Sumário:
I - A Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, que alterou o regime dos residentes não habituais, que constava do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, mediante a eliminação da possibilidade da renovação do período inicial de 10 anos, define o conteúdo da relação jurídica sem atribuir qualquer relevo ao título constitutivo da qualidade de residente não habitual, nem à data da formação do direito a ser tributado com base nesse regime fiscal, e, assim, por aplicação do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, a lei nova abrange as relações jurídicas já constituídas, que subsistiam à data da sua entrada em vigor.
II – Em necessária decorrência, os sujeitos passivos que detinham o estatuto de residentes não habituais desde 2011 e ainda não tinham completado o período inicial de 10 anos consecutivos à data da entrada em vigor da Lei n.º 20/2012, encontravam-se já sujeitos ao novo regime legal e não podiam beneficiar da renovação desse estatuto com base no disposto no n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro.
III - A proibição da retroatividade em matéria fiscal expressa no artigo 103.º da Constituição refere-se à retroatividade própria ou autêntica, não pretendendo integrar as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova.
IV - A alteração legislativa que determinou a eliminação da possibilidade de renovação do estatuto de residente não habitual, após o período inicial de 10 anos, encontra-se justificada por razões de interesse público prevalecentes e pela própria margem de livre conformação do legislador, que, em ponderação, afastam a violação do princípio da proteção da confiança.
V - Só pode ser tido como direito adquirido o direito subjetivo que se tenha constituído na esfera jurídica do seu titular, não sendo esse o caso quando se trata de uma situação jurídica de formação sucessiva em que subsiste a mera expectativa de que o efeito jurídico em formação venha a produzir-se.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., titular do número de identificação fiscal ... e. B..., titular do número de identificação fiscal..., ambos residentes na ...-..., ...-... Olhão, em Portugal, vieram requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação de IRS n.º 2022..., relativa ao período de tributação de 2021, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
Os Requerentes, de nacionalidade sueca, são casados e deslocaram a sua residência para Portugal no ano de 2011, tendo sido registados como residentes fiscais em Portugal.
Em 2011, os Requerentes solicitaram a sua inscrição no regime do residente não habitual (RNH), o qual foi deferido pelo período de 10 anos, isto é, até 31 de dezembro de 2020.
À data em que os Requerentes solicitaram a sua inscrição no regime do residente não habitual encontrava-se em vigor o artigo 16.º, n.º 7, do Código do IRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, segundo a qual “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos.”
Essa disposição, que corresponde agora ao n.º 9 desse artigo 16.º, foi alterada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, que passou a dispor que “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”.
Na sequência dessa nova redação, os Requerentes submeteram um pedido de informação vinculativa, requerendo esclarecimentos sobre a renovação automática da inscrição no regime especial de tributação do RNH, por mais 10 anos consecutivos, vindo a Autoridade Tributária a considerar que à data em que finalizou o primeiro período do regime de residentes não habituais, a norma do artigo 16.º, n.º 7, do Código do IRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009 já não estava em vigor, pelo que o legislador, ao formular a nova redação resultante da Lei n.º 20/2012, não tinha a intenção de manter o regime de renovação automática por períodos de 10 anos.
Os Requerentes, nos termos do n.º 1 do artigo 57.º do Código do IRS, procederam à entrega da Declaração Modelo 3 de IRS, como residentes fiscais em Portugal, no pressuposto de que beneficiavam do regime de RNH, mas o sistema não permitiu a submissão da declaração, pelo que vieram a apresentar uma nova declaração Modelo 3 de IRS sem o Anexo L aplicável ao RNH, de que resultou uma liquidação de IRS, relativa ao ano de 2021, com um valor de imposto a pagar de € 186.116,84.
Entendem os Requerentes que, por efeito do estatuto de RNH adquirido em 2011, constituíram nas suas esferas jurídicas o direito a beneficiar de um período de vigência de 10 anos consecutivos renováveis, que se estendia para além do ano de 2020.
A nova redação dada ao n.º 7 do artigo 16.º do CIRS pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e apenas poderá ser considerada para contribuintes que tenham chegado a Portugal após 14 de maio de 2012, não sendo posta em causa as situações jurídicas já constituídas na vigência da lei anterior, que constituem direitos adquiridos.
Deste modo, a não renovação do estatuto de RNH após o período inicial de dez anos contados desde 2011 viola o princípio da segurança jurídica, na vertente da proteção da confiança, o princípio da legalidade, consagrado no artigo 266.º da CRP, bem como o princípio da não retroatividade das leis fiscais, o princípio da legalidade e o princípio geral de aplicação da lei no tempo.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta, em síntese, que o direito constituído dos requerentes a beneficiar do regime dos residentes não habituais, terminou no final do período de tributação de 2020, e no início do período de tributação de 2021 já se encontrava em vigor a Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, que passou a inviabilizar a renovação automática do regime.
Conclui pela improcedência do pedido.
2. Por despacho arbitral de 13 de outubro de 2023, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações. por não haver quaisquer novos sobre que as partes devessem pronunciar-se.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 30 de agosto de 2023.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Matéria de facto
4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte.
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Os Requerentes são casados, têm nacionalidade sueca e deslocaram a sua residência para Portugal no ano de 2011, encontrando-se inscritos como residentes não habituais por um período de dez anos com início de vigência em 2011 e termo em 31 de dezembro de 2020.
