Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 406/2023-T
Data da decisão: 2023-11-06  IRS  
Valor do pedido: € 4.100,00
Tema: IRS - Mais-valias. Não comunicação de perdas entre cônjuges. Uniformização de jurisprudência.
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SUMÁRIO:

1. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23/2/2023, emitido no processo  n.º 0125/22.1BALSB, fixou a seguinte jurisprudência: “A partir de Janeiro de 2015, em sede de IRS, os contribuintes titulares casados ou unidos de facto que optem pela tributação conjunta em sede de IRS, fazem o apuramento do saldo entre resultados líquidos negativos e positivos por cada sujeito passivo separadamente, sem comunicabilidade dos resultados líquidos negativos entre cada titular, nos termos do disposto no artigo 55º do CIRS".

2. Em consequência, tem que se entender que não existe comunicação de perdas entre cônjuges, para efeitos do apuramento das mais-valias e menos-valias, prevista no art. 55º, nº1, do CIRS, independentemente de qual o regime de bens do casamento.

 

DECISÃO ARBITRAL

I. Relatório

1. No dia 1-6-2023, os sujeitos passivos A..., titular do NIF ..., e B..., titular do NIF..., casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, com domicílio na Rua ..., nº ..., ..., ...-... Lisboa, apresentaram um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, nº1, alínea a), 3º, nº1, e 10.º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, solicitando a anulação por ilegalidade da liquidação de IRS nº 2021... de 2022, e a substituição da mesma por nova liquidação que tribute o saldo positivo entre as mais e menos valias auferidas por ambos os cônjuges em conjunto, atendendo ao regime de comunhão que vigora entre ambos, com a restituição do imposto pago a mais e o pagamento de juros indemnizatórios.

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o signatário como Árbitro deste processo, disso notificando as partes.

3. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.

4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral dos Requerentes são em súmula, os seguintes:

4.1. A Autoridade Tributária, doravante AT, emitiu a demonstração de liquidação de IRS nº 2021... de 2022 da qual resulta um imposto a pagar de € 6.671,52, relativamente aos rendimentos que os Requerentes auferiram em 2021.

4.2. No Anexo J da declaração Modelo 3 dos Requerentes, pode verificar-se que o Requerente Marido declarou ter alienado em 2021, pelo montante global de € 1.285.168,08, diversos valores mobiliários que adquiriu entre 2019 e 2021, pelo montante global de 1.304.407,85, tendo tido despesas e encargos ascendentes a € 3.048,36.

4.3. Verifica-se, igualmente, que o mesmo sujeito passivo auferiu outros incrementos patrimoniais no montante de € 1.469,28.

4.4. Por sua vez, no mesmo Anexo J, a Requerente Mulher declarou ter alienado, pelo montante global de € 178.431,34, um conjunto de valores mobiliários que foi adquirindo entre 2018 e 2021, pelo valor global de € 149.752,14, tendo pago despesas e encargos no montante de € 418,76.

4.5. Os Requerentes casaram entre si às 14 horas e 15 minutos, do dia 31 de Agosto de 1999, sem convenção antenupcial, estando assim no regime da comunhão de adquiridos.

4.6. Pelo que, vertendo o citado regime de casamento para a situação dos Requerentes, cada um dos cônjuges é titular de uma metade ideal de cada valor mobiliário do outro cônjuge.

4.7. Por conseguinte, as perdas sofridas por cada cônjuge repercutem-se na esfera do outro cônjuge.

4.8. Por estarem certos de que a AT incorrera em erro de direito ao efetuar a liquidação de IRS dos Requerentes, foi apresentada a competente Reclamação Graciosa contra a liquidação ilegal, na qual foi invocando o erro de que a mesma enfermava e esclarecido que o imposto correspondente a tributações autónomas dos Requerentes deveria ser de cerca de € 4.288,19 (à taxa de 28% sobre saldo entre as mais-valias e menos valias auferido e declarado no Anexo J da sua Modelo 3), ao invés dos liquidados € 8.370,37.

