Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 296/2023-T
Data da decisão: 2024-02-01   Outros 
Valor do pedido: € 376.519,76
Tema: CSR - Contribuição de Serviço Rodoviário; Pressupostos processuais; Competência dos tribunais arbitrais para apreciar actos de repercussão; Legitimidade dos repercutidos para suscitar a ilegalidade dos actos de liquidação de impostos especiais de consumo.
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SUMÁRIO:

            I – A CSR, durante algum tempo legalmente autonomizada do ISP, a partir do qual nasceu e ao qual voltou, constituiu sempre um pseudónimo deste – e, portanto, sempre foi um imposto.   

            II – Tendo sido formulados pedidos de declaração de ilegalidade dos actos de repercussão da CSR e de actos de liquidação desta por parte de Requerentes que não são sujeitos passivos de ISP, importa aferir preliminarmente a possibilidade de o Tribunal arbitral se pronunciar sobre uns e sobre outros.       

III – Uma vez que a competência dos Tribunais arbitrais se circunscreve, no aqui relevante, à avaliação de actos de liquidação, os actos de repercussão são, qua tale, inarbitráveis.

IV – Os únicos factos relevantes para apurar a legitimidade das Requerentes para impugnar os actos de liquidação da CSR são os referentes às relações estabelecidas com os sujeitos passivos que intervieram nesses actos.

V – Havendo um regime especial de revisão no Código dos Impostos Especiais de Consumo, para o qual remetia o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, o círculo dos potenciais impugnantes dos actos de liquidação da CSR coincide necessariamente com o círculo dos potenciais credores do reembolso delimitado no artigo 15.º, n.º 2, do CIEC.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 20 de Abril de 2023, na sequência da presunção de indeferimento tácito de um pedido de promoção de revisão oficiosa apresentado em 13 de Dezembro de 2022 junto da Alfândega do Jardim do Tabaco, A..., S.A., com o NIPC …, com sede na Rua …, …, Braga (Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
  2. Pretendia que fosse declarada “a ilegalidade dos atos de repercussão da CSR [Contribuição de Serviço Rodoviário] consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021 e, bem assim, das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração [Sic] Tributária e Aduaneira com base nas DIC [Declaração de Introdução no Consumo] submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, no montante total de € 376.519,76 (trezentos e setenta e seis mil, quinhentos e dezanove euros e setenta e seis cêntimos).
  3. Em 6 de Junho, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) apresentou requerimento, dirigido ao Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), nos seguintes termos:

A AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT), notificada em 26/04/2023 do pedido de constituição de tribunal arbitral no processo supramencionado, apresentado por “A..., S.A.”, vem informar, que analisado o pedido não detetou a identificação de qualquer ato tributário. Identificação que, aliás, também não consta da plataforma do Centro de Arbitragem Tributária.

Tendo em conta, que

a) a competência dos tribunais arbitrais, que funcionam no CAAD, abrange exclusivamente a apreciação direta da legalidade de ato(s) de liquidação ou de ato(s) de segundo ou terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de ato(s) daquele tipo, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e como se depreende das referências expressas que se fazem no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT ao n.º 2 do artigo 102.º do CPPT, e que,

b) sem a identificação, por parte dos interessados, do ato tributário, cuja ilegalidade invoca, o dirigente máximo da AT não pode exercer a faculdade prevista no artigo 13.º do RJAT.

Solicita-se que seja(m) identificado(s) os atos de liquidação cuja legalidade o requerente pretende ver sindicada, entendendo-se que o termo inicial do prazo para o exercício da faculdade prevista no artigo 13º do RJAT só ocorre após a notificação da identificação, em concreto, do(s) ato(s) de liquidação cuja ilegalidade é suscitada.

  1. Nomeados os árbitros que constituem o presente Tribunal Arbitral em 12 de Junho de 2023, e não tendo nem a Requerente, nem a Requerida, suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 30 desse mês.
  2. Tendo o Presidente do CAAD entendido que seria o Tribunal Arbitral a entidade competente para a pronúncia sobre o requerido pela AT, foi o requerimento referido em 3. integrado nos autos. Porém, sendo ele dirigido a entidade alheia ao Tribunal Arbitral Colectivo, entendeu este que a pretensão da Requerida poderia ser-lhe apresentada na sua resposta, razão pela qual, em 10 de Julho, foi proferido despacho a convidar a AT a, querendo, apresentá-la e solicitar a produção de prova adicional no prazo de 30 dias.
  3. Em 26 de Setembro, a AT apresentou resposta – em que, entre o mais, suscitou as excepções adiante apreciadas e, para o caso da sua improcedência, solicitou a intervenção provocada da “Fornecedora de Combustíveis” à Requerente (a B..., SA) – e juntou o processo administrativo (PA).
  4. Em 7 de Dezembro, foi proferido despacho que, entre o mais, prorrogava o prazo para a prolação da decisão e concedia prazo à Requerente para se pronunciar sobre os obstáculos ao possível conhecimento de fundo, nos seguintes termos:  

Em conformidade com as alíneas a) e b) do artigo 16.º, e a alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do RJAT, e porque o cumprimento do princípio do contraditório poderá ser melhor assegurado por escrito, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo e na determinação das regras a aplicar concede-se à Requerente o prazo de 20 dias para se pronunciar, querendo, sobre:

- a arbitrabilidade da (i)legalidade da CSR;

- a (in)competência material do tribunal arbitral para se pronunciar sobre o regime da CSR;

- a (invocada) ineptidão da petição inicial;

- a destacabilidade da liquidação da CSR da liquidação de ISP;

- a (im)possibilidade de se fazer a ligação entre as facturas apresentadas e as declarações de introdução no consumo – e, logo, um qualquer acto específico de liquidação;

- a sua qualificação como sujeito passivo para efeito do disposto no artigo 15.º do CIEC;

- a competência dos tribunais arbitrais para decidirem da ilegalidade de actos de repercussão;

- a duplicidade da presunção da repercussão dos montantes da CSR pagos a montante e a não presunção de qualquer repercussão a jusante;

- a distorção introduzida pela temperatura de referência na medição dos volumes de combustíveis introduzidos no consumo e efectivamente comercializados e as suas implicações na repercussão da CSR;

- a distorção introduzida pelo reembolso obtido em sede de ISP, incluindo a CSR, no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93º-A, do CIEC;

- a legitimidade da Requerente para accionar o pedido de revisão oficiosa e a jurisdição arbitral;

- a tempestividade de tal pedido – atento o fundamento invocado, atenta a entidade a que o dirigiu, e atenta a incerteza sobre a contagem do dies a quo dos actos de pagamento correspondentes a cada uma das específicas liquidações globais;

- a (im)possibilidade de estabelecer uma correspondência específica entre a liquidação dos montantes calculados de CSR por grosso e a sua repercussão a retalho;

- a inexistência de actos de introdução no consumo por parte da sua “fornecedora de combustíveis”, no período identificado, na entidade aduaneira a quem a Requerente dirigiu o pedido de revisão oficiosa;

- a possível interferência no apuramento dos actos de liquidação da possível desconformidade entre entidade que aparece como responsável pela introdução no consumo e a entidade que comercializa o combustível já onerado com a CSR;

- a possibilidade de se suscitar a intervenção principal provocada da … - B..., S.A., e a possibilidade de esta poder reclamar as importâncias pagas a título de CSR.

