SUMÁRIO:
1- Não estando em causa o caráter empresarial da aquisição de um serviço mas sim o preço por ele pago a um fornecedor especialmente relacionado, a questão que se poderia suscitar seria ao nível dos preços de transferência e não da aplicação do art.º 23º do CIRC.
2- A distinção entre atividade própria do acionista (uma SGPS) e atividade própria das sociedades participadas implica prova suficiente da factualidade concretamente em causa. A insuficiência probatória resulta desfavorável à AT por força do disposto, entre outros, no artº 100º, n.º 1, do CPPT.
DECISÃO ARBITRAL
A...- SGPS, S.A., NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ...-..., Vila Nova de Gaia, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
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O Pedido
A Requerente peticiona a anulação da liquidação adicional de IRC, relativa a 2019, com o n.º 2022 ..., bem como da correspondente Demonstração de Acerto de Contas n.º 2022 ... e das liquidações de Juros Compensatórios n.º 2022 ... e nº 2022 ...; consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra tais liquidações.
Pede ainda a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
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O litígio
Está em causa a não aceitação, pela AT, como gastos fiscalmente dedutíveis pela sociedade dominada D... de:
- Euros 132.369,76, relativos a fornecimentos e serviços externos titulados por faturas emitidas pela sociedade B... .
- Euros 143.696,45, relativos a encargos com pessoal.
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Tramitação Processual
O tribunal arbitral ficou constituído em 06-06-2023.
A Requerida apresentou resposta e juntou o P.A.
Por despacho de 16-11-2023, foram prescindidas a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT e a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades,
Não existem exceções ou outras questões que possam obstar ao conhecimento do mérito.
III – PROVA
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente era, no exercício de 2019, a sociedade dominante do “grupo C...”, sujeito ao RETGS, o qual integrava, entre outras, as sociedades D..., SGPS S.A., NIPC ... e B..., Lda, NIF ... .
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A D... foi objeto de uma inspeção tributária externa, relativa ao exercício de 2019, da qual decorreram várias correções à sua matéria coletável individual e, consequentemente, ao lucro tributável do grupo.
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A Requerente (e a D...) procedeu ao pagamento voluntário do imposto considerado devido em razão de algumas dessas correções, as quais não estão em causa no presente processo.
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A Requerente procedeu à entrega de declarações de substituição da inicialmente apresentada, do que decorreram outras alterações ao lucro tributável do grupo e outros pagamentos parciais de imposto.
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A D... considerou como gasto fiscalmente dedutível o valor de Euro 132.369,76 que lhe foi faturado pela sociedade B..., Lda.
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Tal montante encontra-se devidamente documentado e contabilizado.
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A AT concluiu pela não dedutibilidade fiscal de tal valor com a seguinte fundamentação: Em resumo, a análise dos gastos suportados pela D... demonstrou que estes, face à sua natureza e dimensão, não respeitam à atividade do sujeito passivo, mas sim a de entidades terceiras e consequentemente, respeitantes a estas e para que estas viessem a obter os seus rendimentos sujeitos a IRC” (…) “Em resumo, no período de tributação 2018, a D... suportou gastos de natureza operacional sem que tenha obtido qualquer retorno sob a forma de rendimentos sujeitos a IRC. Segundo a empresa, tratou-se do cumprimento de uma cláusula contratual que faz depender a faturação dos seus honorários às empresas suas participadas, dos resultados destas. No entanto, esta estratégia não se coaduna com os preceitos legais previsto no Código do IRC, que assenta num princípio basilar, para que um gasto seja fiscalmente dedutível, é indispensável que se destina à contenção de rendimentos sujeitos a IRC do próprio sujeito passivo e não de entidade alheias. De facto, no período e tributação de 2018, a D... não obteve rendimentos sujeitos a IRC; no ano de 2019, apesar de ter havido alguma faturação, ficou muito aquém dos gastos suportados e continuou sem visar nenhuma das participadas, na mesma lógica do período de tributação anterior.
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No quadro organizativo do grupo C..., cabia à sociedade B... a prestação às demais sociedades integrantes do grupo (nelas se incluindo a D...) de serviços de contabilidade, tesouraria, controlo de gestão, recursos humanos, tecnologias de informação, advocacia, aconselhamento jurídico e serviços de qualidade e ambiente.
