Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 25/2023-T
Data da decisão: 2023-11-21  ISV  
Valor do pedido: € 24.206,48
Tema: ISV – Despacho n.º 348/2018-XXI, de 01.08.2018 (retificado pelo Despacho n.º 375/2018-XXI, de 31.08.2018) do SEAF. Caducidade. Princípio da legalidade.
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Sumário:

I – O novo sistema de medição designado de “Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure” (WLTP), regulado pelo Regulamento (EU) 2017/1151 da Comissão de 1 de junho de 2017, veio substituir o sistema de medição de emissões de CO2 NEDC, anteriormente em vigor.

II – O Despacho n.º 348/2018 – XXI, de 1 de agosto, proferido pelo Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, por delegação do Ministro das Finanças, teve em vista clarificar o valor das emissões de CO2 relevante para o cálculo do ISV e IUC, foi fundamento para as liquidações adicionais postas em crise nos presentes autos. III - O ponto 3 deste Despacho introduziu, para efeitos do cálculo do ISV relativo ao período de 1 de setembro de 2018 a 31 de dezembro de 2018, regras específicas de determinação do nível de emissões de CO2, ou seja, da base de incidência do ISV, pelo que viola o princípio da legalidade consagrado no artigo 103º, nº2 e 165º, nº1, alínea i) da Constituição.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. Relatório
  1. A..., LDA, sociedade com sede na Rua..., n.º ..., ...-..., Lisboa, com o número único de matrícula e de pessoa coletiva..., afeto ao serviço periférico local de Lisboa – ... (doravante “Requerente”), veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular, com vista à declaração de ilegalidade de sessenta e dois atos de liquidação de Imposto sobre Veículos (“ISV”) e respetivas liquidações de juros compensatórios, todos juntos aos autos no documento nº 1 anexo ao pedido arbitral, que aqui se dá por integralmente reproduzido:

 

Estes atos de liquidação, deram origem, ainda, às liquidações de juros compensatórios, que constam do documento nº1 em anexo ao pedido arbitral, bem assim como do processo administrativo (PA). Todos os atos de liquidação de imposto e respetivos juros, no valor global de € 24.206,48, foram emitidos na sequência da notificação do Ofício ..., de 10.10.2022, junto aos autos.

 

  1. Alega a Requerente que as liquidações impugnadas são ilegais, uma vez que as mesmas padecem dos seguintes vícios:

 

  1. falta de fundamentação;
  2. violação do prazo de caducidade do ISV;
  3. inconstitucionalidade formal do Despacho n.º 348/2018-XXI que consagra o regime transitório de tributação em sede de ISV e de IUC, por violação dos princípios do Estado de Direito e da legalidade;
  4. erro sobre os pressupostos de facto e de direito, uma vez que a Requerente efetuou uma correta aplicação do Despacho n.º 348/2018-XXI, considerando que as alterações nas versões foram motivadas exclusivamente pela alteração ao sistema de medição de CO2, tal como permitido pelo Despacho, e as alegadas alterações de tara e de peso bruto são irrelevantes para a aplicação do referido Despacho;
  5. inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pela administração aduaneira que recai sobre o Despacho n.º 348/2018-XXI por violação dos princípios da igualdade, da coerência sistemática e da proporcionalidade;
  6. ilegalidade dos atos tributários por desconformidade com o direito da União Europeia.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 10-01-2023, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT. Em 3-03-2023, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a ora signatária como árbitro, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 31-08-2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, o Tribunal Arbitral ficou, foi constituído em 21-03-2023. Nesta mesma data foi proferido despacho arbitral, em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

  1. A AT apresentou Resposta, em 29-04-2023, e juntou o processo administrativo que se encontra junto aos autos. Em suma, a AT contesta todas as ilegalidades invocadas pela Requerente no presente pedido arbitral e pugna pela legalidade de todos os atos de liquidação impugnados, bem assim como das respetivas liquidações de juros compensatórios, defendendo a improcedência total do pedido arbitral formulado e a manutenção das liquidações adicionais impugnadas.

 

  1. A Requerente arrolou uma testemunha, o Eng.º B..., Engenheiro Mecânico, invocando a necessidade de produção da prova testemunhal indicada, atenta a complexidade da matéria factual em causa nos autos. Pelo que, o tribunal arbitral realizou a reunião nos termos do artigo 18.º, n. 2 do RJAT, no dia 08/09/2023, pelas 14h 15m, conforme consta da ata junta aos autos e que se dá por integralmente reproduzida. Na reunião foi, ainda, fixado prazo para alegações escritas e, nos termos do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, o Tribunal determinou a prorrogação do prazo referido no n.º 1 do artigo citado por dois meses, a contar do término daquele, bem como a comunicação de tal circunstância ao Conselho Deontológico do CAAD, por força do n.º 3 do artigo 11.º do Código Deontológico, determinada designadamente em virtude do período de férias judiciais, da tramitação processual subsequente definida. O Tribunal, em cumprimento do disposto no artigo 18.º n.º 2.º do RJAT, designou o dia 21- 11-2023 para o efeito de prolação da decisão arbitral.

 

  1. A requerida AT juntou alegações escritas em 18-09-2023. A requerente juntou as suas alegações escritas no dia 19-09-2023. As partes reiteraram, em sede de alegações, as posições vertidas nas peças processuais anteriores. Adicionalmente, a requerida AT veio aos autos juntar cópia da Decisão Arbitral proferida no processo nº 688/2022-T. Por sua vez, a Requerente juntou cópia da Decisão Arbitral proferida no processo nº 596/2022-T.

 

II. Saneamento

 

  1. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
  2. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  3. O processo não enferma de nulidades.

 

Quanto à cumulação de pedidos:

 

  1. Admite-se a cumulação de pedidos apresentada pela Requerente, uma vez que todos os atos de liquidação respeitam a ISV, e têm origem no mesmo procedimento de liquidação oficiosa de imposto, referentes ao mesmo período e com base na mesma interpretação e aplicação do regime de imposto em vigor ao tempo dos factos tributários. Não subsiste qualquer dúvida que a pretensão da requerente é a de obter a declaração de ilegalidade e a anulação de cada um deles, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito. Assim sendo, nos termos e em conformidade com o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, admite-se o pedido de acumulação de pedidos formulado pela Requerente.