4.9. Por conseguinte, resulta a favor dos Requerentes uma diferença de cerca de € 4.082,18 liquidados a mais, e que os Requerentes já pagaram efetivamente.

4.10. A AT, na notificação para exercício do direito de audição, considerou, porém, que a Reclamação Graciosa apresentada seria de indeferir, dado que o apuramento das mais ou menos valias são efectuadas por sujeito passivo e não pela totalidade dos dois sujeitos passivos.

4.11. Os Requerentes exerceram direito de audição, explicando à AT que, independentemente de a tributação ser conjunta ou separada, cada cônjuge é titular de uma meação nos ganhos e nas perdas do outro cônjuge, mas a AT insistiu em manter o erro, indeferindo a Reclamação Graciosa apresentada.

4.12. Inconformados, os Requerentes apresentaram Recurso Hierárquico, convictos de que uma segunda apreciação por parte da AT iria resultar na aplicação da lei, mas a AT continuou a insistir que a mais-valia mobiliária é apurada por cada sujeito passivo, independentemente do regime de casamento e da opção de tributação, não comunicando as mais valias do outro sujeito passivo.

4.13. Reiteram, porém, os Requerentes que não podem concordar com a posição da AT, nomeadamente com a ideia de que o apuramento das mais ou menos valias seja efetuado por sujeito passivo e não na esfera dos dois sujeitos passivos.

4.14. Com efeito e de acordo com o artigo 1724.º do Código Civil, no regime da comunhão de adquiridos fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei.

4.15. Todos os títulos alienados em 2021 pelos sujeitos passivos foram adquiridos já depois de celebrado o casamento, tendo sido todos adquiridos entre 2015 e 2021.

4.16. Por conseguinte, cada um dos cônjuges detinha uma metade ideal de cada título pertencente ao outro cônjuge, pelo que os efeitos de qualquer aquisição ou venda de valores mobiliários produzem-se automaticamente na esfera dos dois cônjuges, independentemente de aquelas serem efectuadas em nome de um deles ou de ambos, como decidiu o Tribunal Arbitral no processo 730/2020-T.

4.17. Aliás, os sujeitos passivos deveriam ter preenchido o Anexo J da Modelo 3 do IRS declarando metade do valor de compra e metade do valor de venda de todos os títulos na esfera de cada um, não o tendo feito apenas por desconhecimento.

4.18. Não obstante, tendo em conta que vigora entre os cônjuges o regime de comunhão de bens adquiridos após o casamento, a tributação das mais valias obtidas por ambos deverá respeitar o regime legal de bens que se aplica ao seu casamento.

4.19. Consequentemente, a liquidação de IRS efetuada e oportunamente reclamada é ilegal, e inconstitucional, por violar o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva, devendo ser substituída por outra que divida a totalidade das mais valias e das menos valias por ambos os cônjuges, conforme o requerido (naturalmente, à excepção das menos-valias apuradas na venda de títulos de países considerados paraísos fiscais).

5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), apresentou resposta, na qual se defendeu nos seguintes termos:

5.1. Os requerentes deduziram pedido de pronúncia arbitral que tem por objeto o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) referente ao acto de liquidação nº nº 2021..., respeitante ao ano de 2022, bem como a reclamação graciosa n.º ...2022... e o recurso hierárquico n.º ...2022..., peticionando a declaração de ilegalidade e anulação dos mesmos.

5.2. Requerem a anulação da liquidação impugnada e substituída por nova liquidação que tribute o saldo positivo entre as mais e menos valias auferidas por ambos os cônjuges em conjunto, atendendo ao regime de comunhão que vigora entre ambos, com a restituição do imposto pago a mais e o pagamento de juros indemnizatórios.

5.3. Contudo, a Autoridade Tributária entende não assistir razão aos requerentes pelas razões que passará a expor:

5.4. No anexo J da declaração de rendimentos do ano 2021, os Requerentes declararam diversas transacções de valores mobiliários, para efeito do apuramento do saldo a tributar em sede da categoria G de rendimentos.

