Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 187/2023-T
Data da decisão: 2023-11-30  IMI  
Valor do pedido: € 135.884,23
Tema: IMI – VPT dos terrenos para construção. Impugnabilidade de atos de liquidação ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária.
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SUMÁRIO

  1. O artigo 45.º do Código do IMI é a norma específica que deve ser aplicada para determinar o valor patrimonial tributário (VPT) dos terrenos para construção, não sendo de relevar para o efeito os coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI nem a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI.
  2. Nos termos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Douto Supremo Tribunal Administrativo em 23-02-2023, processo n.º 0102/22.2BALSB, “Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.”
  3. Apesar da não impugnabilidade (ordinária) de atos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade na fixação do VPT que lhes serviu de base, os n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT admitem a possibilidade (excecional) de revisão oficiosa de atos tributários (incluindo liquidações de IMI) “com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte”.
  4. A interpretação da norma contida no n.º 4 do artigo 78.º da LGT que melhor se coaduna com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP), o princípio da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP), que exige que a AT apenas arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei, e o princípio “pro actione”, ou “in dubio pro favoritate instanciae”, decorrente do artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi artigo do 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), determina que o prazo de três anos nela estabelecido tenha a data das liquidações de IMI impugnadas como termo inicial.

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dr. Armando Oliveira e Dr. Jorge Carita, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral Tributário, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO

A..., Lda., contribuinte fiscal n.º..., com sede no ... ‐ ... ...‐..., ... (“Requerente”), na sequência do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado com referência às liquidações de IMI n.ºs 2017..., 2017..., 2017..., 2018..., 2018..., 2018..., 2019..., 2019..., 2019..., 2020..., 2020..., e 2020..., relativas aos anos de 2017, 2018, 2019, e 2020 (“Liquidações Contestadas”), emitidas com referência aos terrenos para construção identificados nas mesmas, sitos no concelho de Vila Real de Santo António (“Terrenos para Construção”), veio, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, e n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitra (“PPA”) com vista (1) à anulação do referido ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (objeto imediato do PPA) e (2) à anulação parcial das referidas liquidações de IMI, a ele subjacentes, no montante total de € 135.884,23 (objeto mediato do PPA), bem como (3) ao reembolso deste valor, acrescido de juros indemnizatórios.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante referida por “AT” ou “Requerida”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral e o PPA foram apresentados no dia 20-03-2023, tendo sido aceites pelo Exmo. Presidente do CAAD e notificados à Requerida.

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os ora signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 30-05-2023.

Em 03-07-2023, a Requerida apresentou resposta com defesa por exceção, não tendo, contudo, junto o processo administrativo.

Em 06-07-2023, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e a apresentação de alegações finais, “salvo se as Partes manifestarem a sua oposição fundada a esta dispensa até 14 de Julho de 2023”.

Por email de 14-07-2023, a Requerente informou os autos que “pretendemos produzir alegações finais escritas”, não tendo apresentado fundamento para o efeito. Em 26-07-2023, a Requerente apresentou alegações, reproduzindo essencialmente o teor do PPA, pelo que as mesmas não são admitidas.

 

  1.  SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.

O PPA apresentado em 20-03-2023 é tempestivo, porquanto foi apresentado no prazo de 90 dias referido no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar do indeferimento do pedido de revisão oficiosa (de 19-12-2022).

É admitida a cumulação de pedidos, face ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, sempre que, como é o caso, “a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

O processo não enferma de nulidades. As exceções suscitadas pela Requerida serão analisadas depois de apreciada a matéria de facto.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

§1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A avaliação efetuada pela AT dos Terrenos para Construção objeto das Liquidações Contestadas ocorreu entre 09-03-2013 e 25-05-2015 (cf. referido na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa junta ao PPA como Documento 1).
  2. No período a que se referem as Liquidações Contestadas (2017, 2018, 2019 e 2020), a Requerente era proprietária dos Prédios de Construção a que as mesmas se referem (cf. referido na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa junta ao PPA como Documento 1).
  3. A Requerente foi notificada e procedeu ao pagamento do valor indicado nas seguintes liquidações de IMI, no valor global de € 399.965,81, com referência aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 – “Liquidações Contestadas” (cf. liquidações de IMI e respetivos comprovativos de pagamentos juntos ao PPA como Documento 2, e cf. referido na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa junta ao PPA como Documento 1):

Ano

Número

Data

Valor

2017

2017 ...

20-03-2018

28.821,11

 

2017 ...

20-06-2018

26.764,65

 

2017 ...

06-04-2018

26.764,63

2018

2018 ...

23-03-2019

30.674,91

 

2018 ...

23-03-2019

30.674,91

 

2018 ...

17-10-2019

30.674,89

2019

2019 ...

08-04-2020

30.886,00

 

2019 ...

08-04-2020

30.886,00

 

2019 ...

08-04-2020

30.885,98

2020

2020 ...

28-04-2021

44.977,58

 

2020 ...

03-07-2021

44.977,58

 

2020 ...

