022-T.
  6. Daí a sua ilegitimidade jurídica assentar em três vetores a saber: i) a sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal, e ainda, por desvio do poder tributário, violação do princípio da igualdade fiscal e da liberdade de empresa, incluindo as vertentes da capacidade contributiva e da tributação das empresas pelo lucro real; ii) a sua incompatibilidade com o Direito suprapositivo, i.e. com os princípios básicos ordenadores da praxis social; iii)a sua ilegalidade por violação da lei de valor reforçado que é a LEO, por haver violação do princípio geral da não consignação de receitas.
  7. (…) em relação à autoliquidação ora em crise, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal constante do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, (…) tendo em conta que o regime do ASSB apenas entrou em vigor no segundo semestre de 2020, mais precisamente a 25 de julho de 2020, com publicação em Diário da República a 24 de julho de 2020, o mesmo consagrou, no seu artigo 21.º, várias «Disposições transitórias e finais», as quais ditaram que a liquidação e pagamento do ASSB teria por referência (i) as contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do ASSB devido em 2020 e (ii) as contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do ASSB devido em 2021. Assim, pese embora o regime do ASSB tenha entrado em vigor apenas no segundo semestre de 2020, o mesmo prevê a tributação dos saldos do passivo dos meses compreendidos entre janeiro e junho de 2020, ou seja, do primeiro semestre.
  8. Como conclui na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 598/202-T, ao incidir sobre o apuramento dos saldos do passivo dos meses de janeiro a junho de 2020, o ASSB está a reportar-se a um facto tributário material passado, porquanto a atividade desenvolvida pelas entidades bancárias sujeitos passivos do imposto durante esses seis meses de 2020 já haviam decorrido integralmente quando a LOE Suplementar 2020 foi aprovada, publicada e entrado em vigor, sendo esta a primeira vertente ou dimensão da inconstitucionalidade com base no carácter retroativo.
  9. No que concerne ao desvio de poder tributário e violação do princípio da legalidade fiscal, para Requerente a técnica legislativa utilizada é merecedora de censura, de tentar habilidosa e artificialmente ligar o ASSB à CSB, viola o procedimento legislativo e o princípio da legalidade fiscal que resulta da conjugação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
  10. Apesar de o ASSB ter sido criado por lei, não se consegue entender qual a manifestação de capacidade contributiva das entidades bancárias que se visa atingir com o ASSB, violando-se assim o disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP.
  11. O ASSB é, assim, um imposto discriminatório incidente sobre o sector bancário, violador do princípio da igualdade, porquanto é clara a discriminação do sector bancário relativamente aos restantes sectores económicos da sociedade.
  12. Com a introdução do ASSB passou a exigir-se mais um imposto ao sector bancário, desta vez para o financiamento da Segurança Social, sem qualquer justificação possível mediante a consignação da receita do ASSB ao FEFSS, como se este sector da atividade económica estivesse em alguma situação de vantagem em sede de contribuições para a Segurança Social que pudesse, de alguma forma, ser entendido como justificativo, o que não se verifica.
  13. Além disso, o ASSB promove uma clara violação do princípio da igualdade, constante do artigo 13.º e 104.º da CRP, nas suas vertentes de proibição do arbítrio e de respeito pela capacidade contributiva que, conforme já ficou acima assinalado, pressupõe a obtenção de rendimento, a titularidade ou transmissão de património e/ou a utilização do rendimento ou património na aquisição de bens e serviços, tal foi decidido pelo Tribunal Arbitral no Processo 598/2022-T de 31.03.2022, e o mesmo se retira por analogia do acórdão do TC n.º 101/2023 de 16.03.2023.
  14. A Requerente alega, ainda, a desconformidade deste imposto com o Direito suprapositivo, i.e., com os princípios básicos ordenadores da praxis social, bem como dos princípios da especificação e não consignação de receitas.
  15. A Requerente conclui conforme parecer do Professor Casalta Nabais junto, como se segue:  1- Analisando a natureza do ASSB, não restam dúvidas de que estamos perante um tributo unilateral, um imposto”; 2- “Trata-se de um imposto especial porque incide sobre um grupo bastante limitado de contribuintes”; 3-“O ASSB também é inconstitucional por ser um imposto retroativo”; 4- O ASSB constitui um desvio de poder, violador da CRP”-“… uma das razões invocadas para a criação do ASSB – a isenção de IVA das actividades bancárias – não constitui uma vantagem mas antes uma desvantagem fiscal”; 5-“O ASSB viola o princípio da igualdade fiscal, pois o sector bancário nacional acaba assim vítima de uma discriminação inadmissível face aos restantes sectores de actividade económica sem a menos justificação ou fundamento, constituindo mais um imposto sobre o sector bancário”; 6- “O ASSB viola também o direito orçamental, uma vez que a LOE/2020 não respeita as regras da especificação e da não consignação das receitas públicas”;

