Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 85/2023-T
Data da decisão: 2023-10-30  IRS  
Valor do pedido: € 181.474,00
Tema: IRS – Tributação da caução – Artigo 8.º do Código do IRS
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SUMÁRIO:

I – A caução não é verdadeiramente um rendimento, nem na perspetiva civilista, nem na perspetiva económica, sendo que não se integra verdadeiramente no património do seu beneficiário.

II – A Constituição, no seu artigo 104.º, n.º 1, exige que a tributação do rendimento pessoal tenha em conta justamente as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, pelo que por essa lógica, não só não seria permitido ao legislador ordinário a abolição pura das deduções à coleta, mas também, apreciado o caso concreto, não seria permitida a consideração no conceito de rendimentos de realidades que visam apenas a garantia de cumprimento contratual, como é o caso da caução, pelo que o artigo 8.º CIRS só incide sobre as rendas em sentido estrito admitido pelo n.º 1 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Francisco Carvalho Furtado e
Nuno Maldonado Sousa, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., NIF ... e B... NI..., residentes no ... n.º ..., em ...-... ..., tendo sido notificados, da liquidação adicional de IRS n.º 2022..., no valor total de €188.077,01, acrescido de juros compensatórios, no valor de €21.182,71, no total de €209.259,72, requerem pronúncia arbitral, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com vista a anular integralmente o referido ato tributário de liquidação adicional de IRS de 2018.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 13 de fevereiro de 2023.

Os Requerentes não procederam à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 22 de março de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 24 de abril de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 2 de junho de 2023.