21-10-2021

44.977,57

Total

399.965,81

 

  1. As Liquidações Contestadas tiveram por base VPTs fixados segundo uma fórmula que considerava a aplicação de coeficientes de localização, afetação, e qualidade e conforto, bem como a majoração de 25% prevista no n.º 1 do artigo 39.º do Código do IMI (cf. cadernetas prediais juntas ao PPA como Documento 3).
  2. Caso o VPT dos Terrenos para Construção tivesse sido fixado sem considerar coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI, ou a majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, o montante do IMI liquidado e pago com referência aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 teria sido inferior ao referido na alínea (c) supra, sendo a diferença de € 135.884,23, tal como demonstrado na tabela infra:

Ano

Valor pago

Valor pago indevidamente por aplicação dos coeficientes do artigo 38.º do Código do IMI

Valor pago indevidamente por aplicação do coeficiente de majoração do artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI

2017

82.350,39

26.785,20

4.355,80

2018

90.024,71

30.283,26

4.839,77

2019

92.657,98

29.701,71

4.936,09

2020

134.932,73

29.946,32

4.936,09

(cf. alegado pela Requerente nos artigos 35.º e 41.º do PPA, e cf. a informação contida nos quadros juntos ao PPA como Documentos 4 e 5, não tendo a Requerida contestado os respetivos cálculos).

  1. Em 10-11-2022, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa (autuado com o n.º ...2022...) contra as Liquidações Contestadas, ao abrigo do artigo 115.º, alínea c), do Código do IMI e do artigo 78.º da LGT, peticionando a anulação parcial das mesmas por entender que assentaram em VPTs determinados com base numa fórmula de cálculo ilegal (cf. Documento 6 junto ao PPA).
  2. Em 19-12-2022, a AT indeferiu do pedido de revisão oficiosa autuado com o n.º ...2022..., com o seguinte fundamento:

“Verifica-se que com referência aos artigos urbanos da espécie terrenos para construção elencados nos documentos em anexo à petição (...), já se encontra ultrapassado o prazo de 5 anos uma vez que as avaliações ocorreram entre 09-03-2013 e 25-05-2015, não tendo apresentado o SP, nos prazos legais, qualquer pedido de 2º avaliação ou impugnação, previstos nos artigos 76º e 77º do CIMI” (cf. Documento 1 junto ao PPA).

  1. A Requerente apresentou o PPA em 20-03-2023.

 

§2. Factos não provados

Não se consideram não provados quaisquer factos relevantes para o conhecimento da causa.

 

 

 

 

§3. Fundamentação da matéria de facto

Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cf. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, relativamente à prova produzida, o princípio da livre apreciação. 

Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes e nos documentos juntos ao PPA. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

§1. Questões a decidir

O PPA tem por objeto imediato o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 10-11-2022, e por objeto mediato as Liquidações Contestadas.

Tendo a Requerida suscitado exceções suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa e determinar a absolvição da instância, o Tribunal apreciará primeiramente tais exceções, e, seguidamente, caso se pronuncie pela improcedência das mesmas, os vícios alegados pela Requerente suscetíveis de determinar a ilegalidade e consequente anulação do referido ato de indeferimento e das Liquidações Contestadas (cf. artigo 89.º do CPTA e artigos 278.º e 608.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas d) e e), do RJAT).

Tendo em consideração a posição das Partes e a matéria de facto dada como provada, as questões a decidir são as seguintes:

  1. Exceções:
  1. Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios próprios dos atos de fixação do VPT;
  2. Da intempestividade do pedido de revisão oficiosa;
  3. Do regime de anulação do ato administrativo.
  1. Da legalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das Liquidações Contestadas.
  2. Do pedido de reembolso e dos juros indemnizatórios.

 

 

§2. Exceções dilatórias

  1. Da inimpugnabilidade dos atos de liquidação de IMI com fundamento em vícios próprios dos atos de fixação do VPT

Defende a Requerida que (i) o ato de fixação do VPT é um ato destacável, autonomamente impugnável, que se consolida na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido, semelhante ao caso julgado, se não for impugnado nos termos e prazos legalmente fixados (i.e., mediante o pedido de uma 2.ª avaliação e subsequente impugnação da mesma), e que (ii) os vícios dos atos de fixação do VPT não são sindicáveis aquando da impugnação das liquidações de imposto neles baseadas, ou da impugnação das decisões de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa que versem sobre as referidas liquidações de imposto, conforme foi expressamente reconhecido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 102/22.2BALSB, em 23-02-2023.

A Requerente invoca o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 31-10-2019, proferido no processo n.º 2765/12.8BELRS, para sustentar que a “errada fixação do VPT (…) pode ser arguida através do pedido de revisão oficiosa das liquidações, nos termos conjugados dos artigos 78.º da LGT e 115.º do CIMI, ainda que o contribuinte não tenha reagido atempadamente contra essa fixação”, assim como várias decisões arbitrais no mesmo sentido.

Relativamente a estas questões, cumpre sublinhar que a jurisprudência arbitral não tem sido unânime. Aliás, foi a oposição entre duas decisões arbitrais que deu origem ao referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, mais precisamente, a oposição entre o Decisão Arbitral proferida em 20-06-2022, no processo n.º 652/2021-T (decisão recorrida), e a Decisão Arbitral proferida em 05-05-2022, no processo n.º 835/2021-T (decisão fundamento), que cumpre analisar.