 

3.A Requerida, na Resposta, alega em síntese:

  1. A AT não contesta a qualificação jurídica do ASSB como imposto, mas é um tributo que assume a natureza de imposto indireto, na medida em que visa compensar a não tributação em IVA da generalidade das operações financeiras.
  2. O referido imposto não viola o princípio da igualdade, uma vez que a razão de ser da isenção de IVA aplicada genericamente aos serviços financeiros não decorre, como na generalidade isenções de IVA, da prossecução de quaisquer objetivos de política económica, social ou ambiental, mas tão só da dificuldade em determinar o valor tributável em uma parte substancial das suas operações, algo que se mostrava particularmente desafiante nos anos 70, aquando da génese do IVA.
  3. Segundo o estudo que acompanhou a supracitada comunicação da Comissão Europeia de 2010[1], cerca de dois terços dos serviços financeiros não terão IVA associado porque operam com base num sistema de margem, o que torna muito difícil aplicar-lhes o método subtrativo indireto que caracteriza o IVA.
  4. O que permite enquadrar a afirmação do Requerente – em nossa opinião, e com o devido respeito, falaciosa – de que o sector financeiro é prejudicado com as isenções de IVA, porque, tratando-se de isenções incompletas, “não permitem a dedução do IVA suportado a montante nas aquisições de bens e serviços necessários à realização da atividade financeira”.
  5. E assim é que, quando o legislador decide atenuar ou eliminar uma delas, em particular quando tal isenção tem a sua razão de ser em limitações intrínsecas à mecânica do imposto (como é o caso da isenção de IVA nos serviços financeiros), o legislador está, na verdade, a repor igualdade, em vez de a constringir.
  6. Face ao que antecede, a incidência do ASSB sobre o setor financeiro, com o intuito de compensar a isenção de IVA que este atualmente aproveita, permite enquadrá-lo no contexto das atuais dinâmicas políticas e legislativas no sentido de reforçar a tributação indireta do setor bancário, tais como a revisão das regras do IVA no setor financeiro, ou como os impostos sobre as atividades financeiras e os impostos sobre as transações financeiras.
  7. Acresce que, como já antes foi assinalado, a tributação indireta que em Portugal incide sobre o setor financeiro, através do Imposto do Selo, deixa de fora elementos relevantes da atividade das instituições de crédito, como as transações financeiras, sendo que as operações de financiamento das instituições de crédito no mercado interbancário estão também isentas do Imposto do Selo, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS.

h.Segundo a Requerida também não há violação do princípio da capacidade contributiva porquanto o ASSB enquadra-se na tipologia de imposto sobre atividades financeiras, assumindo assim a natureza de imposto indireto e a argumentação que o Requerente desenvolve nesta sede avalia o ASSB na perspetiva de um imposto direto, olhando para a capacidade contributiva revelada pelas instituições financeiras.

