SUMÁRIO:
A intencionalidade da alteração legislativa (nova redação do n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC, operada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março) é sabida, o elemento literal da norma claro: o legislador decidiu, expressamente, que aos dividendos, recebidos pelas seguradoras em razão de investimentos associados a contratos com determinadas caraterísticas, entre os quais seguros unit-linked, não aproveita o mecanismo de eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos, independentemente da percentagem e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade.
DECISÃO ARBITRAL
A árbitra, Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral Singular, constituído a 26.05.2023, decide o seguinte:
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RELATÓRIO
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A..., SGPS, S.A., com o número de identificação fiscal..., com sede social sita no ..., n.º ..., ...-... Lisboa, (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 10.º, n.º 1, al. a), 15.º e segs., do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante “RJAT”), requerer a constituição do Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, à declaração de ilegalidade parcial do ato de autoliquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante “IRC”) referente ao exercício de 2019, no que respeita ao montante de IRC alegadamente liquidado em excesso no valor de €12.039,74 (doze mil e trinta e nove euros e setenta e quatro cêntimos), “em resultado da exclusão da eliminação da dupla tributação económica de dividendos no exercício aqui em causa”, pugnando pela sua anulação nessa parte.
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A Requerente peticionou, ainda, o reembolso do IRC alegadamente pago em excesso, no montante de €12.039,74 (doze mil e trinta e nove euros e setenta e quatro cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde 01.11.2020 até integral pagamento, e juntou 11 (onze) documentos.
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O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerida em 16.03.2023.
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A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitra do Tribunal Arbitral Singular, a qual comunicou a aceitação do cargo no prazo aplicável.
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Em 06.05.2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação de árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.
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Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26.05.2023.
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No dia 30.06.2023, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, na qual invocou a exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar e decidir sobre a parte do pedido da Requerente, em que apura e peticiona a devolução do montante correspondente à correção da matéria coletável que pretende ver relevada a seu favor (acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios), defendeu-se por impugnação e juntou aos autos um documento.
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Em 03.07.2023, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo.
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O Tribunal notificou a Requerente, em 04.07.2023, para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, sobre a matéria de exceção contida na resposta da Requerida, o que aquela fez, em 12.07.2023.
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Em 14.07.2023, o Tribunal Arbitral proferiu despacho, no qual: (i) dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT; (ii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas, no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias; (iii) notificou a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente; (iv) notificou as partes para enviarem as peças processuais em formato editável (word); (v) indicou o prazo limite para proferir a decisão final arbitral.
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No dia 17.07.2023, a Requerente juntou aos autos o comprovativo do pagamento da taxa de justiça subsequente.
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A Requerente e a Requerida apresentaram alegações em 04.09.2023 e 11.09.2023, respetivamente.
I.1. POSIÇÃO DAS PARTES
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A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, em síntese, com vista à declaração de ilegalidade e anulação parcial do ato de autoliquidação de IRC aqui sindicado, o seguinte:
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O artigo 51.º, do Código do Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Coletivas (doravante “CIRC”) – eliminação da dupla tributação económica – é aplicável aos dividendos de participações sociais adquiridas e detidas pela B..., S.A (doravante “B...”) – a qual integra o “Grupo Fiscal C...”, em que a Requerente é a sociedade dominante – para cobertura de responsabilidades futuras com contratos de seguro unit-linked ou com contratos do ramo vida com participações nos resultados.
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A B..., no âmbito da atividade por si desenvolvida, inclusive no ano em causa de 2019, auferiu rendimentos provenientes de ações e unidades de participação por si detidas e que constituem parte integrante dos seus investimentos financeiros, no âmbito da comercialização de seguros de capitalização.
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No exercício de 2019, a B... auferiu rendimentos provenientes de seguros unit-linked no montante total de €124.815,96, não tendo beneficiado do regime da eliminação da dupla tributação económica, previsto no artigo 51.º do CIRC.
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Neste sentido, ao montante de €67.847.613,12 inscrito no campo 771 (“Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos”) do quadro 7 da declaração Modelo 22 (individual) da B... relativa ao exercício de 2019 deveria ter sido adicionado o aludido montante de €124.815,96, correspondente aos dividendos brutos recebidos de contratos unit-linked, de modo a que o montante total inscrito no referido campo 771 do quadro 7 correspondesse a €67.972.429,08 (€67.847.613,12 + €124.815,96 de dividendos aqui em causa), sendo que ao montante de €477.203,19, registado na coluna 6 do quadro 14 (“Crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional”) deveria ter sido deduzido o montante de €14.171,61 correspondente ao crédito de imposto por dupla tributação internacional, de modo a que o montante total aí inscrito correspondesse a €463.031,58. Consequentemente, a matéria coletável apurada no exercício de 2019 aqui em causa pelo Grupo Fiscal C... deveria refletir aquela correção, por ter sido reflexamente apurada matéria coletável agregada em excesso, no montante de €124.815,96.
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Os dividendos aqui em causa (e todos os outros dividendos auferidos pela seguradora) entram no cômputo do resultado líquido da seguradora e, consequentemente, na sua base tributável – são jurídica e contabilisticamente um rendimento da seguradora (donde que se esta falir, fazem parte da sua massa falida) e não de um terceiro, seja o subscritor/beneficiário de seguro unit-linked ou de qualquer outro seguro.
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É justamente pelo facto de os dividendos serem da seguradora e, assim, entrarem na formação do seu resultado líquido que se coloca o problema da dupla tributação.
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A jurisprudência arbitral, bem como, o Tribunal Central Administrativo Sul (doravante “TCAS”) e o Supremo Tribunal Administrativo (doravante “STA”) já se pronunciaram em sentido idêntico ao da Requerente sobre a interpretação da previsão legal constante no n.º 1 e n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC.
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A questão da eliminação da dupla tributação económica não desaparece pelo facto de as participações sociais de onde fluem os dividendos terem sido adquiridos pela Seguradora (B...) para dar cobertura à concretização futura de responsabilidades com seguros unit-linked ou com seguros do ramo vida com participação nos resultados. Esta (questão) não se modifica pelo facto de a companhia de seguros, ou, qualquer outro sujeito passivo de IRC, ser titular de uma participação numa outra sociedade, e dela receber dividendos, o rendimento (que é o dividendo) já foi tributado uma vez, como lucro, na esfera da sociedade que o distribui – donde que, a legislação preveja o afastamento de uma segunda (ou terceira e quarta, etc.) tributação, agora na esfera da sociedade acionista que recebe a distribuição desse mesmo lucro, que recebe, numa palavra, o dividendo.
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A posição adotada pela AT gera uma dupla tributação discriminatória, que desfavorece quem aplique poupanças num produto de seguro unit-linked (e consequentemente desfavorece fiscalmente a atividade da seguradora), em vez de deter diretamente ações.
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O facto de o rendimento afluir ao beneficiário do seguro, não como dividendo (que esse só a seguradora auferiu), mas como rendimento de capital de outro tipo (adveniente de contrato de seguro do ramo vida), impede que essa tributação do beneficiário do seguro possa beneficiar das regras de desagravamento da dupla tributação de que também as pessoas singulares beneficiam (Cfr. artigo 40.º-A, do IRS). Assim, se junto do beneficiário do seguro não há essa eliminação da dupla tributação, porque não recebe dividendo nessa qualidade, é incoerente, discriminatório e contraditório afastar-se essa eliminação da dupla tributação quando o dividendo é auferido pela seguradora, e auferido nessa qualidade, de dividendo.
