SUMÁRIO:
I. Não é violado o princípio da irrepetibilidade de procedimentos inspectivos externos previsto no artigo 63.º, n.º 4 da LGT, na redacção conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, se o primeiro procedimento de inspecção tributária se tiver limitado à consulta, recolha de documentos ou elementos, ainda que os serviços de inspecção tenham detectado nessa sede irregularidades que são posteriormente objecto de correcção num segundo procedimento inspectivo externo.
II. O direito à dedução e o reembolso de imposto são mecanismos fundamentais do IVA que concretizam o princípio da neutralidade e que apenas podem ser limitados nos termos previstos e admitidos pela Directiva IVA.
III. É dedutível o IVA suportados pelos sujeitos passivos com a realização de actividades preparatórias se existirem elementos objectivos que demonstrem uma intenção efectiva e genuína de exercício futuro de actividades económicas correspondentes a operações tributáveis e não isentas.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Francisco Nicolau Domingos e Arlindo José Francisco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A... S.A., NIF ..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa (“Requerente”), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação dos actos de liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.ºs 2022..., 2022..., 2022... e 2022..., referentes respectivamente aos períodos de tributação 201803T, 201806T, 201809T, 201812T, com um valor a pagar, respectivamente, de € 136.849,11, € 69.580,03, € 21.865,63 e € 58.851,39, perfazendo um total a pagar de € 287.146,16.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral feito em 30 de Março de 2023 foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 19 de Maio de 2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 6 de Junho de 2023, sendo que naquela mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
5. Em 10 de Julho de 2023, a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo, tendo-se defendido por impugnação e requerido a sua absolvição de todos pedidos.
6. Em 11 de Julho de 2023, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Naquele despacho foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentarem alegações finais, direito que a Requerente e a Requerida exerceram, respectivamente, em 18 de Julho de 2023 e em 4 de Setembro de 2023.
II. SANEAMENTO
7. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras excepções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
8. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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O objecto social da Requerente consiste na compra e venda de imóveis para revenda e bens mobiliários, arrendamento de imóveis e aluguer de móveis, realização, organização e gestão de eventos culturais conexos com o património e exploração económica dos recursos cinegéticos – cfr. Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”) junto aos autos pela Requerida;
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A Requerente encontra-se enquadrada para efeitos de IRC, desde 01.01.2007, no regime geral de tributação e em sede de IVA, desde 07.11.2013, no regime normal trimestral por opção – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Desde 07.11.2013 que a Requerente passou a ser um sujeito passivo misto com afectação real de todos os bens – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em sede de IVA, a faturação relativa aos arrendamentos é efectuada com isenção de imposto, enquanto a faturação das prestações de serviços é feita com liquidação de IVA à taxa normal – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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No exercício de 2018, a Requerente encontrava-se a construir um hotel rural na Herdade B..., por si detida – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em 17.05.2019 foi emitido pelo município de ... o alvará de autorização de utilização n.º .../2019, destinado ao hotel rural, do qual foi dado conhecimento ao serviço de finanças respectivo em 18.06.2019 e ao instituto de Turismo de Portugal em 02.08.2019 – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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A Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Acções Especiais (“DSIFAE”) realizou uma acção externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos, junto da Requerente, com extensão aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em Novembro de 2020, a DSIFAE deslocou-se à Herdade B... com o objectivo de aferir/confirmar a ordem de grandeza dos montantes investidos na construção do hotel rural – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Como não se verificou possível realizar a visita à Herdade B..., que se encontrava completamente murada/cercada e sem campainha que permitisse solicitar a entrada, teve a mesma de ser agendada pelos inspectores da DSIFAE e os responsáveis da Requerente – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em 04.12.2020, realizou-se a visita à Herdade B..., na companhia da directora de serviços da Requerente, tendo os inspectores da DSIFAE constatado a existência de um edifício de grande dimensão e estruturas adjacentes, composto por 11 suites, biblioteca, lavandaria, várias salas de jantar e de convívio, um lago artificial, SPA, piscina de 400 m2, onde é possível desfrutar de várias actividades, como a equitação e a caça – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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No âmbito desta acção externa a DSIFAE solicitou diversos elementos contabilísticos dos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, nomeadamente balancetes analíticos, extractos de conta, documentos de suporte a lançamentos (faturas) e modo de apuramento dos rendimentos constantes das declarações de rendimentos, bem como das declarações periódicas de IVA – cfr. documento n.º 1 junto aos autos pela Requerente;
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No âmbito desta acção externa a DSIFAE concluiu pela “necessidade de regularização do IVA indevidamente deduzido pela A..., quer no que respeita à operação relacionada com a Herdade B... quer com a Herdade C...”, sublinhando que “é de livre iniciativa da sociedade proceder ou não à regularização do imposto deduzido indevidamente” – cfr. documento n.º 2 junto aos autos pela Requerente;
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Não foram emitidos actos de liquidação no seguimento da acção externa da DSIFAE;
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As conclusões daquela acção externa da DSIFAE foram vertidas na informação DSIFAE/71/2021, relativa ao Despacho n.º DI2020..., de 26.10.2020 – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em 24.05.2021 foi efectuado o licenciamento para Hotel Rural de 5 estrelas e o Registo Nacional de Empreendimentos Turísticos, através do registo ... na Plataforma de dados abertos georreferenciados do Turismo de Portugal;
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A referida informação foi enviada pela DSIFAE à Direcção de Finanças de Lisboa, em 01.07.2021, com a comunicação n.º ...2021..., a qual foi remetida aos serviços de inspecção tributária em 13.08.2021, com a comunicação n.º ...2021... – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Em 27.09.2021 e em 25.10.2021, a Requerente emitiu à sociedade D..., S.A. e ao Sr. E..., respectivamente, facturas pela prestação de serviços de exploração do hotel rural – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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A informação enviada pela DSIFAE deu origem à acção inspectiva externa de âmbito parcial, ao IRC e IVA do exercício de 2018, determinada pela ordem de serviço n.º OI2021... – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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Os actos de inspecção, que decorreram nas instalações da empresa responsável pela contabilidade da Requerente, foram iniciados em 27.12.2021, com a assinatura da ordem de serviço, e tiveram a sua conclusão em 04.11.2022 – cfr. RIT junto aos autos pela Requerida;
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No seguimento deste procedimento inspectivo foram realizadas as seguintes correcções aritméticas em sede de IVA:
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No seguimento deste procedimento inspectivo foram emitidas as seguintes liquidações adicionais de IVA:
Período
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N.º de Liquidação
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Valor a pagar (€)
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201803T
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2022...