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Os Requerentes pretenderam proceder à entrega da Declaração Modelo 3 de IRS, como residentes fiscais não habituais em Portugal, relativamente ao período de tributação de 2021, que foi recusada pelo sistema informático da Autoridade Tributária.
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Em consequência, os Requerentes submeteram uma Declaração Modelo 3 de IRS sem o Anexo L, aplicável aos residentes não habituais, que originou uma liquidação de IRS, relativa ao ano de 2021, com um valor de imposto a pagar de € 186.116,84.
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Os Requerentes deduziram reclamação graciosa contra o ato de liquidação, tendo sido notificados, em 27 de fevereiro de 2023, do projeto de decisão no sentido do indeferimento, para efeito de audição prévia.
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Os Requerentes não exerceram o direito de audição.
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A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Diretor de Finanças, de 22 de março de 2023.
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A informação dos serviços em que se baseia o despacho de indeferimento, na parte que releva, é do seguinte teor:
II-II - Apreciação e parecer:
Relativamente ao enquadramento dos reclamantes no regime dos residentes não habituais, e na sequência do pedido de informação vinculativa efetuado (vide al h) supra), veio a Direção de Serviços de IRS esclarecer as dúvidas suscitadas, informando que:
1 -Por consulta ao sistema de gestão e registo de contribuintes da AT, verifica-se que o requerente obteve o estatuto de residente não habitual pelo período de vigência de 2012 a 2021.
2- A norma contemplada inicialmente no n.º 7 do artigo 16.º do CIRS, mantida com a mesma redação até à alteração produzida pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, estabelecia o direito à tributação nos termos daquele regime pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI.
3-Considerando a situação dos sujeitos passivos que obtiveram o estatuto de residentes não habituais até à alteração legislativa decorrente da Lei 20/2012, de 14 de maio, quando perfazem os 10 anos de vigência do regime, a aplicação da redação do n.º 7 dada pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, redundaria na aplicação ultra-ativa de ume norma a um facto que não ocorre no domínio da sua vigência, a lei antiga, mas que ocorre já no decurso da vigência da lei nova, ou seja, cujo términus do prazo de 10 anos ocorre (agora) ao abrigo do disposto na lei atuai, a qual não prevê qualquer renovação.
4-Neste contexto, podemos, não obstante, interrogar-nos, se o sujeito passivo que adquiriu o direito a ser tributado como Residente Não Habitual, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da AT, ao abrigo da lei antiga, adquiriu esse direito pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, mesmo que ao final destes 10 anos essa lei já não tenha a norma referente à "renovação"? Ou seja, está aqui em causa saber se há algum direito adquirido que deva ser salvaguardado com a alteração legislativa que ocorreu em 2012 no sentido de esta alteração legislativa, face ao princípio da não retroatividade, apenas se aplicar a relações jurídicas que se constituam após a sua entrada em vigor, c que é dizer quando o pedido e registo de Residente Não Habitual se verificasse após a entrada em vigor daquela alteração legislativa de acordo com o disposto no artigo 120 da Lei Geral Tributária bem como face ao disposto no artigo 12.º do Código Civil.
5- 0ra, o que está em causa não é o direito ao gozo deste regime fiscal pelo período de 10 anos, é, antes, saber se houve até à alteração da lei em 2012, por estes contribuintes com o estatuto de RNH, alguma aquisição ao direito à renovação deste regime de tributação e no nosso entender, afigura-se-nos que não.
Com efeito, a estatuição da norma antiga no que se refere a "renováveis" tem de se entender, necessariamente, que a mesma deve verificar-se caso, à data do termo do período de 10 anos, se verifiquem todas as condições de que depende o registo do contribuinte como residente não habitual, desde logo, deve a norma com tal estatuição "renováveis" existir na ordem jurídica, o que não é o caso,
7-Concluir o contrário, implicaria admitir a ultra-atividade indefinidamente de uma norma jurídica que o legislador em tempos parcialmente revogou.
8-Face ao que precede, não se encontrando em vigor a norma que continha a referência à renovação do regime e atendendo a que o legislador não tinha por intenção a manutenção do regime por mais de 10 anos, como ficou clarificado com as alterações da Lei no 20/2012, de 14 de maio, bem como à luz dos princípios subjacentes à aplicação da lei no tempo, deve entender-se que o regime fiscal dos residentes não habituais não é renovável uma vez que, ao fim do período de 10 anos previsto na norma, essa possibilidade já não se verifica na lei."
Ou seja, relativamente ao Estatuto de Residente Não Habitual e até à entrada em vigor da alteração produzida pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, os nos 6 a 9 do artigo 16.º do CIRS dispunham que:
"6 - Considera-se que não têm residência habitual em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, não tenham em qualquer dos cinco anos anteriores sido tributados como tal em sede de IRS;
7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos;
8 - O gozo do direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no número anterior requer que o sujeito passivo nele seja considerado residente para efeitos de IRS;
9 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior num ou mais anos do período referido no n.º 7 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, contando que nele volte a ser considerado residente para efeitos de IRS;"
Porém, com a entrada em vigor da já referida Lei no 20/2012, não se prevê qualquer renovação do Estatuto de Residente Não Habitual após os 10 (dez) anos concedidos aquando do pedido inicial,
Face ao exposto, e remetendo-se a apreciação feita para a resposta ao pedido de informação vinculativa efetuado, sou de parecer que o pedido não deverá proceder, pelo que, deverá considerar-se como correta a liquidação reclamada.