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 835/2021-T (decisão fundamento), o Tribunal concluiu que a legalidade dos atos de liquidação de AIMI pode ser apreciada no âmbito de um pedido de revisão oficiosa com base em vícios imputáveis aos atos de fixação do VPT. O Tribunal considerou aplicável o prazo de quatro anos para apresentação do pedido de revisão oficiosa ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

Na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 652/2021-T (decisão recorrida), o Tribunal concluiu que:

“I – Não é admissível a impugnação de liquidações de IMI ou AIMI com fundamento em ilegalidade na fixação, sem contestação, dos valores patrimoniais tributários constantes da matriz em 31 de dezembro dos anos a que respeitavam essas liquidações. II – A fixação de valor patrimonial tributário constitui ato destacável que não pode ser apreciado em processo de impugnação de liquidações de IMI e AIMI emitidas com base nesse valor.”

Para o Tribunal, a legalidade dos atos de liquidação de IMI e AIMI não podia ser apreciada no âmbito de um pedido de revisão oficiosa:

“se os VPT’s tinham sido consolidados, não pode o contribuinte a posteriori vir por em causa a legalidade das liquidações com fundamento na ilegalidade dos VPT’s.

Isto porque os atos de avaliação de valores patrimoniais (VPT’s) previstos no CIMI são atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa e que, como tal, sujeitos a impugnação autónoma, daí resultando, como consequência, que não tendo havido essa impugnação autónoma, a alegada ilegalidade do ato de liquidação não pode ser fundada em pretensa ilegalidade na fixação dos VPT’s em que se fundou.”

Mas o Tribunal Arbitral neste processo arbitral acabou por admitir a possibilidade legal de revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT (concluindo, no entanto, pela intempestividade do pedido de revisão oficiosa com base nestes preceitos).

Foi desta Decisão Arbitral que o sujeito passivo interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto nos artigos 152.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e 25.º, n.ºs 2 a 4, do RJAT, por entender que a mesma se encontrava em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 835/2021-T (decisão fundamento). E foi no âmbito deste recurso que o Douto Supremo Tribunal Administrativo proferiu o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência no processo n.º 0102/22.2BALSB, em cujo sumário se pode ler:

“Deixando o contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o valor patrimonial tributário nos termos previstos nos artigos 76.º e 77.º do Código do IMI, não pode arguir a ilegalidade da liquidação com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo do valor patrimonial tributário que lhe serviu de matéria coletável.”

O Supremo Tribunal Administrativo identificou a questão decidenda no âmbito deste recurso como a questão “de saber se deixando um contribuinte precludir a possibilidade de sindicar o VPT, poderá ainda assim arguir a ilegalidade das liquidações de AIMI com fundamento na ilegalidade subjacente ao cálculo dos VPT’s que serviram de base às liquidações”. E a este propósito o Douto Tribunal disse seguir “a posição deste Tribunal sobre a matéria, no sentido de não ser possível invocar na impugnação judicial deduzida contra o ato de liquidação, vícios inerentes ao ato de fixação do valor patrimonial do imóvel que lhe serviu de base tributável (cf. entre outros, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13/07/2016, proferido no processo 0173/16, consultável em www.dgsi.pt).” Esta posição foi sustentada nos seguintes termos:

“Vigora no contencioso tributário o princípio da impugnação unitária segundo o qual só há lugar a impugnação contenciosa do ato final do procedimento, que tem assento legal nos artigos 66.º da LGT e 54.º do CPPT. O primeiro dispositivo legal estabelece que os contribuintes e demais interessados podem, no decurso do procedimento, reclamar de quaisquer atos ou omissões da administração tributária (n.º 1), mas a reclamação não suspende o procedimento, podendo os interessados recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 2). O segundo, com a epígrafe “impugnação unitária”, estabelece que “Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são susceptíveis de impugnação contenciosa os actos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.”

O princípio da impugnação unitária tem, assim, duas exceções, admitindo a lei adjetiva tributária a impugnação imediata dos atos interlocutórios (i) “quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte”, e (ii) quando “exista disposição expressa em sentido diferente”, ou seja, quando exista lei que admita expressamente a impugnação imediata do ato interlocutório.

Ora, a avaliação direta é um dos casos em que o legislador afastou o princípio da impugnação unitária e admitiu a impugnação imediata do ato de avaliação. Estabelece o artigo 86.º, n.º 1 da LGT que a avaliação direta é suscetível nos termos da lei de impugnação contenciosa direta. O que significa que se essa avaliação se inserir num procedimento de liquidação, o ato de avaliação é diretamente impugnável. A impugnabilidade fica, no entanto, dependente do esgotamento dos meios administrativos previstos para a sua revisão (n.º 2 do artigo 86.º da LGT).

No que respeita em particular aos atos de fixação de valores patrimoniais rege o artigo 134.º do CPPT, em consonância com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 86.º da LGT, que admite a sua impugnação com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1), não tendo a impugnação efeito suspensivo, e só podendo ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação (n.º 7).

Particularizando ainda mais, e centrando-nos no caso sub judice, o procedimento de determinação do valor patrimonial tributário (ato de fixação de valores patrimoniais – artigo 37.º a 46.º, e 71.º a 77.º, do Código do IMI) é uma espécie de procedimento de avaliação direta, prevendo o Código do IMI um expediente especial de reação contra as ilegalidades da avaliação.

Assim, quando o sujeito passivo não concorda com o resultado da avaliação (primeira avaliação) pode requerer uma segunda avaliação, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 76.º do Código do IMI. E do resultado desta segunda avaliação cabe impugnação judicial, tal como o prevê o artigo 77.º do mesmo Código.