 

  1. Em 15 de Dezembro, a Requerente juntou aos autos uma “Declaração” da B..., SA, assinada por “C…”, com o seguinte teor:

B..., S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua …, …, … Lisboa, pela presente declara, para os devidos efeitos, que a Contribuição de Serviço Rodoviário por si entregue, na qualidade de sujeito passivo, junto dos cofres do Estado, por referência ao combustível rodoviário fornecido à empresa A..., S.A. (NIF – …), nos anos de 2019 a 2022, foi por si integralmente repercutida na esfera da referida empresa.

  1. Em 12 de Janeiro de 2024, a Requerida solicitou a junção aos autos da decisão proferida no processo n.º 408/2023-T.
  2. Em 15 de Janeiro de 2024, a Requerente apresentou “réplica” sobre as “exceções suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira”.
  3. Em 17 de Janeiro de 2024, a Requerida solicitou a junção aos autos da decisão proferida no processo n.º 375/2023-T.

 

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
  2. As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
  3. Importa estabelecer preliminarmente – e oficiosamente – se o pedido de pronúncia arbitral (PPA) se contém no âmbito das atribuições do tribunal arbitral e é legítimo, atentas também as excepções invocadas pela AT.
  4. É o que se verá a seguir.

 

 

  1. DIREITO

III.1. Questões a decidir

Hierarquizando as diferentes questões que foram objecto do Despacho referido em 7., entende o presente Tribunal que o primeiro núcleo de questões a discutir é o da arbitrabilidade da disputa.

Isso supõe estabelecer, em primeiro lugar, uma de duas coisas:

a) ou que a CSR é um imposto;

b) ou que, sendo uma contribuição (como entende a AT), ainda assim está dentro do perímetro de jurisdição atribuída legalmente aos Tribunais Arbitrais do CAAD e está compreendida no âmbito de vinculação que foi fixado para a AT pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março (que “Vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa”, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do RJAT).

Ambas as questões são puramente de Direito.

Em segundo lugar, e caso se conclua pela competência do Tribunal para decidir sobre matérias atinentes à CSR, importa apurar se é igualmente competente para se pronunciar sobre ambos os pedidos da Requerente: sobre os actos de repercussão de que alega ter sido sujeito passivo e sobre os actos de liquidação que ocorreram a montante desses.

Um segundo núcleo de questões é o que se prende com a posição da Requerente no processo arbitral. Assim, passado o anterior nível de análise, importa avaliar:

a) se foi liquidada CSR à Requerente, ou, pelo menos, se adquiriu combustíveis a alguém que a tenha pago; para se aferir da viabilidade de cada um dos dois pedidos formulados pelas Requerentes a matéria de facto relevante é apenas essa;

b) a legitimidade e interesse da Requerente em relação aos dois pedidos formulados (ou só em relação àquele que seja considerado arbitrável, se algum), uma vez que os requisitos para se conhecer da “ilegalidade dos atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente” (que é o pedido – e o interesse – imediato desta) não são idênticos aos que se colocam para se poder decidir sobre “a ilegalidade (…) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração [Sic] Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis” (que constitui o pedido “consequencial” da Requerente).

 e

c) a eventual existência de uma situação de litisconsórcio necessário activo (artigo 316.º do Código de Processo Civil), como pretendido pela AT na defesa do pedido de intervenção provocada que formulou.

Um terceiro núcleo de questões a discutir – caso se ultrapassem as anteriores – é o da regularidade do PPA. Isso implica estabelecer, em primeiro lugar, que

a) o PPA não era inepto (por não identificação dos actos de liquidação visados); e que

b) o que o PPA visa não é uma pronúncia abstracta – ou a “suspensão” – do regime da CSR (como entende a AT).

Um quarto núcleo de questões, se acaso se resolverem positivamente as anteriores, tem a ver com a regularidade do pedido de revisão oficiosa, pressuposto necessário, desde logo, da tempestividade do pedido arbitral. No caso, isso passaria por estabelecer:

a) a legitimidade da Requerente para solicitar essa “revisão oficiosa” (sendo certo que o estatuto de sujeito passivo da relação tributária – o único para o qual remete a norma do n.º 1 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT), que as Requerentes designam na “réplica” como o “regime geral” de revisão – não é o seu; e sendo certo que há uma norma específica do CIEC – a do n.º 2 do seu artigo 15.º, que as Requerentes designam na “réplica”  como o “regime especial de revisão oficiosa” – que reserva aos sujeitos passivos da relação tributária a possibilidade de obter o reembolso desses impostos);

b) a tempestividade do pedido de revisão (quer em termos do fundamento invocado –uma vez que os prazos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT são diferentes consoante tais fundamentos –, quer em termos da contagem desses prazos a partir do dies a quo relevante); e

c) a regularidade do pedido de revisão (na medida em que tem de ser dirigido ao autor do acto – o n.º 1 do artigo 78.º da LGT prevê a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou” e o n.º 3 do artigo 15.º do CIEC estipula que o “pedido de reembolso deve ser apresentado na estância aduaneira competente”; e na medida em que a entidade a quem a Requerente endossou tal pedido poderia não ter sido, no caso, a autora do acto antecedente – uma vez que segundo alegou a AT, nesse ano a sua fornecedora de combustíveis não recorreu à alfândega do Jardim do Tabaco para o efeito; e sendo óbvio que tal alfândega não corresponde à do domicílio fiscal da Requerente e nada tem a ver com os actos consequentes de repercussão).