III - Proposta de decisão
Nos termos do presente Parecer, propõe-se que a reclamação seja indeferida.
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Na sequência da nova redação dada ao n.º 7 desse artigo 16.º do CIRS pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, os Requerentes formularam um pedido de informação vinculativa em que em pediam esclarecimento sobre:
- Se a renovação automática da inscrição no regime especial de tributação dos residentes não habituais por mais 10 anos consecutivos, é passível de ser concretizada no caso dos sujeitos passivos que solicitaram a inscrição no dito regime previamente à alteração legislativa de 14 maio de 2012, i.e., inscrições como residente fiscal em Portugal realizadas até 14 de maio de 2012;
- Se o processo de renovação deve ser enviado para a Direção de Serviços de Registo de Contribuintes ou qual o procedimento que deve ser seguido pelo contribuinte.
I) A Autoridade Tributária prestou a seguinte informação:
1 - Por consulta ao sistema de gestão e registo de contribuintes da AT, verifica-se que o requerente obteve o estatuto de residente não habitual peto período de vigência de 2012 a 2021.
2- A norma contemplada inicialmente no n.º 7 do artigo 16.º do CIRS, mantida com a mesma redação até à alteração produzida pela Lei n.º 20/02012, de 14 de maio, estabelecia o direito à tributação nos termos daquele regime pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI.
3-Considerando a situação dos sujeitos passivos que obtiveram o estatuto de residentes não habituais até à alteração legislativa decorrente da Lei 20/2012, de 14 de maio, quando perfazem os 10 anos de vigência do regime, a aplicação da redação do n.º 7 dada pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, redundaria na aplicação ultra-ativa de uma norma a um facto que não ocorre no domínio da sua vigência, a lei antiga, mas que ocorre já no decurso da vigência da lei nova, ou seja, cujo términus do prazo de 10 anos ocorre (agora) ao abrigo do disposto na lei atuai, a qual não prevê qualquer renovação.
4-Neste contexto, podemos, não obstante, interrogar-nos, se o sujeito passivo que adquiriu o direito a ser tributado como Residente Não Habitual, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da AT, ao abrigo da lei antiga, adquiriu esse direito pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, mesmo que ao final destes 10 anos essa lei já não tenha a norma referente à "renovação"? Ou seja, está aqui em causa saber se há algum direito adquirido que deva ser salvaguardado com a alteração legislativa quo ocorreu em 2012 no sentido de esta alteração legislativa, face ao principio da não retroatividade, apenas se aplicar a relações jurídicas que se constituam após a sua entrada em vigor, o que é dizer quando o pedido e registo de Residente Não Habitual se verificasse após a entrada em vigor daquela alteração legislativa de acordo com o disposto no artigo 12.º da Lei Geral Tributária, bem como face ao disposto no artigo 12.º do Código Civil.
5 - Ora, o que está em causa não é o direito ao gozo deste regime fiscal pelo período de 10 anos, é, antes, saber se houve até à alteração da lei em 2012, por estes contribuintes com o estatuto de RNH, alguma aquisição ao direito à renovação deste regime de tributação e no nosso entender, afigura-se-nos que não.
6.Com efeito, a estatuição da norma antiga no que se refere a «renováveis" tem de se entender, necessariamente, que a mesma deve verificar-se caso, à data do termo do período de 10 anos, se verifiquem todas as condições de que depende o registo do contribuinte como residente não habitual. desde logo, deve a norma com tal estatuição "renováveis• existir na ordem jurídica, o que não é o caso.
7-Concluir o contrário, implicaria admitir a ultra-atividade indefinidamente de uma norma jurídica que o legislador em tempos parcialmente revogou.
8-Face ao que precede, não se encontrando em vigor a norma que continha a referência à renovação do regime e atendendo a que o legislador não tinha por intenção a manutenção do regime por mais de 10 anos, corno ficou clarificado com as alterações da Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, bem como à luz dos princípios subjacentes à aplicação da lei no tempo, deve entender-se que o regime fiscal dos residentes não habituais não é renovável uma vez que, ao fim do período de 10 anos previsto na norma, essa possibilidade já não se verifica na lei.
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Os Requerentes foram notificados da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa, por ofício datado de 23 de março de 2023.
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O pedido arbitral deu entrada em 19 de junho de 2023.
Factos não provados
Não há factos não provados que revelem para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária com a sua resposta.
Matéria de direito
5. Os Requerentes encontravam-se inscritos como residentes não habituais pelo período de dez anos com início em 2011 e termo em 2020.
O pedido de inscrição foi apresentado em 21 de março de 2011, quando se encontrava em vigor o artigo 16.º, n.º 7, do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, que admitia o direito a ser tributado como residentes não habituais (RNH) pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis.
O referido preceito, a que corresponde atualmente o n.º 9 do artigo 16.º, por efeito da redação introduzida pela Lei n.º 20/2012, de 24 maio, passou a determinar que o sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
Por efeito da alteração legislativa, os Requerentes não puderam submeter a declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2021, como residentes não habituais, e tiveram de o fazer através de nova declaração, sem o Anexo L aplicável aos residentes não habituais, de que resultou uma liquidação de IRS com um valor de imposto a pagar de € 186.116,84.