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É ao afastamento desta dupla tributação que ocorre, independentemente do destino que a sociedade acionista reserve a esses dividendos (seja a afetação a responsabilidades com seguros unit-linked ou com seguros do ramo vida com participação nos resultados, seja afetação a provisões para qualquer outro efeito, seja para financiar o ciclo produtivo da empresa, seja para novos investimentos, seja para fazer face a juros ou responsabilidade com o seu financiamento, etc.), aquilo a que se dedica o artigo 51.º, do CIRC, e aquilo a que se dedica, no mesmo diapasão, a Diretiva transposta pelo citado artigo – atualmente, Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de novembro de 2011, anteriormente Diretiva 90/435/CEE do Conselho de 23 de julho de 1990 (Diretiva mães-filhas).
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O facto de a provisão efetuada pela seguradora ser um gasto nos termos da legislação fiscal, em nada altera os dados do problema: representam montantes que têm de ser subtraídos para efeitos de determinação do lucro tributável, por constituírem responsabilidade, obrigação pecuniária, perante o cliente da companhia de seguros.
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A norma do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, interpretada no sentido de que excluiria da sua estatuição os dividendos advenientes de participações sociais detidas por seguradoras relacionadas com a constituição de passivos financeiros/provisões afetas às suas responsabilidades com contratos unit-linked ou com seguros do ramo vida com participação nos resultados, e bem assim a norma do artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, na redação dada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, na medida em que exclui a aplicação da estatuição do seu n.º 1 nos termos especiais previstos neste número 6, aos dividendos advenientes de participações sociais detidas por seguradoras relacionadas com a constituição de passivos financeiros/provisões afetas às suas responsabilidades com contratos unit-linked ou com seguros do ramo vida com participação nos resultados, são inconstitucionais por violação dos princípios da igualdade e da proibição de discriminações infundadas, e do sub-princípio da neutralidade no tratamento de realidades económicas iguais, previstos nos artigos 2.º (Estado de direito democrático) e 13.º, da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”).
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A alteração empreendida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, ao n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC, não afastou a aplicação dos dividendos aqui em causa do mecanismo de eliminação da dupla tributação, porquanto, os contratos com os quais se relacionam os dividendos aqui em causa não se inserem na atividade financeira de seguros, mas na atividade financeira de investimento (Plano de Contas para as Empresas de Seguros), pelo que é de aplicar a alínea b), do n.º 6, do artigo 51.º do CIRC aos dividendos conexos com esta última atividade. Interpretação distinta violaria a lei e agravaria a discriminação arbitrária, infundada, do afastamento dos dividendos relativos a esta atividade de investimentos da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação económica.
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A interpretação efetuada pela AT viola o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de novembro de 2011, fonte de direito gizada para a eliminação da dupla tributação económica sobre o lucro.
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Há uma obrigação com fonte no Direito da União Europeia de eliminar a dupla tributação. A transposição do regime para o direito interno dos Estados-Membros inclui as situações puramente domésticas e, nesse âmbito – (o regime) também – fica sujeito ao controlo do respeito pelas prescrições da Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de novembro de 2011. Ou dito de outro modo, mesmo que a situação em concreto não se subsuma na tipologia transfronteiriça, objeto da sobredita diretiva, se o regime fiscal da tipologia transfronteiriça e da tipologia nacional for o mesmo (regime unitário, como sustenta ser o caso português), é aplicável o artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”). O Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) é, em tais termos, competente para responder a qualquer dúvida relativamente à aplicação unitária do regime comunitário pelo legislador nacional a situações meramente internas, estando, por isso, legitimado o reenvio prejudicial, caso o Tribunal Arbitral tenha dúvidas.
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O artigo 4.º n.º 1, alínea, da Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de novembro de 2011, é claro e preciso quanto à necessidade de eliminar a dupla tributação na esfera da sociedade que aufere dividendos.
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Nenhum abuso ou duplo benefício existe em aplicar-se o mecanismo de eliminação da dupla tributação a dividendos relativos a ações nas quais as seguradoras tenham investido para cobrir patrimonialmente responsabilidades futuras com contratos de seguro unit-linked e com contratos de seguro do ramo vida com participação nos resultados.
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Não existe qualquer justificação para afastar a aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação, o afastamento do mesmo promovido pelo corpo do artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, na redação introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, viola a citada Diretiva e, como tal, deve ser desaplicado este afastamento pela legislação nacional do mecanismo de eliminação da dupla tributação com respeito aos dividendos de ações, cuja detenção se relacione com a cobertura de responsabilidades (via passivos financeiros/provisões) em contratos de seguro unit-linked ou em contratos de seguro do ramo vida com participação nos resultados.
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Por sua vez a AT contra-argumentou com base nos seguintes argumentos:
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O entendimento perfilhado pela AT estriba-se nas normas contabilísticas do sector das empresas seguradoras e está em conformidade com o entendimento confirmado pelo Instituto de Seguros de Portugal (ISP) – hoje designado Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) – em janeiro de 2009, na resposta a uma solicitação que lhe foi dirigida pela, à data, DGCI, na qual se concluiu, na sequência da análise ao tratamento contabilístico, aplicável aos unit-linked, à luz do Plano de Contas para as Empresas de Seguro (doravante “PECS”), “que apenas constitui rendimento efetivo da empresa de seguros os encargos de gestão e de subscrição cobrados, não tendo o rendimento global gerado pelos investimentos afetos aos unit-linked impacto em termos dos resultados da empresa.”
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Basta consultar a Demonstração de Resultados da B... para os exercícios findos em 31 de dezembro de 2019 e 2018 para verificar a rubrica “Comissões de contratos de seguro e operações considerados para efeitos contabilísticos como contratos de investimento ou como contratos de prestação de serviço, que ascendeu a €1.215,867 (€1.224,954, em 2018).
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Por aplicação do artigo 17.º, n.ºs 1 e 3, do CIRC, constata-se, que não prescrevendo a lei um tratamento diferente para as operações relativas aos contratos unit-linked e outros contratos de seguros com participação nos resultados, é acolhido, para efeitos de determinação do lucro tributável, o preconizado pela normalização contabilística aplicável, o PECS.
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A Norma Internacional de Relato Financeiro (IFRC) N.º 4 – Contrato de Seguros apresenta os critérios de classificação do tipo de contratos celebrados pelas empresas de seguros e de resseguros tendo em vista o tratamento contabilístico aplicável, nomeadamente o resultado da Norma Internacional de Contabilidade (IAS) 39 (contratos de investimento) e/ou da NIC (IAS) 18 (contratos de serviços).
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Em sintonia com a normalização contabilística aplicável, a B... informa na Nota 2.15 do Relatório & Contas, pág. 372, a respeito da classificação de contratos que: “O registo das transações associadas aos contratos de seguro e de resseguro emitidos e aos contratos de resseguro detidos pela Companhia é efetuado de acordo com o normativo ASF. No âmbito da transição para o novo PCES, foram incorporados neste normativo os princípios de classificação de contrato estabelecidos pela IFRS 4 – “Contrato de seguro”, no âmbito dos quais os contratos sem risco de seguro significativo são considerados de investimento e contabilizados de acordo com os requisitos da IAS 39”.
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Os contratos de seguro, cujo risco de investimento é suportado pelo tomador de seguro (unit-linked) são, portanto, classificados pela B... como contratos de investimento; a designação do produto unit-linked significa, tão só, que existe uma ligação (exceto quando existem valores garantidos) entre os ativos que integram as carteiras de investimento em que são aplicados os “prémios” e os montantes das responsabilidades das seguradores perante os clientes.
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Os lucros distribuídos às participações sociais incluídas nas carteiras de investimento afetas aos produtos unit-linked não podem considerar-se integrados no resultado contabilístico da seguradora, embora tais rendimentos lhe sejam atribuídos, na qualidade de detentora e titular daqueles ativos financeiros. Na realidade, os beneficiários últimos dos rendimentos são os tomadores dos seguros ou beneficiários e, ademais, se estivessem incluídos no resultado líquido contabilístico da seguradora, fariam parte do lucro distribuível aos seus próprios sócios.