Em 7 de setembro de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. Os requerentes desenvolveram, no ano de 2018, atividades empresariais agrícolas, sendo a requerente (NIF ...) enquadrada no regime simplificado e o requerente (NIF ...) no regime de contabilidade organizada (cfr. declaração de autoliquidação de IRS, - doc. 1).
  2. No ano de 2018 os requerentes auferiram também rendimentos prediais (doc.1).
  3. Mais concretamente, com relevância factual para o caso sub judice, em 27-07- 2018, o requerente outorgou, na qualidade de locador, um contrato de arrendamento rural agrícola com prazo certo (doc. 2).
  4. Na data da outorga do contrato acima referido, o requerente recebeu uma caução no valor de €572.470,00 (doc.2).
  5. O valor recebido a título de caução é igual ao valor da renda anual acordada pelas partes (doc. 2).
  6. «Cessando o … contrato, e tendo sido cumpridas pela 2.ª outorgante (entenda-se a locatária) todas as obrigações deste decorrentes … o 1.º outorgante (entenda-se o locador) verificará o estado do locado e, na falta de incumprimento, devolverá o valor da caução no prazo de quinze dias, contados sobre a data da cessação do presente contrato de arrendamento…» (doc. 2 - cfr. Cláusula 4.ª n.º 4, do contrato de arrendamento rural).
  7.  Os requerentes foram alvo de uma ação inspetiva, pela Autoridade Tributária (AT), em cumprimento da ordem de serviço OI2022..., que incidiu sobre o IRS do período de 2018 (doc. 3).
  8. O relatório de ação inspetiva concluiu o seguinte:
    1. «A caução, estabelecida por qualquer das formas legais previstas, serve para que o senhorio assegure o cumprimento das obrigações decorrentes desse contrato, salvaguardando, quer o pagamento das rendas, quer a reparação de eventuais danos que possam ser causados no imóvel, e constitui, em sede de categoria F do código de IRS, um rendimento predial devendo sobre o correspondente montante ser emitido recibo de renda e, bem assim, ser declarado no anexo F.
    2. Na declaração de rendimentos modelo 3, consta no anexo F, relativamente ao prédio objeto do contrato de arrendamento, 270.235,00€ com retenções na fonte de 67.558,75€, não estando declarado o valor da referida caução de 572.470,00€» (doc. 3).
  9. Em virtude destas conclusões do relatório da ação inspetiva, foi emitido em 04/11/2022, o ato tributário de liquidação adicional de IRS, n.º 2022..., o qual, erroneamente, apurou um acréscimo de imposto a pagar desconforme com as conclusões do relatório da ação inspetiva (Doc.4).
  10. Mais concretamente, o relatório de ação inspetiva apurou um acréscimo de imposto no valor de €160.291,60 (ou seja, o valor da caução de €572.470,00 x Taxa de imposto de 28%) e o acto tributário de liquidação adicional n.º 2022... apurou, incorretamente, um acréscimo de imposto no valor de €154.574,99.
  11. A Autoridade Tributária corrigiu o erro, que lhe era desfavorável, e emitiu em 11-11-2022 um novo ato tributário de liquidação adicional (n.º 2022...), que apurou um valor de liquidação adicional de imposto no montante de €160.291,60 (€572.470,00 x 28%), acrescido de juros compensatórios no valor de €21.182,71, no total de €181.474,31 (€160.291,60 + €21.182,71), sendo este o valor do presente pedido de pronúncia arbitral (Doc. 5).
  12. Os requerentes constataram, após a leitura do relatório de conclusões da ação inspetiva (doc.3) e a leitura dos documentos que titulam o ato tributário de liquidação que ora se impugna (doc.5), que nenhum dos documentos enumera a(s) norma(s) de incidência de IRS (nem sequer através de mera remissão) que suporta(m) a fundamentação legal do ato impugnado.
  13.  Em virtude da total ausência de fundamentação legal do ato tributário, foi requerido à AT a fundamentação do ato tributário, em conformidade com o previsto no artigo 37.º do CPPT (doc. 6).
  14. A AT não respondeu ao pedido de fundamentação do ato tributário apresentado pelos requerentes até ao dia 31-12-2022.
  15. Os ora requerentes discordam do tributário de liquidação adicional de IRS que agora impugnam.
  16. Ao nível do Direito substantivo, salienta-se que a matéria de facto não é controvertida, ou seja, tanto a AT como os ora requerentes reconhecem que a caução recebida, em 27/07/2018, pelos locadores (ora requerentes) será integralmente devolvida no final do prazo do contrato de locação, no caso de o locatário cumprir integralmente todas as suas obrigações decorrentes do referido contrato de locação.
  17. Apenas existe divergência, entre a AT e os requerentes, quanto ao Direito Fiscal aplicável à situação de facto ora em apreço, a saber:
    1. A AT entende que a referida caução está abrangida pelas normas de incidência do IRS e, por esse motivo, o valor recebido a título de caução configura um rendimento predial sujeito a IRS no ano de 2018;
    2. Os requerentes entendem que a referida caução não está abrangida pelas normas de incidência do IRS e, por esse motivo, o valor recebido a título de caução não configura um rendimento predial sujeito a IRS no ano de 2018.
  18. Invocam ainda os vícios de falta de fundamentação e de notificação insuficiente.

 

II.2      Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

  1. No exercício de 2018 desenvolveram atividades agrícolas e empresariais, encontrando-se o Requerente, A..., enquadrado no regime da contabilidade organizada, e a Requerente B..., no regime simplificado.
  2. No ano de 2018, o Requerente celebrou um contrato de arrendamento agrícola, na qualidade de locador, onde é fixado e pago o montante de 572.470€ a título de caução, a ser reforçada de 5 em 5 anos até ao termo do contrato em 2042, com o fim de garantir, caso seja necessário, o cumprimento das obrigações contratuais e/ou extracontratuais.
  3. Aquando da entrega da declaração de rendimentos relativa a 2018, os Requerentes não declararam o valor relativo à caução que haviam auferido.
  4. No âmbito da ação inspetiva levada a efeito pelos SIT da DF Évora - OI 2022..., cujo início foi notificado no dia 26 de maio de 2022,

 

  1. concluíram os serviços que o montante da caução recebido constituía rendimento sujeito a tributação em IRS - rendimento predial, Cat F, ao abrigo do art.º 8 CIRS, pelo que deveria ter sido declarado.
  2. Os A foram notificados do projeto de relatório com proposta de correção oficiosa, no dia 02 de agosto de 2022 para exercer o direito de audição:

 