Os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra o ato de liquidação, que foi indeferida com fundamento de que, com a nova redação dada ao n.º 7 do artigo do CIRS não há lugar à renovação do regime de residente não habitual.
Esse mesmo entendimento foi mantido em resposta a um pedido de informação vinculativa formulado pelos Requerentes.
Entendem os interessados que, por efeito do estatuto de RNH adquirido em 2011, constituíram nas suas esferas jurídicas o direito a beneficiar de um período de vigência de 10 anos consecutivos renováveis, que se estendia para além do ano de 2020.
É esta a questão a decidir.
Aplicação da lei no tempo
6. As normas em análise são as do artigo 16.º, n.º 7, do CIRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, que produziu efeitos desde 1 de janeiro de 2009, e na redação da Lei n.º 20/2012, de 24 maio, com início de vigência a 15 de maio de 2012.
Na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, a norma dispunha nos seguintes termos:
7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção Geral de Impostos.
Na nova formulação introduzida pela Lei n.º 20/2012, passou a ser do seguinte teor:
7 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
A alteração legislativa resultante da Lei n.º 20/2012, que deixou de fazer referência à possibilidade de renovação do período de 10 anos consecutivos, como residente não habitual, ocorreu, no caso concreto, ainda no decurso do período inicial de 10 anos em que os Requerentes beneficiavam desse estatuto, pelo que a questão que se coloca é de aplicação da lei no tempo.
A Lei Geral Tributária, a propósito da aplicação da lei tributária no tempo, estabelece dois princípios gerais complementares: segundo o n.º 1 do artigo 12.º, “as normas tributárias aplicam-se a factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados impostos retroativos”; nos termos do n.º 2 desse artigo, “se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”.
Enquanto o princípio expresso no n.º 1 pode ser interpretado como correspondendo a proibição da retroatividade autêntica, já o n.º 2 veda ao legislador fiscal, em relação a factos tributários de formação sucessiva, a aplicação da nova lei aos factos tributários em formação, instituindo o princípio pro rata temporis. E, desse modo, esse n.º 2, indo além da própria exigência constitucional, consagra a proibição da retroatividade inautêntica, impedindo que a Administração Tributária possa aplicar a lei nova que produz um agravamento fiscal aos rendimentos auferidos antes da data da sua entrada em vigor ou eliminar para o futuro um benefício fiscal que se encontrasse já constituído na esfera jurídica do sujeito passivo.
A norma carece, no entanto, de ser articulada com o artigo 12.º do Código Civil, que estabelece os princípios gerais no tocante à aplicação das leis no tempo, e é do seguinte teor:
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
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Como explica Baptista Machado, o artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil estabelece o princípio segundo o qual “a lei só dispõe para o futuro, quando lhe não seja atribuída eficácia retroativa; e que, mesmo nesta última hipótese, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”. Por sua vez, o n.º 2 desse artigo, “distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (primeira parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (segunda parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas constituídas antes da lei nova mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 6.ª reimpressão, 1993, págs. 232-233). Nesse sentido, poderia sintetizar-se a teoria da aplicação da lei no tempo, distinguindo entre constituição e conteúdo da situação jurídica. “À constituição das situações jurídicas (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data do início de vigência da lei nova aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e os seus efeitos (…)” (Ibidem, pág. 234).
Explicitando esta posição, o mesmo autor refere:
“Ora, a lei nova relativa ao conteúdo (ou efeitos) de uma relação jurídica só não abstrai dos factos que a essa relação deram origem quando define ou modela intrinsecamente esse conteúdo em função de tais factos (...) isto é, quando os efeitos ou consequências jurídicas que ela determina são o produto da valoração legal de tais factos e variam consoante essa valoração, de tal modo que se possa dizer que a aplicação da lei nova aos efeitos duma relação constituída com base num facto passado representaria uma nova valoração desse facto passado e, consequentemente, teria carácter retroativo” (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, págs. 18-19 ).
E acrescenta que “(…) no n.º 2 do artigo 12.º do nosso Código estabelece-se a seguinte disjuntiva: a lei nova, ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos, e neste caso só se aplica a factos novos, ou define o conteúdo (os efeitos) de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação jurídica deram origem, e então é de aplicação imediata (quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas anteriormente constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor)” (Ibidem, pág. 29).
Em idêntico sentido, Pires de Lima e Antunes Varela anotam o seguinte:
“Previnem-se no n.º 2, em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, ou referentes aos seus efeitos. Assim, por exemplo, as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios de consentimento, forma, etc.), bem como os efeitos da respetiva invalidade, têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado. (...). Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável. Assim, para fixar o conteúdo do direito de propriedade, ou de qualquer outro direito real, é aplicável a lei nova e não a lei da data da sua constituição. Não interessa, na verdade, saber qual foi o título constitutivo, nem qual foi, por consequência, a data da formação do direito. (...)” (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, pág. 61).