 

  1. Não existem questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.   Todas as questões suscitadas, incluindo a da caducidade do direito de liquidação, requerem a apreciação da matéria de facto e de direito, que será apreciada de seguida.

 

III. Fundamentação

 

§1º Decisão da Matéria de facto

 

  1. Com relevância para a decisão a proferir consideram-se provados os seguintes factos:
  1. A Requerente é uma sociedade por quotas que tem como objeto social a “Comercialização e/ou reparação de veículos motorizados, seus componentes, peças e acessórios para os mesmos. Montar e/ou fabricar os produtos atrás indicados; a sociedade pode ainda exercer, a título acessório, a atividade de intermediação de crédito”.
  2. Tendo em consideração a atividade desenvolvida pela Requerente, esta é sujeito passivo de ISV nos termos do artigo 3.º do Código do ISV;
  3. Em outubro de 2022 a Requerente foi notificada foi notificada do Ofício n.º..., de 10.10.2022, nos termos do qual se informou que seria “(…) desencadeada a liquidação oficiosa nas DAV’s identificadas em anexo”.
  4. Estão em causa Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV’s), todas referentes a veículos registados no último quadrimestre de 2018, as quais constam do documento nº1 junto ao pedido arbitral e coincidem com as constantes do processo administrativo junto aos autos pela AT, e que se dão por integralmente reproduzidas;
  5. Do teor da notificação da “Liquidação oficiosa – Correção do CO2” dirigida à Requerente, é assinalada desconformidade no declarado nas DAV’s, a saber: “(…) nos veículos abrangidos pelo controlo, o parâmetro do CO2 não coincidente com o CO2 dos respetivos certificados de conformidade”;
  6. Os serviços da administração aduaneira promoveram as liquidações adicionais tendo em consideração a aplicação do Despacho n.º 348/2018- XXI e consideraram que “(…) não foi dado cumprimento à obrigatoriedade de que as restantes características dos veículos se manteriam inalteradas”, e que “(…) o operador registado A..., nas homologações de referência para efeitos fiscais não considerou que a alteração das características nos veículos automóveis, tais como o peso, tara e outros equipamentos opcionais, fossem fatores passíveis de influenciar o valor do CO2”;
  7. Na mesma linha, consideraram os serviços aduaneiros que também em relação aos veículos declarados com a homologação 2010... não foi dado cumprimento ao disposto no despacho, devendo os mesmos serem objeto de liquidação oficiosa, nos mesmos termos;
  8. Em julho de 2022, a Requerente foi notificada do Ofício n.º ..., de 18.07.2022, que manifestava a intenção de liquidação oficiosa sobre as declarações aduaneiras de veículos, alegadamente, porque a Requerente declarou, nos veículos abrangidos pelo controlo, o parâmetro do CO2 não coincidente com o CO2 dos respetivos certificados de conformidade;
  9. A Requerente exerceu o seu direito de audição no prazo que lhe foi fixado para o efeito;
  10. Em 14.10.2022, por Ofício n.º..., de 12.10.2022, foi a Requerente notificada das liquidações oficiosas de ISV;
  11. Os atos de liquidação adicional de imposto são os que constam da tabela seguinte:

 

  • A estes acrescem as respetivas liquidações de juros constantes do processo administrativo e que se dão por integralmente reproduzidas;
  • Tudo no valor global de € 24.206,48;
  • A Requerente procedeu ao seu pagamento em 18 de outubro de 2022;
  • Da análise do processo administrativo junto aos autos resulta que a Requerente apresentou as DAV’s do último quadrimestre de 2018, tendo em consideração as alterações legislativas ocorridas a nível europeu, quanto à alteração ao sistema de medição de CO2, bem como o Despacho n.º 348/2018-XXI e toda a evolução legislativa referente ao ISV, na ordem jurídica interna;
  • De acordo com a notificação da “Liquidação oficiosa – Correção do CO2 resulta como fundamento da mesma que:  “(…) nos veículos abrangidos pelo controlo, o parâmetro do CO2 não coincidente com o CO2 dos respetivos certificados de conformidade, tendo como fundamento a aplicação do Despacho n.º 348/2018- XXI (…) que não foi dado cumprimento à obrigatoriedade de que as restantes características dos veículos se manteriam inalteradas (…); o operador registado A..., nas homologações de referência para efeitos fiscais não considerou que a alteração das características nos veículos automóveis, tais como o peso, tara e outros equipamentos opcionais, fossem fatores passíveis de influenciar o valor do CO2”.
  • Em 10-01-2023, o Requerente apresentou o presente pedido de pronuncia arbitral.

 

Factos dados como não provados

  1. Não subsistem factos relevantes que devam ser se considerados como não provados.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

  1. A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos pela Requerente e pela Requerida, que procedeu à junção do processo administrativo.
  2. De ressaltar que do confronto entre a descrição da matéria de facto efetuada pela Requerente e pela Requerida revela que não existe qualquer divergência quanto aos factos descritos. A divergência das partes é exclusivamente de direito, como ambas, aliás, reconhecem.

Acresce que, relativamente à matéria de facto o Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, reconhecidos pelas partes, considerando que não existe divergência quanto aos factos descritos e considerados como provados. Nesta conformidade, todos os factos provados têm suporte direto nos treze documentos juntos aos autos pela Requerente e no processo administrativo junto pela Requerida.

 

III.2. Matéria de direito

 

Delimitação do objeto do litígio

 

  1. O presente pedido de constituição de Tribunal Arbitral vem interposto dos atos de liquidação de Imposto Sobre Veículos (ISV) e respetivos juros compensatórios, ocorridos no ano de 2022 e respeitantes à introdução no consumo de veículos, no período relativo ao último quadrimestre de 2018, praticados pelo Diretor da Alfândega de Alverca, notificados através do ofício nº ..., de 12.10.2022, no montante de € 20.993,87, acrescido de juros compensatórios, no valor global de €24.206,48.