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136.849,11
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201806T
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2022...
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69.580,03
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201809T
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2022...
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21.865,63
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201812T
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2022...
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58.851,39
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Total
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287.146,16
|
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Em 30.03.2023, a Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.
§2 – Factos não provados
9. Com relevo para a decisão do presente processo, não existem factos que se tenham considerado como não provados.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
10. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
12. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente da prova documental junta aos autos pela Requerente e do PA junto aos autos pela Requerida, que foram apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
13. Quanto aos concretos factos dados como provados com base no teor do RIT, cumpre sublinhar que resulta do artigo 76.º, n.º 1 da LGT uma presunção de veracidade das informações prestadas pela inspecção tributária, já que estas fazem fé, quando fundamentadas e baseadas em critérios objectivos. Neste sentido referiu o Tribunal Central Administrativo Sul no acórdão proferido em 26.06.2014, no âmbito do processo n.º 07148/13, que “(i) O valor probatório do relatório de inspecção está condicionado pela aplicação do princípio do contraditório. (ii) Assim, o valor probatório do relatório da inspecção tributária só poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas.”. Assim, os factos do RIT que não foram contestados pela Requerente e que reúnem os referidos critérios, consideraram-se como provados nos termos e com os fundamentos acima fixados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Ordem de conhecimento dos vícios
14. Resulta do artigo 124.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do CPPT aplicável ex vi artigo 19.º, n.º 1, alínea a) do RJAT que nos casos de vícios que conduzam à mera anulabilidade e relativamente aos quais não foi estabelecida uma relação de subsidiariedade pela impugnante, deverá a ordem da respectiva apreciação ser determinada de acordo com o prudente critério do julgador, de forma a assegurar a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
15. No presente processo a Requerente contestou a legalidade dos actos de liquidação de IVA com base na violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo e com base em erro da AT ao considerar que o IVA foi indevidamente deduzido, sem entre eles estabelecer qualquer relação de subsidiariedade. Uma vez que ambos os vícios são conducentes à anulabilidade dos actos de liquidação de IVA, será respeitada a ordem fixada pela Requerente.
§2 – Violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo
16. Relativamente a este vício, cumpre essencialmente apreciar se se verificou ou não uma violação do n.º 4 do artigo 63.º da LGT que consagra o princípio da irrepetibilidade de procedimentos de inspecção tributária externos.
17. A Requerente fundamentou a sua posição, em síntese, com base nos seguintes argumentos:
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A qualificação dada pela AT a um procedimento não tem carácter vinculativo, devendo ser alterada se vier a revelar-se que o conteúdo dos actos praticados for contrário à qualificação inicialmente atribuída;
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A DSIFAE deslocou-se às instalações da Requerente, examinou elementos da contabilidade, fez diligências em entidades públicas tendentes a obter informação sobre o licenciamento de construção do hotel, visitou as instalações do hotel que estava em construção, apurou o imposto em dívida e convocou a Requerente para regularizar a sua situação tributária de acordo com o apuramento efectuado;
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A actuação da DSIFAE consistiu num típico procedimento inspectivo externo de comprovação e verificação, visando o controlo do cumprimento das obrigações tributárias da Requerente;
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Posteriormente a Requerente foi objecto de novo procedimento de inspecção tributária externo sem que tenha existido qualquer decisão, fundamentada em factos novos, como exige o artigo 63.º, n.º 4 da LGT;
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A violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo determina a anulabilidade das liquidações adicionais que resultaram do mesmo.