O disposto nestes dois artigos 76.º e 77.º do Código do IMI devem ser interpretados em conjugação com o disposto no referido artigo 134.º do CPPT, que prevê, como atrás referimos, a impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais, e no seu n.º 7 condiciona a impugnabilidade ao esgotamento dos meios graciosos (“7- A impugnação referida neste artigo não tem efeito suspensivo e só poderá ter lugar depois de esgotados os meios graciosos previstos no procedimento de avaliação.”), que por sua vez está em consonância com o artigo 86.º, n.º 2, da LGT, que determina, como também já se referiu, que os atos de avaliação direta só são contenciosamente impugnáveis quando estiverem esgotados os meios administrativos previstos para a sua revisão. Esta necessidade de esgotamento dos meios graciosos como condição de impugnação do valor fixado através de avaliação direta, reiterada nas diferentes disposições legais, evidencia que a segunda avaliação não é, para efeitos de impugnação, uma mera faculdade.

Tendo em conta o que fica dito duas conclusões se podem retirar, desde já, no que toca à impugnabilidade do ato de fixação do valor tributário: (i) as ilegalidades de que possa padecer a primeira avaliação no que tange à fixação do valor patrimonial não é diretamente impugnável – admitindo o Supremo Tribunal Administrativo que poderá ser impugnada com fundamento em vícios de forma ou com base em erro de facto ou de direito, designadamente errada classificação do prédio (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 16/04/2008, proferido no processo 004/08, de 30/05/2012, proferido no processo 01109/11, de 27/06/2012, proferido no processo 01004/11 e de 27/11/12, de 27/11/2013); (ii) do resultado da segunda avaliação, que esgota os meios graciosos à disposição dos interessados, cabe impugnação judicial que pode ter como fundamento qualquer ilegalidade, designadamente a errónea quantificação do valor patrimonial do prédio.

E uma terceira conclusão se impõe: a de que prevendo a lei um modo especial de reação contra as ilegalidades do ato de fixação do valor patrimonial tributário, proferido em procedimento tributário autónomo, as mesmas não podem servir de fundamento à impugnação da liquidação do imposto que tiver por base o resultado dessa avaliação.

Na verdade, o ato que fixa o valor patrimonial tributário encerra um procedimento autónomo de avaliação que servirá de base a uma pluralidade de atos de liquidação que venham a ser praticados enquanto o valor dela resultante se mantiver, designadamente às liquidações de impostos sobre o património (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14/10/2020, proferido no processo 050/11.1BEAVR, consultável em www.dgsi.pt).

Distingue-se daqueles outros procedimentos em que o ato de avaliação direta se insere num procedimento tributário tendente à liquidação do tributo, e que assim assumem a natureza de atos destacáveis para efeitos de impugnação contenciosa, isto é, apesar de serem atos preparatórios da decisão final (liquidação) por disposição legal especial são direta e imediatamente impugnáveis. No caso, como referimos, o ato final do procedimento de avaliação é o ato que fixa o valor patrimonial.

De qualquer forma, quer o ato de avaliação direta se insira no procedimento de liquidação do imposto (aplicando-se neste caso a exceção ao princípio da impugnação unitária), quer, como é o caso, finalize um procedimento de avaliação direta autónomo, os vícios que afetem o valor encontrado apenas podem ser invocados na sua impugnação e já não na impugnação da liquidação que com base no valor resultante da avaliação vier a ser efetuada.

O mesmo é dizer que para além de a impugnação judicial do ato de fixação do valor patrimonial depender do esgotamento dos meios graciosos, a não impugnação do ato preclude que, em sede de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, possa ser questionada a quantificação do valor fixado. Não tendo sido impugnado judicialmente o resultado da segunda avaliação, nos termos previstos na lei, forma-se caso decidido ou resolvido sobre o valor da avaliação, pelo que esta não pode voltar a ser discutida (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12/01/2011, proferido no processo 0758/10).

Aliás, como refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Vol. I, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 472) “Neste caso da avaliação directa da matéria tributável, resulta claramente do n.º 4 do at.º 86.º da LGT, embora a contrario, que a invocação das ilegalidades de actos de avaliação direta só pode sem efetuada em impugnação autónoma. Na verdade, tratando este art. 86.º da LGT da impugnação de actos de avaliação directa e de avaliação indirecta da matéria tributável, o facto de se prever no seu n.º 4, apenas para os atos de avaliação indirecta, a possibilidade de invocação das respectivas ilegalidades na impugnação do acto de liquidação, revela com clareza uma intenção legislativa de que só nesses casos de avaliação indireta tal é possível, pois, se assim não fosse, decerto se faria referência cumulativa à generalidade de actos de avaliação da matéria tributável.”

Acrescenta-se que a solução contrária traria, por um lado, irracionalidade ao sistema, que exige para a impugnação do resultado da avaliação direta, uma segunda avaliação (visando eliminar a carga subjetiva inerente à avaliação e promover a fixação tão objetiva quanto possível da matéria coletável), e já a dispensaria se as ilegalidades a ela inerentes pudessem ser tratadas em sede de impugnação da liquidação do tributo; e por outro, deixaria sem sentido a previsão de impugnação autónoma do ato de fixação do valor patrimonial tributário, pois o corolário lógico da sua previsão só pode ser a preclusão da possibilidade de impugnação posterior.”