5.5. Os Requerentes  invocam que, sendo casados no regime da comunhão de adquiridos, tendo um dos cônjuges apurado menos-valias e o outro mais-valias, entendem que as perdas sofridas por cada cônjuge repercutem-se na esfera do outro cônjuge, sendo que o  apuramento das mais ou menos valias é efectuado por sujeito passivo e não na esfera dos dois sujeitos passivos.

5.6. Até 2014 inclusive, estabelecia-se que era “dedutível ao conjunto dos rendimentos líquidos sujeitos a tributação o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria de rendimentos”, prevendo-se regras específicas para, em algumas categorias de rendimentos, o resultado líquido negativo poder ser efetuado para um ou mais anos seguintes.

5.7. Com a reforma da tributação das pessoas singulares, concretizada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor em 01/01/2015, passou a prever-se que, relativamente a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, nos termos do estabelecido nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS.

5.8. O artigo 55.º do Código do IRS, sob a epígrafe “dedução de perdas”, começa por enunciar o princípio de que, relativamente a cada titular, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, regulando-se depois nas várias alíneas do n.º 1 daquele normativo os termos em que pode ser efetuado o reporte de perdas para os anos seguintes.

5.9. Ora, no que concerne aos rendimentos qualificados como mais-valias, o resultado líquido é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, de acordo com as regras de determinação previstas nos artigos 43.º e segts. do Código do IRS.

5.10. Pelo que a dedução de perdas do próprio ano faz-se na própria operação de apuramento do resultado líquido, ao considerar como rendimento a tributar o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias, ou seja, o “resultado líquido” já engloba as perdas desse ano.

5.11. E determinando o legislador que o resultado líquido negativo apurado numa categoria só possa ser dedutível aos resultados líquidos positivos da mesma categoria, relativamente a cada titular, decorre deste princípio que o apuramento do resultado líquido se faça por referência a cada titular dos bens geradores de rendimentos dessa categoria.

5.12. Na determinação do sentido das normas fiscais, devem ser observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis, não devendo cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (cfr. artigo 9.º do Código Civil, aplicável por força do n.º 1 do artigo 11.º da LGT).

5.13. Pelo que, se dúvidas houvesse quanto à interpretação dada ao n.º 1 do artigo 55.º do CIRS, estas seriam dissipadas pela consideração do espírito do legislador que esteve subjacente à alteração legislativa deste normativo.

5.14. Com efeito a redacção do n.º 1 do artigo 55.º do CIRS advém ipsis verbis da proposta de alteração legislativa apresentada pela comissão para a reforma do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, podendo extrair-se do projecto da reforma apresentado a ratio legis daquela proposta de alteração legislativa:

“5. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS, (…)

5.3. No âmbito das questões associadas à família,(…)

5.3.4 Comunicabilidade de perdas entre cônjuges.

5.15. O Código do IRS acolhe um modelo de limitação de dedução de perdas entre as várias categorias de rendimentos, ou seja comunicabilidade horizontal mitigada.

5.16. A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime regra de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo não se comuniquem perdas horizontalmente.

5.17. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta.

5.18. Sobre esta questão da comunicabilidade de perdas entre cônjuges, existe jurisprudência do CAAD no sentido do entendimento seguido pela AT, nomeadamente processos n.ºs 311/2022-T e 592/2022-T.

5.19. No mesmo sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo no Recurso de Uniformização de Jurisprudência  n.º 125/22.

5.20. Quanto ao pedido de juros indemnizatórios, uma vez que, face ao artigo 43.º da Lei Geral Tributária, não se verificando erro imputável aos serviços, de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, não existe direito a juros indemnizatórios.

6. No dia 26 de Setembro de 2023 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT, por os factos relevantes estarem provados documentalmente, sendo igualmente dispensada a produção de alegações por a posição das partes resultar clara nos seus articulados, admitindo-se realizar essa reunião se as partes viessem a requerê-la fundamentadamente.