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Os dividendos aqui em causa não entram no cômputo do resultado líquido da B... e, consequentemente, não entram na base tributável, uma vez que contabilisticamente não podem ser registados como um rendimento da seguradora, sendo apenas consideradas como rendimento as comissões cobradas pela gestão dos produtos unit-linked (PCES, conta 73 – Comissões de contratos de seguro e operações consideradas para efeitos contabilísticos como contratos de investimento ou como contratos de prestação de serviços).
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Em face do que prescreve o §.20B do apêndice B da IFRS4, os contratos unit-linked não são considerados contratos de seguro e, como tal, o reconhecimento contabilístico relativo aos dividendos recebidos pela seguradora (retribuição recebida) é registado como um passivo financeiro, em vez de rédito.
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O resultado (positivo ou negativo) obtido dos lucros distribuídos, valorizações ou desvalorizações, respeitante aos investimentos a que estão indexados os produtos unit-linked, é inteiramente imputado ao tomador do seguro (o investidor) através de lançamentos contabilísticos ocorridos nas rubrica “450 Passivos financeiros da componente de depósito de contratos de seguros e de contratos de seguro e operações considerados para efeitos contabilísticos como contratos de investimento e “21 Investimentos relativos à componente de depósito de contratos de seguro e a contratos de seguro e operações consideradas para efeitos contabilísticos como contratos de investimento”.
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Face ao PCES em vigor à data dos factos, “os compromissos associados aos produtos unit linked classificados como contratos de investimento/depósito – não são registados, no balanço das companhias de seguro, na classe 3 – provisões técnica”.
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Se a B... cometeu um erro contabilístico ao considerar os dividendos referentes aos produtos unit-linked na conta 74, isto é, registou na contabilidade os dividendos em causa como um rendimento, fê-lo em clara contradição com o normativo contabilístico vigente mormente o disposto §.20B do apêndice B da IFRS4.
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A B... não pode mobilizar ou afetar aqueles rendimentos a outras finalidades – seja financiar o ciclo produtivo da empresa ou novos investimentos, portanto, não faz sentido estabelecer qualquer paralelismo entre os lucros distribuídos às participações sociais incluídas em carteiras conexas com produtos unit-linked e qualquer outro sujeito passivo de IRC, que detém participações numa outra sociedade, e dela recebe dividendos. Donde resulta a total falta de sustentação, fatual e legal, da alegada inconstitucionalidade por violação dos princípios da igualdade e da proibição de discriminações infundadas, e do subprincípio da neutralidade no tratamento de realidades económicas iguais, previstos nos artigos 2.º (Estado de direito democrático) e 13.º, da CRP.
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Não basta à Requerente defender que há lugar à tributação dos dividendos, na esfera da seguradora que detém as ações para cobrir economicamente as suas responsabilidades com o ramo vida, pois, aquela não explicita como se materializa uma tal ocorrência, porquanto, nos exemplos que apresenta, o efeito no resultado contabilístico da seguradora é nulo.
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A intervenção legislativa da Lei n.º 7-A/2016 retirou atualidade à fundamentação que sustenta a tese plasmada nas decisões arbitrais invocadas pela Requerente, as quais, na sua grande parte, têm como referência normativa a redação do artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, que vigorou até à Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.
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Foi, justamente, o reconhecimento de que, na esfera da seguradora, não ocorre dupla tributação económica relativamente aos rendimentos de participações sociais de carteiras de investimento de produtos unit-linked e outros produtos de seguro do ramo vida com participação de resultados, por não integrarem o resultado contabilístico nem o resultado fiscal das Empresas de seguro, que determinou a alteração introduzida ao n.º 6, do artigo 51.º, do IRC, pela Lei n.º 7-A/2016.
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Caso o Tribunal profira a sua decisão sem atender ao disposto na nova redação do n.º 6, do artigo 51.º, do IRC, dada pelo artigo 133.º, da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, incorrerá em interpretação normativa inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade tributária, da reserva da lei fiscal e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 103.º, 165.º e 202.º da CRP.
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O artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, ao instituir um benefício fiscal – extensão do regime do n.º 1 a situações nele não abrangidas – por via da dispensa do cumprimento de alguns requisitos constantes das suas alíneas –, está fora do alcance da Diretiva 2011/96/UE do Conselho de 30 de novembro de 2011, mormente do n.º 1, do artigo 4.º.
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Os benefícios da aludida diretiva só podem ser invocados pelos destinatários últimos dos rendimentos – aqueles que tendo a titularidade jurídica, têm igualmente a titularidade económica, ou seja, o poder de controlar e dispor livremente dos rendimentos –.
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A inexistência de dupla tributação económica dos lucros distribuídos – as condições contratuais dos produtos unit-linked e de outros produtos de seguro do ramo vida com participação nos resultados impõem às seguradoras a imputação dos rendimentos às respetivas carteiras de investimentos, com o consequente aumento das responsabilidades financeiras perante clientes, traduzidos em contas de gastos e no passivo – é suficiente para que o legislador nacional tenha excluído tais realidades do âmbito do beneficio fiscal, previsto no artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, não se vislumbrando em que medida o poder do legislador nacional poderia ser limitado nesta matéria pela citada Diretiva, nem tampouco qualquer justificação para propor a este Tribunal o pedido de reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º, do TFUE.
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A Requerente aproveitando os dizeres da AT – “(...) resulta claro do PECS, aprovado pela Norma n.º 10/2016-R, que os contratos com os quais se relacionam os dividendos aqui em causa, não se inserem na atividade financeira de seguros, inserem-se na atividade financeira de investimento” –, apressa-se a classificar a atividade financeira de investimento da B... como uma “atividade típica de sociedade de investimento”, assim concluindo que aos “dividendos com ela conexionados, há-de aplicar-se a alínea b), do n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC”, ou seja a Requerente lança mão da figura da analogia e equipara esse segmento às atividades exercidas pelas sociedades de investimento, em ordem a beneficiar do regime de eliminação da dupla tributação económica dos lucros, previsto no citado artigo. Contudo, o regime jurídico das sociedades de investimento, constante do Decreto-Lei n.º 260/94 de 22 de outubro (na redação em vigor) permite verificar a amplitude do artigo 3.º, mas não permite concluir que a emissão de produtos do ramo vida com as caraterísticas dos contratos unit-linked seja uma atividade típica das sociedades de investimento.
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Tendo em conta a figura jurídico-económica assumida em consequência da atividade económica exercida, sempre em exclusivo, que no caso da B... é de sociedade de seguros, designadamente do ramo não vida, a mesma nunca poderá preencher o pressuposto de sociedade de investimento, para através da alínea b), do n.º 6, do artigo 51.º do CIRC, lograr beneficiar da isenção de tributação dos rendimentos obtidos através dos produtos financeiros unit-linked.
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Resulta expressamente da letra do n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC, no que concerne às sociedades de seguros, que o legislador apenas incluiu naquela norma a parte dos rendimentos de participações sociais afetas às provisões técnicas e que não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros. Os rendimentos de participações sociais em causa nos presentes autos, indexados aos produtos unit-linked, não se encontram afetos às provisões técnicas da B... e são imputáveis aos tomadores de seguros, pelo que não lhe pode, também, ser aplicável o n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC.
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SANEAMENTO
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O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
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O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
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As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
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O processo não enferma de nulidades.
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A exceção da incompetência material do Tribunal suscitada pela Requerida será apreciada após determinada a matéria de facto.
III. MATÉRIA DE FACTO
III.1. FACTOS PROVADOS
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Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é um sujeito passivo de IRC, que iniciou a sua atividade em 25.04.2014 (Cfr. PA).
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A Requerente é a sociedade dominante de um grupo de sociedades (“Grupo Fiscal C...”), tributado pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (doravante “RETGS”), do qual faz parte a B..., S.A, sujeito passivo de IRC, que tem por objeto social o exercício da atividade seguradora e resseguradora, em todos os ramos técnicos legalmente permitidos (Cfr. PA).