  1. Porém, o ASSB tem como objetivo constituir um sucedâneo do IVA no setor financeiro, logo, a sua incidência dar-se-á sobre uma “manifestação mediata” de capacidade contributiva, um proxy que revele, indiretamente, a capacidade contributiva no estádio do consumo final.
  2. Vimos que o ASSB tem como objetivo compensar uma vantagem aferida em termos de carga fiscal global incidente sobre o setor das instituições de crédito associada à aplicação da isenção de IVA sobre um conjunto vasto de operações financeiras, que, como se viu, também são em, em certos casos, desoneradas do imposto do selo.
  3. E que, portanto, a manifestação de capacidade contributiva sobre que incide o ASSB, revela-se nos efeitos incrementais na atividade desenvolvida, induzidos pelos fundos obtidos de variadas fontes, expressos no passivo das instituições qualificadas como sujeitos passivos.
  4. Ou seja, ao contrário do que afirma o Requerente, não só não houve qualquer arbitrariedade na criação do ASSB, como a sua configuração permite atingir adequadamente as formas de expressão da capacidade contributiva que se propõe enquanto imposto que compensa a isenção do IVA nas operações financeiras, sendo também possível enquadrá-lo em experiências internacionais, algumas das quais, como a cooperação reforçada do FTT, em que o Estado português se encontra politicamente empenhado, pelo menos desde 2013, e que, de resto, propôs relançar durante a sua presidência do Conselho da UE, em 2021.
  5. Para a Requerida também não se verifica qualquer retroatividade, uma vez que o que se constata desde logo é que a base de incidência do ASSB para o primeiro semestre de 2020 é a que resulta dos artigos 3.º e 4.º do respetivo regime, por remissão expressa da al. a) do n.º 1 do artigo que acabamos de citar.
  6. Nos termos do artigo 3.º do regime do ASSB, a base de incidência do imposto coincide com o «passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos deduzido, quando aplicável, dos elementos do passivo que integram os fundos próprios (…)».
  7. Nos termos do n.º 4 do artigo 4.º do regime do ASSB, aquela base de incidência é «calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte.»
  8. Por esse efeito, o que releva na formação do facto tributário sujeito a ASSB é o momento do apuramento e aprovação das contas e não o «facto material de contabilisticamente ser apurada a existência de passivo».
  9. Que a formação do facto tributário no ASSB só se verifica com o apuramento e aprovação das contas, confirma-o o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19-06-2019, proferido no Processo n.º 02340/13/0BELRS (0683/17), que embora tenha como objeto a Contribuição sobre o Setor Bancário, é inteiramente transponível para o ASSB que com esta partilha a base de incidência.
  10. Forçoso é também concluir que a interpretação que o Tribunal Arbitral fez daquela norma transitória, a partir da qual concluiu pela sua desconformidade constitucional – designadamente, que o ASSB do primeiro semestre de 2020 «apenas tem como fundamento o facto material contabilístico do apuramento de saldos passivos, sem qualquer intervenção do Requerente ou dos seus representantes na aprovação desses saldos ou de quaisquer contas que permitam o seu apuramento.» - não encontra respaldo nos seus elementos literal e lógicos.
  11. Porquanto a base de incidência do ASSB respeitante ao primeiro semestre de 2020 corresponde ao “passivo apurado e aprovado” pelos sujeitos passivos nas suas contas intercalares, facto tributário que se objetiva e emerge na ordem jurídica com o apuramento e aprovação das contas, necessariamente posteriores à entrada em vigor da Lei nº. 27-A/2020, 24 de julho, e ao início de vigência do regime do ASSB.
  12. Em face do exposto, é forçoso concluir que, no momento em que entrou em vigor o regime do ASSB, ainda não tinha ocorrido facto que determina o pagamento do imposto.
  13. Pelo que não se verifica a violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal (art. 103º n.º 3 da CRP), nem do princípio da proteção da confiança (como se reforçará de seguida), não se podendo assacar ao ato impugnado o vício de inconstitucionalidade do ASSB.
  14. Finalmente a Requerida refuta as alegadas violações aos princípios da lei do enquadramento orçamental e do princípio geral da não consignação de receitas, nem da violação do princípio da especificação orçamental.

 

4.Por despacho de 4 de Outubro de 2023, o tribunal dispensou a realização da reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste (arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT, pelas razões neles constantes e se dão por reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos. No mesmo despacho foi conferida a faculdade à partes para produzirem alegações.

5.Por despacho de 5 de Outubro de 2023 foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:

Nos termos do previsto no n.º 3 do art.º 9.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária: “No caso de se verificar a substituição de árbitro, o tribunal arbitral decide se algum acto processual deve ser repetido em face da nova composição do tribunal, tendo em conta o estado do processo”.

Cumpre, nestes termos, na sequência da substituição de árbitro verificada na presente acção, apurar se se justifica que haja lugar a repetição de actos processuais praticados.

Nos presentes autos apenas houve lugar ao oferecimento de articulados.

Representando, estes, actos processuais para cuja produção, eficácia e interpretação, não se revela imprescindível a manutenção em juízo dos árbitros que se encontravam em exercício de funções no processo quando tais actos foram praticados, não se justifica que se repitam quaisquer actos processuais, prosseguindo a instância os seus demais e regulares termos.

Do presente despacho, notifiquem-se as partes.

Lisboa, 5 de Outubro de 2023

 

6.As partes produziram alegações.

 

 

II- SANEADOR

 

7.O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

Cabe apreciar e decidir.