Uma quinta questão, a ser abordada só após resolvidas as anteriores a favor da competência do Tribunal, da arbitrabilidade da questão suscitada e da legitimidade, tempestividade e regularidade das pretensões formuladas junto da alfândega do Jardim do Tabaco e, consequentemente – mas não só consequentemente – também junto deste Tribunal, seria a da (i)legalidade da cobrança dos valores da CSR face ao Direito da União ou à Constituição. Sobretudo porque o que está em causa, na materialidade das coisas, é apenas uma (transitória) alteração da designação atribuída a uma parte do ISP, que era integralmente válido antes de o legislador lhe mudar o nome para CSR (e de consignar essa parcela do que era antes o ISP), e continuou a sê-lo depois de o legislador ter deixado de lhe chamar CSR (mesmo tendo continuado a consignar a mesma receita à mesma entidade)[1].

Um sexto núcleo de questões seria o da possibilidade de dissociação dos actos de liquidação da CSR e do ISP, sendo certo que só aqueles estavam em causa – o que se poderia designar como a questão da dissociação jurídica; e, sendo certo que a não repercussão integral e exacta dos montantes de ISP/CSR poderia ter a ver tanto com uma como com a outra das duas componentes da imposição fiscal única, determinar qual delas (ou qual a percentagem de ambas) é que não teria sido repercutida integralmente – o que se poderia designar como a questão da dissociação económica.

Finalmente, um sétimo núcleo de questões teria a ver com tecnicalidades da decisão a proferir em caso de juízo de desconformidade da CSR e das implicações dessa desconformidade na situação da Requerente (e da sua Fornecedora de Combustível), designadamente:

  1. A possibilidade de duplicação dos “reembolsos”, caso a Fornecedora de Combustível entendesse usar dos mesmos mecanismos (ou de outros) para obter o reembolso dos montantes pagos a título de CSR – que, no seu caso, entregou efectivamente, ao Estado; sendo, então, de novo relevante a questão da intervenção provocada suscitada pela AT;
  2. A possibilidade de duplicação dos benefícios através da obtenção de reembolso de montantes de CSR que lhe foram repercutidos, quando a Requerente já beneficiara de reembolsos obtidos em sede de ISP – incluindo a CSR – no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93º-A do CIEC;
  3. A não-homogeneidade da tributação no momento da introdução no consumo e no da sua repercussão (os problemas da ampliação dos volumes com a variação das temperaturas e do possível desfasamento entre sujeitos passivos e repercutidos, miscigenando os volumes de combustíveis que passam de uns para outros);
  4. A correspondência a estabelecer entre a tributação por grosso e a repercussão a retalho e entre as entidades que aparecem como responsáveis pela introdução no consumo e as entidades que comercializam os combustíveis já onerados com a CSR;
  5. A correspondência a estabelecer entre as facturas identificadas pela Requerente e as declarações de introdução no consumo que originaram a cobrança da CSR;
  6. A possibilidade de ter havido também repercussão a jusante e as suas implicações.

Prossigamos então, por ordem, começando pelas questões de competência e âmbito da jurisdição, que, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – aplicável por força do disposto na alínea c) do n.º 1 artigo 29.º do RJAT – “precede o de qualquer outra matéria”.

 

III.2. A questão da arbitrabilidade

III.2.1. A possibilidade de haver processos arbitrais sobre contribuições e a natureza da CSR

Uma vez que a competência dos tribunais arbitrais a constituir no âmbito do CAAD está estabelecida no artigo 2.º do RJAT e abrange (al. a) do seu n.º 1) a “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”, mas o proémio do n.º 2 da já citada Portaria n.º 112-A/2011 circunscreveu – ao menos literalmente – tal vinculação às “pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida”, tem-se discutido se as pretensões referentes a “contribuições” podem ser objecto de apreciação por tais tribunais[2]. Aliás, uma parte da Resposta da AT é dedicada a defender a natureza não unilateral da CSR e, consequentemente – invocando doutrina vária e a tese adoptada na decisão do processo n.º 714/2020-T a propósito da Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético – a incompetência do presente Tribunal, invocando a certa altura (negritos no original):

105. Sendo que, além da decisão proferida no indicado processo arbitral, a competência da Instância arbitral no que concerne à impugnação de contribuições financeiras foi igualmente objeto de análise nos Processos arbitrais n.ºs 123/2019-T, 138/2019-T, 182/2019-T, 248/2019-T e 585/2020-T, sendo consensual o entendimento de que, a sindicâncias de tais contribuições se encontra excluída da competência dos tribunais arbitrais tributários.

106. E, quanto à natureza jurídica da CSR, não se suscitam dúvidas de que a mesma, à luz do direito aplicável à data dos factos, constitui uma contribuição financeira, distinguindo-se, assim, do imposto.

 

Depois de evocar o objectivo da criação da CSR em 2007 e, anacronicamente, a sua afectação à Infraestruturas de Portugal, IP, criada em 2015 (“financiar a rede rodoviária nacional, a cargo da Infraestruturas de Portugal, IP, S.A. (doravante IP), nos termos do Contrato de Concessão Geral da rede rodoviária nacional celebrado com o Estado, e “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”), a Resposta da AT considerava que:

110. De acordo com o contrato de concessão, a IP está obrigada a “serviços públicos” específicos, como a conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional.

111. Tratando-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários (os utilizadores da rede rodoviária nacional), se efetiva na compensação da conservação e requalificação da rede rodoviária nacional, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira e não de imposto.

Tendo tal tese sido uniformemente desconsiderada nas decisões do CAAD proferidas a propósito da CSR (processos ns. 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2022-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T e 534/2023-T), a Resposta da AT invocava os únicos dois votos de vencido (apostos aos processos ns. 629/2021-T e 305/2022-T) e uma suposta omissão de pronúncia sobre tal questão por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022 no Proc.º C-460/21, para concluir deste modo (negrito no original):

115. Nesse sentido, a CSR encontra-se excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.

*

Entende o presente Tribunal, com a jurisprudência do CAAD já citada[3], que a CSR era um imposto (mal) disfarçado de contribuição. Como se escreveu no Sumário da decisão do processo n.º 629/2021-T,

Uma parcela de um imposto especial de consumo não deixa de ser um imposto especial de consumo por o legislador lhe atribuir uma narrativa (de resto oscilante entre a compensação de custos e a contrapartida de benefícios) e lhe providenciar uma consignação orgânica (mormente se a entidade que dela beneficia deixa de ter como função única providenciar a suposta contrapartida que justificaria a alteração de género).

Nessa decisão, os argumentos usados para caracterizar a CSR como imposto foram essencialmente os seguintes (negritos no original, *notas suprimidas):

- histórico:

A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (“Regula o financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E. P. E.”) criou a CSR por desdobramento do ISP – que é, indiscutivelmente, um imposto especial de consumo*. Como se escrevia no artigo 7.º dessa lei, sob a epígrafe “Fixação das taxas do ISP”,

As taxas do ISP são estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário.