Da leitura deste Acórdão de Uniformização de Jurisprudência resulta claro e evidente que o Douto Supremo Tribunal Administrativo pretendeu afastar a possibilidade de os sujeitos passivos contestarem a legalidade de liquidações de IMI e AIMI, com fundamento em ilegalidade na fixação do VPT a elas subjacente, através de pedido de revisão oficiosa apresentado ao abrigo do artigo 78.º, n.º 1, da LGT.

Independentemente da posição dos ora signatários em Decisões Arbitrais anteriores, os mesmos aceitam o carácter orientador e persuasivo do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido no processo n.º 0102/22.2BALSB. Nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”

Para além do âmbito do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em apreço, e não abrangida pelo seu carácter orientador e persuasivo, ficou a possibilidade (excecional) de impugnar liquidações de IMI e AIMI através de pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave e notória, ao abrigo do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT, no qual se pode ler:

“4 - O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte. 

5 - Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.”

Tal como referido na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 41/2021-T, em 27-07-2021, “Diferente da questão da impugnabilidade dos actos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é a da possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 3 do artigo 78.º da LGT”.

De facto, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em causa apenas rejeita a possibilidade de revisão oficiosa com fundamento em ilegalidade (nos termos do artigo 78.º, n.º 1, da LGT), não referindo ou excluindo a possibilidade de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave e notória (nos termos do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT).

Conclui-se, assim, que do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 0102/22.2BALSB não resulta uma preclusão absoluta da possibilidade de os sujeitos passivos arguirem a errónea fixação do VPT através de pedido de revisão oficiosa dos atos de liquidação de IMI e AIMI emitidos com base no mesmo.

O mesmo entendimento é subscrito na Decisão Arbitral de 11-04-2023 proferida pelo Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 769/2022-T (e presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa), na qual de pode ler:

O referido acórdão uniformizador não se pronuncia especificamente sobre a situação de revisão oficiosa prevista no n.º 4 do artigo 78.º, em que se prevêem excepções à inimpugnabilidade de actos de fixação da matéria tributável consolidados, pelo que importa apreciar a possibilidade de revisão neste condicionalismo.

Estas questões estão conexionadas pelo que se apreciaram conjuntamente.

Diferente da questão da impugnabilidade dos actos de liquidação de IMI com fundamento em ilegalidade, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, é a da possibilidade da revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que a Requerente pediu, e que é um afloramento do dever de revogação de actos ilegais, que emerge do princípio a legalidade da actuação da Administração Tributária (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).

Na verdade, a utilidade prática da revisão da matéria tributável, admitida «excepcionalmente»,  com fundamento em injustiça grave ou notória prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, admitida apenas quando «o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte», verifica-se apenas após o decurso do prazo normal de impugnação dos actos de fixação da matéria tributável, pois, se se estiver dentro deste prazo, a impugnação é admitida «com fundamento em qualquer ilegalidade» (artigo 134.º, n.º 1, do CPPT), ela é admitida como  regra e  não  a título excepcional e independentemente de o erro ter conduzido ou não a injustiça grave ou notória ou de ser imputável a actuação negligente do contribuinte.    

Por isso, tem de se concluir que a revisão da matéria tributável admitida pelo n.º 4 do artigo 78.º da LGT tem necessariamente por objecto actos de fixação da matéria tributável «consolidados», por falta de impugnação tempestiva.

Trata-se de uma possibilidade admitida a título excepcional, como expressamente se refere n.º 4 do artigo 78.º, e só constitui excepção porque afasta a aplicação da regra da inimpugnabilidade dos actos «consolidados» por decurso dos prazos normais de impugnação.

Assim, tem de se concluir que a normal consolidação que decorre da não impugnação das avaliações nos prazos legais não é obstáculo à aplicação do n.º 4 do artigo 78.º e, antes pelo contrário, é um pressuposto prático da sua aplicação, pois a sua utilidade só existe quando o acto  rever está consolidado.

Trata-se de uma solução legal resultante da ponderação concomitante do princípios da segurança jurídica (que justifica a inimpugnabilidade por decurso do prazo normal de impugnação) e da justiça, admitindo-se o sacrifício do primeiro em situações em que a sua aplicação se reconduz a uma injustiça grave, ostensiva e inequívoca, como definida no n.º 5 do artigo 78.º da LGT.

Mas, esta possibilidade de revisão da matéria tributável no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, admitida como excepção à regra da inimpugnabilidade de actos «consolidados». está prevista em termos mais restritos do que aqueles em que podem ser tempestivamente impugnados os actos de liquidação, pois, por um lado, só a injustiça grave ou notória é fundamento de revisão (e não qualquer ilegalidade), e , por outro lado, o prazo é os «três anos posteriores ao do acto tributário», em vez dos quatro previstos no n.º 1, mesmo que o erro seja imputável à Administração Tributária, e a revisão é afastada quando o erro for imputável a comportamento negligente do contribuinte.

Desta perspectiva, a possibilidade de revisão de actos «consolidados» não é contraditória com o regime de impugnação previsto no artigo 134.º, antes o complementa, mantendo, como regra, a preclusão do direito de impugnar actos de fixação de valores patrimoniais quando não seja observado o regime aí previsto, mas admitindo o afastamento desse regime quando existam razões excepcionais que, na perspectiva legislativa, justificam que ele não seja aplicado.

De resto, a limitação dos efeitos de determinada regulamentação concreta por aplicação de princípios que protegem outros valores é generalizadamente admitida no nosso direito, desde logo no âmbito do regime do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), mas também por força de outros princípios com protecção constitucional e legal em matéria de tributação, como é o caso do princípio da justiça (artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigos 5.º, n.º 2, e 55.º da LGT).”