18. A Requerente defendeu a improcedência do pedido, em suma, com base nos seguintes argumentos:
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A DSIFAE não tem competências inspectivas, pelo que da sua actuação não resultam projectos de relatório e/ou conclusões de relatório inspectivo que originem actos de liquidação;
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A DSIFAE limitou-se a consultar e recolher informação junto da Requerente e a emitir a correspondente informação para os serviços de inspecção tributária competentes procederem às correcções que se mostrassem devidas, pelo que não foi violado o princípio da proporcionalidade;
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No limite a DSIFAE teria realizado um procedimento de informação nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea c) do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), sendo que a proposta de regularização do IVA considerado indevidamente deduzido tem cabimento no princípio da colaboração, previsto no artigo 9.º daquele regime e no artigo 59.º da LGT;
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Após a alteração promovida pela Lei 114/2017, o n.º 4 do artigo 63.º LGT passou a permitir a realização de mais do que um procedimento externo de inspecção tributária respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, especificamente naquelas situações – como acontece na situação em apreço – em que o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos;
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Não se verificou, assim, qualquer violação do princípio da irrepetibilidade de procedimentos de inspecção tributária externos.
19. Determina-se no n.º 1 do artigo 2.º do RCPITA que “[o] procedimento de inspecção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infracções tributárias”.
20. O conjunto de actuações materiais da AT que configuram actos inspectivos encontra‑se densificado no n.º 2 do artigo 2.º do RCPITA, nos seguintes termos:
“a) A confirmação dos elementos declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;
b) A indagação de factos tributários não declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;
c) A inventariação e avaliação de bens, móveis ou imóveis, para fins de controlo do cumprimento das obrigações tributárias;
d) A prestação de informações oficiais, em matéria de facto, nos processos de reclamação e impugnação judicial dos actos tributários ou de recurso contencioso de actos administrativos em questões tributárias;
e) O esclarecimento e a orientação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários sobre o cumprimento dos seus deveres perante a administração tributária;
f) A realização de estudos individuais, sectoriais ou territoriais sobre o comportamento dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a evolução dos sectores económicos em que se insere a sua actividade;
g) A realização de perícias ou exames técnicos de qualquer natureza tendo em conta os fins referidos no n.º 1;
h) A informação sobre os pressupostos de facto dos benefícios fiscais que dependam de concessão ou reconhecimento da administração tributária ou de direitos que o sujeito passivo, outros obrigados tributários e demais interessados invoquem perante aquela;
i) A promoção, nos termos da lei, do sancionamento das infracções tributárias;
j) A cooperação, nos termos das convenções internacionais ou regulamentos comunitários, no âmbito da prevenção e repressão da evasão e fraude;
l) Quaisquer outras acções de averiguação ou investigação de que a administração tributária seja legalmente incumbida.”.
21. No que respeita à classificação do procedimento inspectivo quanto aos seus fins, determina-se no artigo 12.º, n.º 1 do RCPITA que este se divide em:
“a) Procedimento de comprovação e verificação, visando a confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários;
b) Procedimento de informação, visando o cumprimento dos deveres legais de informação ou de parecer dos quais a inspecção tributária seja legalmente incumbida.”.
22. Relativamente ao lugar onde se realizam os actos de inspecção, estabelece-se no artigo 13.º do RCPITA que o procedimento pode classificar-se em:
“a) Interno, quando os atos de inspeção se efetuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento;
b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”.
23. Tendo presente o enquadramento legal acabado de citar, verifica-se que as acções externas de “consulta, recolha e cruzamento de elementos” que foram praticadas pela DSIFAE correspondem a condutas de natureza investigatória que visaram a observação de realidades tributárias e a verificação do cumprimento das obrigações tributárias da Requerente. Apesar de a DSIFAE não ter concretizado correcções e emitido actos de liquidação, não significa que a sua actuação não consista efectivamente na prática de um procedimento inspectivo externo de comprovação e verificação.
24. Neste preciso sentido concluiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 28.01.2023, no âmbito do processo n.º 468/2022-T, que versou a mesma factualidade ora em análise, ainda que por referência ao IVA liquidado/deduzido pela Requerente no exercício de 2017, ao referir o seguinte:
“Ora, tendo em conta os critérios expostos, ter-se-á de considerar que, contrariamente ao que sustenta a AT, em 2020 ocorreu uma ação de inspeção externa, visando a Requerente e os mesmos exercícios a que se reportam os atos tributários objeto do presente processo arbitral, o que, de resto, foi assumido no próprio relatório da ação inspetiva que refere o seguinte: “O referido procedimento de inspeção resultou das conclusões vertidas na informação DSIFAE/71/2021, relativa ao despacho n.º Dl2020..., de 26.10.2020, da DSIFAE, que teve por âmbito uma ação externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos, junto do sujeito passivo A..., com extensão aos anos 2017, 2018, 2019 e 2020” (RIT, página 6).
Igualmente não procede o argumento da Requerida de que os atos de 2020 não podem ser considerados integrantes de um procedimento inspetivo externo, por falta de competências para tal, porquanto é nosso entender que não é à Autoridade Tributária que compete definir o que deve ser objeto de procedimento interno ou externo com base nas competências dos seus diversos departamentos ou direções, na medida em que o que preside à sua distinção é a afectação dos direitos e garantias do sujeito passivo quando é objeto de atividade inspetiva. A ser defensável o contrário, isso implicaria que a AT poderia escolher internamente o organismo ou direção para definir ou não se estamos perante uma ação inspetiva, manipulando assim, como é evidente no caso concreto, os prazos de caducidade envolvidos e disciplinados pelo artigos 45.º e 46.º da LGT.