7. As partes não requereram a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT.

 

II – Factos provados

8. Com base na prova documental constante da documentação junta pelos Requerentes e do processo administrativos juntos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

8.1. Os Requerentes casaram entre si às 14 horas e 15 minutos, do dia 31 de Agosto de 1999, sem convenção antenupcial, estando assim no regime da comunhão de adquiridos.

8.2. Os Requerentes apresentaram em 18/8/2022 via internet declaração de IRS relativa ao ano de 2021 a qual foi identificada com o nº ... com o comprovativo ... .

8.3. No Anexo J da referida declaração Modelo 3 dos Requerentes, pode verificar-se que o Requerente Marido declarou ter alienado em 2021, pelo montante global de € 1.285.168,08, diversos valores mobiliários que adquiriu entre 2019 e 2021, pelo montante global de 1.304.407,85, tendo tido despesas e encargos ascendentes a € 3.048,36.

8.4. O Requerente Marido declarou ainda ter auferido outros incrementos patrimoniais no montante de € 1.469,28.

8.5. Por sua vez, no mesmo Anexo J, a Requerente Mulher declarou ter alienado, pelo montante global de € 178.431,34, um conjunto de valores mobiliários que foi adquirindo entre 2018 e 2021, pelo valor global de € 149.752,14, tendo pago despesas e encargos no montante de € 418,76.

8.6. Com base na declaração Modelo 3 dos Requerentes, a Requerida elaborou a liquidação de IRS nº 2021..., da qual resulta um imposto a pagar de € 6.671,52, com data limite de pagamento até 31/8/2022.

8.7. Em 15/9/2022 os Requerentes apresentaram Reclamação Graciosa relativa à liquidação de IRS em virtude da não comunicação das perdas entre os cônjuges, tendo sido atribuída à referida reclamação o nº... .

8.8. Em 17/10/2022 foi elaborada proposta de decisão no sentido do indeferimento da Reclamação Graciosa, com o fundamento de que o apuramento das mais-valias é apurado por sujeito passivo e não pela totalidade dos dois sujeitos passivos.

8.9. Em 19/10/2022 foram os Requerentes notificados para exercer o direito de participação na decisão na modalidade de audiência prévia prevista no art. 60º da LGT.

8.10. Em 27/10/2022 foi exercido pelos Requerentes o direito de audição, no qual reiteraram a sua posição de que em virtude do regime da comunhão de adquiridos os ganhos obtidos pela alienação dos valores mobiliários se consideram comuns a ambos os cônjuges, devendo por isso as perdas de cada um comunicar-se ao outro.

8.11. Por despacho de 21/11/2022 foi mantida pela Requerida a decisão de 17/10/2022 a indeferir o pedido, com base nos fundamentos constantes da mesma, decisão essa notificada aos Requerentes em 23/11/2022.

8.12. Não se conformando com a decisão, vieram os Requerentes em 28/12/2022 a apresentar Recurso Hierárquico dessa decisão para o Ministro de Estado e das Finanças

8.13. Por despacho do Director-Adjunto de 23 de Janeiro de 2023, proferido por subdelegação, foi negado provimento ao Recurso Hierárquico, determinando-se a notificação dos Requerentes para o exercício do direito de audição prévia.

8.14. Não tendo os Requerentes feito uso de tal direito, foi por despacho do Director-Adjunto de 1/3/2023, proferido por subdelegação, convolado em definitivo o despacho anterior, negando-se provimento ao Recurso Hierárquico e mantendo vigente o acto recorrido.

8.15. Não se conformando com essa decisão, vieram os Requerentes em 1/6/2023 a apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

 

III - Factos não provados

9. Não se considerou provado que os Requerentes tivessem procedido ao pagamento do imposto, uma vez que não chegaram a apresentar a prova nesse sentido, que protestaram juntar na sua petição inicial, nem existe qualquer prova desse pagamento no processo administrativo junto aos autos.

 

IV - Fundamentação da decisão de facto:

10. A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção sobre a mesma foi formada com base em prova documental, i.e., nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo junto pela Requerida no âmbito deste processo arbitral.