As liquidações de ISV e respetivos juros compensatórios surgem na sequência de um controlo à posteriori promovido, em 2022, destinado a fiscalizar o cumprimento dos pressupostos de aplicação do regime transitório previsto nos Despachos nºs 348/2018-XXI, e 375/2018-XXI, respetivamente, de 1 e 31 de 2018, ambos proferidos por Sua Exª o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF). Tais despachos emitiram orientações nos procedimentos a adotar para o período de transição do método de medição da componente ambiental (CO2) do ISV-NEDC para o método “Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure” (doravante WALTP), (último quadrimestre de 2018), na introdução no consumo de veículos ligeiros de passageiros.

 

  1. A questão de direito a decidir por este Tribunal Arbitral consiste, concretamente, em apreciar se as liquidações adicionais de ISV, e respetivos juros compensatórios, identificadas nos autos são ou não ilegais.

A Requerente alega diversas ilegalidades, a saber:

 

  1. falta de fundamentação;
  2. violação do prazo de caducidade do ISV;
  3. inconstitucionalidade formal do Despacho n.º 348/2018-XXI que consagra o regime transitório de tributação em sede de ISV e de IUC, por violação dos princípios do Estado de Direito e da legalidade;
  4. erro sobre os pressupostos de facto e de direito, uma vez que a Requerente efetuou uma correta aplicação do Despacho n.º 348/2018-XXI, considerando que as alterações nas versões foram motivadas exclusivamente pela alteração ao sistema de medição de CO2, tal como permitido pelo Despacho, e as alegadas alterações de tara e de peso bruto são irrelevantes para a aplicação do referido Despacho;
  5. inconstitucionalidade da interpretação normativa perfilhada pela administração aduaneira que recai sobre o Despacho n.º 348/2018-XXI por violação dos princípios da igualdade, da coerência sistemática e da proporcionalidade;
  6. ilegalidade dos atos tributários por desconformidade com o direito da União Europeia.
  1. O Tribunal Arbitral, seguirá a ordem das ilegalidades alegadas, sendo que poderá não conhecer de todas elas, porquanto a decisão a proferir sobre alguma delas pode determinar que resulte prejudicado o conhecimento das seguintes.

 

Cumpre decidir.

 

  1. Quanto à alegada falta de fundamentação:

 

  1. A Requerente alega que exista vício de forma por falta de fundamentação dos atos de liquidação oficiosa de ISV aqui impugnados. Entende que os serviços da administração aduaneira não demonstraram de forma clara, congruente, suficiente e expressa o incumprimento por parte da Requerente do regime transitório que altera o artigo 4.º do Código do ISV, previsto no Despacho n.º 348/2018-XXI, de 1 de agosto, proferido pelo Exmo. Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Considera que não foram demonstrados pela Requerida quais os motivos que levaram a administração a concluir pelo incumprimento do regime transitório constante do Despacho n.º 348/2018-XXI. Nessa medida entende que persiste um vício de forma que afeta a legalidade dos atos tributários impugnados, por violação do disposto nos artigos 77.º da LGT e 125.º, n.º 2, do CPA.

 

  1. Vejamos se é assim. Dispõe o n.º 1 do artigo 77.º da LGT, que ocorre falta de fundamentação da decisão, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razoes de facto e de direito da respetiva decisão. Sendo que a fundamentação insuficiente equivale a falta de fundamentação, pois que o destinatário do ato de liquidação tem de conseguir alcançar, entender toda a extensão, sentido e alcance do ato de liquidação. Trata-se de acautelar o direito de defesa do destinatário do ato, uma vez que sem fundamentação essa defesa se afigura impossível ou seriamente dificultada. Ora, no caso dos presentes autos tal não se verifica, como bem resulta da defesa deduzida pela Requerente, a qual evidencia uma plena compreensão do percurso intelectual seguido pelo autor das liquidações impugnadas.

 

  1. Analisados os argumentos apresentados pela Requerente no pedido arbitral, bem assim como nas alegações escritas, constata-se que os fundamentos que lhe foram dados a conhecer nos ofícios notificados, quer em sede de audição prévia quer de decisão final, se revelaram suficientemente compreensíveis e inteligíveis, como resulta da argumentação deduzida no âmbito do pedido de constituição de tribunal arbitral. Assim, não se vê que assista razão à Requerente quanto à alegada violação do disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição e no artigo 77.º, da LGT. De notar, ainda, que este último normativo no nº 2 determina que:

 «2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo” Também o artigo 62.º, n.º 3, alínea i) do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) determina que o relatório de inspeção deve conter “a descrição dos factos fiscalmente relevantes que alterem os valores declarados, ou a declarar, sujeitos a tributação, com a devida menção e junção dos meios de prova, bem como a fundamentação legal de suporte das correções efetuadas”.

 

Assim, a fundamentação deve ser expressa, clara e coerente, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão. Deste modo se garante ao destinatário do ato tributário alcançar e compreender as circunstâncias de facto e de direito que motivaram a decisão. Revisitando os presentes autos verificamos que a Requerente percebeu de forma clara o sentido e alcance da decisão subjacente à emissão das liquidações de imposto impugnadas.

Da análise do processo administrativo, da sua pronúncia em sede de audiência prévia e da impugnação deduzida resulta claro que a Requerente compreendeu bem os pressupostos de facto de direito que sustentaram a liquidação efetuada. Nesta conformidade, improcede o alegado vício de falta de fundamentação.

 

  1. Quanto à alegada violação do prazo de caducidade do imposto

 

  1. Alega a Requerente que as liquidações foram emitidas e cobradas depois de decorrido o prazo de caducidade da obrigação de imposto. Entende, em síntese, que se verifica violação do prazo de caducidade do ISV, porquanto. « as liquidações de ISV em causa nos autos se reportam às DAV’s entregues no último quadrimestre de 2018 (entre 15 de outubro a 31 de dezembro de 2018), mas somente foram legalmente notificadas à Requerente em 14 de outubro de 2022, pelo que, atendendo ao hiato temporal decorrente entre a entrega das DAV’s e a notificação das liquidações de ISV, ficou demonstrado que o prazo de caducidade já se encontrava ultrapassado na data da notificação das liquidações, o que consubstancia um vício suscetível de gerar a sua anulabilidade, motivo pelo qual os atos de liquidação de ISV são ilegais e devem ser anulados.»