 

 

III- FUNDAMENTOS

 

III-1- Matéria de facto

 

§1.º Factos dados como provados 

 

Consideram-se provados com relevo para a decisão da causa os seguintes factos:

  1. O Requerente é uma instituição de crédito residente em Portugal, do tipo previsto na al. a) do artigo 3.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, e cujo objeto social consiste no exercício da atividade bancária, incluindo todas as operações compatíveis com essa atividade e permitidas por lei.
  2. Enquanto Banco, o Requerente viu-se sujeito ao pagamento do ASSB, criado e disciplinado pelo artigo 18.º e pelo anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que procedeu à segunda alteração da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020, doravante designada por “LOE 2020”).
  3. (…) em 15 de Dezembro de 2020, o Requerente procedeu à autoliquidação do ASSB de 2020, através da entrega da declaração Modelo 57 (cfr. Doc. 1).
  4. Nesse mesmo dia, o Requerente procedeu ao pagamento do imposto apurado na referida autoliquidação, no valor de 248.060,99 Euros (cfr. Doc. 2).
  5. Conforme estabelecido na Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, bem como na Portaria n.º 191/2020, de 10 de agosto, que viria a aprovar o modelo oficial do ASSB (em concreto, o Modelo 57), a autoliquidação em causa teve por base a média dos saldos finais do passivo de cada mês relativo às contas do primeiro semestre de 2020.
  6. Discordando, assim, da autoliquidação efetuada, o Requerente apresentou reclamação graciosa, em 14 de Dezembro de 2022, tendo a AT indeferido a mesma apenas por alegada falta de competência para se pronunciar sobre o fundamento da inconstitucionalidade invocado pelo Requerente.

 

 

§2.º Factos não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

§3.º Fundamentação da matéria de facto   

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade dada como provada com base nos documentos juntos ao Pedido e no processo administrativo junto pela Autoridade tributária com a Resposta.

 

 

III-2-1- MATÉRIA DE DIREITO

 

§1.º Enquadramento legal

O adicional de solidariedade sobre o setor bancário (ASSB) foi criado pelo artigo 18.º da Lei n.º 27-A/ 2020, de 29 de julho, que altera a Lei do Orçamento do Estado para 2020 (Lei n.º 2/2020, de 31 de março) e cujo regime jurídico consta do Anexo VI a essa Lei.

O ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores (artigo 1.º, n.º 2) e tendo como sujeitos passivos as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais, em Portugal, de instituições de crédito que não tenham a sua sede principal e efetiva da administração em território português e as sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1).

O ASSB tem como âmbito de incidência objetiva o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço apurado pelos sujeitos passivos, com as especificações constantes do artigo 3.º.

O artigo 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020 refere-se à quantificação da base de incidência, definindo, no seu n.º 1, como passivo o “conjunto dos elementos reconhecidos em balanço que, independentemente da sua forma ou modalidade, representem uma dívida para com terceiros”, com as exceções constantes das diversas alíneas desse número, e  como instrumento financeiro derivado o que seja qualificado como tal pelas normas de contabilidade aplicáveis, com exceção dos instrumentos financeiros derivados de cobertura ou cujas posições em risco se compensem mutuamente (artigo 4.º, n.ºs 1, 2 e 3). O n.º 4 desse artigo 4.º esclarece ainda que [a] base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte.

Os artigos 5.º, 6.º. 7.º e 8.º referem-se, respetivamente, às taxas aplicáveis à base de incidência e aos procedimentos de liquidação e cobrança, e o artigo 9.º, sob a epígrafe “Consignação da Receita”, declara que a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social

Importa, ainda, ter em consideração a disposição transitória do artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 27-A/ 2020, que é do seguinte teor:

Artigo 21.º

Disposição transitória

1 — Em 2020 e 2021, a liquidação e o pagamento do adicional de solidariedade sobre o setor bancário previsto no regime que consta do anexo VI à presente lei efetua-se de acordo com as seguintes regras:

a) A base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, e nas contas relativas ao segundo semestre de 2020, no caso do adicional de solidariedade devido em 2021, publicadas em cumprimento da obrigação estabelecida no Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2019, de 31 de janeiro, que atualiza o enquadramento normativo do Banco de Portugal sobre os elementos de prestação de contas;

b) A liquidação é efetuada pelo próprio sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que deve ser enviada até ao dia 15 de dezembro de 2020 e 2021, respetivamente;

[…].

§2.º Quanto à ilegalidade dos atos tributários impugnados

 

  1. Quanto à qualificação jurídica do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário

Esta questão foi desenvolvidamente analisada na Decisão Arbitral seguindo uma tese que, por ter a nossa adesão, passamos a reproduzir.

(…) Em tese geral, o imposto constitui uma “prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida por uma entidade pública com o propósito de angariação de receita”, ao passo que a taxa se caracteriza como “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa efetivamente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se essas duas espécies de tributos pelo seu carácter de unilateralidade ou bilateralidade (cfr., na linha de outros Autores, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 214 e 240).

Por seu lado, a constitucionalização das contribuições financeiras resultou da alteração introduzida no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Lei Fundamental, pela revisão constitucional de 1997, que autonomizou as contribuições financeiras a favor das entidades públicas como uma terceira categoria de tributos.