Conclui-se, deste modo, que ocorreram duas ações inspetivas respeitantes ao mesmo sujeito passivo (a Requerente), imposto e período de tributação, verificando-se:
A) A inexistência de decisão do dirigente máximo do serviço a determinar a primeira (por ter sido iniciada pela DSIFAE);
B) A existência de uma decisão do dirigente máximo do serviço a determinar a segunda, sem que haja factos novos.
E tudo isto numa dupla e grave violação do disposto no artigo 63.º/4 da LGT.”.
25. No acórdão acabado de citar, entendeu o Tribunal Arbitral que a AT violou o princípio da irrepetibilidade de procedimentos inspectivos externos, embora sem considerar que essa ilegalidade se projectava nos actos de liquidação que foram emitidos na sequência do segundo procedimento inspectivo.
26. Sem prejuízo do ali decidido, entende o presente Tribunal Arbitral que no caso aqui em análise não se verifica que tal princípio tenha sido violado, o que se deve ao facto de ser diferente a redacção do artigo 63.º, n.º 4 da LGT aplicável à data dos factos em apreciação. É que com a entrada em vigor da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, aquela norma passou a dispor o seguinte:
“Artigo 63.º
Inspecção
(…)
4 - O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.”. (negrito nosso)
27. Portanto, se um dos procedimentos inspectivos externos se tiver limitado a permitir a “consulta, recolha de documentos ou elementos”, e ainda que nessa sede a AT tenha detectado irregularidades no cumprimento das obrigações tributárias pelo sujeito passivo, não se verifica impedida a realização futura de outro procedimento inspectivo externo que, esse sim, determine o concreto apuramento da situação tributária, a materialização de correcções ao imposto apurado e a eventual emissão de actos de liquidação. Dito de outro modo, a realização anterior daqueles actos não impede que posteriormente a AT pratique os actos necessários à emanação de um acto decisório com impacto na esfera jurídica do sujeito passivo, isto é, à emanação de um acto tributário stricto sensu (liquidação).
28. Ora, esta é precisamente a situação que se verifica no presente processo, já que a actuação da DSIFAE se limitou à consulta e recolha de elementos junto da Requerente, não tendo sido realizado qualquer relatório nem sido proferidas liquidações, tendo as informações recolhidas sido remetidas à Direcção de Finanças de Lisboa para esses precisos fins.
29. Pelo exposto, julga-se improcedente o vício de violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspectivo invocado pela Requerente.
§3 – Dedução indevida de IVA
30. Quanto a este vício, cabe apreciar se o IVA suportado pela Requerente no período de 2018 com a construção do hotel rural na Herdade B... foi ou não indevidamente deduzido.
31. Para fundamentar a ilegalidade dos actos de liquidação a Requerente invocou, em suma, a seguinte argumentação:
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Não corresponde à verdade a afirmação da AT que a construção do hotel rural foi uma solução para a Requerente poder construir em área protegida e afectar o imóvel a uso particular;
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O hotel rural foi construído pela Requerente, tendo a câmara municipal de Viana do Alentejo emitido em Maio de 2019 o alvará de autorização de utilização do imóvel em causa para hotelaria;
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O hotel rural foi registado em 24.05.2021 na plataforma de dados abertos georreferenciados do Turismo de Portugal como hotel rural de 5 estrelas;
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O facto de terem existido anteriores projectos para a Herdade B... e de se ter verificado um atraso na abertura do hotel não constitui fundamento para negar o exercício do direito à dedução;
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No período de 2018 não só o hotel ainda não estava finalizado, como o início da pandemia em 2020 retardou ainda mais a data de abertura;
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Em 2019 e 2020 ainda foram suportados 10% do preço de custo do hotel, pelo que não faz sentido negar o direito à dedução do IVA suportado com a construção do mesmo em 2018 com base no argumento de que o hotel já devia ter iniciado a sua actividade;
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Se a AT entende, o que não está sequer indiciado, que finda a construção do hotel este está a ser utilizado para fins pessoais e não para fins empresariais, as correcções deviam ter sido feitas nos termos do artigo 26.º do Código do IVA através da correspondente regularização anual das deduções efectuadas.