Nesta mesma linha de orientação, o acórdão do STA de 13 de julho de 2023 (Processo n.º 013/23), referindo-se ao disposto no artigo 12.º do Código Civil, conclui que, “por força daquela regra da aplicação prospetiva da nova lei, as normas tributárias contidas na LGT não se aplicam a factos e efeitos consumados no domínio da lei anterior; mas se essas normas definirem o conteúdo (ou efeitos) de relações jurídico tributárias duradouras, sem referência ao facto que lhes deu origem, elas vão aplicar-se não só às relações e situações jurídicas que se constituírem após a sua entrada em vigor, como, também, a todas aquelas que, constituídas antes, protelem a sua vida para além do momento da entrada em vigor da nova regra”.
Neste condicionalismo, a norma do artigo 12.º da LGT, como se afirma no mesmo aresto, limita-se a reafirmar o princípio geral de direito constante do artigo 12.º do Código Civil, de que as normas tributárias se aplicam aos factos posteriores à sua entrada em vigor, e a explicitar o princípio constitucional da irretroatividade dos impostos constante do artigo 103.º da Constituição. Mas não regulando essa norma todas as hipóteses de direito transitório tributário, ter-se-á de convocar, para as situações que nela se não encontrem previstas, os princípios gerais respeitantes à aplicação das leis no tempo, a que se refere aquela outra disposição da lei civil.
7. Revertendo à situação do caso, importa fazer notar que a Lei n.º 20/2012, mediante a nova redação dada ao n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, alterou o regime dos residentes não habituais mediante a eliminação da possibilidade da renovação do período inicial de 10 anos, abstraindo dos factos que originaram a situação jurídica dos interessados que anteriormente se encontrava regulada pelo referido dispositivo legal na redação constante do Decreto-Lei n.º 249/2009.
Na nova redação, a lei consigna que o residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português, mantendo a exigência de que o facto constitutivo do direito à tributação como residente não habitual depende da inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção Geral de Impostos. No entanto, a nova lei define o conteúdo da relação jurídica sem atribuir qualquer relevo ao título constitutivo da preexistente qualidade de residente não habitual, nem à data da formação do direito a ser tributado com base nesse regime fiscal. E, nesse sentido, o legislador limitou-se a efetuar uma nova valoração do estatuto do residente não habitual, desinteressando-se da relação jurídica constituída através de factos passados.
Assim sendo, por aplicação do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil, a lei nova abrange as relações jurídicas já constituídas, que subsistiam à data da sua entrada em vigor.
E, por conseguinte, no termo do período inicial de 10 anos consecutivos como residentes não habituais, que ocorreu em 31 de dezembro de 2020, os Requerentes encontravam-se já sujeitos ao novo regime legal e não podiam beneficiar da renovação desse estatuto com base no disposto na lei antiga.
Alegam os Requerentes que a não renovação do estatuto de RNH após o período inicial de dez anos contados desde 2011 viola o princípio da segurança jurídica, na vertente da proteção da confiança, o princípio da legalidade, consagrado no artigo 266.º da CRP, bem como o princípio da não retroatividade das leis fiscais.
São estas as questões que cabe agora analisar, sendo que, por razões de método de exposição, interessa começar por considerar a possível violação do princípio da proibição da retroatividade das leis fiscais.
Princípio da proibição da retroatividade das leis fiscais
8. Na revisão constitucional de 1997, o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança de impostos retroativos. Segundo a doutrina, esse princípio já poderia considerar-se como uma decorrência do princípio da proteção de confiança e da ideia de Estado de direito inscrito no artigo 2.º da Constituição (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 1092-1093).
Como esclarece o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2009, até 1997 as decisões do Tribunal Constitucional assentavam no argumento segundo o qual a retroatividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse "de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afetados, ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram" (neste sentido, os acórdãos nos 409/89, 216/90, 410/95 e 1006/96).
Com a proibição da retroatividade em matéria fiscal expressa na Constituição, o Tribunal Constitucional passou a considerar que a proibição da retroatividade em matéria fiscal deixou de ter uma dimensão subjetiva, que dependesse, em concreto, da violação do princípio da confiança no contexto dos sujeitos da relação tributária, para ter antes numa dimensão objetiva. Assim concluindo que o juízo de inconstitucionalidade, em relação a uma lei fiscal retroativa que seja desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado.
No entanto, o Tribunal Constitucional entendeu que a retroatividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroatividade própria ou autêntica, não pretendendo integrar as situações em que o facto tributário que a lei nova pretende regular não ocorreu totalmente ao abrigo da lei antiga, antes continuando a formar-se na vigência da lei nova (cfr., além do citado acórdão n.º 128/2009, os acórdãos n.ºs 85/2010 e 399/2010). Ou seja, proíbe-se a retroatividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos tributários anteriores à entrada em vigor da lei nova.
Ora, no caso concreto, a nova redação dada ao artigo 16.º, n.º 7, do Código do IRS pela Lei n.º 20/2012 não obstou a que os Requerentes pudessem continuar a beneficiar do estatuto de residentes não habituais no período inicial de 10 anos, segundo o disposto na referida norma, na primitiva redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, nem tão pouco afetou os direitos dos Requerentes no período anterior à entrada em vigor da nova lei (ou seja, em 2011, quando teve início o regime de residentes não habituais e até 14 de maio de 2012, quando entrou em vigor a nova lei), e apenas impediu que os interessados pudessem manter o benefício da renovação automática do estatuto de residentes não habituais por um novo período de 10 após o transcurso do período inicial.