A doutrina tem caracterizado as contribuições financeiras como um tertium genus de receitas fiscais, que poderão ser qualificadas como taxas coletivas, na medida em que visam retribuir os serviços prestados por uma entidade púbica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. Como referem Gomes Canotilho/Vital Moreira, “a diferença essencial entre os impostos e estas contribuições bilaterais é que aqueles visam financiar as despesas públicas em geral, não podendo, em princípio, ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas (responsáveis pelas prestações públicas de que as contribuições são contrapartida), aos quais ficam consignadas, não podendo, portanto, ser desviadas para outros serviços ou despesas” (Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1095).

“(…)

“Como se deixou dito, o ASSB tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e constitui receita geral do Estado que é integralmente consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

E, assim, ao contrário do que sucede com a Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), que foi consensualmente caracterizada como uma contribuição financeira (cfr., por último o acórdão do STA de 25 de janeiro de 2023, Processo n.º 01622/20, e a jurisprudência nele citada), não pode ser atribuída essa mesma natureza ao ASSB, na medida em que não existe conexão entre os objetivos que presidem à sua criação e uma qualquer responsabilidade acrescida do setor bancário, como também não há uma relação específica de proximidade entre o grupo de sujeitos passivos e ónus de custear o serviço público de segurança social, nem subsiste qualquer benefício para o grupo por efeito da carga fiscal com que é diferenciadamente onerado. E, nesses termos, não se verificam os requisitos típicos de homogeneidade, responsabilidade e utilidade de grupo que possam justificar a caracterização do ASSB como contribuição financeira (idem, págs. 91-96).

E, por maioria de razão, está excluído que o ASSB possa integrar o conceito de taxa, uma vez que não estão em causa qualquer dos pressupostos enumerados no artigo 4.º, n.º 2, da LGT que permitam evidenciar o carácter de bilateralidade do tributo.

Em face a todo o exposto, o ASSB constitui um imposto especial sobre o sector bancário, que, não obstante apresentar um âmbito de incidência semelhante à Contribuição sobre o Sector Bancário (CSB), não se limita a estabelecer uma nova taxa sobre a matéria coletável dessa contribuição, nem um novo imposto sobre a coleta, e, nesse sentido, não corresponde a um adicional ou a um adicionamento, mas a um imposto autónomo (sobre o conceito de adicional e de adicionamento, cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, pág. 79; no sentido da qualificação do ASSB como imposto, Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., pág. 92, e a decisão arbitral proferida no Processo n.º 504/2021-T).

Realce-se, aliás, que a Requerida na Resposta não põe em causa que se trata de um imposto, mas, na sua ótica, será um imposto indireto que visa compensar o IVA, o que será analisado mais adiante.             

 

B)  Inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal

A Requerente começa por assacar ao regime do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário a inconstitucionalidade por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, em relação ao imposto que se torna devido em 2020, por considerar que, por efeito da norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, o adicional é calculado, nesse caso, por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020, e, sendo assim, o facto gerador do pagamento do imposto verifica-se em momento anterior à entrada em vigor da lei, que ocorreu no dia seguinte à sua publicação.

A Autoridade Tributária contrapõe que, nos termos dos artigos 3.º e 4.º do Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, a base de incidência do ASSB respeitante ao primeiro semestre de 2020 corresponde ao “passivo apurado e aprovado” pelo que o facto tributário se objetiva na ordem jurídica com o apuramento e aprovação das contas, e necessariamente em momento posterior à entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, não se verificando a alegada violação do princípio proibição da retroatividade da lei fiscal.

Vejamos.

Também aqui vamos seguindo a Decisão arbitral atrás mencionada, como se segue:

“Na revisão constitucional de 1997, o legislador constituinte consagrou, no artigo 103.º, n.º 3, a regra da proibição da retroatividade da lei fiscal desfavorável, que já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da proteção da confiança dos cidadãos inscrito no Estado de Direito. Com essa alteração, a Lei Fundamental pretendeu expressar uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis que criem ou agravem impostos, tornando constitucionalmente ilícito o imposto que produza efeitos retroativos. (…)”.

“(…), o ASSB, nos termos da disposição homóloga do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, igualmente incide sobre o “passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos”, estatuindo o artigo 4.º, n.º 4, quanto à quantificação da base de incidência, que “a base de incidência apurada nos termos do artigo 3.º e dos números anteriores é calculada por referência à média anual dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas anuais do próprio ano a que respeita o adicional, tal como aprovadas no ano seguinte”.

No entanto, a norma transitória do artigo 21.º da mesma Lei, determina, na sua alínea a), que, no caso do adicional de solidariedade devido em 2020, “a base de incidência apurada nos termos dos artigos 3.º e 4.º do regime é calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020”.