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Os serviços faturados pela B... à D... foram serviços de tesouraria, contabilidade, fiscalidade, controlo interno e de recursos humanos, de advocacia e aconselhamento jurídico.
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No exercício de 2019, a D... empregou os seguintes colaboradores: E...; F... e G... .
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O que a fez incorrer em gastos com pessoal no montante de Euros 143.696,45.
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A AT concluiu pela não dedutibilidade fiscal de tais gastos com a seguinte fundamentação: “[…] Ora, tanto uns como o outro objeto funcional, assim como a operacionalização dessas funções são consentâneos com a atividade de retalhista e comércio desenvolvidas pelas participadas e não com a função do acionista D... . Não é ao detentor do capital que cabe coordenar e implementar planos de vendas. Essa é uma função operacional que, a ser desenvolvida pelo acionista e para que os inputs sejam dedutíveis, terá que ser remunerada […]”; “[…] A análise efetuada demonstra que os colaboradores da empresa, E..., F... e G..., exerceram funções para a atividade das participadas e/ou relacionadas. Assim, os gastos suportados com esses colaboradores não serão aceites nos termos do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC […]”.
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A D..., sociedade gestora de participações sociais, celebrou com as suas participadas H... S.A. e I..., Lda, os contratos juntos ao requerimento inicial como doc. 11 e 12.
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Segundo tais contratos, caberia à D... a prestação de serviços de “análise financeira de possibilidades de investimento e oportunidades de negócios” e “gestão executiva” nos mercados de atuação da H... [Moçambique] e da I... [Brasil].
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Segundo a cláusula terceira de tais contratos, intitulada PREÇO, a D... seria remunerada por aplicação de uma percentagem de 2% ao retorno líquido, após payback, dos investimentos efetuados pela outra outorgante a conselho da D..., verificados os demais condicionalismos aí previstos.
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No contrato de trabalho celebrado entre a D... e F... consta que o “[…] objetivo da sua atividade era propor um plano de desenvolvimento estratégico para os ativos do setor alimentar detidos em Moçambique e, após a sua aprovação, coordenar a sua implementação”.
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No contrato de trabalho celebrado entre a D... e E... consta ser este […] “responsável por garantir operações comerciais eficientes e produtivas e a gestão adequada dos recursos, distribuição e serviços aos clientes […]”.
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No contrato celebrado entre a D... e G..., consta que “[…] o objetivo das funções assumidas é dirigir as operações de vendas e angariar clientes”.
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Factos não provados
Não ficaram provadas quais as funções em concreto exercidas por E..., F... e G... .
IV- O DIREITO
Existem duas diferentes situações a ser apreciadas:
a) Gastos com fornecimentos externos
Estão em causa serviços descritos como sendo de tesouraria, contabilidade, fiscalidade, controlo interno e de recursos humanos, de advocacia e aconselhamento jurídico faturados pela B... à D... pelo valor de Euros 132.369,76.
Apreciando:
Comecemos por notar que (i) na fundamentação da recusa de aceitação da dedução fiscal de tal valor, não é posta em causa a prestação deste tipo de serviços pela B... à D... nem a sua correta documentação e contabilização; (ii) é notória a necessidade de qualquer sociedade recorrer a este tipo de serviços, ou seja, que os respetivos gastos terão por princípio, motivação empresarial.
O que a AT sustenta, em primeiro lugar, é que tais gastos são fiscalmente inaceitáveis por, no período em causa, não terem tido correspondência com a obtenção de rendimentos tributáveis minimamente significativos.
Este argumento não é de aceitar pois não existe qualquer exigência legal de uma ligação direta entre a obtenção de rendimentos e a aceitação de gastos. O que bem se compreende, pois várias circunstâncias poderão explicar a inexistência de proveitos em determinado ano apesar da existência de gastos (p. ex. suspensão de atividade por motivo de obras prolongadas).
Aliás, as SGPS, nomeadamente as “puras” ou “financeiras”, poderão constituir um bom exemplo: suportam os gastos correntes inerentes à sua atividade, mas apenas obterão rendimentos (proveitos), ou rendimentos significativos, nos exercícios em que as suas participadas decidam distribuir dividendos.