Encontrando-se essa possibilidade de renovação prevista na anterior redação do artigo 16.º, n.º 7, do Código do IRS, segundo o disposto no Decreto-Lei n.º 249/2009, a nova lei aplica-se para futuro a relações jurídicas presentes não terminadas (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 287/90), e, nesse sentido, não contempla uma situação de retroatividade autêntica, mas de mera retrospetividade, e não implica uma violação direta do princípio da proibição da retroatividade consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, que, como se disse, apenas se refere à retroatividade própria ou autêntica.
Princípio da proteção da confiança
9. Excluída a inconstitucionalidade por violação do princípio da retroatividade da lei fiscal, a questão carece de ser analisada à luz do parâmetro da proteção da confiança.
Como se refere ainda no citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2009, em situações de retroatividade imprópria ou até de não retroatividade, poderá suscitar-se a questão constitucional da tutela da confiança quando se verifique a aplicação de uma lei nova a factos passados ou a factos de formação sucessiva. O que poderá ocorrer quando num contexto anterior à ocorrência do facto novo, a lei poderia ter criado, eventualmente, expectativas jurídicas da manutenção do status quo anterior.
O Tribunal Constitucional tem firmado o entendimento de que o princípio do Estado de direito democrático postula «uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à consideração de que «a normação que, por natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança jurídica que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» (entre outros, o acórdão n.º 303/90).
Referindo-se especificamente a situações de retrospetividade ou retroatividade inautêntica, o Tribunal Constitucional, no já referido acórdão n.º 287/90, teve também já oportunidade de definir a ideia de arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, por referência a dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutros arestos) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (neste sentido, o citado acórdão n.º 128/2009).
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado.
Não há, no entanto, como se afirmou no acórdão n.º 287/90, “um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados”. O legislador não está impedido de alterar o sistema legal afetando relações jurídicas já constituídas e que ainda subsistam no momento que é emitida a nova regulamentação, sendo essa uma necessária decorrência da autorevisibilidade das leis. O que se impõe determinar é se poderá haver por parte dos sujeitos de direito um investimento de confiança na manutenção do regime legal.
10. Como se referiu já, o estatuto de residente não habitual foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, mediante o aditamento dos n.ºs 6, 7, 8 e 9 ao artigo 16.º do Código do IRS, e que igualmente aprovou o Código Fiscal do Investimento, que continha, na sua parte III, o regime fiscal do investidor residente não habitual.
Na respetiva nota preambular, as medidas instituídas por esse diploma, encontram-se justificadas nos seguintes termos.
A crescente projeção de Portugal no cenário mundial obriga a uma reflexão profunda sobre as orientações negociais nas relações económicas internacionais, sendo, nesta perspetiva, imperioso que seja delineada uma estratégia fiscal global assente nos atuais paradigmas da competitividade. Esta circunstância conduz a que os instrumentos de política fiscal internacional do nosso país devam funcionar como fator de atração da localização dos fatores de produção, da iniciativa empresarial e da capacidade produtiva no espaço português.
A presente iniciativa legislativa vem, assim, dar consagração jurídica a um novo espírito de competitividade da economia portuguesa, com o qual se prende estimular a economia nacional e o tecido empresarial português.
Foi nesse contexto reformador que o Código Fiscal do Investimento procedeu à regulamentação conjunta dos benefícios fiscais a atribuir às empresas que promovam projetos de investimento realizados até 31 de dezembro de 2020 e que sejam relevantes para o desenvolvimento do tecido empresarial nacional, e consagrou o novo regime do investidor residente não habitual, que previa um tratamento fiscal mais favorável, em sede de IRS, relativamente a determinados rendimentos auferidos (cfr., sobre estes aspetos, Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 2.ª edição, Coimbra, págs. 62-63).
Por outro lado, a Lei n.º 20/2012, que introduziu alterações na Lei do Orçamento do Estado para 2012, no Código do IRS e no Código Fiscal de Investimento, entre outros diplomas, encontra-se justificada, como se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 51/XII, que lhe deu origem, pelos resultados da Terceira Missão da Avaliação do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro.
Em declaração conjunta da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional, que participaram na terceira missão de avaliação em Portugal (disponível em https://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/sec/pr/2012/pr1259p.pdf) ([1]), afirma-se, além do mais, o seguinte:
“As políticas estão, em geral, a ser executadas como planeado e o ajustamento económico está em curso. A importante correção orçamental em 2011 e o orçamento rigoroso para 2012, designadamente, reforçaram a credibilidade da estratégia de consolidação orçamental de Portugal, de impacto imediato. As reformas do sector financeiro e os esforços de desalavancagem estão a avançar, ao mesmo tempo que estão a ser tomadas medidas para assegurar as necessidades de crédito das empresas com boas perspetivas de crescimento. As reformas para aumentar a competitividade, o crescimento e o emprego têm também vindo a registar progressos, apesar de muitas delas continuarem a aguardar uma implementação integral. O amplo consenso político e social subjacente ao programa constitui um elemento fundamental.