Alega a Requerente que o prazo de caducidade deve ser o de 3 anos previsto no Código Aduaneiro Europeu (CAU), atendendo a que o CISV é omisso quanto ao prazo de caducidade e considerando que este imposto (ISV) é um imposto intrinsecamente conexo com a importação de veículos, alega a Requerente que, «salvo melhor opinião, só poderá aplicar-se o regime de caducidade previsto no artigo 103.º do Código Aduaneiro da União (“CAU”)».

Ora, não assiste razão à Requerente nesta alegação, como se demonstrará.

 

  1. Na verdade, o Código do ISV é omisso quanto ao prazo de caducidade aplicável no âmbito do ISV. Porém, trata-se de um imposto inserido no sistema fiscal português, no qual ocupa lugar de destaque a Lei Geral Tributária (doravante LGT), cujo âmbito de aplicação resolve esta e outras questões, e que se aplica, em geral, a qualquer imposto vigente na ordem jurídica nacional. A Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, que aprovou o Código do ISV ao não prever um prazo de caducidade, reconhece como aplicável o prazo previsto na LGT. Dito de outro modo, daí não se pode concluir, sem mais, que o prazo aplicável seja o prazo previsto no CAU, o qual se assume aqui como uma lei de âmbito especial, de origem europeia, abrangendo situações de facto de alcance internacional com impacto na União Europeia, na dimensão de União Aduaneira.

Já o ISV é um imposto nacional, não harmonizado e a circunstância da administração do ISV se encontrar sob a alçada da Direção-Geral das Alfândegas é irrelevante para este efeito, já que se trata de um imposto puramente nacional e que não tem (nem poderia) ter uma dimensão aduaneira.

Por isso, não pode proceder a alegação da Requerente, segundo a qual as liquidações de ISV sub judice , que se reportam a factos tributários ocorridos no último quadrimestre de 2018 (1 de setembro a 31 de dezembro de 2018), legalmente notificadas à Requerente em 5 de julho de 2022, se encontravam caducas à luz do prazo de três anos previsto no CAU. Isto porque, pelo que se deixa exposto, o CAU não é aplicável ao caso concreto. Acompanha-se a posição defendida pela Requerida, que considera não se verificar a caducidade da liquidação de ISV por não lhe ser aplicável o Código Aduaneiro da União.

 

  1. Em conclusão, o ISV, como já se disse, é um imposto nacional, não harmonizado, e que opera de forma totalmente distinta do direito aduaneiro que, por sua vez, consiste num regime jurídico de origem europeia, com o objetivo de regular e controlar as trocas internacionais das mercadorias, e a sua circulação, em caso de importação ou de exportação, no sentido de garantir o bom funcionamento da União Aduaneira em vigor e que é uma das características da U.E.

 Assim, é o Regulamento (UE) n.º 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de outubro de 2013, que estabelece o Código Aduaneiro da União, com aplicabilidade direta e imediata nos Estados Membros, apenas e só com a abrangência que lhe concedeu a própria União Europeia. Daí que, não podemos extrair outras amplitudes de aplicação do regime do CAU, sob pena de desvirtuar a razão de ser deste regime vigente da UE e ofender a soberania fiscal dos Estados membros. A verdade é que, bem ou mal, a UE não enveredou por uma harmonização fiscal em sentido amplo, de modo a limitar os Estados membros na sua soberania fiscal.

Dito isto, conclui-se que o ISV é um imposto nacional, previsto no Código do Imposto sobre Veículos (CISV), aprovado pela Lei no 22-A/2077, de 29 de junho, de natureza especifica, monofásico, incidente sobre veículos matriculados em Portugal, sendo exigível no momento da sua introdução no mercado nacional, destinados a consumo interno. Trata-se de um imposto não harmonizado na UE e, nesse sentido, regido por normas nacionais de acordo com critérios fixados pelo Estado português, criado nos termos no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição.

Por último, citando a decisão arbitral proferida no proc. 596/2022 – T, à qual se adere, «(…) à relação jurídica tributária, aplicam-se, nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei Geral Tributária, as suas próprias disposições e, sucessivamente o Código de Processo Tributário e os demais códigos e leis tributárias, incluindo a lei geral sobre infrações tributárias e o Estatuto dos Benefícios Fiscais; o Código do Procedimento Administrativo e demais legislação administrativa; o Código Civil e o Código de Processo Civil. Sendo o CISV, omisso quanto à questão da caducidade, mas tratando-se de um imposto interno, apenas poderá́ ter aplicabilidade o regime consagrado no artigo 45.º da Lei Geral Tributária (LGT), que prevê̂ um prazo de 4 anos para liquidação do imposto

Assim, conclui-se que, sendo o ISV um imposto de obrigação única, o prazo de caducidade conta-se a partir da data em que o facto tributário ocorreu, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 45.º da LGT. No caso os factos tributários que deram origem às liquidações impugnadas ocorreram nos últimos quatro meses do ano de 2018, pelo que, tendo ficado provado que a Requerente foi notificada em julho de 2022, forçoso é concluir que se cumpriu em relação a todos atos declarados nas DAV’s juntas aos autos o prazo dos 4 anos previsto na LGT. Logo, não ocorreu a alegada caducidade do prazo de liquidação do imposto.

Ainda neste ponto, o tribunal arbitral subscreve integralmente a fundamentação apresentada pela Requerida quando refere que: «a aplicação do prazo de caducidade dos impostos aduaneiros só seria aplicável por expressa remissão do legislador, em cumprimento do princípio da legalidade; os impostos aduaneiros e o ISV têm natureza, fonte e relação jurídica distinta, pelo que inexistindo uma norma específica no CISV relativa à caducidade do imposto, aplica-se, por determinação expressa do artigo 2.º da LGT, o disposto no artigo 45.º da LGT, à semelhança de outros impostos nacionais (…)»

Pelo exposto, improcede a alegada caducidade do imposto.