No mesmo sentido, concluíram os Tribunais Arbitrais constituídos nos processos n.ºs 464/2022-T (Decisão Arbitral de 03-04-2023); 625/2022-T (Decisão Arbitral de 02-05-2023); 770/2022-T (Decisão Arbitral de 02-07-2023); 35/2023-T (Decisão Arbitral de 11-07-2023), e 16/2023-T (Decisão Arbitral de 31-08-2023).

A este propósito, interessa relembrar que a possibilidade de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave e notória (nos termos do artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT) tem sido suportada por inúmeras Decisões Arbitrais, não obstante existir uma divergência quanto ao termo inicial do prazo de “três anos posteriores ao do acto tributário” referido no n.º 4 do artigo 78.º da LGT.

Enquanto uma orientação jurisprudencial defende que o termo inicial do prazo de três anos se conta com referência à data das liquidações de IMI / AIMI impugnadas (e.g., Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 487/2020-T; Decisão Arbitral de 24-06-2021, processo n.º 500/2020-T; Decisão Arbitral da 27-07-2021, processo n.º 41/2021-T; Decisão Arbitral da 08-11-2022, processo n.º 339/2022-T; Decisão Arbitral da 09-01-2023, processo n.º 511/2022-T; Decisão Arbitral da 26-01-2023, processo n.º 566/2022-T), outra orientação jurisprudencial defende que termo inicial do referido prazo de três anos se conta com referência às data dos atos de fixação de VPT em causa (e.g., Decisão Arbitral de 30-04-2021, processo n.º 540/2020-T; Decisão Arbitral da 02-12-2022, processo n.º 338/2022-T).

O presente Tribunal Arbitral favorece a orientação jurisprudencial que tem o efeito de melhor concretizar e ampliar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (ínsito no artigo 268.º, n.º 4, da CRP), e o princípio constitucional da legalidade em matéria tributária (ínsito no artigo 103.º, n.º 3, da CRP), que exige que a AT apenas arrecade as quantias de imposto exigíveis nos termos da lei. E temos que a interpretação do n.º 4 do artigo 78.º da LGT segundo a qual o termo inicial do prazo de três anos é fixado com referência à data das liquidações impugnadas é a que melhor se coaduna com estes princípios constitucionais.

Acresce que, nos termos do artigo 7.º do CPTA (aplicável ex vi artigo do 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), “Para efetivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”. Também o princípio “pro actione”, ou “in dubio pro favoritate instanciae”, contido neste preceito suporta a interpretação que se apresenta como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos invocados pelo sujeito passivo.

Por todas estas considerações, o Tribunal Arbitral entende que os sujeitos passivos podem contestar liquidações de IMI /AIMI, com fundamento em injustiça grave e notória (ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT), nos três anos posteriores ao ano em que foram emitidas as liquidações impugnadas, desde que verificados os restantes pressupostos de aplicação das normas em causa. No mesmo sentido, também as recentes Decisões Arbitrais de 03-04-2023, processo n.º 464/2022-T; 11-04-2023, processo n.º 769/2022-T (sendo o Tribunal Arbitral presidido pelo Conselheiro Jorge Lopes de Sousa); 02-05-2023, processo n.º 625/2022-T; 02-07-2023, processo n.º 770/2022-T; 11-07-2023, processo n.º 35/2023-T; 31-08-2023, processo n.º 16/2023-T.

Os pressupostos de aplicação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT são os seguintes: (i) ocorrência de uma injustiça grave e notória (ou seja, de uma injustiça ostensiva, inequívoca e resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade), e (ii) o erro não é imputável a comportamento negligente do contribuinte.

No caso sub judice, encontram-se verificados ambos os pressupostos.

Em primeiro lugar, ocorreu uma injustiça grave: se o VPT dos Terrenos para Construção supra identificados tivesse sido fixado sem consideração dos coeficientes previstos no artigo 38.º do Código do IMI, ou da majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, o montante do IMI liquidado e pago com referência aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 teria sido substancialmente inferior (sendo a diferença de € 135.884,23). A injustiça é também notória uma vez que, como melhor explicitado infra, o cálculo do VPT foi feito pela AT de forma que contraria frontalmente a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo.

Em segundo lugar, não está em causa qualquer comportamento negligente da Requerente pois que esta nenhuma intervenção teve na fixação dos VPTs dos Terrenos para Construção em causa.

Constatada a verificação dos pressupostos de aplicação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, conclui-se que a Requerente podia socorrer-se do mecanismo contido no artigo 78.º, n.ºs 4 e 5, da LGT para sindicar as Liquidações Contestadas.

Nestes termos, o Tribunal Arbitral julga improcedente a primeira exceção suscitada pela Requerida na Resposta.

Interessa seguidamente apurar se o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 10-11-2022 foi efetivamente apresentado dentro do prazo de três anos referido no n.º 4 do artigo 78.º da LGT.