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As demonstrações financeiras de tal grupo, subjacentes à determinação do lucro tributável, foram preparadas em conformidade com o estabelecido pelo Plano de Contas para Empresas de Seguros e pelas normas regularmente emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal (Cfr. PA).
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Os compromissos ligados aos produtos unit-linked – classificados como contratos de investimento/depósito – não foram registados no balanço na classe 3 – provisões técnicas (Cfr. PA).
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A sociedade dominada B... submeteu a Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC, individual (Mod. 22) do período de tributação de 2019, em 31.07.2020 (número de identificação ...-... -...), que foi substituída mediante a entrega de declarações de substituição, tendo a última sido submetida em 15.11.2021 (número de identificação ...-...-...) (Cf. PA e documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o PPA).
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Nas declarações mencionadas inscreveu o montante de €67.847.613,12 a título de eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos – campo 771 do quadro 07 (Cfr. PA e documentos n.ºs 1 e 2 juntos com o PPA).
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A Requerente, na qualidade de sociedade dominante, submeteu a Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC do Grupo, do período de tributação de 2019, em 31.07.2020 (número de identificação ...-... -...), tendo declarado no campo 311 do quadro 09 um resultado fiscal do grupo de €8.742.737,40, que deu origem à demonstração de liquidação de IRC n.º 2021... (Cfr. Documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o PPA).
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Tal Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC do Grupo foi substituída mediante a entrega de uma outra declaração (de substituição) apresentada em 23.11.2021 (número de identificação ...-...-...), tendo declarado no campo 311 do quadro 09 um resultado fiscal do grupo de €8.742.737,40, que deu origem à demonstração de liquidação de IRC n.º 2022. ... (Cfr. Documentos n.ºs 5 e 6 juntos com o PPA).
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No dia 22.07.2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra o ato de autoliquidação do IRC de 2019 do Grupo, na qual solicitou a correção da matéria tributável no montante total de €124.815,96, respeitante a dividendos de participações adquiridas pela sociedade dominada B... para adequada cobertura de responsabilidades com seguros unit-linked e seguros do ramo vida com participação nos resultados, sobre os quais entende que foi indevidamente excluída a aplicação do regime da eliminação da dupla tributação económica, previsto no artigo 51.º, do CIRC e, que, por isso pagou imposto em excesso no montante de €12.039,74 (Cfr. PA e documentos n.ºs 8 e 9 juntos com PPA).
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No âmbito do referido procedimento de reclamação graciosa, a Requerente foi notificada do projeto de indeferimento (Cfr. documento n.º 10 junto com o PPA), datado de 15.11.2022, bem como, da posterior decisão definitiva de indeferimento, datada de 16.12.2022 (Cfr. documentos n.ºs 10 e 7 juntos com o PPA).
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A Requerente, inconformada, com a decisão definitiva de indeferimento da reclamação graciosa, apresentou, em 14.03.2023, o presente pedido de pronúncia arbitral (Cfr. Sistema informático do CAAD).
III.2 FACTOS NÃO PROVADOS
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Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA FIXAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar, se for o caso, a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante “CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
O Tribunal arbitral considera provados, com relevo para a decisão da causa, os factos acima elencados e dados como assentes, tendo por base a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, dos factos alegados pelas partes que não foram impugnados e, a adequada ponderação dos mesmos à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum, e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
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DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL
A Requerida arguiu a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, quanto aos seguintes segmentos: (i) anulação da autoliquidação de IRC no concreto montante de €12.039,74 e; (ii) condenação da Requerida ao seu reembolso.
Para tanto, sustenta que o apuramento de IRC, alegadamente liquidado em excesso no valor (em termos líquidos) de €12.039,74, implica operações de quantificação que passam pela análise da declaração de rendimentos modelo 22 do Grupo, bem como das declarações individuais das sociedades que o integram, pelo que quanto a esta parte do pedido, em que a Requerente apura e peticiona a devolução do eventual imposto correspondente à correção da matéria coletável que pretende ver relevada a seu favor (acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios) extravasa a competência do presente tribunal.
Alega a Requerida que inexiste suporte legal que permita que sejam proferidos pelos tribunais arbitrais condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT: poderes declaratórios com fundamento em ilegalidade.
Defende a Requerida que ainda que tal pretensão constituísse, hipoteticamente, consequência, a nível de execução, de uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação, a definição dos atos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”).
Invoca a Requerida a seu favor as decisões arbitrais n.º s 587/2014-T; 244/2013-T; 496/2018-T; 750/2021-T, bem como o Acórdão do TCAS de 28.04.2016, proferido no processo n.º 09286/16, das quais, no seu entender, resulta que a condenação da AT no pedido de anulação de autoliquidação de IRC de acordo com valores quantificados pela Requerente se encontra excluída do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Conclui a Requerida que “estamos in casu perante a concretização de uma liquidação dirigida a um grupo societário que agrega várias sociedades, sendo que o RETGS determina a elaboração de documentos de correção que têm em consideração os resultados das sociedades dominadas e da sociedade dominante, por forma a gerar a respetiva liquidação de imposto do grupo, o que envolve operações de quantificação complexas”, “pelo que em suma, no segmento indicado, verifica-se a incompetência do Tribunal para a apreciação daquele pedido da Requerente”, “o que consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.”
A Requerente pronunciou-se sobre esta exceção, pugnando pela respetiva improcedência, afirmando, em suma, que:
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A AT tem, evidentemente, o direito de controlar a segregação feita pelo contribuinte da parte do ato por si impugnada, e se não estiver de acordo tem o direito de contestar, apresentando a sua versão do quantum implicado na controvérsia fiscal. E depois, se tiver elementos suficientes para o efeito, o Tribunal decidirá então sem necessidade de diferimento para execução de julgados, ouvindo ou não adicionalmente as partes para o que entenda por conveniente para seu cabal esclarecimento.
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A AT não contestou, nem em sede do procedimento administrativo que antecedeu esta arbitragem fiscal, nem agora na mesma, o imposto que o contribuinte segregou como sendo o correspondente à parte do ato tributário com que não se conforma. E tão pouco contestou o valor da causa que, em coerência com esta quantificação, o contribuinte indicou no seu pedido de pronúncia arbitral.
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Neste caso, a Requerente indicou um concreto montante da liquidação que reputa de ilegal, e a AT não contestou o cálculo em si, pelo que, caso o Tribunal venha a dar razão à queixa da Requerente, inexiste qualquer necessidade de remeter para processo de execução de julgados a determinação exata do montante a anular.
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O Tribunal nada cria, limita-se a anular com precisão uma parte de um todo pré-existente.
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Se a AT entender ser de suscitar dúvidas concretas, dirá o que em concreto possa estar em falta de entre, designadamente, os elementos contabilísticos apresentados, ou que cálculos adicionais será porventura ainda necessário fazer. É esse o seu direito. E é esse também o seu dever.
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Não se concebe que o Tribunal não esteja investido de poderes para condenar no reembolso, posto que, evidentemente, as partes lhe indiquem em concreto o montante da liquidação cuja legalidade se discute, caso contrário terá de ser diferida para execução de sentença a determinação do exato montante a anular e a reembolsar. Mas só nesse caso.
Invoca, também, a Requerente jurisprudência para sustentar a sua tese (Acórdão do STA de 02.12.2015, proferido no processo n.º 0754/15; Acórdão do TCAS, de 08 de junho de 2017, proferido no processo n.º 06112/12; Acórdão do STA de 31.05.2017, proferido no processo 01229/15).
O âmbito de competência material do tribunal é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (Cfr. artigo 13.º do CPTA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), sendo que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é de conhecimento oficioso (Cfr. artigo 16.º, do CPPT e artigos 96.º, alínea a) e 97, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Vejamos.
Na autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, proclama-se, como diretriz primacial da instituição da arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial é um meio processual que tem por objeto um ato em matéria tributária, visando apreciar a sua legalidade e decidir se deve ser anulado ou ser declarada a sua nulidade ou inexistência, como decorre do artigo 124.º, do CPPT.