O acórdão do STA de 19 de junho de 2019 (Processo n.º 023/40/13), analisando a CSB aplicada ao ano de 2011, à luz da referida disposição do artigo 3.º, alínea a), da Lei n.º 55-A/2010, afastou a violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, “(…)” tendo concluído que, (…) neste condicionalismo, que não há aplicação da lei nova a factos tributários integralmente verificados ou cujos efeitos estivessem integralmente produzidos e verificados no domínio da lei antiga, ou seja, antes da entrada em vigor da lei nova.

Todavia, um tal entendimento não é transponível para o adicional de solidariedade devido em 2020, segundo a regulamentação que consta da citada norma transitória do artigo 21.º da Lei n.º 27-A/2020, que, como se viu, prevê que a base de incidência seja calculada por referência à média semestral dos saldos finais de cada mês, que tenham correspondência nas contas relativas ao primeiro semestre de 2020.

O adicional é calculado com base numa média relativa ao primeiro semestre de 2020, e embora deva haver correspondência entre os saldos de cada mês, nesse semestre, e os saldos que constem das contas anuais relativas ao mesmo semestre, o certo é que a eventual divergência entre o saldo médio que serviu de base à liquidação do imposto e os saldos mensais aprovados nas contas anuais, apenas poderá justificar a correção aritmética, por parte da Autoridade Tributária, com base na verificação de erros ou omissões que determinem a exigência de um valor do adicional superior ao liquidado, tal como prevê o artigo 6.º, n.º 2, do Anexo VI à Lei n.º 27-A/2020.

Ou seja, a exigida correspondência entre o saldo médio relativo ao primeiro semestre e os saldos finais de cada mês considerados nas contas anuais não salvaguarda a retroatividade do imposto, visto que a aprovação das contas referentes a 2020, incluindo as do primeiro semestre, em atenção ao disposto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 5, do Código das Sociedades Comerciais, só pode ocorrer após o encerramento de cada exercício anual, e, portanto, após o período de tributação a que respeita o imposto (cfr. Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, pág. 481).

Tendo em consideração que, no que se refere ao adicional devido em 2020, o sujeito passivo deve efetuar a liquidação do imposto até 15 de dezembro de 2020, não será possível ao contribuinte certificar, através das contas anuais, a média de saldo que serviu de base à liquidação, e, sendo assim, não há qualquer dúvida que o facto tributário que origina o imposto é o mero apuramento contabilístico da média dos saldos do passivo relativamente ao primeiro semestre.

Como explicita, a citada decisão arbitral n.º 504/2021-T à data da liquidação do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, ainda se não encontra encerrado o exercício nem aprovadas as contas, pelo que o facto tributário que a norma erige para efeito de liquidação não é a aprovação das contas, mas o facto material da verificação de existência do passivo através dos dados inscritos na contabilidade, e que necessariamente ocorre ainda antes da entrada em vigor da Lei n.º 27-A/2020.

“(…) Por conseguinte, a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, pelo que a liquidação do adicional de solidariedade sobre o sector bancário, relativa ao ano de 2020, enferma de ilegalidade.”

 

C) Violação do princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva.

Alega também a Requerente que o ASSB é um imposto discriminatório incidente sobre o setor bancário com clara discriminação deste setor em relação aos restantes setores da sociedade e, por isso, violador do princípio da igualdade, nas suas vertentes de proibição do arbítrio e do respeito pela capacidade contributiva. 

Sobre este tema podemos ler na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 598/2022-T que:

“Conforme refere Casalta Nabais, o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 11ª edição, Coimbra, 2021, págs. 154-155). (…)”.

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo».

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

Aplicando o exposto ao caso em análise, pondera-se naquela decisão que: “(…) o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras e incide sobre instituições de crédito sediadas em território português e filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigos 1.º e 2.º).

“(…) e que não obstante a similitude à Contribuição para ao Sector Bancário, (…) o ASSB não pode ser entendido como uma tributação acessória ou adicional do CSB, nem constitui uma contribuição de estabilidade financeira.

“(…)

Como se concluiu no acórdão do STA de 19 de Junho de 2019 (Processo n.º 02340/13), a motivação legislativa constante dos diplomas que regularam a contribuição para o sector bancário e o Fundo de Resolução legitima a ilação de que a contribuição visou, em primeiro lugar e desde o início, atenuar as consequências resultantes das intervenções públicas no sector financeiro, face à situação de crise financeira então desencadeada no âmbito desse mesmo sector, reconduzindo-se a um instrumento de apoio na prevenção dos inerentes riscos do sistema, não se destinando a colmatar necessidades genéricas de financiamento do Estado.