 

  1. Da intempestividade do pedido de revisão oficiosa

Na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, a AT entendeu que o pedido de revisão oficiosa, na parte relativa ao ano de 2017, não foi interposto em tempo. Isto porque, não havendo “erro imputável aos serviços”, nunca seria aplicável o prazo de 4 anos previsto na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT (revisão com fundamento em ilegalidade). Já o n.º 4 do mesmo artigo prevê um prazo de 3 anos a contar do ato tributário (revisão com fundamento em injustiça grave ou notória), pelo que, concluiu a AT, “Verificados os requisitos deste n.º 4 em articulação com o n.º 5, podemos concluir pelo direito à revisão dos atos tributários, contudo, em relação ao ano de 2017, verificamos que os atos tributários em causa já ocorreram há mais de três anos, pelo que o pedido é intempestivo relativamente a este ano”.

Tal como referido supra, o prazo aplicável para os sujeitos passivos contestarem liquidações de IMI /AIMI, com fundamento em injustiça grave e notória (ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT) é dia 31 de dezembro do terceiro ano posterior àquele em que foram emitidas as liquidações de imposto impugnadas.

No caso sub judice, as liquidações de IMI relativas ao ano de 2017 foram emitidas em 2018, sendo este o ano de tais atos tributários. Assim, o prazo de três anos posteriores ao ano destes atos tributários termina em 31-12-2021. Tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 10-11-2022, conclui-se que o mesmo é intempestivo relativamente às liquidações de IMI relativas ao ano de 2017 e emitidas em 2018.

Já relativamente às liquidações de IMI relativas aos anos de 2018, 2019 e 2020 (emitidas em 2019, 2020 e 2021, respetivamente), o pedido de revisão oficiosa foi apresentado tempestivamente. Senão vejamos.

As liquidações de IMI relativas ao ano de 2018 foram emitidas em 2019, sendo este o ano de tais atos tributários. Assim, o prazo de três anos posteriores ao ano destes atos tributários terminou em 31-12-2022.

As liquidações de IMI relativas ao ano de 2019 foram emitidas em 2020, sendo este o ano de tais atos tributários. Assim, o prazo de três anos posteriores ao ano destes atos tributários termina em 31-12-2023.

As liquidações de IMI relativas ao ano de 2020 foram emitidas em 2021, sendo este o ano de tais atos tributários. Assim, o prazo de três anos posteriores ao ano destes atos tributários termina em 31-12-2024.

Tendo a Requerente apresentado o pedido de revisão oficiosa em 10-11-2021, temos que o mesmo foi apresentado tempestivamente em relações às liquidações de IMI impugnadas relativas aos anos de 2018, 2019, e 2020.

Pelo exposto, não restam também dúvidas de que é procedente a exceção de intempestividade suscitada pela Requerida relativamente ao IMI do ano de 2017.

 

  1. Do regime de anulação do ato administrativo

A decisão de indeferimento do pedido de reclamação graciosa foi fundada no argumento de que o regime contido no artigo 168.º do CPA é subsidiariamente aplicável à revogação e a anulação dos atos administrativos em matéria tributária, incluindo dos atos de fixação dos VPT, pelo que os mesmos só podem ser anulados administrativamente “desde que não tenham decorrido cinco anos, a contar da respetiva emissão”. In casu, concluiu a AT o seguinte: “Verifica-se que com referência aos artigos urbanos da espécie terrenos para construção elencados nos documentos em anexo à petição (...), já se encontra ultrapassado o prazo de 5 anos uma vez que as avaliações ocorreram entre 09-03-2013 e 25-05-2015, não tendo apresentado o SP, nos prazos legais, qualquer pedido de 2º avaliação ou impugnação, previstos nos artigos 76º e 77º do CIMI”.

Todavia, in casu, não está em causa a anulação de atos de fixação de VPT, mas de liquidações de IMI, não sendo relevante o alegado pela Requerida no que diz respeito ao prazo referido no artigo 168.º do CPA relativo à anulação administrativa.

Julgadas as exceções referidas pela Requerida na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e na Resposta, importa apreciar a legalidade da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, e das liquidações de IMI a ele subjacentes relativas aos anos de 2018, 2019 e 2020.

 

§3. Da legalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e das Liquidações Contestadas

A Requerente argumenta que as Liquidações Contestadas devem ser anuladas, por terem como base um VPT determinado em virtude da aplicação de uma fórmula incorreta, (a) por duplicação de critérios, mormente em virtude da aplicação dos coeficientes de localização, afetação e qualidade / conforto constantes do artigo 38.º do Código do IMI, especificamente aplicáveis a prédios edificados (e não a terrenos para construção), e (b) por aplicação da majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI, também ela aplicável exclusivamente a prédios edificados. Segundo a Requerente, o VPT dos terrenos para construção em apreço deveria ter sido determinado pela AT nos termos do artigo 45.º do Código do IMI (na redação vigente à data dos factos). Na Resposta, a Requerida não pugnou pela legalidade das Liquidações Contestadas.

Sintetizadas as posições das Partes, importa salientar que o entendimento subscrito por ambas relativamente à interpretação e aplicação do artigo 45.º do Código do IMI (sem consideração dos coeficientes ínsitos no artigo 38.º do Código do IMI, ou da majoração prevista no artigo 39.º, n.º 1, do Código do IMI) na determinação do VPT dos terrenos para construção segue a jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo e dos Tribunais Arbitrais constituídos sob a égide do CAAD (e.g., Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20-04-2016, processo n.º 0824/15; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-07-2019, processo n.º 016/10; Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23-10-2019, processo n.º 0170/16.6BELRS; Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 487/2020-T, de 10-05-2021; 500/2020-T, de 24-06-2021; 533/2021-T, de 03-01-2022; 540/2021-T, de 09-03-2022).