Apesar do processo de impugnação judicial ter por objeto primacial a declaração de nulidade ou existência ou a anulação de atos dos tipos referidos, tem sido pacificamente entendido que nele podem ser proferidas condenações da Administração Tributária a pagar juros indemnizatórios e a indemnização por garantia indevida.
Pela análise dos artigos 2.º e 10.º, do RJAT, verifica-se que apenas se incluíram nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD questões de legalidade de atos de liquidação ou de atos de fixação da matéria tributável e atos de segundo grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, atos esses cuja apreciação se insere no âmbito dos processos de impugnação judicial, como resulta das alíneas a) a d), do n.º 1, do artigo 97.º, do CPPT.
Isto é, constata-se que o legislador não implementou a autorização legislativa no que concerne à parte em que se previa a extensão das competências dos tribunais arbitrais a questões que são apreciadas nos tribunais tributários através de ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo.
Contudo, em sintonia com a intenção subjacente à autorização legislativa de criar um meio alternativo ao processo de impugnação judicial, deverá entender-se que, quanto aos pedidos de declaração de ilegalidade de atos dos tipos referidos no seu artigo 2.º, os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD têm as mesmas competências que têm os tribunais estaduais em processo de impugnação judicial, dentro dos limites definidos pela vinculação que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio a fazer através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT.
Com efeito, embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, utilize a expressão declaração de ilegalidade para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e a ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, os tribunais arbitrais são competentes para apreciar os pedidos de reembolso das quantias pagas, de pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.
No entanto, a falta de qualquer disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito dos processos arbitrais – à semelhança do que sucede com o âmbito do processo de impugnação judicial – restringe-se às questões de legalidade dos atos dos tipos referidos no artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, que são abrangidos pela vinculação que foi feita na Portaria n.º 112-A/2011, não podendo, designadamente, definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que vierem a ser proferidos.
Na verdade, a competência para executar os julgados proferidos pelos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, cabe, em primeira linha, à própria Autoridade Tributária e Aduaneira, como resulta do teor expresso do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT ao estatuir que “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, (...)”.
Sendo que, a haver discordância entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e os sujeitos passivos sobre a forma de execução de julgados, são os tribunais tributários os competentes para a sua apreciação, já que não são atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências em processos de execução de julgados e os tribunais arbitrais dissolvem-se na sequência da decisão arbitral, como decorre do artigo 23.º, do RJAT.
O que se vem de dizer consubstancia um entendimento que tem sido, reiterado e pacificamente, afirmado em múltiplas decisões proferidas em processos arbitrais tributários e, também, em alguns arestos dos tribunais estaduais que se têm pronunciado sobre esta matéria, sendo disso exemplo o Acórdão do TCAS, datado de 25.06.2019, proferido no processo n.º 44/18.6BCLSB, onde se afirma, para além do mais, o seguinte:
“(...) não se descortinam razões para restringir aos tribunais arbitrais a possibilidade – que se confere aos tribunais tributários em processo de impugnação judicial – de proferirem decisões de natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do ato tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respetivos juros, desde que tal não implique para o tribunal arbitral a prática de atos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa, nomeadamente a intangibilidade do caso julgado administrativo ou o respeito pelas áreas em que a Administração Tributária goza de uma margem de livre apreciação na sua decisão (cf. Carla Castelo Trindade, “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado”, Almedina, 2016, págs. 120 e ss.).”
Volvendo ao caso dos autos, resulta do pedido arbitral formulado pela Requerente que esta pretendeu abarcar todas as consequências que, no seu entender, deverão decorrer da decisão arbitral, caso esta seja favorável às suas pretensões de declaração de ilegalidade e anulação (parcial) dos atos tributários controvertidos.
Ora, nada obsta a que este Tribunal determine, sendo caso disso: (i) a ilegalidade e a anulação do indeferimento da reclamação graciosa, na parte aqui em discussão; (ii) a ilegalidade parcial da autoliquidação aqui sindicada e a sua consequente anulação; com todas as legais consequências, designadamente o reembolso à Requerente do montante de imposto (IRC) indevidamente pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios, calculados nos termos legais.
Todavia, se vier a ser esse o sentido da decisão, o valor exato daquele reembolso não resulta direta e imediatamente determinado a partir da declaração de ilegalidade e anulação (parcial) daquele ato de autoliquidação controvertido; com efeito, para apurar e concretizar aquele valor são necessárias operações de quantificação complexas – que passam pela análise da declaração de rendimentos modelo 22 do Grupo, bem como das declarações individuais das sociedades que os integram –, que não incumbe a este Tribunal Arbitral efetuar, mas sim à AT, na medida em que consubstanciam atos materiais de execução da decisão arbitral anulatória que culminarão com a emissão de um novo ato de liquidação de IRC, atinente ao exercício de 2019, nos termos do disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea d), do RJAT, que terá de ter em consideração os resultados das sociedades dominadas e da sociedade dominante, por forma a gerar a respetiva liquidação do imposto do Grupo, o que, repita-se, envolve operações de quantificação complexas (à semelhança, aliás, do que, nesse caso, sucederá com a operação aritmética de cálculo dos correspondentes juros indemnizatórios – cf. artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT).
Nestes termos, é julgado procedente a invocada exceção da incompetência material do Tribunal Arbitral para apurar e concretizar o valor exato do reembolso do IRC a favor da Requerente, decorrente da (eventual) procedência do pedido de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e do ato de autoliquidação de IRC controvertido, consequentemente a esses pedidos, é a Requerida absolvida da instância (Cfr. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a), do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, com todas as legais consequências.
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MATÉRIA DE DIREITO
Atendendo à factualidade exposta, bem como às pretensões e posições da Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, as questões que o Tribunal Arbitral deve apreciar (sem prejuízo de a solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões – Cfr. artigo 608, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT –), são as seguintes:
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Se o Tribunal Arbitral deve reenviar os autos para o TJUE para determinar se o artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE, de 30 de novembro de 2011, deve ser interpretado como, no âmbito da eliminação da dupla tributação na esfera da sociedade que aufere dividendos, excluindo os dividendos recebidos pelas seguradoras em resultado de participações sociais por elas adquiridas no âmbito dos contratos unit-linked;
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Se o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022... e o ato de autoliquidação de IRC subjacente, padecem do vício de violação de lei, porque é ilegal o afastamento da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação dos dividendos de ações cuja detenção se relacione com contratos de seguro unit-linked e/ou com contratos de seguro do ramo vida com participações nos resultados;
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Se a norma do artigo 51.º, n.º 6, alínea b), do CIRC, interpretada no sentido de que excluiria da sua estatuição os dividendos advenientes de participações sociais detidas por seguradoras relacionadas com contratos (do segmento da atividade de investimento) unit-linked ou com seguros do ramo vida com participação nos resultados é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proibição de discriminações infundadas e do subprincípio da neutralidade no tratamento de realidades económicas iguais, para efeitos da regulação aqui em causa, previstos nos artigos 2.º e 13.º da CRP.
V.1 APRECIAÇÃO
V.1.1 Violação da Diretiva “mães-filhas” – Pedido de reenvio prejudicial –
Alega a Requerente, num dos segmentos da sua argumentação, a violação da Diretiva 2011/96/UE, de 30 de novembro de 2011 (Diretiva “mães-filhas”). Considera, em síntese, que de tal diploma decorre uma obrigação, com fonte no direito da União Europeia, de eliminar a dupla tributação e, que uma vez adotado esse regime por um Estado-Membro, com um campo de aplicação abrangendo também situações (de sociedades mãe-filhas) puramente domésticas, esse regime fica na sua totalidade – isto é, também na medida em que se aplique a situações exclusivamente domésticas –, sujeito ao controlo (em última instância pelo TJUE) do respeito pelas prescrições da aludida Diretiva.