32. Na sua resposta a Requerida defendeu a improcedência do pedido arbitral, em síntese, com recurso aos seguintes argumentos:
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Sendo a Requerente um sujeito passivo misto, teria de aplicar a disciplina do artigo 23.º do Código do IVA relativamente aos bens e serviços de utilização mista;
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Por conseguinte, tem de haver-se como devida a correcção não contestada ao montante de IVA deduzido, nos períodos de 1803T, 1806T, 1809T e 1812T, por violação do disposto nos artigos 20.º e 23.º, ambos do CIVA, no montante de € 26.533,36, resultante da dedução indevida do montante de imposto;
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Quanto à correcção referente ao IVA deduzido com o activo imobilizado, no montante de € 295.669,57, também não procedem os argumentos da Requerente;
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Conforme expresso no RIT, resulta das regras de experiência comum que a Requerente, apesar de ter faturado alguns outputs, nunca exerceu de facto actividade económica no hotel rural;
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Como foi verificado pela DSIFAE, o Hotel apresentava evidentes sinais de utilização para fins privados, pelo que se considerou vedada a possibilidade de deduzir o IVA suportado na sua construção e conservação;
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A Requerente não faz prova da data da efectiva abertura do Hotel, não faz prova de qualquer reserva efectuada por entidade independente, ou que a sinalética em falta, entretanto tenha sido colocada, ou ainda que as demais evidências apontadas pelos serviços de inspecção terão igualmente deixado de existir;
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A Requerente não cumpriu o ónus da prova que sobre si recaía, nos termos do artigo 74.º, n.º 1 da LGT;
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A existência do Hotel e respectiva classificação de cinco estrelas atribuída pelo Turismo de Portugal não foram postos em causa pelos serviços de inspecção tributária, o que se verificou foi que o mesmo estaria a ser utilizado para fins alheios à actividade tributada, não se registando indícios de estar a ser ou de haver a intenção de vir a ser exercida uma actividade tributada, tendo em conta os acessos, a inexistência de sinalética, informação promocional;
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Ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de questionar, pelo menos em parte, as deduções efectuadas cujas facturas não continham os elementos essenciais para o controlo do imposto, na medida em que não identificam o tipo de serviço e/ou o local onde foi prestado;
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A importância dos formalismos das facturas para o direito à dedução decorre do disposto no artigo 19.º, n.ºs 2 e 6 do Código do IVA, bem como do artigo 178.º, alínea a) da Directiva IVA, onde se impõe que, para poder exercer o direito à dedução, o sujeito passivo deve possuir uma factura emitida nos termos legalmente estabelecidos.
33. O sistema de funcionamento do IVA assenta na dedução do imposto suportado a montante pelos sujeitos passivos com a aquisição de bens e serviços (inputs) destinados à realização de actividades económicas, desde que estas operações sejam tributáveis ou confiram isenção completa (outputs). Nos casos em que exista um diferencial negativo entre o IVA suportado e liquidado é atribuído ao sujeito passivo um crédito de imposto, garantindo-se assim que a oneração das operações ao longo da cadeia económica apenas atinge a medida do valor que cada operador acrescenta aos bens e serviços.
34. É por isto que se afirma que “[o] mecanismo do crédito de imposto e o encadeamento da liquidação-dedução servem, portanto, para assegurar a neutralidade típica do IVA, prevenindo o efeito cumulativo e garantindo que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final”, cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, p. 334.
35. É pelo facto de o direito à dedução ser um princípio elementar do mecanismo de funcionamento do IVA e de se pretender garantir a neutralidade nas operações que se determina na Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (“Directiva IVA”) que o mesmo não pode ser limitado pelas legislações nacionais, senão nos termos ali expressamente previstos e admitidos.
36. No artigo 168.º da Directiva IVA, configura-se o direito à dedução nos seguintes termos:
“Artigo 168.º
Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:
a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;
b) O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.º e o artigo 27.º;
c) O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade com o artigo 2.º, n.º 1, alínea b), subalínea i);
d) O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.º e 22.º;
e) O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado–Membro.”.
37. Na legislação nacional, o direito à dedução do IVA é regulado no Código deste imposto, ao que aqui importa e na redacção vigente à data dos factos, nos seguintes termos:
“Artigo 19.º
Direito à dedução
1 – Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;
b) O imposto devido pela importação de bens;
c) O imposto pago pelas aquisições de bens ou serviços abrangidas pelas alíneas e), h), i), j) e l) do n.º 1 do artigo 2.º;
d) O imposto pago como destinatário de operações tributáveis efectuadas por sujeitos passivos estabelecidos no estrangeiro, quando estes não tenham no território nacional um representante legalmente acreditado e não tenham facturado o imposto;
e) O imposto pago pelo sujeito passivo à saída dos bens de um regime de entreposto não aduaneiro, de acordo com o n.º 6 do artigo 15.º
2 – Só confere direito a dedução o imposto mencionado nos seguintes documentos, em nome e na posse do sujeito passivo:
a) Em faturas passadas na forma legal;
b) No recibo de pagamento do IVA que faz parte das declarações de importação, bem como em documentos emitidos por via eletrónica pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos quais constem o número e a data do movimento de caixa.
c) Nos recibos emitidos a sujeitos passivos enquadrados no «regime de IVA de caixa», passados na forma legal prevista neste regime.
3 – Não pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura.
4 – Não pode igualmente deduzir-se o imposto que resulte de operações em que o transmitente dos bens ou prestador dos serviços não entregar nos cofres do Estado o imposto liquidado, quando o sujeito passivo tenha ou devesse ter conhecimento de que o transmitente dos bens ou prestador de serviços não dispõe de adequada estrutura empresarial susceptível de exercer a actividade declarada.
5 – No caso de faturas emitidas pelos próprios adquirentes dos bens ou serviços, o exercício do direito à dedução fica condicionado à verificação das condições previstas no n.º 11 do artigo 36.º.
6 – Para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passadas na forma legal as faturas que contenham os elementos previstos nos artigos 36.º ou 40.º, consoante os casos.