(…)

a única diferença entre os € 525,1 milhões que o ISP perdeu e os € 525,1 milhões que a CSR ganhou em 2008 residiu na alteração da sua designação e na sua afectação. Enquanto imposto especial de consumo louvava-se na cobertura de um custo: os custos ambientais que o preço dos combustíveis não internalizavam (uma externalidade). A partir do momento em que uma parte – arbitrária – da receita gerada pelo ISP passou a ter a designação de CSR, passou (parece – mas contra o já referido pelo legislador*) a louvar-se no benefício proporcionado aos causadores do custo.”.

           

            - conceptual:

Procurando identificar os critérios de distinção das taxas, das contribuições financeiras*, das contribuições especiais e dos impostos, a A. [Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013] recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão:

1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).

(…)

a CSR apresenta diferenças muito significativas em relação ao comum das contribuições financeiras, sejam elas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas” de regulação ou as “grandes contribuições” que foram surgindo a título transitório e se vão mantendo (Contribuição sobre o Sector Bancário, Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético - CESE, Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, …).

Em primeiro lugar, nessas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições”, o sujeito passivo é o contribuinte (na CESE há mesmo uma proibição da sua repercussão), enquanto que na CSR um e outro são diferentes: o sujeito passivo (quem tem de entregar o imposto ao Fisco) é o introdutor dos produtos no mercado e o contribuinte (quem tem de suportar a exacção fiscal) é o adquirente dos combustíveis (incluindo, como a já citada jurisprudência arbitral evidencia, adquirentes de combustíveis que nada têm a ver com a utilização das estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal).

Em segundo lugar, o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas colectivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária. (…)

Em terceiro lugar, enquanto nas contribuições para a segurança social, quotas para associações públicas, “taxas de regulação” e “contribuições” é a pertença ao grupo que permite de imediato a identificação do devedor – sendo a indução de um custo ou a obtenção de um benefício presumida a partir dessa inclusão nelena CSR não há nenhum grupo prévio a que se possa imputar o pagamento: é porque se paga a CSR que se supõe que se integra o grupo. (…)

Em quarto lugar, o princípio da equivalência – a que se recorre para conferir unidade de sentido às contribuições financeiras*, equiparando-se o pagamento feito à repartição, tendencialmente idêntica (ou, pelo menos, com base em características dadas e estáveis), dos custos especificamente gerados pelo grupo homogéneo (ou dos benefícios auferidos pelo grupo homogéneo, como nas “taxas” das autoridades reguladoras, ou, forçando mais ou menos a nota, nas tais “grandes contribuições”) – assume na CSR uma ligação a um índice variável: o do consumo dos “grandes combustíveis rodoviários”*. Com a agravante de o presumido benefício não ter uma relação directa com esse índice variável: por um lado, as vias da Rede Rodoviária Nacional (que foram concessionadas, em 2007, à EP - Estradas de Portugal, E.P.E.) não são a totalidade das estradas nacionais (além das auto-estradas concessionadas, e da rede municipal – urbana e rural –, o Plano Rodoviário Nacional prevê a transferência para as autarquias das estradas que não estejam nele incluídas). Noutras palavras: a utilidade proporcionada pela circulação nas estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal não é segmentável da que é proporcionada pelas demais; por outro lado, uma fracção crescente dos utilizadores dessa sub-parcela das vias de circulação automóvel – a rede rodoviária nacional – não fica sujeita a essa “contribuição”: o dos utilizadores dela com veículos eléctricos ou velocípedes. (…)

Em quinto lugar, e não obstante – como já referido – não ser bom critério determinar a natureza de um tributo a partir da sua consignação material ou orgânica*, certo é que a EP - Estradas de Portugal, E.P.E. só gastava o dinheiro em estradas (e no mais necessário a poder fazê-lo, incluindo as suas despesas correntes), mas, com a fusão, em 2015, com a Rede Ferroviária Nacional - REFER E.P.E. para dar origem à Infraestruturas de Portugal, isso deixou de ser assim.

           

            E, em termos de índices da natureza da CSR[4],

- doutrinal:

“- na recolha de Casalta Nabais Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, refere-se, a propósito da CSR (e de outras figuras aí referidas), “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”. Como o A. escreve em Direito Fiscal, 11.ª ed, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 53-54, “o critério para a distinção entre os tipos de tributos [reporta-se] exclusivamente à estrutura da relação tributária, ao tipo de relação que se estabelece entre os respetivos sujeito ativo e passivo, e não à titularidade activa dessa relação (…) É, pois, a estrutura bilateral da relação jurídica, em que assentam tanto as taxas como as contribuições financeiras, que revela a natureza comutativa destes tributos, os quais, porque concretizam uma efectiva troca de utilidades económicas, têm por base […] uma legitimidade económica. / O que vale também relativamente à titularidade da receita dos tributos. De facto, esta titularidade, até porque está para além da relação tributária integrando [-se …] numa relação financeira a constituir-se a jusante da relação tributária, nada pode dizer sobre o tipo de tributo.” (destaques aditados).

(…)

Filipe de Vasconcelos Fernandes, ob. cit., p. 116, sublinha que “o nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, e desdobra este, na página seguinte, numa “homogeneidade de interesses” – que, segundo informa, na literatura alemã por vezes se designa por “homogeneidade de grupo” – e numa “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”.

 

e

- jurisprudencial:

apenas DUAS das 19 decisões do CAAD que a Requerente invoca (na sua Resposta às excepções) para afirmar que tais tribunais arbitrais têm aceite a sua jurisdição sobre a CSR o poderiam substanciar (as dos processos n.os 483/2014-T e 147/2015-T8, que autonomizaram o seu tratamento), sendo as demais resultantes da consideração indiferenciada da CSR com o imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP)*.

O mesmo se diga para a jurisprudência dos Tribunais superiores, ainda que estes não tenham de cuidar da delimitação da sua competência em função da natureza do tributo, e se não conheçam decisões suas sobre a CSR.

Também não é indiferente que o Tribunal de Contas, a pp. 90 do seu Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2008 (https://erario.tcontas.pt/pt/actos/parecer-cge/2008/pcge2008-v1.pdf  ), tenha considerado o seguinte:

Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.

Evidentemente, sendo a CSR um imposto, a questão da competência do presente Tribunal deixa de ser controvertida, e fica prejudicada a indagação de saber se as questões relativas às contribuições se incluem no âmbito da jurisdição dos Tribunais arbitrais do CAAD – e, ou, no da vinculação da AT à sua jurisdição.