Neste pressuposto, formulou a Requerente um pedido de reenvio prejudicial para o TJUE com vista a determinar se o artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE, de 30 de novembro de 2011, deve ser interpretado como, no âmbito da eliminação da dupla tributação na esfera da sociedade que aufere dividendos, excluindo os dividendos recebidos pelas seguradoras em resultado de participações sociais por elas adquiridas no âmbito dos contratos unit-linked.
Dispõe o n.º 1 do artigo 4.º, do citada Diretiva que: “1. Sempre que uma sociedade-mãe ou o seu estabelecimento estável, em virtude da associação da sociedade-mãe com a sociedade sua afiliada, obtenha lucros distribuídos de outra forma que não seja por ocasião da liquidação desta última, o Estado-Membro da sociedade-mãe e o Estado-Membro do estabelecimento estável da sociedade-mãe: a) Abstêm-se de tributar esses lucros; ou b) Tributam esses lucros autorizando a sociedade-mãe e o estabelecimento estável a deduzirem do montante do imposto devido a fração do imposto sobre as sociedades paga sobre tais lucros pela sociedade afiliada e por qualquer sociedade subafiliada, na condição de cada sociedade e respetiva sociedade subafiliada estarem abrangidas pelas definições constantes do artigo 2.º e satisfazerem em cada nível os requisitos previstos no artigo 3.º, até ao limite do montante correspondente do imposto devido.”
Assumindo, por economia de raciocínio, as premissas invocadas pela Requerente como válidas, há que questionar o seguinte: mesmo que os dividendos recebidos pela Requerente tivessem tido origem noutro estado-membro, tal distribuição estaria abrangida pela Diretiva?
Parece-nos que não.
A citada Diretiva (e o regime nacional de participation exemption dela resultante) só é aplicável quando verificado o requisito de a sociedade que recebe os dividendos deter, pelo menos, 10% do capital da sociedade que os distribuiu[1].
Como é bom de ver, a Requerente não alega que os dividendos aqui em apreço resultem de participações com esta dimensão quantitativa, não sendo aceitável que tal possa acontecer, pois, estando em causa uma atividade de investimento financeiro, o expetável é a carteira de ações ser muito diversificada.
Conforme refere, e bem, a Requerida, “o n.º 6 do artigo 51.º do CIRC (de que a Requerente se quer fazer valer), institui um benefício fiscal, ao estender o regime do n.º 1 a situações nele não abrangidas, por via da dispensa do cumprimento de alguns requisitos constantes das suas alíneas (como seja a exigibilidade de percentagem mínima de participação), portanto, à partida estará fora do alcance da Diretiva, mormente do n.º 1 do artigo 4.º.”
Aliás, mais do que a questão do ónus de alegação, a Requerente elabora num erro, porquanto, o objetivo da Diretiva não é a eliminação de toda a dupla tributação de lucros distribuídos, mas apenas a que ocorre dentro dos chamados “grupos de sociedades”, o que, como é bom de ver, não é o caso em apreciação.
Assim, e sem necessidade de maiores considerações, sufragamos a conclusão proferida na Decisão do CAAD, de 11.06.2022, processo n.º 857/2021-T (respeitante ao exercício de 2016, do Grupo Fiscal C..., em que a ora Requerente era, também, a sociedade dominante), que seguimos de perto, por com ela concordar: “Não sendo a Diretiva “mães-filhas” aplicável, mesmo que potencialmente, à situação da Requerente, improcede necessariamente a argumentação desta no sentido de existir violação do primado do Direito Europeu.”
Neste sentido, e no que respeita ao pedido de reenvio prejudicial para o TJUE formulado pela Requerente, o mesmo carecerá, naturalmente, de fundamento.
Ora, quando as questões prejudiciais são suscitadas perante um órgão jurisdicional nacional (o que inclui, os Tribunais Arbitrais), cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial, previsto no direito interno, a submissão desta ao TJUE é obrigatória. Por outro lado, se da decisão do órgão jurisdicional do Estado-Membro couber recurso, à luz do direito interno, o reenvio é, em princípio, facultativo.
As decisões dos tribunais arbitrais são irrecorríveis quanto ao mérito, embora essa solução se encontre temperada por hipóteses excecionais de controlo pelos seguintes tribunais: i) Tribunal Constitucional e (ii) Supremo Tribunal Administrativo, incluindo-se na competência deste último, quanto à mesma questão de direito, a oposição de acórdãos (Tribunais Centrais Administrativos e o Supremo Tribunal Administrativo) e de decisões arbitrais.
A jurisprudência do TJUE considera que essa obrigatoriedade de suscitar a questão de interpretação deixa de existir nas seguintes hipóteses: (i) quando a questão não for “necessária”, nem “pertinente” para o julgamento do litígio principal; (ii) quando se verificar uma “identidade material” da questão prejudicial com outra já decidida pelo TJUE; e (iii) quando o órgão jurisdicional nacional verificar que a interpretação da norma objeto de dissídio é “clara”.
Assim, e atendendo ao supra exposto, conclui-se que na presente hipótese não se considera que uma decisão sobre a interpretação das normas comunitárias seja necessária ao julgamento da causa, por não estar sequer em causa a aplicação de uma norma com origem no Direito Europeu, pelo que o pedido de reenvio prejudicial improcede.
V.1.2 Da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação aos dividendos de ações cuja detenção se relacione com contratos de seguro unit-linked e/ou com contratos de seguro do ramo vida com participações nos resultados
O objeto do litígio consiste em apurar se o ato de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022... e o ato de autoliquidação de IRC subjacente, padecem de vício de violação de lei, porque é ilegal o afastamento da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação económica dos dividendos recebidos pelas seguradoras em resultado de participações sociais por elas adquiridas no âmbito dos contratos unit-linked ou dos contratos de seguro do ramo vida com participação nos resultados.
O problema não é recente – bem pelo contrário – existe profusa jurisprudência relativamente à questão da des(consideração) da natureza dedutível à matéria coletável de lucros afetos a seguros unit-linked (Cfr. Acórdão proferido no âmbito do processo 2173/04.4BELSB, de 25/02/2021; a Decisão Arbitral n.º 268/2015-T, de 29.01.2016; Decisão Arbitral n.º 220/2019-T, de 18.11.2019).
O sentido decisório subjacente às aludidas decisões judiciais, que apreciaram factos anteriores à alteração legislativa ocorrida em 2016, é unitário: os rendimentos de valores mobiliários (dividendos) constituem uma componente da base tributável imputável ao sujeito passivo. Por conseguinte, os sujeitos passivos que recebam dividendos beneficiam de uma exclusão de tributação – os dividendos não concorrem para a determinação do “lucro tributável” – nos termos previstos no artigo 51.º do CIRC.
Sucede, no entanto, que o legislador alterou o artigo 51.º, n.º 6, do CIRC, através da Lei do Orçamento do Estado para 2016[2], o qual passou a ter a seguinte redação: “o disposto nos n.sº 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades: a) Sociedades de desenvolvimento regional; b) Sociedades de investimento; c) Sociedades financeiras de corretagem.” (negrito nosso)
E, é a aplicação do disposto no n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC, na redação da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, que está em causa nos presentes autos.
Todavia, importa, antes de mais, relembrar a natureza dos seguros de capitalização unit-linked e dos rendimentos que deles resultam, atendendo aos seus traços mais relevantes.
Ora, os rendimentos que estão em discussão nos presentes autos – dividendos auferidos pelo sujeito passivo, mas afetos a contratos unit-linked e dividendos recebidos pelo sujeito passivo afetos a contratos “vida em participação” – têm uma configuração jurídica muito peculiar, estando sujeitos a um tratamento contabilístico igualmente particular.