 

iii) Quanto à alegada inconstitucionalidade formal do Despacho n.º 348/2018-XXI que consagra o regime transitório de tributação em sede de ISV

 

  1. Passemos agora à análise da terceira questão de direito suscitada pela Requerente, que alega a inconstitucionalidade formal do Despacho n.º 348/2018-XXI, o qual está na origem e fundamentação que conduziu às liquidações de imposto colocadas em crise nos presentes autos. Essa inconstitucionalidade decorre, segundo a Requerente, da «violação dos princípios do Estado de Direito e da legalidade, previsto nos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.» Vejamos, pois, se assim é.

 

  1.  É reconhecido pela Doutrina e pela Jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, de forma unânime, que o princípio da legalidade fiscal é a «pedra angular» do sistema fiscal português e a principal garantia do contribuinte em matéria fiscal. A Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) impõe de forma clara uma limitação do poder do legislador ordinário, sabiamente imposta em conformidade com o equilíbrio de poderes entre os diferentes órgãos de soberania. Este princípio da legalidade tem uma dupla vertente, a de reserva de lei formal e a de reserva material de lei. A primeira vertente impõe que seja a Assembleia da República, mediante Lei, a criar impostos. Já a segunda vertente exige que seja por ato legislativo formal (por Lei) a dispor sobre os elementos essências do imposto mencionados no nº 2 do artigo 103º da CRP: incidência (objetiva e subjetiva), taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes.

 

  1. Importa, pois, aferir se procede a alegação da Requerida, segundo a qual, «o Despacho n.º 348/2018-XXI é manifestamente inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito e do princípio da legalidade, ínsitos nos artigos 2.º, 103.º, n.º 2, 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP na medida em que: i) introduz normas que alteram a incidência do imposto e, por isso, enquadram-se no âmbito das matérias da reserva relativa da Assembleia da República; ii) não configura um ato normativo passível de promover uma alteração a um imposto; e iii) inexiste qualquer Lei de autorização legislativa que autorizasse o Governo a legislar sobre a matéria em questão (…)».

 

  1. O referido Despacho do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais veio definir parâmetros essenciais dos quais depende a incidência de imposto, matéria  reservada à Assembleia da República, nos termos previstos no nº2, do artigo 103º da CRP. Nesta matéria, é bem esclarecedora a explanação constante na decisão arbitral proferida no processo nº 596/2022- T, já anteriormente mencionada, à qual se adere e que passamos a citar:

“ O Despacho do Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais determina que “(…) deverá ter-se em conta, para efeitos de aplicação das taxas de ISV e IUC e das isenções no âmbito destes impostos que estejam condicionadas pelo nível de emissões de CO2, o último valor conhecido de emissões de CO2 determinado de acordo com o ciclo combinado de ensaios realizados ao abrigo do “Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado” (New European Driving Cycle – NEDC) (…) em conformidade com a referida homologação” (cf. ponto 3, segundo parágrafo do Despacho). Ora, isto significa que o Despacho do Secretário de Estado pretende consagrar um regime legal para o período compreendido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018, que deverá prevalecer sobre o Código do ISV – Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho. Responde a Requerida que o despacho em análise não procedeu, em sede de ISV, à criação de qualquer imposto, nem alterou a sua incidência, taxas ou benefícios fiscais. Em concreto, relativamente a veículos que tivessem obtido a primeira homologação técnica posteriormente a 01.09.2017 (Modelos Novos) e já testados de acordo com o novo sistema WLTP, não existindo valores medidos de acordo com o anterior sistema NEDC, o despacho limitou-se a clarificar que, para o período (transitório) compreendido entre 01.09.2018 e 31.12.2018, é aplicável o NEDC (correlacionado) que figurará no COC, a par do valor de emissões WLTP, pelo que, nestas situações, em vez do valor de CO2 resultante do sistema de medição WLTP é considerado o valor do NEDC constante do COC, mais vantajoso para os interessados em termos de apuramento do imposto. Deste modo, o despacho teve em vista, num período transitório, por um lado, manter a neutralidade fiscal, e por outro, dar cumprimento ao n.º1 do art.º 4.º do CISV, aplicando o nível de emissão de dióxido de carbono (CO2) relativo ao ciclo combinado em vigor (NEDC), em detrimento dos valores de emissões de CO2 apurados de acordo com o novo sistema de medição de emissão WLTP, que passou a figurar nos certificados de conformidade e respetivas homologações técnicas, a partir de 01.09.2018. Vejamos. O artigo 4.º do CISV, em vigor à data, estabelecia que: 1 - O imposto sobre veículos possui natureza especifica, sendo a sua base tributável constituída pelos seguintes elementos, tal como constantes do respetivo certificado de conformidade: a) Quanto aos automóveis de passageiros, de mercadorias e de utilização mista, tributados pela tabela A, a cilindrada, o nível de emissão de dióxido de carbono (CO(índice 2)) relativo ao ciclo combinado de ensaios e o nível de emissões de partículas, quando aplicável. (...)” No certificado de conformidade considerava-se o nível de emissões de CO2 relativo ao ciclo de ensaios resultantes dos testes realizados ao abrigo do “Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado” (NEDC), regulado pelo Regulamento (CE) n.º 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008, que executa e altera o Regulamento (CE) n.º 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção dos veículos. O sistema de medição de emissões de CO2 NEDC foi substituído pelo novo sistema de medição designado de “Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure” (WLTP), regulado pelo Regulamento (EU) 2017/1151 da Comissão de 1 de junho de 2017. Este novo sistema de medições passou a ser obrigatório para as homologações de novos modelos a partir de 1 de setembro de 2017 e para todos os veículos novos matriculados a partir de 1 de setembro de 2018, ainda que estes já tivessem sido previamente homologados de acordo com o anterior sistema NEDC. O Regulamento de Execução (UE) 2017/1153, da Comissão, estabelece, para efeitos de transição, que “(3) Está prevista uma introdução progressiva do WLTP, começando com os novos modelos de veículo a partir de 1 de setembro de 2017 e passando a todos os veículos a partir de 1 de setembro de 2018. A partir de 1 de setembro de 2019, quando também os veículos de fim de série tiverem sido progressivamente retirados do mercado, todos os veículos novos colocados no mercado da União serão ensaiados pelo método WLTP. Durante este período, justifica-se continuar a verificar o cumprimento dos objetivos de emissões específicas utilizando valores das emissões de CO2 baseados no NEDC. (4) Todavia, é desejável limitar o ónus de ensaios tanto para os fabricantes como para as autoridades homologadoras, pelo que deve ser prevista a possibilidade de recorrer a simulações para determinar os valores de referência de emissões de CO2 pelo método NEDC. Foi desenvolvida para o efeito uma ferramenta específica de simulação de veículos (a ferramenta de correlação). Os dados de entrada para a ferramenta de correlação não devem exigir ensaios suplementares, mas sim provir dos ensaios de homologação pelo método WLTP. Face a este regime transitório em que, além da homologação pelo novo sistema de WLTP, poderá utilizar-se o designado “NEDC Correlacionado”, permite-se a utilização do valor do “NEDC Correlacionado” que figurará no Certificado de Conformidade, a par do valor de emissões WLTP”. A Comissão Europeia aconselhava ainda que a todos os países implementassem medidas para que o valor dos impostos não aumentasse significativamente, por força da alteração do método de medição. O método de medição foi alterado em 2017, tendo-se tornado obrigatório o sistema WLTP para as homologações técnicas de novos modelos a partir de 1 de setembro de 2017 e, ainda, para os veículos matriculados a partir de 1 de setembro de 2018, ainda que estes últimos já tivessem sido previamente homologados de acordo com o anterior sistema “NEDC”.