A AT afirma, ainda, que, por tal razão (ausência de rendimentos significativos no exercício), tais gastos não respeitam à atividade do sujeito passivo, mas sim a de entidades terceiras, de forma a permitir que estas viessem a obter os seus rendimentos sujeitos a IRC.
Esta conclusão não tem qualquer suporte factual: nada é alegado no sentido de os serviços em causa terem por “beneficiário efetivo” não a D... mas sim uma outra entidade, nomeadamente sociedades participadas.
Na verdade, o que a AT questiona é o valor faturado, ou seja, como que recorre a um critério de (não) razoabilidade do custo para o desconsiderar, o que há muito (desde a vigência do CIRC) lhe é vedado.
Situando-se, pois, a questão não ao nível do carácter empresarial de tais gastos relativamente à D... mas sim do respetivo valor (preço), estaríamos não no domínio da dedutibilidade de tais gastos (da verificação dos pressupostos para a sua aceitação fiscal) mas sim no domínio dos preços de transferência. Instituto em que a AT, assim o entendendo, deveria ter fundamentado uma (outra) correção.
Há pois que concluir, atenta a respetiva fundamentação, pela ilegalidade destas correções à matéria coletável apurada pela D... e, consequentemente, ao lucro declarado pela Requerente.
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Gastos com pessoal
Está em causa o montante de pago pela D..., a título de salários, aos três trabalhadores acima identificados.
A AT entende que a operacionalização dessas funções [descritas nos contratos de trabalho, e acima reproduzidas] “são consentâneos com a atividade de retalhista e comércio desenvolvidas pelas participadas e não com a função do acionista D... . Não é ao detentor do capital que cabe coordenar e implementar planos de vendas. Essa é uma função operacional que, a ser desenvolvida pelo acionista e para que os inputs sejam dedutíveis, terá que ser remunerada […]”.
Ou seja, a AT entende que, por as “descrições” constantes dos contratos de trabalho, serem consentâneas com a atividade de retalhista e comércio desenvolvidas pelas participadas, as remunerações dos trabalhadores em causa deveriam ter sido suportadas pelas sociedades participadas pela D... e não por esta”.
Em nosso entender, a delimitação do que são atividades inerentes à condição de (sociedade) acionista e atividades próprias das sociedades operacionais participadas comporta uma larga zona de indefinição, a qual, para ser superada, implica a prova de factualidade suficiente para permitir qualificar cada uma das atividades em causa.
No caso, concluir sobre se as funções exercidas por tais trabalhadores corresponderam ou não ao exercício de uma “atividade acionista” pela D... implicaria conhecer com o detalhe necessário, em que se concretizou o exercício de tais as funções. Acresce que as descrições contratuais das funções a serem exercidas por cada um deles são demasiado genéricas para indiciar uma qualquer conclusão.
A AT poderia e deveria ter ido mais longe no seu dever de investigação, procurando reunir documentação comprovativa da realidade das funções exercidas por cada um dos trabalhadores em causa. O que certamente não seria difícil, pelo menos relativamente a alguns desses trabalhadores.
A dúvida, que assim se mantém sobre quais as tarefas realmente exercidas por cada um dos trabalhadores em causa desaproveita à AT, atento, nomeadamente, o disposto no art. 100º, nº 1 do CPPT.
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Juros indemnizatórios
Tendo procedido o seu pedido, tem a Requerente direito a, para além do imposto indevidamente pago, a receber juros indemnizatórios, nos termos do art. 43º, nº 1, da LGT, uma vez que o tribunal considerou parcialmente ilegais liquidações oficiosamente promovidas pelos serviços.
Porém, os montantes a serem pagos terão que ser apurados em execução de sentença uma vez que, desde logo por a Requerente ter apresentado duas declarações de substituição e pago as “diferenças” de imposto que ela própria apurou, o tribunal arbitral não dispõe de elementos que lhe permitam quantificar tais valores, admitindo ser para tal competente.
IV - DECISÃO ARBITRAL
Termos em que se conclui pela total procedência os pedidos.
VALOR: Euros 276.066,21
CUSTAS, no montante de euros 5.202,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
28 de novembro de 2023
Os Árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Sofia Jorge Gonçalves Xavier
Jónatas Machado