As operações relativas aos contratos unit-linked e outros contratos de seguros com participação nos resultados, é acolhido, para efeitos de determinação do lucro tributável, o preconizado pela normalização contabilística, o plano de contas das empresas de seguro (PCES) – o qual, como é bom de ver, foi seguido pela Requerente na elaboração das suas demonstrações financeiras (Cfr. facto dado como provado – ponto C. dos Factos Provados) –.
O plano de contas das empresas de seguro (PCES) contém uma subconta (a subconta 450) em que se registam os “passivos financeiros da componente de depósito de contratos de seguros e de contratos de seguro e operações considerados para efeitos contabilísticos como contratos de investimento”. De acordo com a respetiva nota explicativa, nesta conta devem ser registados “os passivos financeiros relativos à componente de depósito de contratos de seguros e a contratos de seguro e operações em que o risco de investimento é suportado pelo tomador do seguro e a outros contratos que, no âmbito da IFRS4, são classificados como contratos de investimento.” (negrito e sublinhado nosso)
Ou seja, em face do que prescreve o §20B do apêndice B da IFRS4, os contratos unit-linked não são considerados contratos de seguro (o que a Requerente aceita), e como tal, o reconhecimento contabilístico relativo aos dividendos recebidos pela seguradora é registado como um passivo financeiro.
Assim, nos termos do PCES em vigor à data dos factos, “os compromissos associados aos produtos unit-linked classificados como contratos de investimento/depósito – não são registados no balanço das companhias de seguro, na classe 3 – provisões técnicas.” Aliás, no caso dos autos, tais compromissos associados aos produtos unit-linked não foram contabilizados na classe 3 – provisões técnicas (Cfr. facto dado como provado – ponto D. dos Factos Provados).
Em bom rigor, como refere, e bem, a Requerida, “o resultado (positivo e negativo) obtido dos lucros distribuídos, valorizações ou desvalorizações, respeitante aos investimentos a que estão indexados os produtos unit-linked, é inteiramente imputado ao tomador do seguro (investidor) através de lançamentos contabilísticos ocorridos nas rubricas 450 (já indicada supra) e 21 Investimentos relativos à componente de depósito de contratos de seguro e a contratos de seguro e operações consideradas para efeitos contabilísticos como contratos de investimento.”
Este tratamento contabilístico que impõe registar como “passivos financeiros” valores exatamente correspondentes aos rendimentos das aplicações afetas a “depósito de contratos de seguros e a contratos de seguro e operações em que o risco de investimento é suportado pelo tomador do seguro”, prende-se com o facto dos contratos em causa se caracterizarem por deles decorrer para o tomador do seguro um direito a receber (no momento do resgate) o rendimento produzido pelo capital por si entregue (sob a forma de prémio) à seguradora e por esta investido em fundos de investimento. Esta obrigação de contabilizar um passivo de valor igual aos rendimentos obtidos visa garantir que os rendimentos ficam disponíveis para serem entregues ao tomador e não são afetos a qualquer outra função que não essa (Cfr. Decisão Arbitral n.º 589/2020-T, de 6 de setembro).
Com efeito, e conforme refere a Decisão Arbitral n.º 589/2020-T, de 6 de setembro, na sua fundamentação, “(...) a seguradora não pode dispor desses ativos como quiser e segundo o seu próprio interesse, nem sequer para cobrir eventuais prejuízos. A seguradora está contratualmente obrigada a investir esses ativos de acordo com o contrato que fez com o tomador do seguro em caso de resgate. Teríamos então, em vez de um verdadeiro rendimento, um fluxo que se configura formalmente como um rendimento porque juridicamente é gerado na esfera patrimonial da seguradora, mas que não é um rendimento na sua substância económica porque a seguradora não pode dispor dele. (...)O parecer dado pelo Instituto de Seguros de Portugal, a solicitação da Autoridade Tributária, com data de 09.01.21, (...) reflete este entendimento, dizendo: Concordamos com o entendimento dessa Direção de que constitui apenas rendimento efetivo da empresa de seguros os encargos de gestão e de subscrição cobrados, não tendo o rendimento global gerado pelos investimentos afetos aos “Unit-Linked” impacto em termos dos resultados da empresa(...)” (negrito nosso).
Daí que a Requerida afirme que “os dividendos aqui em causa não entram para o cômputo do resultado líquido da B... e, consequentemente, não entram na base tributável, uma vez que contabilisticamente não podem ser registados como um rendimento da seguradora, sendo apenas consideradas como rendimento as comissões cobradas pela gestão dos produtos unit-linked (PCES, conta 73 – Comissões de contratos de seguro e operações consideradas para efeitos contabilísticos como contratos de investimento ou como contratos de prestação de serviços).”, posição essa, com a qual concordamos.
De tudo o que vem dito, nenhuma dúvida parece suscitar a conclusão de que a alteração legislativa teve diretamente em vista a exclusão dos dividendos recebidos pelas seguradoras em resultado de participações sociais por elas adquiridas no âmbito de determinados contratos de seguro, nomeadamente os unit-linked, pois, como foi bom de dever, tais entidades não preenchem os pressupostos compreendidos no n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC (“rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros”) de que depende a aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação económica. (negrito nosso)
Indo mais longe, questiona-se a insistência da Requerente em afirmar que, in casu, há lugar a tributação dos dividendos “na esfera da seguradora que detém as ações para cobrir economicamente as suas responsabilidades legais com seguros do ramo vida”, porquanto, o efeito contabilístico da seguradora é nulo, como resulta dos exemplos dados pela Requerente nos seus articulados.
Não obstante, cremos que a Requerente, na verdade, aceita a nossa conclusão, caso contrário não afirmaria que: “(...) o legislador pôs, entretanto, as coisas como a AT gosta delas.”
Tanto assim é, que a Requerente acabou por enveredar por uma nova linha de argumentação – apressou-se a classificar a atividade financeira de investimento da B... como uma “atividade típica de sociedade de investimento”, para, assim, beneficiar do mecanismo de eliminação da dupla tributação económica, agora através da al. b), do n.º 6, do artigo 51º, do CIRC –, que, no nosso entender, também não procederá.
V.1.3 Da Equiparação a sociedades de investimento
Aduz a Requerente que, tal como decorre da contabilidade da B..., os contratos a que se referem os dividendos aqui sindicados não se inserem na atividade financeira de seguros, mas sim na atividade financeira de investimento, concluindo que a este diverso segmento de atividade, atividade de investimento, função e atividade típica de sociedade de investimento, e aos dividendos com ela conexionados, há-de aplicar-se a alínea b), do n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC e, por conseguinte, beneficiará do regime de eliminação da dupla tributação económica aí previsto.
Ora, num primeiro momento, temos o elemento literal da normal, o qual define o âmbito da exceção que consagra (não exigibilidade de percentagem mínima de participação e de tempo mínimo de detenção para se ter acesso ao mecanismo de eliminação da dupla tributação económica dos lucros), por referência a diferentes tipos de entidades – sociedades de seguros e mútuas de seguros; sociedades de desenvolvimento regional; sociedades de investimentos e; sociedades financeiras de corretagem –: “o disposto nos n.sº 1 e 2 é aplicável, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que esta tenha permanecido na sua titularidade, à parte dos rendimentos de participações sociais que, estando afetas às provisões técnicas das sociedades de seguros e das mútuas de seguros, não sejam, direta ou indiretamente, imputáveis aos tomadores de seguros e, bem assim, aos rendimentos das seguintes sociedades: a) Sociedades de desenvolvimento regional; b) Sociedades de investimento; c) Sociedades financeiras de corretagem.” (negrito nosso)
Decorre do citado normativo que o legislador apenas pretendeu incluir as entidades que adotem uma das formas legais que, taxativamente, enumerou, a cada umas quais corresponde um estatuto legal próprio e não as atividades por ela desenvolvidas[3].
A B... é uma sociedade seguradora, sendo-lhe aplicável a parte da norma que diretamente versa sobre as seguradoras e não o relativo a outros tipos de sociedades.