7 – Não pode deduzir-se o imposto relativo a bens imóveis afectos à empresa, na parte em que esses bens sejam destinados a uso próprio do titular da empresa, do seu pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma.
8 – Nos casos em que a obrigação de liquidação e pagamento do imposto compete ao adquirente dos bens e serviços, apenas confere direito a dedução o imposto que for liquidado por força dessa obrigação.
Artigo 20.º
Operações que conferem o direito à dedução
1 – Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
b) Transmissões de bens e prestações de serviços que consistam em:
I) Exportações e operações isentas nos termos do artigo 14.º;
II) Operações efectuadas no estrangeiro que seriam tributáveis se fossem efectuadas no território nacional;
III) Prestações de serviços cujo valor esteja incluído na base tributável de bens importados, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 17.º;
IV) Transmissões de bens e prestações de serviços abrangidas pelas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 e pelos n.os 8 e 10 do artigo 15.º;
V) Operações isentas nos termos dos n.os 27) e 28) do artigo 9.º, quando o destinatário esteja estabelecido ou domiciliado fora da Comunidade Europeia ou que estejam directamente ligadas a bens, que se destinam a ser exportados para países não pertencentes à mesma Comunidade;
VI) Operações isentas nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro.
2 – Não confere, porém, direito à dedução o imposto respeitante a operações que dêem lugar aos pagamentos referidos na alínea c) do n.º 6 do artigo 16.º”.
38. Retomando ao presente caso, a questão que se coloca é a de saber se assiste ou não à Requerente o direito à dedução do IVA e ao consequente reembolso do imposto suportado com a construção do hotel rural na Herdade B..., isto é, com a realização de investimentos iniciais ainda antes de ter sido iniciada qualquer actividade económica.
39. No RIT a AT nega o direito à dedução com base no artigo 20.º do Código do IVA por considerar que a Requerente utilizou o hotel rural para fins particulares e não para a realização de operações sujeitas e não isentas, bem como por considerar que inexistem elementos objectivos que demonstrem a intenção do sujeito passivo na prossecução de uma efectiva actividade económica.
40. No que respeita ao primeiro dos referidos fundamentos, a AT enumera no RIT um conjunto de factos que, no seu entender, evidenciam uma ausência de actividade económica numa fase em que o hotel rural já estaria (alegadamente) apto a funcionar, por um lado, e uma utilização do imóvel para fins particulares. Acontece que aquela ausência é justificada pela AT através da acção externa da DSIFAE ocorrida em 2020, altura em que o hotel rural ainda não se encontrava completamente finalizado – veja-se que em 2019 e 2020 ainda foi suportado pela Requerente um custo de aproximadamente 10% face ao preço de construção.
41. A ausência de actividade económica é também afirmada pela circunstância de as primeiras facturas por prestações de serviços terem sido emitidas em Setembro e Outubro de 2021 à sociedade D..., S.A. e ao Sr. E... que, segundo a AT, têm ligações à Requerente e ao seu administrador. Sem prejuízo, certo é que a AT não colocou em causa a veracidade das prestações de serviços tituladas pelas referidas facturas, não reputando como falsa a facturação nem como simuladas as referidas operações. A circunstância de a Requerente e aquelas entidades estarem de algum modo relacionadas não é, por si só, fundamento de desconsideração das operações em causa, nas quais a Requerente liquidou o IVA que se afigurava devido.
42. Acresce ainda que a AT afirma que o hotel rural foi utilizado com finalidades pessoais e particulares, contudo, para além de não provar tal facto, não invocou a regularização das deduções relativas a imóveis não utilizados em fins empresariais, conforme previsto no artigo 26.º do Código do IVA. Com efeito, na fundamentação das correcções que fez a AT limitou-se a negar o direito à dedução do IVA nos termos do artigo 20.º do Código do IVA, com fundamento na inexistência de nexo entre as operações a montante e a realização de prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas. O que se revela incoerente já que, tal como se viu, a AT não afastou verdadeiramente a materialidade das prestações de serviços tituladas pelas facturas emitidas pela Requerente.
43. Relativamente ao segundo fundamento utilizado pela AT, cumpre apreciar se o direito à dedução e o crédito de imposto – que, tal como se referiu, são mecanismos essenciais ao funcionamento do IVA –, operam ou não quanto a actos preparatórios, isto é, relativamente a investimentos suportados pelos sujeitos passivos ainda antes do início das respectivas actividades económicas.
44. Em resposta à questão, sublinha Sérgio Vasques com recurso à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no acórdão INZO que:
“(…) o princípio da neutralidade exige que os actos preparatórios realizados por um sujeito passivo com vista ao exercício de uma actividade económica devem ser considerados económicos eles também. Em última análise, se a restituição do imposto fosse limitada ao momento em que um negócio entra na fase operacional e a actividade da empresa se materializa em operações tributáveis, introduzir‑se-ia uma diferença de tratamento injustificada entre as actividades que exigem investimentos iniciais elevados e aquelas que os dispensam, ou entre empresas que se constituem com o objectivo de lançar novos projectos e aquelas que os lançam estando já em actividade. Depois (…) o princípio da segurança jurídica exclui que a expectativa legítima dos contribuintes seja infundadamente lesada pela administração tributária. Assim, não se pode admitir que a administração aceite o registo de uma empresa como sujeito passivo de IVA para lhe vir negar essa qualidade vários anos depois, em virtude de circunstâncias que escapam por completo ao controlo da empresa, exigindo o pagamento do imposto incorrido a montante que entretanto lhe tenha sido restituído.