  1. Fundamenta o projeto de relatório que, “verifica-se que na clausula 4ª menciona o pagamento a título de caução do montante de € 572.470,00, para garantia do cumprimento das suas obrigações contratuais, para que o primeiro outorgante pudesse vir a fazer sua, na parte que vier a ser necessária para se ressarcir de montantes que venham a ser devidos em virtude de incumprimento pela segunda outorgante de quaisquer obrigações contratuais ou extracontratuais.
  2. “A referenciada caução deverá ser reforçada em dezembro de 2023, em dezembro de 2028, em dezembro de 2033, em dezembro de 2038 e em dezembro de 2042, conforme consta do contrato.
  3. A caução, estabelecida por qualquer das formas legais previstas, serve para que o senhorio assegure o cumprimento das obrigações decorrentes desse contrato, salvaguardando, quer o pagamento das rendas, quer a reparação de eventuais danos que possam ser causados no imóvel, e constitui, em sede de Categoria F do Código do IRS, um rendimento predial devendo sobre o correspondente montante ser emitido recibo de renda e, bem assim, ser declarado no anexo F.
  4. Este mesmo entendimento encontra-se refletido nas Informações Vinculativas emitidas pela AT – Processo n.º 2729/2018 e 731/2018 com despachos concordantes da Subdiretora-Geral do IR de 2018- 12-11 e 2018-12-12, respetivamente. Assim, o valor da caução é sujeito a tributação nos termos previstos no Código do IRS; tal como as rendas recebidas e constitui em sede de categoria F, nos termos do artigo 8.º do Código do IRS, um rendimento predial, devendo ser declarado no Anexo F da Modelo 3 de IRS”.
  5. Na declaração de rendimentos modelo 3, consta no anexo F, relativamente ao prédio objeto do contrato de arrendamento, 270.235,00 € com retenções na fonte de 67.558,75 €, não estando declarado o valor da referida caução de 572.470,00 €.
  6. Pelo que, importa proceder à correção do quadro 4.1 do Anexo F da Modelo 3 de IRS do ano de 2018.
  7. Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 72.º do Código do IRS, os rendimentos prediais são, em regra, tributados à taxa autónoma de 28%.
  8. Como tal, estamos perante uma correção ao imposto apurado no montante de 160.291,60 € (572.470,00 € x 28%).
  9. Os autores não exerceram o direito de audição, tendo-se remetido ao silêncio.
  10. Tendo em consequência sido elaborado o relatório final, notificado no dia 04 de outubro de 2022.

 

 

  1. O teor desta notificação é a seguinte:

 

 

  1. Em consequência foi emitida a liquidação nº 2022..., e a correspondente nota de demonstração da liquidação.
  2. Notificadas aos requerentes, conforme documento com o nome “Notificações da liquidação”, onde se lê a fls. 5:

 

  1. Os requerentes foram, pois, expressamente informados dos meios de defesa.
  2. O pedido a que se referem os A em 13 e 14, foram respondidos por carta registada em 30/01/2023, registo n.º RH ... PT, da Direção de Finanças de Évora, cfr. documentos juntos ao PA.
  3. E rececionado pelos Requerentes no dia 31/012023, cfr. pesquisa no sitio CTT, disponível em https://appserver.ctt.pt/CustomerArea/PublicArea_Detail?ObjectCodeInput=RH7...PT&SearchInput=RH...PT&IsFromPublicArea=true

 

  1. O presente pedido de pronúncia arbitral foi deduzido dia 10/02/2023. Ou seja, em data posterior ao recebimento da resposta enviada pela AT.
  2. Ali se remetendo para os fundamentos do relatório por serem os existentes e os bastantes,

 

 