 

III.3. A questão da posição da Requerente no processo arbitral

Como se viu, a Requerente solicitou ao Tribunal duas coisas: que fosse declarada a ilegalidade

- “dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021

e

- “das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”.

A arbitrabilidade do litígio tanto pode resultar do primeiro pedido, como do segundo, como de ambos. A jurisprudência arbitral sobre CSR que tinha sido desencadeada pelos sujeitos passivos, ie, pelos intervenientes na relação jurídico-tributária, não abordou a questão de saber se

a) é possível em geral aos tribunais arbitrais apreciarem “a ilegalidade dos actos de repercussão”; e se, sendo isso possível em geral,

b) também é possível apreciar “a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR” (como se pretendia no pedido da Requerente).

Ambas as questões foram, porém, objecto de tratamento nas decisões proferidas nos processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T.

Vejamos então, começando por estabelecer os factos necessários a decidir dessas possibilidades:

 

III.4. Factos provados

  1. A Requerente é uma sociedade de Direito português que tem actividade nas áreas da engenharia, construção civil, água, ambiente e energia;
  2. Está integrada no grupo de empresas D…, que desenvolve actividades nas áreas da Indústria e Logística, Turismo e Lazer, Edifícios de Utilização Pública, Comércio e Serviços, Requalificação Histórico-Artística e Habitação;
  3. Durante o ano de 2021, a Requerente adquiriu à B..., SA, [Fornecedora de Combustíveis] gasóleo rodoviário e gasolina, sobre os quais incidiu CSR, nos montantes correspondentes à seguinte listagem de facturas:

 

III.5. Fundamentação dos factos provados

A listagem supra reproduzida consolidava as facturas que a Requerente juntou aos autos, e não foi posta em causa pela AT na estrita dimensão do que se deu como provado: que a Requerente adquiriu, à referida fornecedora de combustíveis, gasóleo rodoviário e gasolina, sobre os quais tinha incidido CSR no momento da introdução no consumo.

 

 

III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão

Como os Colectivos que decidiram os processos n.os 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa[5] – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier[6], distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.

Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa[7], entre o terceiro repercutido

e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.

 

Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente).

Tal não impede que, por via do seu segundo pedido (o de que o Tribunal declare a ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela AT com base nas DIC submetidas pela respectiva Fornecedora de Combustíveis), a Requerente possa ainda obter uma pronúncia de mérito da jurisdição arbitral. Isso, porém, depende de outra indagação:

 

 

III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos

Numa passagem do seu manual[8], Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral[9].

            Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias[10]. Fê-lo a coberto do argumento da ineptidão do PPA por não incluir “A identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;”, como expressamente exigido na alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT; fê-lo também com base na caracterização da relação da Requerente com a sua Fornecedora de Combustível como “uma relação comercial de direito privado entre empresas, à qual a administração tributária é estranha” (o que era especialmente relevante para a questão anterior); mas fê-lo igualmente com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (negrito e sublinhado no original):

apenas, o sujeito passivo que declarou os produtos para consumo a quem  foi liquidado o imposto e que efetuou o correspondente pagamento, reúne condições (e pode identificar os atos de liquidação), para solicitar em caso de erro, a revisão desses atos de liquidação com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigo 15º e 16º do CIEC).

 

Isto porque, defendeu, como o n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto (diploma que criou a CSR), determina a aplicação do CIEC (e da LGT e do Código de Procedimento e Processo Tributário - CPPT) à “liquidação, cobrança e pagamento” da CSR, sempre teria de se aplicar o disposto no n.º 2 do artigo 15.º do CIEC,

o qual estabelece que o reembolso só poderá ser solicitado pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto, o que bem se compreende por força das caraterísticas dos impostos em causa.” (negrito e sublinhado no original).

 

Acrescentando que

Estas disposições legais do CIEC fundamentam-se no regime próprio dos impostos especiais de consumo, designadamente, por se tratarem de impostos monofásicos, que

incidem apenas na fase da declaração para consumo, o que, regra geral, ocorre uma única vez.

 

Em todo o caso, concluía (negrito e sublinhado no original),

Mas ainda que se considerasse que, no caso concreto, a CSR tivesse sido efetivamente repercutida e a Requerente tivesse legitimidade processual para peticionar a anulação das liquidações com fundamento em erro e o reembolso dos montantes correspondentes, o que não se concede, sempre seria de invocar a jurisprudência do TJUE, resultante do Acórdão proferido no Proc.º n.º C-94/10, de 20/10/2011, de acordo com a qual:

As normas do direito da União devem ser interpretadas no sentido de que:

1) Um Estado-Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil;

2) Um Estado-Membro pode recusar um pedido de indemnização apresentado pelo comprador sobre quem o sujeito passivo tenha repercutido um imposto indevido, com base na falta de nexo directo de causalidade entre a cobrança desse imposto e o dano sofrido, desde que o comprador possa, com base no direito interno, dirigir esse pedido contra o sujeito passivo e que a reparação, por este, do dano sofrido pelo comprador não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.”

*

O Tribunal entendeu ser incompetente para se pronunciar sobre a declaração de ilegalidade da repercussão (o primeiro pedido da Requerente) –, porque esta é subsequente e exterior ao acto tributário, decorrendo de uma relação de direito privado e, portanto, não cabe no âmbito dos actos da AT que o legislador lhe permitiu sindicar –, mas entende que tem obviamente competência para se pronunciar sobre o segundo pedido da Requerente – a declaração de ilegalidade do acto tributário. Ser competente, porém, apenas preenche o pressuposto processual referente ao Tribunal, não o que é respeitante à Requerente. A questão é: pode ela suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito?

A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.

Num comentário de divulgação das primeiras decisões arbitrais sobre a CSR[11] escreveu-se (p. 10):

o parque automóvel português é composto por 6,5 milhões de veículos ligeiros, a que acrescem 500 mil veículos pesados, num total de cerca de 7 milhões de veículos em circulação.

Se, por hipótese, admitirmos que cada automobilista fará, relativamente à CSR, um “pedido de revisão do ato de liquidação” e considerando que podem ser revistos os atos de liquidação relativos aos últimos quatro anos, temos que este contencioso poderá somar 28 milhões de processos!

 

Numa publicação anterior da mesma fonte[12] tinha-se escrito:

Com efeito, tem sido pacífico na doutrina e na jurisprudência que os IECs [Impostos Especiais de Consumo] implicam casos de repercussão legal. Sustenta-se, nesse sentido, que os impostos especiais de consumo procuram onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente e da saúde pública e que, por essa razão, deverá ser o verdadeiro titular da capacidade contributiva a ser onerado com o encargo do imposto.