Os princípios da neutralidade e da segurança jurídica aconselhavam, portanto, que a actividade preparatória desenvolvida pela INZO fosse reconhecida ela própria como económica e que em consequência se mantivesse a restituição do IVA feita à empresa”, cfr. Sérgio Vasques, O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 143-144.
45. Esta jurisprudência foi sendo consolidada e reforçada pelo TJUE ao longo do tempo, como deu conta o Tribunal Central Administrativo Sul, no acórdão proferido em 29 de Abril de 2021, no âmbito do processo n.º 372/10.9BELLE, ao sumariar os referidos desenvolvimentos da seguinte forma:
“45. Como o Tribunal de Justiça já afirmou nos acórdãos Rompelmann (…) (n.º 23), e de 29 de Fevereiro de 1996, INZO (C-110/94, Colect., p. I-857, n.º 16), o princípio da neutralidade do IVA quanto à carga fiscal suportada pela empresa impõe que as primeiras despesas de investimento efectuadas tendo em vista a formação de uma empresa sejam consideradas actividades económicas, e seria contrário a esse princípio que as referidas actividades só tivessem início no momento em que a empresa é efectivamente explorada, quer dizer, no momento em que surge o rendimento tributável. Qualquer outra interpretação do artigo 4.º da Sexta Directiva oneraria o operador económico com a despesa do IVA no âmbito da sua actividade económica sem lhe dar a possibilidade de o deduzir, nos termos do artigo 17.º, e faria uma distinção arbitrária entre as despesas de investimento efectuadas antes da exploração efectiva de uma empresa e as efectuadas no decurso da referida exploração.
46. O artigo 4.º da Sexta Directiva não se opõe, no entanto, a que a administração fiscal exija que a intenção declarada de iniciar as actividades económicas que dão origem a operações tributáveis seja confirmada por elementos objectivos. Neste contexto, há que sublinhar que a qualidade de sujeito passivo só é definitivamente adquirida se a declaração de intenção de iniciar as actividades económicas projectadas foi feita de boa-fé pelo interessado. Em situações fraudulentas ou abusivas, em que, por exemplo, o interessado simulou desenvolver uma actividade económica especial mas procurou, na realidade, fazer entrar no seu património privado bens que podem ser objecto de dedução, a administração fiscal pode pedir, com efeitos retroactivos, a restituição das quantias deduzidas, uma vez que essas deduções foram concedidas com base em falsas declarações (acórdãos, já referidos, Rompelmann, n.º 24, e INZO, n.ºs 23 e 24).
47. Daqui resulta que quem tem a intenção, confirmada por elementos objectivos, de iniciar de modo independente uma actividade económica na acepção do artigo 4.º da Sexta Directiva e para esse fim efectua as primeiras despesas de investimento deve ser considerado um sujeito passivo. Actuando como tal, essa pessoa tem portanto, de acordo com os artigos 17.º e segs. da Sexta Directiva, o direito de deduzir imediatamente o IVA devido ou pago sobre as despesas de investimento efectuadas para os fins das operações projectadas que concedem o direito à dedução, sem ter de esperar o início da exploração efectiva da sua empresa”.
Mais recentemente, veja-se o Acórdão de 12.11.2020, ITH Comercial Timişoara, C-734/19, EU:C:2020:919, onde se diz:
“29 Com a sua primeira questão, alíneas a) a i), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 167.º, 168.º, 184.º e 185.º da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que o direito a dedução do IVA pago a montante sobre bens, no caso em apreço bens imóveis, e serviços adquiridos com vista a efetuar operações tributáveis se mantém quando os projetos de investimento inicialmente previstos são abandonados ou se, nesse caso, é necessário proceder a uma regularização desse IVA.
(…) 34 A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que o direito a dedução se mantém, em princípio, adquirido, nomeadamente, mesmo que, posteriormente, em razão de circunstâncias alheias à sua vontade, o sujeito passivo não faça uso dos referidos bens e serviços que deram lugar a dedução no âmbito de operações tributadas (Acórdão de 28 de fevereiro de 2018, Imofloresmira — Investimentos Imobiliários, C‑672/16, EU:C:2018:134, n.º 40 e jurisprudência aí referida).
35 Quanto às circunstâncias alheias à vontade do sujeito passivo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que não cabe à Administração Fiscal apreciar o mérito dos motivos que levaram um sujeito passivo a renunciar à atividade económica inicialmente prevista, uma vez que o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados destas, desde que as referidas atividades estejam, em princípio, elas próprias sujeitas ao IVA (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 19, e de 17 de outubro de 2018, Ryanair, C‑249/17, EU:C:2018:834, n.º 23).