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada pelas partes, devendo, por isso, seleccionar a matéria factual com relevância directa para a decisão.

O Tribunal Arbitral apreciou livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, conforme o disposto no n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Quanto ao facto de não se ter considerado provado que foi pago o imposto em questão, tal resulta de não haver qualquer elemento nos autos que o demonstre.

 

V - Do Direito

11. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.

- Da ilegalidade da liquidação impugnada

- Do direito a juros indemnizatórios.

Examinar-se-ão assim essas questões:

 

— DA ILEGALIDADE DA LIQUIDAÇÃO IMPUGNADA.

12. A questão que é objecto do processo reconduz-se a saber se, para efeito da dedução de perdas prevista no art. 55º, nº1, CIRS devem ser considerados globalmente os rendimentos da categoria G de ambos os Requerentes, que são casados em regime de comunhão de adquiridos e optaram pelo regime de tributação conjunta, ou os rendimentos desta categoria obtidos por cada um deles.

O Árbitro signatário foi subscritor da decisão arbitral proferida no processo 730/2020-T, invocada pelos Requerentes sobre questão semelhante à dos presentes autos.

Conforme se escreveu nesse acórdão:

A incomunicabilidade de perdas, traduzida na inviabilidade de os resultados negativos de uma categoria serem abatidos aos resultado positivos de outras categorias, era e é uma  «solução anómala num imposto de carácter sintético como o IRS» que só pode ser explicada por «razões "fiscalistas", isto é, assentes em receio de perdas importantes de receita» ( [1] ) «Essas razões podem levar razoavelmente prever alguma incomunicabilidade de perdas, atendendo às possibilidades de arbitragem ou planeamento fiscal de uma comunicabilidade ilimitada de perdas» ( [2] )

  Com a nova redacção do artigo 55.º, n.º 1, pretendeu-se aumentar as situações de incomunicabilidade de perdas de um para outro sujeito passivo.

  A intenção legislativa subjacente ao aumento das situações de incomunicabilidade de perdas que se pode retirar do ponto 5.3.4. do «PROJETO DA REFORMA DO IRS UMA REFORMA DO IRS ORIENTADA PARA A SIMPLIFICAÇÃO, A FAMÍLIA E A MOBILIDADE SOCIAL»:

 

5.3.4 Comunicabilidade de perdas entre cônjuges

O Código do IRS acolhe um modelo de limitação de dedução de perdas entre as várias categorias de rendimentos, ou seja comunicabilidade horizontal mitigada. A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime regra de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo; não se comuniquem perdas horizontalmente. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta.

 

  Esta confessada opção por este «modelo de limitação de dedução de perdas» implica uma amplificação da referida «solução anómala num imposto de carácter sintético como o IRS», que já constituía o regime anteriormente previsto no artigo 55.º do CIRS, revelando, por isso, uma acentuação das «razões fiscalistas» e preocupações de planeamento fiscal, que já estavam subjacentes à solução adoptada na redacção anterior.

  Mas, sendo esta a ratio legis, a proibição de comunicabilidade vertical apenas visará obstar a comunicabilidade de perdas entre contribuintes nos casos em que ela resulta da opção pela tributação conjunta, que com a reforma de 2014 passou a ser opcional, e não aos casos em que a comunicação dos rendimentos obtidos por um cônjuge ao outro, resulta da própria lei, antes e independentemente de qualquer opção, designadamente por força de normas imperativas do regime de bens do casamento.

  Aliás, se a contitularidade de rendimentos positivos e negativos resulta da própria lei, nem se poderá falar de comunicação de rendimentos entre os cônjuges, pois os rendimentos são, logo no momento em que são obtidos, pertencentes aos dois titulares.

  Por outro lado, a solução proposta pela Comissão de Reforma de «o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta», pressupõe que haja resultados negativos e positivos na titularidade individual de um dos cônjuges.

  À mesma conclusão conduz o texto do n.º 1 do artigo 55.º, ao reportar-se a «cada titular de rendimentos» e falar dos «seus resultados líquidos positivos», o que pressupõe que cada titular tenha obtido resultados autónomos positivos ou negativos, que são só «seus» e não também do outro.