 

A confirmar-se a natureza “pacífica” de tal entendimento – o que não é relevante apurar para os presentes autos – tal permitiria considerar legítima a determinação legislativa do artigo 6.º da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro (“Altera o Código dos Impostos Especiais de Consumo, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de maio, transpondo as Diretivas (UE) 2019/2235, 2020/1151 e 2020/262”) ao atribuir natureza interpretativa à “redação conferida pela presente lei ao artigo 2.º do Código dos IEC”. Isto porque, dada a proibição constitucional da retroactividade de disposições fiscais que abranjam os elementos essenciais dos impostos (artigo 103.º da Constituição), só nesse caso é que tal alteração (a introdução do inciso “sendo repercutidos nos mesmos” – sendo os “mesmos” os “contribuintes” onerados segundo o “princípio da equivalência”, “na medida dos custos que (…) provocam, designadamente nos domínios do ambiente e da saúde pública”) seria verdadeiramente interpretativa e, portanto, constitucionalmente legítima.

Ora, como também se referiu, qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida:

 “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”.

 

Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção:

1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:

a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;

(…)

2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:

a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;

 

            Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.

            Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.

*

Sobre a possibilidade de certos interessados serem impedidos de contestar a legalidade de certos tributos (em geral ou numa específica jurisdição) já o TJUE referiu[13] que

na ausência de regulamentação comunitária em matéria de repetição de impostos nacionais indevidamente cobrados, cabe à ordem jurídica interna dos Estados-Membros designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais dos recursos judiciais destinados a assegurar a protecção dos direitos de que os cidadãos gozam com base no direito comunitário.

38. Por razões de segurança jurídica, os Estados-Membros estão, em princípio, autorizados a limitar, a nível nacional, o reembolso de impostos indevidamente cobrados. Contudo, estas limitações devem respeitar o princípio da equivalência, nos termos do qual as disposições nacionais devem aplicar-se de maneira idêntica às situações puramente nacionais e às situações reguladas pelo direito comunitário, e o princípio da eficácia, que impõe que o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária não se torne praticamente impossível ou excessivamente difícil.

 

Daqui resulta que, na lógica do Direito da União, nada impede que o legislador nacional limite (e não apenas na jurisdição arbitral, embora por maioria de razão nesta, dada a sua competência por atribuição), os modos e as condições de, e os interessados na, obtenção da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação por razões ligadas à prevalência do Direito da União – designadamente excluindo a possibilidade de quem quer que seja que não tenha tido intervenção neles suscitar a avaliação dessa desconformidade[14].

Diga-se, mas apenas como obiter dictum, que tal opção legislativa, que tem de se admitir justificada face à impraticabilidade de se gerir um sistema, digamos, “aberto” (como o que resultaria dos números indicados acima), foi aliás, no que diz respeito à contrariedade de tais liquidações com o Direito da União, considerada justificável no despacho do TJUE no Processo n.º C-94/10, desde que o “comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil”.

Se essa condição está ou não preenchida no caso não cabe, evidentemente, a este Tribunal apurar: tal perquisição só poderia ocorrer aquando da aferição da conformidade do sistema legal de recuperação de montantes pagos a título de CSR com o Direito da União (na fase da decisão sobre o fundo), e o Tribunal já concluiu que a Requerente não está em condições de o poder levá-lo a confrontar-se com tal questão (como o poderiam fazer os sujeitos passivos da relação tributária).

À mesma conclusão chegaram, por outra via, as decisões proferidas nos processos n.os 408/2023-T (relator: Tomás Cantista Tavares) e 375/2023-T.

 

III.8. Conclusão sobre a legitimidade da Requerente e sobre as demais questões enunciadas

            Concluindo-se que o presente Tribunal arbitral é incompetente para se pronunciar sobre o primeiro pedido da Requerente (porque não pode pronunciar-se sobre actos subsequentes aos, e autónomos dos, actos de liquidação), e resultando da lei que a Requerente é parte ilegítima para suscitar o segundo (questionar os actos de liquidação da CSR que pudessem ter alguma ligação com os ditos actos de repercussão), conclui-se que a Requerida terá de ser absolvida da instância, ficando prejudicados todos os passos seguintes no iter cognoscitivo acima delineado.    

            Não se opinando sobre o mérito, ficam igualmente prejudicados os pedidos de “restituição” e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

  1. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:

  1. Considerar o presente Tribunal arbitral incompetente para se pronunciar sobre o pedido de declaração dos “actos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021”;
  2. Considerar a Requerente parte ilegítima para suscitar a declaração de “ilegalidade (…) das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”;  
  3. Em consequência, absolver a AT da instância, condenando a Requerente nas custas, nos termos abaixo fixados.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em € 376.519,76 (trezentos e setenta e seis mil, quinhentos e dezanove euros e setenta e seis cêntimos).

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo do Requerente, no montante de € 6.426,00 (seis mil, quatrocentos e vinte e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2024

 

O árbitro presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

O árbitro adjunto

 

Luís Menezes Leitão

 

O árbitro adjunto (com voto de vencido)

 

 

Voto de vencido do árbitro adjunto Marcolino Pisão Pedreiro

Não acompanho a decisão que fez vencimento, no sentido de que a Requerente é parte ilegítima para o presente pedido de pronuncia arbitral, pelas razões que passo a enunciar.

O n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, estabelece  que  “ A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações”.

Esta norma não determina expressamente que as regras do CIEC referentes ao reembolso do imposto são aplicáveis à CSR. Todavia, o reembolso está directamente ligado ao  pagamento do mesmo, uma vez que depende necessariamente de alguma incorreção do montante em causa  ou da liquidação que lhe esteve subjacente, afigurando-se-me  que, ao remeter para o regime do pagamento estar-se-á, também, a remeter para o regime do respetivo reembolso, que configura  um regime de revisão oficiosa  especial  face ao consagrado no art. 78º da Lei Geral Tributária.

Este regime especial de revisão oficiosa é aplicável quando despoletada pelo sujeito passivo, conforme resulta expresso do art. 15º, nº 2 do CIEC, não sendo, manifestamente, aplicável ao pedido de revisão oficiosa formulado pelo repercutido. Esta conclusão resulta clara da  remissão operada pelo  nº 1 do art. 5º da Lei n.º 55/2007 que refere “liquidação, cobrança e pagamento” que respeitam, naturalmente, ao sujeito passivo e não ao repercutido. No meu entender, o  art. 15º, nº 2 do CIEC nem direta, nem indiretamente, visa regular o direito à revisão oficiosa por parte do repercutido.