(…) 37 Assim, é suficiente que o sujeito passivo tenha efetivamente tido a intenção de utilizar os bens e/ou os serviços em questão para realizar as atividades económicas a título das quais exerceu o seu direito de dedução (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 24; de 29 de fevereiro de 1996, INZO, C‑110/94, EU:C:1996:67, n.º 17; de 8 de junho de 2000, Breitsohl, C‑400/98, EU:C:2000:304, n.º 39; e de 17 de outubro de 2018, Ryanair, C‑249/17, EU:C:2018:834, n.º 18).
38 É certo que a Administração Fiscal pode pedir ao sujeito passivo que prove que a sua intenção é confirmada por elementos objetivos e pode, em situações fraudulentas ou abusivas em que o sujeito passivo simulou querer desenvolver uma atividade económica concreta, mas procurou, na realidade, fazer entrar no seu património bens que podem ser objeto de dedução, exigir, com efeitos retroativos, a restituição dos montantes deduzidos, pois tais deduções foram obtidas mediante falsas declarações (v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de fevereiro de 1985, Rompelman, 268/83, EU:C:1985:74, n.º 24; de 29 de fevereiro de 1996, INZO, C‑110/94, EU:C:1996:67, n.ºs 23 e 24; e de 8 de junho de 2000, Breitsohl, C‑400/98, EU:C:2000:304, n.º 39 e jurisprudência aí referida)”. (nosso sublinhado)
Em termos de prova, como se refere no já citado Acórdão do TJUE de 19.02.1996, Inzo/Belgische Staat, C-110/94, EU:C:1996:67, n.º 23: “… compete a quem solicite a dedução do IVA provar que as condições para beneficiar dessa dedução estão preenchidas e que o artigo 4.º não se opõe a que a administração fiscal exija que a intenção declarada de começar actividades económicas que dão origem a operações tributáveis seja confirmada por elementos objectivos”.
Portanto, resulta deste contexto que um sujeito passivo de IVA pode deduzir imposto relativo aos chamados atos preparatórios do exercício da sua atividade, sendo certo que terá de ficar demonstrada, justamente, a efetividade de tal intenção de exercer a atividade em causa.”.
46. Portanto, resulta da jurisprudência do TJUE que a dedução do IVA suportado com actividades preparatórias não é deferido para o momento em que se inicia o desenvolvimento da actividade económica e a obtenção de rendimentos tributáveis, bastando para o efeito que o sujeito passivo demonstre uma intenção, confirmada por elementos objectivos, de iniciar de modo independente uma actividade económica que dê origem a operações tributáveis.
47. Ora, no presente caso é possível extrair da matéria de facto acima provada um conjunto de elementos de natureza objectiva que certifica a existência de uma intenção efectiva da Requerente no exercício futuro de uma actividade económica nos termos enunciados pelo TJUE.
48. Em 2018, a Requerente realizou obras no imóvel tendo em vista a construção e exploração de um hotel rural na Herdade B... . Obras essas que não ficaram logo concluídas em 2018, tendo-se protelado a conclusão da construção do hotel até aos anos de 2019 e 2020, em que Requerente ainda suportou 10% do custo de construção conforme já referido.
49. Em Maio de 2019 foi emitido pela Câmara Municipal de ... o alvará de utilização do imóvel como hotel rural, o que significa que a Requerente, a par da realização das obras, procedeu às diligências necessárias para assegurar o início da sua actividade.
50. Em virtude do forte condicionamento e até mesmo paralisação que a pandemia da COVID-19 provocou nas empresas do sector da hotelaria, só no ano de 2021 é que a Requerente iniciou a sua actividade, tendo emitido em Setembro e Outubro desse ano as primeiras facturas pelos serviços de exploração do hotel rural.
51. Em 24 de Maio de 2021, o imóvel foi registado na plataforma de dados abertos georreferenciados do Turismo de Portugal como hotel rural 5 estrelas, cuja classificação foi posteriormente confirmada em auditoria realizada por aquela entidade em 13 de Abril de 2022. Esta avaliação realizada por uma entidade externa independente permite asseverar a aptidão do hotel rural para o desenvolvimento da actividade económica visada pela Requerente.
52. Aqui chegados, conclui-se pela existência de factos objectivos que demonstram uma genuína intenção da Requerente na prossecução de uma actividade económica que, de resto, chegou de facto a ser exercida. Consequentemente, a actividade preparatória de construção do hotel rural em si considera tem de ser reconhecida ele própria como actividade económica da Requerente, prevalecendo o direito à dedução do IVA suportado a montante nos termos dos artigos 19.º e 20.º do Código do IVA.
53. Em face do exposto, julga-se procedente a ilegalidade imputada pela Requerente aos actos de liquidação de IVA contestados no presente processo, na parte em que concretizaram as correcções referentes ao “IVA de imobilizado deduzido no exercício, no montante de € 295.669,57, de acordo com o disposto no artigo 20.º do CIVA”.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente;
-
Anular os actos de liquidação de IVA contestados pela Requerente nos termos acima fixados;
-
Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 328.037,00.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 5.814,00, a suportar pela Requerida, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2023
A Árbitra Presidente,
Carla Castelo Trindade
O Árbitro Adjunto,
Francisco Nicolau Domingos
O Árbitro Adjunto,
Arlindo José Francisco