Conclui-se, assim, que a AT incorreu em erro ao fixar o VPT dos Terrenos para Construção em apreço, e que tal erro é da sua exclusiva responsabilidade.

Constatada a verificação de todos os pressupostos legalmente exigidos para a revisão da matéria tributável prevista nos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, a AT deveria ter proferido despacho de deferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 10-11-2022, com a consequente anulação parcial das Liquidações Contestadas dos anos de 2018, 2019 e 2020.

Tal como referido na Decisão Arbitral de 10-05-2021, processo n.º 487/2020-T, da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo resulta que, verificados os pressupostos de aplicação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, está em causa um verdadeiro “poder-dever”:

“Apesar de neste n.º 4 do artigo 78.º da LGT se referir que «o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente» a «revisão da matéria tributável», trata-se de um poder-dever, estritamente vinculado, cujo cumprimento é sujeito a controle jurisdicional, como tem entendido o Supremo Tribunal Administrativo:

– «o facto de a lei determinar que “o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente,” a revisão, não obsta à possibilidade de convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão com fundamento em injustiça grave ou notória pois tal poder de autorização não é mera faculdade mas, antes, um verdadeiro poder-dever»; trata-se de «um poder estritamente vinculado»;

– «a previsão constante do dito art. 78.º n.º 4, como excepcional, é de entender como correspondendo a um poder-dever que implica a sua aplicação a todos os casos, verificados que sejam os referidos requisitos».”

Considerando o exposto supra, o Tribunal julga parcialmente procedente o pedido da Requerente de declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado em 10-11-2022, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do CPA (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT). O Tribunal julga também procedente o pedido da Requerente de declaração de ilegalidade e anulação parcial das seguintes liquidações de IMI, sendo o montante total de IMI pago indevidamente de € 104.643,24:

  1. Liquidações n.ºs 2018..., 2018..., e 2018..., relativas ao ano de 2018 e emitidas em 2019;
  2. Liquidações n.ºs 2019..., 2019..., e 2019..., relativas ao ano de 2019 e emitidas em 2020;
  3. Liquidações n.ºs 2020..., 2020..., e 2020..., relativas ao ano de 2020 e emitidas em 2021.

 

§4. Do pedido de reembolso e dos juros indemnizatórios

Conforme determina a alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. Desta forma, em resultado da anulação do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 10-11-2022 e das liquidações de IMI nos termos supra descritos, deverá a Requerida reembolsar a Requerente do montante de imposto indevidamente pago, ou seja, do montante de € 104.643,24.

Cabe também referir que, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, o sujeito passivo tem direito a juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por sua iniciativa se efetuar mais de um ano após o pedido, salvo se o atraso não for imputável à AT (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de uniformização de jurisprudência, de 11-12-2019, processo n.º 051/19.1BALSB; Decisão Arbitral de 09-03-2022, processo n.º 540/2021-T; Decisão Arbitral de 05-05-2022, processo n.º 835/2021-T; Decisão Arbitral de 15-06-2022, processo n.º 57/2022‐T; Decisão Arbitral de 15-09-2022, processo n.º 33/2022-T; Decisão Arbitral de 28-09-2022, processo n.º 56/2022-T).

No caso sub judice, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 10-11-2022 e indeferido em 10-12-2022 (i.e., decidido em prazo inferior a 1 ano), pelo que a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.

 

 

§5. Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo, ainda que parcialmente, o PPA, nos termos mencionados, que se reflete na ilegalidade das Liquidações Contestadas, que assegura eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das restantes questões suscitas, em especial as de inconstitucionalidade, de harmonia com os artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. DECISÃO

Termos em que, de harmonia com o exposto, decide-se neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar procedente a exceção de intempestividade do pedido de revisão oficiosa relativamente às liquidações de IMI emitidas com referência ao ano de 2017;
  2. Julgar improcedentes as restantes exceções suscitadas pela Requerida;
  3. Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
  1. Declarar ilegal e anular o ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente em 10-11-2022, na parte relativa às liquidações de IMI emitidas com referência aos anos de 2018, 2019 e 2020;
  2. Declarar ilegal e anular parcialmente as Liquidações Contestadas, no montante total de € 104.643,24, mais especificamente, as liquidações de IMI n.ºs 2018..., 2018..., 2018..., relativas ao ano de 2018 e emitidas em 2019; 2019..., 2019..., 2019..., relativas ao ano de 2019 e emitidas em 2020; 2020..., 2020..., e 2020..., relativas ao ano de 2020 e emitidas em 2021;
  3. Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente o valor de € 104.643,24;
  1. Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.

 

  1. VALOR DA CAUSA

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT (aplicáveis ex vi alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) e no artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 135.884,23, correspondente ao valor contestado pela Requerente (conforme indicado no PPA e não contestado pela Requerida).

           

  1.   CUSTAS

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, do RJAT, 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e da Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas arbitrais em € 3.060,00, ficando € 2.142,00 a cargo da Requerida e € 918,00 a cargo da Requerente, em razão do decaimento.

Notifique-se.

Lisboa e CAAD, 30 de novembro de 2023

A Presidente do Tribunal Arbitral,

 

Rita Correia da Cunha

 

O Árbitro Adjunto,

 

Armando Oliveira

 

O Árbitro Adjunto,

 

Jorge Carita