Assim, na minha opinião, ao repercutido, é aplicável o regime geral de revisão oficiosa previsto no art. 78º da LGT.

Como escrevem Diogo Leite de Campos-Benjamim Silva Rodrigues-Jorge Lopes de Sousa (LEI GERAL TRIBUTÁRIA , Anotada e comentada, 4ª Ed. 2012, pag. 705):

(…)o meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar destes (quando já estiverem  esgotados os prazos para utilização  dos meios impugnatórios do acto de liquidação).

Trata-se de um regime reforçadamente garantístico, quando comparado com o regime da impugnação de actos administrativos, mas esse reforço encontra explicação na natureza fortemente agressiva da esfera jurídica dos particulares que têm os actos de liquidação de tributos.

 

A meu ver, o art. 15º, nº 2, do CIEC, ao permitir ao sujeito passivo a revisão oficiosa nos termos do respetivo regime, não proíbe ao repercutido a faculdade de lançar mão do mecanismo geral da revisão oficiosa do art. 78º da LGT[15]. Também se me afigura que o não poderia fazer, pois como referem os autores citados:

“(…)este dever de rever os actos injustos é um corolário do dever de actuação segundo o princípio da justiça, constitucionalmente consagrado (art. 266º, nº 2, da CRP), pelo que não é constitucionalmente admissível o estabelecimento, pela lei ordinária, de casos de dispensa de observância  de tal diretriz de actuação.

(…).

(…) Os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tributária tem de observar na globalidade da sua actividade (art. 266º, nº 2, da CRP e 55º da LGT), impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido face à lei.

Por isso, sob pena de inconstitucionalidade, deverão interpretar-se as normas que prevêem a revisão oficiosa com fundamento em erro imputável aos serviços como não excluindo o dever de revisão em todos os casos em que se constatar, dentro do prazo em que a revisão é possível, que foi liquidado imposto em excesso” (ob. Cit. pags. 710-711).

Na mesma linha,  refere Rui Duarte Morais “A jurisprudência consagrou o entendimento, hoje pacífico, de que a revisão “oficiosa” não é uma faculdade da administração fiscal, mas sim um poder-dever.”[16]

De acordo  com o nº 7, do artigo 78º, da LGT, afigura-se-me que, pelo menos nestes casos em que está em causa a denominada revisão oficiosa, a legitimidade não é exclusiva do sujeito passivo mas do “contribuinte”[17], conceito no qual  se enquadra o repercutido  como entidade que suporta o imposto, o que está em sintonia com o artigo 18º, nº 4, al. a), da Lei Geral Tributária,  de acordo com o qual  o repercutido legal[18] não é sujeito passivo,   mas que salvaguarda expressamente o seu direito de reclamação, recurso, impugnação ou pedido de pronúncia arbitral.

É assim, claro, a meu ver, que a  Requerente, tinha legitimidade para apresentar o pedido de revisão oficiosa, ao abrigo do artigo 78º da LGT — como apresentou—  e que não  se tendo a Requerida pronunciado no prazo legalmente previsto, a consequência que decorre do  art. 57º, nº 5, da LGT,  é a presunção do indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial e  tem a sua legitimidade processual expressamente consagrada no art. 18º, nº 4, al. a) da LGT   tanto mais  que, nos termos do art. 7º do CPTA, aplicável ex vi art. 29º, nº 1, al. c) do RJAT e por força do princípio da tutela judicial efetiva “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.

 

Por outro lado, conforme consta da decisão proferida no  Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S [19], ”As normas do direito da União devem ser interpretadas no sentido de que:

1)Um Estado‑Membro se pode opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.”

É, assim, condição necessária à oposição ao pedido de  reembolso em causa por partes  dos Estados-Membros que, nos termos do direito interno, o  comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo e “que o reembolso do imposto indevido, por parte deste último, não seja, na prática, impossível ou excessivamente difícil.”

No caso do Direito Português, face ao artigo 476º do Código Civil, afigura-se-me que tal possibilidade de reembolso, na prática, não existe, na medida em que não ocorre nenhuma das situações previstas no mesmo.

Com efeito, dispõe o art. 476º, nº 1, do CC que “Sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais, o que for prestado com a intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação.”

Acontece que a obrigação de pagar, no momento da prestação, estava vigente na ordem jurídica, o que, no meu entender, desde logo, inviabilizaria a pretensão.

Por outro lado, sendo a repetição do indevido um caso particular da figura do enriquecimento sem causa e não havendo enriquecimento do sujeito passivo por ter pago o imposto ao Estado que cobrou ao repercutido, sempre estaria inviabilizada a repetição, também por esta razão (situação diversa ocorreria se o sujeito passivo tivesse obtido previamente do Estado o reembolso, facto que não foi demonstrado, nem sequer alegado, nos presentes autos).

Por ultimo, afigura-se-me, também, que a subsidiariedade prevista no art. 474º CC sempre constituiria, ainda,  fundamento de inviabilidade da restituição.

Nesta medida  decorre, no meu entender, do referido acórdão,  que o princípio da efetividade impede  que um  Estado‑Membro se possa  opor a um pedido de reembolso de um imposto indevido, apresentado pelo comprador sobre quem esse imposto tenha sido repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais.

Tal constitui, na minha opinião,  mais uma razão para a improcedência da exceção de ilegitimidade.

Pelas razões expostas, entendo que deveria ter sido declarada a legitimidade processual da   Requerente e julgada improcedente a exceção em causa.

 

               Marcolino Pisão Pedreiro

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] O n.º 2 do artigo 4.º (epigrafado “Montante da consignação”) da Lei n.º 24-E/2022, de 30 de Dezembro, manteve os montantes exactos que antes correspondiam à dita “CSR”:

A parte da receita de imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos a consignar ao serviço rodoviário é de 87 (euro)/1000 l da receita relativa à gasolina, de 111 (euro)/1000 l da receita relativa ao gasóleo rodoviário e de 123 (euro)/1000 kg da receita relativa ao GPL auto, montantes que integram os valores das taxas unitárias fixados nos termos do n.º 1 do artigo 92.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho.

Ou seja: uma vez que não se divisa que tais montantes de ISP sejam desconformes com o Direito da União, o que, em direitas contas, foi julgado desconforme com ele – na sequência do pedido de reenvio prejudicial que levou ao despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022 no Proc.º C-460/21 –, foi apenas a designação do primeiro regime de consignação de receitas que o legislador desavisadamente criou…

 

[2] Na fórmula usada na decisão do processo n.º 629/2021-T, “Isso não releva do âmbito de competência do tribunal, releva do âmbito de sujeição a ele de um dos intervenientes processuais.”, invocando em nota a “decisão do caso n.º 146/2019-T (com um voto de vencido) que acaba por reconduzir a primeira [“competência – delimitada legislativamente”] a incompetência absoluta e a segunda [“vinculação – delimitada pela portaria dentro da liberdade de opção atribuída por lei”] a incompetência relativa.