“(…)

Contrariamente, o ASSB é um verdadeiro imposto que constitui receita geral do Estado e se encontra consignada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, e, embora destinado a fazer face de modo indistinto às necessidades de financiamento da segurança social, se carateriza como um imposto sectorial na medida em que incide exclusivamente sobre o sector financeiro.

“(…)

O artigo 1.º, n.º 2, do Regime do ASSB, já transcrito, refere ainda que o tributo tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social, como forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores.

Mas dificilmente (…) se compreende a justificação fornecida pelo legislador quando pretende associar a sujeição das instituições de crédito ao ASSB à despesa fiscal decorrente da isenção aplicável a serviços e operações financeiras.

A isenção de IVA relativamente a operações bancárias e financeiras está expressamente prevista na Diretiva 2006/112/CE (artigo 135.º) e artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA limita-se a efetuar a transposição dessa regra para o direito interno. E, por outro lado, o conteúdo das isenções não pode ser alterado pelos Estados Membros, dado que estão em causa conceitos autónomos de direito europeu que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA, devendo ainda ser objeto de uma interpretação restritiva, na medida em que constituem derrogações ao princípio geral segundo o qual o imposto sobre o valor acrescentado é cobrado sobre todas as prestações de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo (cfr. acórdãos do TJUE, nos Processos n.ºs C-348/1987 e C-455/05).

“(…)

Na situação prevista no artigo 135.º da Diretiva IVA, como explica ainda Sérgio Vasques, trata-se de “isenções simples ou incompletas que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante, pelo que o sujeito passivo, não liquidando IVA imposto sobre a operação isenta, não deduz o imposto em que incorra nas aquisições destinadas à sua realização”. E, nesse sentido, “o sujeito passivo passa a ocupar posição idêntica à do consumidor final, suportando na sua esfera o imposto relativo às suas aquisições”, pelo que a isenção não representa um verdadeiro benefício para o sujeito passivo, como sucede com a generalidade das isenções de imposto, na medida em que acaba por suportar o peso do imposto por via das suas aquisições, originando um imposto oculto pela incorporação do IVA incorrido a montante no preço dos bens e serviços prestados a terceiros (O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Coimbra, 2015, págs. 312-313; em idêntico sentido, Angelina Tibúrcio, Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coimbra, 2014, pág. 160).

Por outro lado, como refere o Autor há pouco citado, as isenções de IVA relativas a serviços financeiros são motivadas por razões de ordem técnica que respeitam à dificuldade em apurar o valor acrescentado inerente a essas operações e, em especial, no que se refere à determinação da matéria coletável e do montante do IVA dedutível (ob. cit., págs. 318-319, e ainda o acórdão do TJUE, no Processo n.º C-455/05, considerando 24.)

Num outro plano de análise, importa ainda reter que a isenção de IVA para serviços e operações financeiras tem como contraponto a sujeição das operações financeiras a imposto do selo, nos termos da verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, sendo sintomático, quanto ao nível de dependência entre os dois impostos, que o artigo 1.º, n.º 2, do Código do Imposto do Selo exclua do âmbito de incidência objetiva do imposto “as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”. Como assinala Saldanha Sanches, “o imposto do selo assume a sua vocação de tributar aquilo que não pode ser tributado de outra forma” e ao contribuinte assiste o direito de ser tributado da forma que melhor se adequa ao normal funcionamento da economia de mercado e ao princípio da tributação segundo a capacidade contributiva do sujeito passivo (Manual de Direito Fiscal, 3ª edição, Coimbra, pág. 435).

Em todo este contexto, não é possível determinar objetivamente o critério de diferenciação que conduziu o legislador a sujeitar as instituições de crédito a um imposto especial sobre o sector bancário, nem é possível discernir qual a sua real fundamentação.

Encontrando-se a medida legislativa descrita como sendo um tributo destinado a compensar a isenção de IVA de que beneficia o setor financeiro, não se compreende que, simultaneamente, sejam excluídas outras categorias de atividades que se encontram igualmente isentas e que poderão revelar idêntica ou superior capacidade contributiva. E não é tido em devida consideração, na aplicação da medida, que as isenções previstas na Diretiva, e transpostas para o direito interno pelo artigo 9.º do Código do IVA, são de carácter obrigatório, e, no que se refere aos serviços e operações financeiras previstos no artigo 135.º da Diretiva, essas isenções são motivadas pelas dificuldades práticas de apuramento do valor acrescentado e de aplicação do imposto, e não por qualquer propósito de favorecimento fiscal. O legislador desconsidera ainda que a isenção simples, que é aplicável ao caso, não confere o direito à dedução do imposto a montante, e não representa, por isso, uma efetiva vantagem para o sujeito passivo, que acaba por suportar a incidência do imposto através das suas aquisições. Além de que não se tem em linha de conta que essa isenção, no direito nacional, já é contrabalançada pelo imposto do selo, que abrange a generalidade das operações financeiras, tal como sucede, em geral, na legislação dos Estados Membros, em que as operações relativamente às quais se afasta a aplicação da diretiva, são sujeitas a impostos especiais (cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, citado, pág. 317).