A partir de 1 de setembro de 2018, passaram a figurar obrigatoriamente nos certificados de conformidade emitidos pelos fabricantes os valores de CO2 apurados de acordo com o sistema de emissões WLTP, bem como o valor apurado de acordo com o procedimento de correlação. Para mitigar o significativo aumento de imposto que resultava dos valores de CO2 apurados pelo novo sistema “WLTP”, a Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (OE 2019), alterou o CISV, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019. De acordo com o artigo 284.ª da Lei do Orçamento de Estado de 2019, o artigo 4.º, n.º 1, al. a) do CISV foi alterado e passou a ter a seguinte redação: “O imposto sobre veículos possui natureza específica, sendo a sua base tributável constituída pelos seguintes elementos, tal como constantes do respetivo certificado de conformidade: a) Quanto aos automóveis de passageiros, de mercadorias e de utilização mista, tributados pela tabela A, a cilindrada, o nível de emissão de partículas, quando aplicável, e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO(índice 2)) relativo ao ciclo combinado de ensaios resultante dos testes realizados ao abrigo do 'Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado' (New European Driving Cycle - NEDC) ou ao abrigo do 'Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros' (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP), consoante o sistema de testes a que o veiculo foi sujeito para efeitos da sua homologação técnica” Simultaneamente, o artigo 285.º do mesmo diploma consagrou um regime transitório que atenua o efeito da aplicação do sistema “WLTP”: “Durante o ano de 2019, para efeitos do apuramento do imposto da componente ambiental da Tabela A constante do artigo 7.º do Código do ISV, bem como para a aferição dos limites de CO2 fixados nos regimes de benefício, as emissões de dióxido de carbono relativas ao «Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros» (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP), referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Código do ISV, constantes do certificado de conformidade e mencionadas na declaração aduaneira de veículo, são reduzidas de forma automática pelo sistema de fiscalidade automóvel, nas percentagens constantes da tabela (…)

 

  1. Passou a prever-se expressamente a aplicação de qualquer um dos sistemas de medição WLTP ou NEDC e, caso se aplique o sistema “WLTP”, aplica-se uma redução percentual, para atenuar o aumento de emissões que resulta da aplicação deste modelo. Provisoriamente, relativamente ao último quadrimestre de 2018, até à entrada em vigor da Lei de Orçamento de Estado para 2019 (01/01/2019), o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, por delegação do Ministro das Finanças, proferiu o Despacho n.º 348/2018 – XXI, de 1 de agosto:

“(…) Considerando que a tributação automóvel, quer em sede de Imposto Sobre Veículos (ISV), quer me sede de IMPOSTO UNICO DE CIRCULAÇÃO (IUC), tem uma componente ambiental associada às emissões de C02 dos veículos automóveis, e que várias isenções fiscais previstas no âmbito destes impostos são igualmente condicionadas a limites de emissões de CO2 de veículos; Considerando que a fixação das taxas de ISV e de IUC, bem como dos limites para efeitos das isenções fiscais previstas nos respetivos Códigos, foram determinados pelo legislador em conformidade com os níveis de emissões de CO2 resultantes do sistema de medição de emissões então vigente: "Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado" (New European Driving Cycle - NEDC); Tendo em conta que em 2017 foi alterada, através da regulamentação europeia, a metodologia utilizada na medição das emissões de CO2 dos veículos automóveis, tendo sido substituido o regime de ensaios NEDC pelo novo sistema Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure (WLTP), sendo o novo sistema de medições obrigatório p a r a as homologações técnicas de novos modelos a partir de 1 de setembro de 2017, e para todos os veículos matriculados a partir de 1 de setembro de 2018, ainda que estes últimos já tivessem sido previamente homologados de acordo com o anterior sistema NEDC ("modelos antigos"); Tendo, ainda, em conta que, desde 1de setembro de 2017 e até à presente data, a tributação de veículos homologados na vigência do regime de medição de emissões NEDC continuou a ser efetuada com base nos valores de C02 que resultavam dessas homologações e eram indicados nos respetivos Certificados de Conformidade, a coberto do Despacho n.° 305/2017- XXI, de 12 de julho, do então Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais; Considerando, igualmente, que, a partir de 1 de setembro de 2018 passarão a figurar obrigatoriamente nos Certificados de Conformidade emitidos pelos fabricantes os valores de CO2 apurados de acordo com o novo sistema de medição de emissões WLTP ("Valores de CO2 WLTP), que serão significativamente superiores aos valores que resultavam do anterior regime de medição (NEDC), conforme resulta de estudos publicados pela Comissão Europeia, já que os veículos são testados de acordo com várias caraterísticas específicas que anteriormente não eram tidas em conta (incluindo os equipamentos extras) e em condições reais de circulação. Considerando, igualmente, que a par do valor de emissões WLTP, figurará no Certificado de Conformidade o valor apurado de acordo com o procedimento de "correlação", definido nos Regulamentos de Execução (UE) 2017/1152 da Comissão, de 2 de junho de 2017, e (UE) 2017/1153 da Comissão, de 2 de junho de 2017 ("Valores de CO2 NEDC", também designado como "NEDC correlacionado"), ressalvando estes regulamentos que possam existir situações relativamente às quais a ferramenta de correlação não seja capaz de fornecer valores de emissões de CO2 suficientemente exatos e apresente desvios face aos valores declarados pelos fabricantes, permitindo-se, nesses casos, que estes solicitem a realização de ensaio físico do veículo, se tais desvios forem superiores a 4%; No entanto, verifica-se que tanto para o WLTP, como para o NEDC correlacionado, ainda não existe informação sobre um universo alargado de veículos que permita determinar a exata medida em que o aumento do valor das emissões ocorrerá, por tipo de veículos (passageiros ou mercadorias, tipo de combustível, cilindrada); Tendo, ainda, presente que a transição do sistema de medição de emissões NEDC para o sistema WLTP deve ser acompanhada de ajustamento das atuais tabelas do CIS e do CIUC, as quais foram aprovadas com o pressuposto do sistema de medição de emissões então existente (NEDC).