Neste sentido, acompanhamos na íntegra a posição vertida na Decisão do CAAD, de 11.06.2022, processo n.º 857/2021-T:
“O que está em causa não é, contrariamente ao que argumenta a Requerente, uma questão de eventual prevalência da forma sobre a substância na interpretação da lei fiscal.
O que está em causa é o critério seguido pelo legislador na configuração da tipologia legal em causa.
Com Alberto Xavier[4], é-se obrigado a distinguir, nos tipos legais de tributos, aqueles que se definem essencialmente pelo seu resultado económico, quer se refiram, quer não, a qualquer negócio jurídico, e aqueles que se definem essencialmente pelo tipo estrutural de negócio, independentemente do seu resultado: os primeiros são os tipos funcionais; os segundos, os tipos estruturais;(...) no caso em que a interpretação da lei tenha conduzido à conclusão de que o elemento essencial é a estrutura do negócio jurídico, independentemente da averiguação do seu resultado económico, então o negócio jurídico indireto não fica sujeito à disciplina jurídico tributária definida para o negócio direto correspondente.
Ora, pelas razões indicadas, há que concluir que as várias alíneas do n.º 6 correspondem a um tipo legal estrutural (no caso, de uma norma de exclusão), pelas razões atrás indicadas, pelo que é de recusar uma interpretação económica do aí disposto, ao contrário do que pretende a Requerente.
Tendo o legislador construído a norma em análise com base na enumeração taxativa das formas jurídicas societárias dos que dela são suscetíveis de beneficiar e não com referência a realidades económicas, mais não resta ao intérprete que respeitar o comando legislativo, manifestamente claro.
Acresce que uma interpretação económica da norma resultaria na destruição da sua essência de norma excecional: muitas são as sociedades que, a par de outras atividades, realizam investimento através de aquisição de participações sociais minoritárias. Considerando – como pretende a Requerente – que toda a atividade de investimento idêntica à que é caraterística das sociedades de investimento, independentemente de quem a realize (da forma jurídica de quem a realize) estaria abrangida por esta norma, teríamos o sistema de participation exemption generalizado a, praticamente, todos os casos em que uma sociedade detenha participações noutra, o que não é, obviamente, o intuito do sistema.
Em resumo: a intencionalidade da alteração legislativa é sabida, o elemento literal da norma claro: o legislador decidiu, expressamente, que aos dividendos, recebidos pelas seguradoras em razão de investimentos associados a contratos com determinadas caraterísticas, entre os quais seguros unit-linked, não aproveita o mecanismo da eliminação da dupla tributação económica previsto no artigo 51.º do CIRC, independentemente da percentagem de participação e do prazo em que este tenha permanecido na sua titularidade.
Equiparar, para este efeito, a atividade da Requerente a outra realidade (a das sociedades de investimento), não obstante a eventual identidade económica das atividades prosseguidas, seria defraudar a intencionalidade legislativa.”
Por outro lado, e pese embora as diversas críticas à “bondade” da presente alteração legislativa e suas inerentes consequências, que a Requerente aduz ao longo dos seus articulados, é de ressaltar que não cabe aqui opinar sobre as mesmas, mas somente recordar que o juízo que possa ser feito sobre a “bondade” de uma norma legal é (no plano infra-constitucional, em que por ora nos situamos), totalmente irrelevante em termos da decisão a ser tomada: o tribunal arbitral julga segundo o direito constituído (Cfr. artigo 2.º, n.º 2, do RJAT) e “O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo” (Cfr. artigo 8.º, n.º 2, do Código Civil).
Face ao exposto, falece, também, esta linha argumentativa invocada pela Requerente.
V.1.4 Da Inconstitucionalidade da alteração ao n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC
Sustenta, ainda, a Requerente que a redação nova dada ao n.º 6, do artigo 51.º, do CIRC, é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proibição de discriminações infundadas, e do sub-princípio da neutralidade no tratamento de realidades económicas iguais, consagrados nos artigos 2.º (Estado de Direito Democrático) e 13.º, da CRP.
Em primeiro lugar, importa salientar que a “bondade” de uma norma legal não envolve, forçosamente, uma questão inconstitucional. Há, por princípio, que respeitar a liberdade de configuração normativa do legislador ordinário.
Neste pressuposto e, sem necessidade de mais considerações, acompanhamos, novamente, o entendimento perfilhado na Decisão do CAAD, de 11.06.2022, processo n.º 857/2021-T:
“Violação do princípio da igualdade (discriminação infundada, proibição da arbitrariedade legislativa: a Requerente não explicita qual a dimensão da “igualdade” que considera violada.
Certamente que não será a igualdade relativamente à generalidade das sociedades, pois que a estas só aproveita o mecanismo da dupla tributação económica dos lucros distribuídos existindo “relação de grupo” o que não é o caso em apreciação. A diferente realidade jurídica (incluindo a fiscal, em resultado de outras disposições legais) das sociedades de investimento, de capital de risco e de desenvolvimento regional é suscitável justificar um diferente tratamento quanto à eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, relativamente às seguradoras, não obstante uma eventual equivalência económica de parte das suas atividades.
Na realidade, o que está em causa é a redução do âmbito de aplicação de uma norma excecional, que, na sua essência, corresponde a um benefício fiscal, o que cabe perfeitamente dentro da liberdade de conformação do legislador ordinário.
Violação do princípio da neutralidade do sistema fiscal no tratamento de realidades económicas substancialmente iguais: a neutralidade é um dos objetivos, a par do da simplicidade e da eficiência, que, classicamente, é apontado como devendo ser prosseguido pelo legislador fiscal. Mas tal objetivo não é, per si, uma imposição constitucional, salvo nos casos em que a falta de neutralidade consubstancie uma violação do princípio da igualdade, nomeadamente quando haja uma desigualdade fiscal assente num dos critérios elencados no artigo 13.º da CRP, o que não é manifestamente o caso.
O facto de, em razão da alteração legislativa, o investimento em seguros unit-linked se tornar menos competitivo do que o efetuado através de sociedades de investimento stricto sensu ou de fundos de investimento – segundo alega a Requerente –, só por si, não fere de inconstitucionalidade a alteração legislativa.
Violação do princípio da capacidade contributiva: a Requerente não especifica em que consistiria tal violação, apenas referindo ter passado a existir uma tripla penalização fiscal dos contribuintes no fim da linha, os tomadores de seguros, porque toda esta múltipla carga fiscal se repercutirá neles subscritores de seguros de capitalização.
Parece-nos indiscutível a afirmação que o agravamento da tributação de determinados rendimentos, por mais criticável que possa ser, não é, só por si, gerador de violação do princípio da capacidade contributiva. Importaria, desde logo, saber qual a concreta intensidade do agravamento da ablação fiscal do rendimento em causa, qual a percentagem, líquida de imposto, que restará para os beneficiários dos seguros.
Apesar de tal não ser alegado, parece evidente que o aumento da carga tributária resultante desta alteração legislativa não originou uma situação de consfisco por via fiscal, o que, acontecendo, levaria a concluir pela inconstitucionalidade da norma.”
Dito isto, improcede, também, este segmento argumentativo da Requerente.
Assim, e face a todo o exposto, improcede a pretensão anulatória da Requerente, o que acarreta, necessariamente, a improcedência das pretensões restantes.
VI. DECISÃO
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, absolver a Requerida do pedido.
VII. VALOR DA CAUSA
Fixa-se ao processo o valor de €12.039,74 (doze mil trinta e nove euros e setenta e quatro cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VIII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de novembro de 2023
(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT)
A Árbitra,
Susana Mercês de Carvalho
[1] A exigência de tempo mínimo de detenção é uma opção aberta a cada estado-membro.
[2] Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março.
[3] Neste sentido, o acórdão do TCAS, no proc. 237/05, de 30 de novembro de 2017.
[4] Manual de Direito Fiscal, 1974, 180.