Em todo este condicionalismo, a criação do ASSB como um imposto especial incidente sobre o sector bancário, como forma de compensar a isenção de IVA, configura-se como uma diferenciação arbitrária na medida em que o critério utilizado não apresenta um mínimo de coerência nem se encontra materialmente justificado.

Ainda quanto ao princípio da capacidade contributiva e no caso do ASSB, como conclui o mesmo Autor, não está em causa qualquer modalidade de tributação do rendimento, mas tão só a sujeição a imposto de uma parte das componentes do passivo. Do mesmo modo que não se trata da oneração de atos de despesa, que pudesse reconduzir-se a um imposto sobre atividades financeiras ou sobre transações financeiras. E, por outro lado, ainda que pudesse dizer-se, de um ponto de vista contabilístico e financeiro, que os elementos do passivo que são objeto de tributação por via do ASSB integram o balanço dos sujeitos passivos, não poderá entender-se que estamos aí perante modalidade de tributação do património.

A ausência de uma cabal correspondência entre o ASSB e um concreto índice de valoração de capacidade contributiva coloca em causa a viabilidade constitucional do imposto, na medida em que impossibilita o estabelecimento de qualquer tipo de relação causal entre o objeto da tributação que é imposto aos sujeitos passivos e um efetivo incremento de capacidade contributiva, sobretudo quando não está em causa uma contrapartida pela prevenção de riscos sistémicos em que as instituições de crédito possam estar envolvidas (como sucedia com a CSB), mas uma exclusiva medida de angariação de receita.

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 217/15, o princípio da capacidade contributiva assume um valor paramétrico fundamentalmente como condição da tributação, de molde a impedir que determinado imposto atinja uma riqueza ou rendimento que não existe, vedando a exação de uma capacidade de gastar que verdadeiramente não se verifica. Em idênticos termos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 142/2004 consigna que a capacidade contributiva preenche o critério unitário da tributação, entendendo-se esse critério como sendo aquele em que “a incidência e a repartição dos impostos se deverá fazer segundo a capacidade económica ou capacidade de gastar (-) de cada um e não segundo o que cada um eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício)”.

No caso do ASSB, não se denota qualquer relação entre a incidência real do imposto e os fatores que possam revelar uma maior capacidade contributiva, quando é certo, como se deixou dito, que o critério de repartição do imposto, na hipótese, corresponde a uma lógica de solidariedade assente no falso pressuposto de que as instituições de crédito poderão suportar um agravamento da carga fiscal porque se encontram isentas de IVA relativamente aos serviços financeiros que prestam.

Em conclusão:

A norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é inconstitucional, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.

As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.”

Transpondo o exposto para o caso em análise conclui-se que, em consequência, os atos de liquidação de ASSB relativos aos períodos de tributação de 2020 impugnados (a autoliquidação n.º ...), bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, são ilegais.

 

III-2.2- Vícios de conhecimento prejudicado

Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.

 

III-2-3-Juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação do ASSB, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

IV – DECISÃO

Termos em que se julga neste tribunal coletivo:

a) Declarar inconstitucional a norma transitória do artigo 21.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, na parte em que se refere ao cálculo do imposto relativo ao primeiro semestre de 2020, por violação do princípio da proibição da retroatividade dos impostos, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição;

b) Declarar inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva;

c) Declarar ilegal e anular o ato tributário de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Sector Bancário referente ao período de tributação de 2020, no valor de € 248.060,99 bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida;

d) Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

V-VALOR DA CAUSA

Fixa-se o valor do processo em € 248.060,99 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).

 

VII. CUSTAS

O valor das custas é fixado em € 4.284,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), a cargo da Requerida, de acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do RJAT e no artigo 4.º, n.º 5 do RCPAT.

 

VIII. NOTIFICAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 3, do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do Tribunal competente para o julgamento da impugnação, para efeitos do recurso previsto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional.

 

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 18 de dezembro de 2023

 

O Tribunal Coletivo,

 

 

Fernanda Maçãs (Árbitro presidente)

 

 

Dr. Jesuíno Alcântara Martins (Árbitro vogal)

 

Drª. Alexandra Mesquita (Árbitro vogal)