Mostrando-se necessária a clarificação da forma de aplicação das normas tributárias existentes no ordenamento jurídico interno em função do contexto acima descrito, bem como proceder à revisão do enquadramento legal em função da regulamentação europeia, Determino o seguinte:

1. A AT deve apresentar nos âmbitos dos trabalhos de preparação do Orçamento de Estado para 2019, uma proposta de revisão das atuais tabelas de ISV e IUC e das normas que consagram isenções fiscais condicionadas aos limites de emissões de CO2, ajustando-se aos níveis de emissões decorrentes do novo sistema WLTP;

2. No período compreendido entre l de setembro de 2018 e 31 de dezembro de 2018, e no que respeita aos veículos que tenham obtido a primeira homologação técnica posteriormente a l de setembro de 2017 (modelos novos), e apenas tenham sido testados de acordo com o novo sistema de medição de emissões WLTP, não existindo valores medidos de acordo com o anterior sistema NEDC para esses mesmos veículos, deverá ter-se em consideração, para efeitos de aplicação das taxas de ISV e IUC e das isenções no âmbito destes impostos que estejam condicionadas pelo nível de emissões de C02, o valor apurado de acordo com o procedimento de "correlação" definido nos Regulamentos de Execução (UE) 2017/1152 da Comissão, de 2 de junho de 2017, e (UE) 2017/1153 da Comissão, de 2 d e junho de 2017 ("Valores de CO2 NEDC", também designado como "NEDC CORRELACIONADO"), que figurará no Certificado de Conformidade, a par do valor de emissões WLIP;

3. No período compreendido entre l de setembro de 2018 e 31 de dezembro de 2018, sempre que estejam em causa veículos que já haviam obtido homologação técnica anteriormente a 1 de setembro de 2017, deverá ter-se em conta, para efeitos de aplicação das taxas de ISV e IUC e das isenções no âmbito destes impostos que estejam condicionadas pelo nível de emissões de CO2, o último valor conhecido de emissões de CO2 determinado de acordo com o ciclo combinado de ensaios realizados ao abrigo do "Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado " (New European Driving Cycle- NEDC"), relativo ao modelo, variante, versão, cilindrada e tipo de combustível do veículo em causa, em conformidade com a referida homologação; No caso dos veículos que preencham estas condições mas relativamente aos quais tenha sido criada uma nova referência de "versão", resultante exclusivamente da medição de emissões CO2 de acordo com o sistema WLTP, aplica-se o disposto no parágrafo anterior, desde que as restantes características e a designação comercial dos veículos se mantenham inalteradas.

4. A AT, em articulação com o IMI, deve promover todas as diligências que se mostrem necessárias ao controlo do correto cumprimento deste despacho designadamente no que se refere ao ponto anterior, podendo esse controlo ser concomitante ou sucessivo. 5. Dê-se conhecimento a Sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto e do Ambiente.”

 

  1. O segundo parágrafo do ponto três foi retificado, através do Despacho, também do SEAF, nº 375/2018-XXI, de 31.08.2018, passando a sua redação a ser a seguinte: " (...) No caso dos veículos que preencham estas condições, mas relativamente aos quais tenha sido criada uma nova referência de "variante/versão", resultante exclusivamente da medição de emissões de CO2 de acordo com o sistema WLIP, aplica-se o disposto no parágrafo anterior, desde que as restantes características e a designação comercial dos veículos se mantenham inalteradas."

 

  1. Por tudo o que vem exposto, escrutinado o teor do Despacho e revisitado o regime jurídico aplicado ao caso concreto dos autos, não há dúvida que o artigo 4.º, n.º 1, al. a) do CISV é uma norma de incidência que está sujeita ao princípio da legalidade, na vertente de reserva formal e material. Resta saber qual o alcance do Despacho n.º 348/2018- XXI, do SEAF, e, concretamente, saber se alterou o âmbito de incidência da norma ou se constituiu um mero instrumento de clarificação das regras aplicáveis durante o período transitório. Ora, no caso concreto, as correções que deram origem às liquidações oficiosas impugnadas, processaram-se com base no do disposto no n.º 3 do Despacho n.º 348/2018- XXI, do SEAF, dado que estão em causa veículos registados no último quadrimestre do ano de 2018, como resulta da matéria provada. Assim sendo, não resta dúvida que em resultado da aplicação do Despacho se promoveu alteração nas regras de incidência do imposto, o que ofende o princípio da legalidade fiscal, quer na vertente de reserva de lei formal quer material. O princípio da reserva de lei (formal) implica que haja uma intervenção da Assembleia da República a fixar a disciplina dos impostos, ou uma intervenção de caráter meramente formal, autorizando o governo-legislador a estabelecer essa disciplinar (artigo 165.º, n.º 1, al. i), 1.ª parte, da CRP), o que no caso não sucedeu.