[…]
A meta estabelecida para o défice orçamental de 2012 permanece exequível. Prevê-se que a meta de um défice de 4,5 % do PIB seja cumprida com as medidas atuais, desde que não se venha a concretizar uma revisão em baixa das perspetivas económicas. Para conter os riscos orçamentais, o Governo terá de reforçar as medidas para a acumulação de pagamentos em atraso e vai aplicar uma estratégia para a liquidação dos pagamentos em atraso existentes. O Governo acordou igualmente um programa de ajustamento com a Região Autónoma da Madeira e prosseguirá a reforma das empresas públicas, o reforço da administração fiscal e a racionalização da administração pública.
Registaram-se mais progressos em matéria de proteção e de desalavancagem ordenada do sistema bancário. As regras para a concessão de capital público aos bancos foram clarificadas e estão a ser ultimados planos para assegurar que as reservas de capital dos bancos cumpram os objetivos estabelecidos para junho de 2012. Espera-se que, na sequência das recentes decisões de política monetária tomadas pelo BCE, os problemas de liquidez dos bancos continuem a diminuir. Além disso, as autoridades estão a considerar uma série de medidas para atenuar os problemas de financiamento de empresas sólidas, nomeadamente medidas adequadas para desincentivar a perpetuação de empréstimos duvidosos, que não deverão pôr em risco as finanças públicas. A evolução da situação será objeto de uma análise atenta para assegurar que a inevitável desalavancagem não prive de crédito as empresas dinâmicas.
Estão a ser levadas a cabo várias reformas estruturais potenciadoras do crescimento. O recente acordo tripartido sobre as reformas do mercado de trabalho sublinha a capacidade de Portugal para tomar medidas de reforma arrojadas no contexto do diálogo social. As reformas estão também a progredir positivamente no que diz respeito ao desbloqueamento do sistema judicial, à promoção da concorrência, à privatização das empresas viáveis e ao fomento de um mercado de arrendamento habitacional eficaz.
[…].
Em resumo, Portugal tem vindo a registar progressos positivos no sentido de ajustar os seus desequilíbrios económicos. A execução determinada das reformas continua a ser fundamental para assegurar a recuperação económica e sustentabilidade orçamental. Estes esforços serão apoiados por um reforço do quadro de política económica da UE. Além disso, desde que as autoridades continuem a apostar numa execução rigorosa do programa, os Estados-Membros da zona euro declararam que estão prontos a apoiar Portugal até que o país consiga regressar ao mercado.
Neste contexto, a possibilidade de um sujeito passivo ser considerado residente não habitual pelo período de 10 anos consecutivos, com renovação por períodos sucessivos, tal como constava do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009, pode ser tida como resultante de uma situação conjuntural que, na perspetiva do legislador, já não se verificava à data de 2020 por virtude de uma evolução favorável da economia.
Havendo de entender-se que, por efeito da alteração introduzida nessa disposição pela Lei n.º 20/2012, a renovação automática do período inicial de 10 anos em que o sujeito passivo se encontre inscrito como residente não habitual, deixou de ter plena justificação no plano da política legislativa.
Analisando a questão a partir do princípio da proteção da confiança, será de admitir que a possibilidade de renovação do direito a ser considerado como residente não habitual para além do período inicial de 10 anos, tal como se encontrava prevista na anterior redação do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, poderá ter gerado na esfera jurídica dos interessados a expectativa legítima de continuidade do regime jurídico. O legislador criou a figura do residente não habitual com o intuito de atrair profissionais qualificados, indivíduos com património elevado ou pensionistas estrangeiros, que pudessem contribuir para o processo de desenvolvimento e modernização da economia portuguesa e para o acréscimo do consumo e o aumento das receitas tributárias. Tendo sido estimulados, pelo comportamento do Estado, a obter o estatuto de residente não habitual, os particulares aderentes (aqui se incluindo os Requerentes) podiam razoavelmente esperar que não houvesse lugar a uma alteração radical do quadro jurídico.
Será ainda de admitir presuntivamente que os Requerentes, tendo-se inscrito como residentes não habituais para o obter o correspondente benefício fiscal, o que implicaria que fossem considerados como residentes para efeitos de IRS, tenham efetuado planos de vida e realizados investimentos com base na previsão de que o regime legal se manteria para o futuro.
No entanto, como se deixou entrever, no plano dos direitos subjetivos, a proteção da confiança dos particulares na continuidade do quadro legislativo em vigor, confronta-se com a vinculação do legislador à prossecução do interesse público e com a ampla margem de conformação de que dispõe para alterar o ordenamento jurídico, de tal modo que o alcance prático do princípio deverá de ser analisado, de acordo com o princípio da proporcionalidade, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, havendo a considerar, nessa avaliação, o “peso relativo do interesse que conduziu à alteração legislativa, a relevância dos interesses dos particulares e a intensidade da sua afetação (…) e a própria margem de livre conformação que deve ser deixado ao legislador democrático em Estado de Direito” (quanto a todos estes aspetos, Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, págs. 261 e segs. e, em especial, pág. 264).
Ora, a alteração legislativa que determinou a eliminação da possibilidade de renovação do estatuto de residente não habitual, após o período inicial de 10 anos, encontra-se justificada pelos resultados da Terceira Missão da Avaliação do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, que, como ficou dito, apontam consistentemente no sentido da recuperação económica e sustentabilidade orçamental e alteram a situação conjuntural que tinha servido de fundamento à implementação do estatuto do residente não habitual com a amplitude que era reconhecida no artigo 16.º, n.º 7, do Código do IRS, na redação do Decreto-Lei n.º 249/2009.