  No casamento com regime de bens de comunhão de adquiridos , «os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso» (artigo 1730.º do Código Civil), e o produto da actividade de compra e venda de valores mobiliários por ambos os cônjuges faz, em princípio, parte da comunhão, o que se presume, de harmonia com o preceituado nos artigos 1724.º, alínea b), e 1725.º do Código Civil.

  Isto é, tratando-se de bens comuns, os efeitos de qualquer aquisição ou venda de valores mobiliários produzem-se automaticamente na esfera dos dois cônjuges, independentemente de aquelas serem efectuadas em nome de um deles ou de ambos.

  O direito ao reporte de perdas de anos anteriores, como direito patrimonial que é, pertence a ambos os cônjuges em partes iguais.

  No âmbito deste regime de  bens poderão existir bens próprios e rendimentos positivos ou negativos próprios, paralelamente aos bens e rendimentos positivos e negativos comuns.

  É a estas situações em que existem bens próprios de um dos cônjuges que se aplica o regime do artigo 55.º, n.º 1, do CIRS, que, como bem diz a Autoridade Tributária e Aduaneira n artigo 54.º da sua Resposta,  «não permite a comunicabilidade de rendimentos próprios de um dos titulares para o outro titular» (negrito nosso).

  Mas, esta norma não tem aplicação quanto aos rendimentos comuns, desde logo, porque a comunicabilidade está indelevelmente associada à titularidade dos rendimentos.

  Assim, nos casos de casamento com comunhão de bens, é a estas situações em que há rendimentos próprios e resultados autónomos (não comuns) de qualquer dos cônjuges que se aplica a opção legislativa de que «o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro».

  Mas, no caso em apreço, não é questionado que os Requerentes sejam casados em regime de comunhão de adquiridos, nem que sejam bens comuns os resultados da actividade de aquisição e transmissão de valores mobiliários, que ambos realizaram.

  Por outro lado, quanto às operações do ano de 2017 que geraram as perdas a reportar e o corresponde direito de reporte, na falta de qualquer alegação e prova de que se trate de se trate de resultados negativos próprios de qualquer dos cônjuges, consideram-se comuns, em partes iguais, por força do preceituado nos artigos 1725.º do Código Civil e 19.º do CIRS.

  Assim, como se referiu, estando em causa apenas rendimentos positivos e negativos comuns, do ano de 2019 e do ano de 2017 que geraram as perdas a reportar, eles pertencem a ambos os cônjuges, independentemente do cônjuge que desenvolveu a actividade de que provém o rendimento positivo ou negativo.

  Está-se, assim, no caso em apreço, para efeitos de IRS, perante uma situação de contitularidade dos rendimentos obtidos enquadráveis na categoria G.

  Nestes casos de «contitularidade de rendimentos», seja emergente de comunhão de bens, seja resultante de qualquer situação que gere titularidade conjunta de rendimentos, aplica-se o artigo 19.º do CIRS, que estabelece que «0s rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas são imputados a estas na proporção das respetivas quotas, que se presumem iguais quando indeterminadas».”.

Esta interpretação foi, no entanto colocada em causa pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23/2/2023, emitido no processo  n.º 0125/22.1BALSB, o qual fixou a seguinte jurisprudência:

“A partir de Janeiro de 2015, em sede de IRS, os contribuintes titulares casados ou unidos de facto que optem pela tributação conjunta em sede de IRS, fazem o apuramento do saldo entre resultados líquidos negativos e positivos por cada sujeito passivo separadamente, sem comunicabilidade dos resultados líquidos negativos entre cada titular, nos termos do disposto no artigo 55º do CIRS. (…)”

Conforme resulta da fundamentação do referido Acórdão Uniformizador, a justificação para a fixação desse entendimento é a seguinte:

"Relembrando, nos presentes autos apenas está em causa saber se, tal como enunciado pelos recorrentes, optando-se pela tributação conjunta em sede de IRS, o apuramento do saldo de mais-valias deve ser efetuado conjuntamente ou, ao invés, por cada sujeito passivo, separadamente, sem comunicabilidade de menos-valias entre cada titular para efeitos fiscais?