Como bem refere a Requerente no pedido arbitral, «a alteração do sistema de medições não criava, à data, qualquer dificuldade ou impedimento na aplicação da norma de incidência já que o CISV não define qual o modelo de medições ou as suas características técnicas mas remete para o nível de emissão de dióxido de carbono (CO(índice 2)) relativo ao ciclo combinado de ensaios constante do certificado de conformidade. Assim, com a entrada em vigor do novo sistema de medições “WLTP”, o ISV deveria ser calculado atendendo ao nível de emissões de dióxido de carbono apurado nos termos do sistema “WLTP” ou “durante o período provisório definido no Regulamento de Execução (UE) 2017/1153, poderia, em alternativa, ser utilizado o “NEDC Correlacionado”, que constaria também do respetivo certificado de conformidade Ou seja, per si, o Despacho n.º 348/2018- XXI não era necessário para garantir a liquidação do imposto porque a norma, ao remeter para o valor constante do certificado de conformidade, aplicava-se a este valor, independentemente do sistema de medição

 

  1. A publicação do Despacho n.º 348/2018- XXI, vem por um lado prestar esclarecimentos, mas por outro lado vem determinar critérios que interferem diretamente na incidência do imposto, já que, como resulta do próprio Despacho, “de acordo com o novo sistema de medição de emissões WLTP (“Valores de CO2 WLTP), que serão significativamente superiores aos valores que resultavam do anterior regime de medição (NEDC), conforme resulta de estudos publicados pela Comissão Europeia”, (...) “...esta transição “deve ser acompanhada de ajustamento das atuais tabelas do CISV e do CIUC, as quais foram aprovadas com o pressuposto do sistema de medição de emissões então existentes.”.

 

  1. Face ao exposto, não há dúvida que o teor do Despacho não está de acordo com o disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do CISV, que remete expressamente para o sistema de medições constante do certificado de conformidade da viatura e não de outra viatura “com as mesmas características”. Isto significa que o ponto 3, do Despacho n.º 348/2018- XXI, criou para o período temporal em causa, regras específicas de incidência e cálculo do imposto, o que viola o princípio da legalidade fiscal. Um Despacho não pode contrariar a lei ou criar normas de incidência tributária.

 

Em conformidade com o exposto, a liquidação adicional efetuada pela AT relativamente às viaturas identificadas nos autos é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, porque o Despacho n.º 348/2018- XXI que sustenta a correção efetuada estabelece uma regra de incidência distinta da prevista no artigo 4.º, n.º 1, al. a) do CISV. É precisamente esse o efeito decorrente da aplicação do Despacho em causa: a alteração da regra de incidência prevista no artigo 4º do CISV para o período compreendido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018. Este regime resultante do Despacho deveria, do ponto de vista da Requerida, prevalecer sobre a norma de incidência contida no artigo 4º do CISV – Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, o que se afigura inaceitável e configura uma clara violação do princípio da legalidade fiscal.

 

  1. Pelo que, como bem alega a Requerente, é inquestionável que a matéria sobre a qual incide o Despacho n.º 348/2018-XXI é da competência de reserva relativa da Assembleia nos termos dos artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP. Como confirmação da inconstitucionalidade supra exposta aponte-se o procedimento adotado pelo legislador para o ano de 2019. A Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, alterou o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Código do ISV passando aquela a dispor que “O imposto sobre veículos possui natureza específica, sendo a sua base tributável constituída pelos seguintes elementos, tal como constantes do respetivo certificado de conformidade: a) Quanto aos automóveis de passageiros, de mercadorias e de utilização mista, tributados pela tabela A, a cilindrada, o nível de emissão de partículas, quando aplicável, e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO(índice 2)) relativo ao ciclo combinado de ensaios resultante dos testes realizados ao abrigo do 'Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado' (New European Driving Cycle - NEDC) ou ao abrigo do 'Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros' (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP), consoante o sistema de testes a que o veículo foi sujeito para efeitos da sua homologação técnica”. Ou seja, ciente de que o artigo 4.º do Código do ISV contém uma norma de incidência objetiva, ou, no limite, uma norma que determina a fixação da matéria coletável e por isso é de âmbito de reserva relativa da Assembleia da República, a sua alteração foi promovida mediante Lei. Ademais, a mesma Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, estabeleceu também um regime transitório para o ano de 2019 no seu artigo 285.º, n.º 1 (…)»

 

  1. Ora, na verdade, tem razão a Requerente quando alega que a alteração legislativa supra descrita comprova e reconhece a necessidade de utilização de Lei da Assembleia da República para promover a alteração ao CISV e para determinar um regime transitório para o ano de 2019, o que evidencia a inconstitucionalidade do Despacho n.º 348/2018-XXI.

 

  1. Sendo este Despacho o fundamento das correções que deram origem às liquidações impugnadas, forçoso é concluir pela procedência do pedido formulado pela Requerente, com a consequente anulação de todas as liquidações de imposto e de juros compensatórios, por violação do princípio da legalidade fiscal, consagrado no artigo 103º, nº 2 e no artigo 165º, nº1, alínea i) da CRP.

 

Nestes termos fica prejudicado o conhecimento das restantes questões submetidas a apreciação deste Tribunal.

 

Do direito a juros indemnizatórios

 

  1. A par da anulação dos atos de liquidação, e consequente reembolso das importâncias indevidamente cobradas, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.". Por sua vez, a alínea c), do n.º 3, do mesmo normativo, estabelece ainda que são devidos juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

Atendendo à procedência do pedido são devidos juros indemnizatórios relativamente ao imposto indevidamente pago.

 

IV- DECISÃO

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente o pedido arbitral formulado, declarar a ilegalidade das liquidações adicionais de ISV, com a consequente anulação e restituição do imposto indevidamente pago, no valor de € 24.206,48, acrescido de juros compensatórios até integral reembolso.

b) Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.

 

V. VALOR DA CAUSA

Fixa-se ao processo o valor de €24.206,48 (vinte e quatro mil, duzentos e seis euros e quarenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

 

 Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de novembro de 2023

 

 

 

(Maria do Rosário Anjos)