Por outro lado, a afetação dos interesses dos particulares não é especialmente intensa, porquanto o legislador não eliminou, na nova redação dada ao referido preceito pela Lei n.º 20/2012, a possibilidade de um sujeito passivo ser considerado residente não habitual e ser tributado como tal por um período de dez consecutivos após a inscrição, mas apenas pretendeu obstar a que esse estatuto pudesse ser renovado sucessivamente por novos períodos de dez anos, o que teria como consequência que o benefício fiscal associado a essa situação poderia prolongar-se indefinidamente.
Acresce ainda que a alteração se enquadra no princípio da revisibilidade das leis e da ampla margem de conformação que é reconhecida ao legislador.
Certo é que o Tribunal Constitucional tem vindo a exigir um especial ónus de fundamentação relativamente à legislação suscetível de afetar as posições jurídicas dos particulares, considerando que não basta invocar genericamente um certo objetivo de política legislativa, sendo necessário demonstrar que a medida é, do ponto de vista objetivo, um meio idóneo e apto para a aproximação ao resultado pretendido (cfr. acórdão n.º 575/14).
Não pode dizer-se, no entanto, que ocorreu, no caso, uma insuficiência de fundamentação quando o legislador remete para os resultados da Terceira Missão da Avaliação do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, que se foram publicitados, e revelam existir uma significativa modificação da situação económica e financeira relativamente à época em que foi aprovado, na forma originária o regime fiscal do residente não habitual.
Não há motivo, por conseguinte, para considerar verificada a violação do princípio da proteção da confiança.
Direitos adquiridos
11. Os Requerentes alegam ainda que a alteração legislativa que põe termo à renovação subsequente do benefício fiscal apenas poderia ser considerada para os contribuintes que tenham passado a residir em Portugal após 14 de maio de 2012, data da entrada em vigor da Lei n.º 20/2012, que alterou a redação daquele preceito, não podendo afetar as situações jurídicas já constituídas e os direitos adquiridos na vigência da lei anterior (artigo 46.º da petição inicial).
A este propósito, cabe dizer que a teoria dos direitos adquiridos, que tem sido abandonada pela doutrina pela sua imprecisão conceptual (cfr. Baptista Machado, ob. cit., pág. 232), apenas pode ser invocada como um limite à retroatividade da lei. Só pode ser tido como direito adquirido o direito subjetivo que se tenha constituído na esfera jurídica do seu titular. Quando se trata de uma situação jurídica em que a renovação do estatuto de residente não habitual após o período inicial de dez anos consecutivos não ocorre no domínio da lei antiga, mas na vigência da nova lei, o que pode haver é a mera expectativa de que esse efeito jurídico venha a produzir-se. E, nesse sentido, as expectativas não podem ser tuteladas pelo princípio da não retroatividade, mas pelo princípio da proteção da confiança (cfr. Pedro Romano Martinez, “Alteração de Regime Jurídico e Tutela dos Direitos Adquiridos”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, julho/dezembro de 2011, págs. 103 a 106).
Está fora de dúvida que, quando entrou em vigor a nova redação do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, introduzida pela Lei n.º 20/2012, estava ainda em curso o prazo inicial de dez anos de que os Requerentes beneficiavam por efeito da inscrição como residentes não habituais, e não tinha sido ainda constituída na sua esfera jurídica o direito à renovação desse prazo.
A questão não se configura, por conseguinte, como constituindo a violação de direito adquirido e teria de ser enquadrada no âmbito da tutela da confiança. Mas como o tribunal pôde já concluir não houve, nas circunstâncias do caso, qualquer violação desse princípio.
Princípio da legalidade
12. Os Requerentes invocam ainda a violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da Constituição e concretizado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
Tal como consta do referido artigo 266.º da Constituição, o princípio da legalidade constitui um princípio da atividade administrativa que, na parte que mais interessa considerar, se traduz no princípio de prevalência da lei, significando que a Administração no exercício da sua atividade deve conformar-se com as leis, sob pena de ilegalidade (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Coimbra, vol. II, pág. 798).
A violação do princípio da legalidade pressupunha, por conseguinte, que a Autoridade Tributária, na apreciação do caso concreto, incorresse em violação de lei.
Por outro lado, é ao tribunal que cabe definir o direito aplicável, e por tudo o que acabou de se expor, a Administração fez correta interpretação da lei e não cometeu qualquer ilegalidade ao efetuar a liquidação impugnada e ao indeferir a reclamação graciosa contra ela deduzida.
Reembolso do imposto liquidado e juros indemnizatórios
13. Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, fica necessariamente prejudicado o pedido de reembolso do imposto liquidado e do pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide:
-
Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e manter na ordem jurídica o ato de liquidação impugnado e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida;
-
Absolver a Autoridade Tributária dos pedidos acessórios de reembolso do imposto liquidado e do pagamento de juros indemnizatórios.
Valor da causa
Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 130.004,85, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo dos Requerentes.
Notifique.
Lisboa, 16 de novembro de 2023
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
A Árbitro vogal
Adelaide Moura
A Árbitro vogal
Marta Vicente