De uma leitura do texto da Lei resulta de imediato que a dedução das perdas (menos-valias) se faz por referência aos ganhos obtidos ‘relativamente a cada titular’ de rendimentos, e por referência à mesma categoria de rendimentos.

O legislador vincou no texto da Lei que as deduções das perdas se imputam nos ganhos relativamente a cada titular dos rendimentos, ou seja, no caso de vários titulares, cada um deles deve imputar as perdas nos rendimentos que auferiu na mesma categoria. Quando o legislador se refere a ‘relativamente a cada titular’, está naturalmente a referir-se expressamente aos casos em que há vários titulares de rendimentos que se sujeitam a tributação conjunta, uma vez que no caso de apenas existir um titular tal referência é desnecessária e inútil.

E nem se argumente, como se faz na decisão fundamento, que nos termos dos artigos 43.º e 48.º do Código do IRS, normas que não prevêem qualquer distinção entre contribuintes casados (ou unidos de facto) e contribuintes solteiros ou divorciados. Isto é, tais normas não consagram qualquer tipo de proibição de comunicação horizontal de perdas.

Tais normas encontram-se inseridas na secção VI do Capítulo II do CIRS, referente aos incrementos patrimoniais, e são normas que se destinam, no essencial, a permitir determinar o cálculo do incremento patrimonial, ganho, que poderá vir a ser tributado.

Por sua vez a norma do artigo 55º, define o modo pelo qual as perdas podem ser compatibilizadas com aqueles ganhos, de modo, igualmente, a determinar que saldo positivo pode vir a ser tributado.

Ou seja, todas estas normas não são incompatíveis entre si e, pelo contrário, só a sua leitura conjugada permite saber se, no final, haverá ganhos a tributar ou não.

Assim, e além dos argumentos já esgrimidos na decisão recorrida, interpretando-se estas normas nos termos do disposto no artigo 9º do Código Civil e 11º da LGT, apenas se pode concluir por uma solução interpretativa que tenha um mínimo de aderência na letra da Lei, o que não é o caso da decisão fundamento, já que, convoca uma solução que não foi querida pelo legislador".

Assim sendo, e perante esta jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal Administrativo, há que concluir que assiste razão à Requerida, tendo esta efectuado correctamente a liquidação de IRS impugnada sem estabelecer a comunicação de perdas entre cônjuges. Em consequência o pedido de pronúncia arbitral terá que ser julgado improcedente.

 

— DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

13. A Requerente solicita ainda no final do seu pedido o pagamento de juros indemnizatórios.

Decorre efectivamente do artigo 43º, nº1, da LGT que o contribuinte tem direito a juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido". Por outro lado, decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT que o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido em processo arbitral. Ter-se-á, no entanto, de determinar, para esse efeito, se houve ou não erro imputável aos serviços.

Como já se referiu, não se considerou que exista ilegalidade praticada pelos serviços na liquidação do IRS em questão, pelo que este pedido terá necessariamente que também improceder. Em qualquer caso, também nem sequer se provou que tenha sido pago o imposto em questão, o que levaria igualmente à improcedência deste pedido.

 

VI – Decisão

 

Nestes termos, julga-se improcedente o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo-se a Requerida do mesmo.

Julga-se igualmente improcedente o pedido de condenação em juros indemnizatórios, absolvendo-se igualmente a Requerida do mesmo.

 

Fixa-se ao processo o valor de € 4.100,00 (valor indicado e não contestado) e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 612,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se os Requerentes nas custas do processo.

 

Lisboa, 6 de Novembro de 2023

O Árbitro

 

(Luís Menezes Leitão)

 

 

 



[1] JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, página 354, cuja doutrina é perfilhada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20-03-2019, processo n.º 0968/14.0BELLE 01411/15.

[2] Obra e local citados.