[3] A tese firmada na decisão n.º 508/2023-T renuncia expressamente a estabelecer essa natureza em homenagem à liberdade de vinculação que o legislador atribuiu ao autor da portaria de vinculação, por ter entendido que outra solução implicaria “impor indagações com esse nível de dificuldade, incerteza de resultados e morosidade para definição da competência dos tribunais arbitrais”. Nesse sentido, escreve o seguinte (negrito aditado):

aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.

[4] Escreveu-se então:

Ainda que a qualificação jurídica de um tributo como imposto ou não-imposto tenha de depender das suas características intrínsecas (…), não são indiferentes os índices que – sendo externos a essa qualificação – foram invocados pela Requerente e pela Requerida. Assim, para começar, a jurisprudência do CAAD (e dos tribunais estaduais que a examinaram) não é indiferente”.

[5] Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do RJAT, os tribunais arbitrais constituídos no CAAD também são competentes para “A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”.

 

[6] Manual de Direito Fiscal I, Reimpressão, s/ed., Lisboa, 1981, p. 409.

 

[7] Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 4.ª ed, encontro da escrita, Lisboa, 2012, p. 187, Tenha-se em conta que, embora os AA. admitissem que essa “primeira impressão” desse lugar a “uma nova noção de sujeito passivo” (p. 188), acabavam por concluir (p. 189) que “A repercussão efectua-se fora do âmbito da obrigação tributária.” e (p. 190), que “a repercussão é estranha à relação jurídico tributária”. 

No mesmo sentido – ainda que aparentemente por referência ao IVA, Nina Aguiar, in Códigos Anotados e Comentados - Justiça Tributária - LGT.CPPT.RGIT.RCPITA.RAT.LPFA, Lexit, 2018, p. 45: “aquele que suporta o imposto”, “Não é (…) sujeito de qualquer relação jurídica tributária.

 

[8]  Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 401.

 

[9] Dispõe o n.º 4 do artigo 18.º do RJAT que

Não é sujeito passivo quem:

a) Suporte o encargo do imposto por repercussão legal, sem prejuízo do direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias; (…)”.

 

[10] O Tribunal não fez uma indagação de Direito Comparado, mas como resulta do n.º 58 da decisão que o TJUE proferiu, em 2 de Outubro de 2003, no processo C-147/01 (Weber's Wine World Handels-GmbH et al. v. Abgabenberufungskommission Wien), essa é uma solução que não é específica do Direito nacional:

na medida em que tenha efectivamente havido repercussão, foram os consumidores que suportaram o encargo do imposto sobre as bebidas alcoólicas. Ora, nem a ordem jurídica do Land de Viena nem a da República da Áustria oferecem, em geral, aos consumidores a possibilidade de invocarem, no quadro de um procedimento de tributação, a ilegalidade de um imposto assim repercutido.

[11] “A Contribuição de Serviço Rodoviário: enquadramento e desenvolvimentos recentes”, edição de Março de 2023 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em

https://www.rfflawyers.com/xms/files/KnowHow/Newsletters/2023/03_Marco/A_Contribuicao_de_Servico_Rodoviario_enquadramento_e_desenvolvimentos_recentes_-marco_2023.pdf

 

[12] “A contribuição de serviço rodoviário e a legitimidade processual dos consumidores finais”, edição de Agosto de 2022 da Newsletter do Tax Litigation Team encabeçado por Rogério Fernandes Ferreira, disponível em https://www.rfflawyers.com/pt/know-how/newsletters/a-contribuicao-de-servico-rodoviario-e-a-legitimidade-processual-dos-consumidores-finais/4579/ A passagem foi reproduzida no comentário referido na nota anterior.

 

 

[13]  Nos ns. 37 e 38 da decisão citada na nota 10.

 

[14] Como se referiu supra, nota 10, é o que acontece na Áustria.

[15] Como refere Oliveira Ascensão “As permissões não são necessariamente recíprocas de proibições, e mesmo quando o sejam a regra permissiva é independente da outra.” (O DIREITO, INTRODUÇÃO  E TEORIA GERAL, 13º Edição Refundida, Almedina, 2009, pag. 515)

[16] MANUAL DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO, Almedina, 2012, pag. 212.

[17] Referem Diogo Leite de Campos-Benjamim Silva Rodrigues-Jorge Lopes de Sousa “Embora o art. 78º da LGT, no que concerne a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte, se refira à que tem lugar dentro do prazo da reclamação administrativa, no nº 6º do mesmo artigo (na redacção inicial, que é o nº 7 da redacção vigente) faz-se referência a «pedido do contribuinte», para a realização da revisão oficiosa, o que revela que esta, apesar da impropriedade da designação como «oficiosa», pode também ter subjacente a iniciativa do contribuinte.”

[18] Resulta dos arts. 2º e 3º da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto que a lei pretende tributar os consumidores de combustíveis, como utilizadores da rede rodoviária nacional. A repercussão a estes da CSR foi o propósito do legislador pelo que, na minha opinião,  esta repercussão é legal, no sentido de prevista e querida pelo ordenamento jurídico (embora não obrigatória  diferentemente do que sucede em IVA).

A repercussão do imposto às empresas de transporte de mercadorias e de transporte coletivo de passageiros é, também, reconhecido pelo art. 93º-A do CIEC, ao reconhecer que o imposto é suportado pelas empresas  em causa o que confirma o que já resulta das normas da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto.

Acresce que, com a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de dezembro (diploma que também  extinguiu a CSR), o legislador introduziu no artigo 2.º do CIEC uma referência expressa à imposição legal de repercussão dos impostos especiais de consumo, tendo, no artigo 6.º da referida de Lei, sido atribuída natureza interpretativa a tal alteração legislativa.

Assim, a natureza legal  da repercussão do imposto que, no meu entender,  já resultava clara das normas supra referidas foi ainda  reforçada  pelo art. 2º do CIEC, na redação do Redação dada Lei n.º 24-E/2022, de 30 de dezembro.

[19] Em linha com decisão que o TJUE proferiu, em 2 de Outubro de 2003, no processo C-147/01 (Weber's Wine World Handels-GmbH et al. v. Abgabenberufungskommission Wien), supra referida nesta decisão arbitral.