  1. Os Requerentes imputam ao acto sindicado “Ausência de fundamentação e notificação insuficiente”.
  2. Não lhes assiste razão. De resto faltam à verdade, como resulta dos factos elencados e do PA.
  3. Os A não podem afirmar que não lhes foi notificada “a base legal de suporte à correção”, porquanto a base legal é expressamente referida pela AT, como supra se citou em 12º
  4. “Assim, o valor da caução é sujeito a tributação nos termos previstos no Código do IRS; tal como as rendas recebidas e constitui em sede de categoria F, nos termos do artigo 8.º do Código do IRS, um rendimento predial, devendo ser declarado no Anexo F da Modelo 3 de IRS”.
  5. Na declaração de rendimentos modelo 3, consta no anexo F, relativamente ao prédio objeto do contrato de arrendamento, 270.235,00 € com retenções na fonte de 67.558,75 €, não estando declarado o valor da referida caução de 572.470,00 €.
  6. Pelo que, importa proceder à correção do quadro 4.1 do Anexo F da Modelo 3 de IRS do ano de 2018.
  7. Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 72.º do Código do IRS, os rendimentos prediais são, em regra, tributados à taxa autónoma de 28%.
  8. Os A conhecem a norma legal que fundamenta a liquidação, uma vez que é uma liquidação oficiosa decorrente da inspeção, cujos relatórios lhe foram notificados, e onde lhes foi explicado o fundamento legal.
  9. É falso também que não lhe foram dados a conhecer os meios de defesa, o que vai escalpelizado supra em 15 a 18 e resulta do PA.
  10. Assim como é falso que não tenham obtido resposta ao requerimento como supra se descreveu em 19 a 21 e resulta do PA.
  11. O presente pedido de pronúncia arbitral foi em data posterior ao recebimento da resposta enviada pela AT.
  12. Assim e considerando-se, portanto, que o rendimento disponibilizado a titulo de caução traduz-se efetivamente num acréscimo de valor ao património de quem cede o uso e o gozo temporário do bem locado, no caso trata-se de contrato de arrendamento agrícola, e que não obstante não seja uma retribuição direta em razão do gozo do locado, o certo é que se mostra associado e é acordada a sua disponibilização em razão do contrato celebrado, a que acresce o facto de que em caso de devolução esta operação é passível de ser considerada no apuramento final de IRS (bem como de IRC de for o caso), é de manter a sua sujeição a tributação sob a égide da Cat F.

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

  1. No exercício de 2018 desenvolveram atividades agrícolas e empresariais, encontrando-se o Requerente,  A..., enquadrado no regime da contabilidade organizada, e a Requerente B..., no regime simplificado.
  2. No ano de 2018, o Requerente celebrou um contrato de arrendamento agrícola, na qualidade de locador, onde é fixado e pago o montante de 572.470€ a título de caução, a ser reforçada de 5 em 5 anos até ao termo do contrato em 2042, com o fim de garantir, caso seja necessário, o cumprimento das obrigações contratuais e/ou extracontratuais.
  3. Aquando da entrega da declaração de rendimentos relativa a 2018, os A não declararam o valor relativo à caução que haviam auferido.
  4. No âmbito da ação inspetiva levada a efeito pelos SIT da DF Évora - OI 2022..., cujo início foi notificado no dia 26 de maio de 2022,

 

  1. Os Requerentes foram notificados do projeto de relatório com proposta de correção oficiosa, no dia 02 de agosto de 2022 para exercer o direito de audição:

 

  1. Na declaração de rendimentos modelo 3, consta no anexo F, relativamente ao prédio objeto do contrato de arrendamento, 270.235,00 € com retenções na fonte de 67.558,75 €, não estando declarado o valor da referida caução de 572.470,00 €. Pelo que a AT procedeu à correção do quadro 4.1 do Anexo F da Modelo 3 de IRS do ano de 2018.
  2. Nos termos da alínea e) do n.º 1 do art.º 72.º do Código do IRS, os rendimentos prediais são, em regra, tributados à taxa autónoma de 28%, pelo que a correção ao imposto foi apurada no montante de 160.291,60 € (572.470,00 € x 28%).
  3. Tendo em consequência sido elaborado o relatório final, notificado no dia 04 de outubro de 2022.

 

 

  1. O teor desta notificação é a seguinte:

 

 

  1. Em consequência foi emitida a liquidação nº 2022..., e a correspondente nota de demonstração da liquidação.
  2. Notificadas aos requerentes, conforme documento com o nome “Notificações da liquidação”, onde se lê a fls. 5:

 

  • O pedido a que se referem os Requerentes em 13 e 14 do seu PPA, foram respondidos por carta registada em 30/01/2023, registo n.º RH ... PT, da Direção de Finanças de Évora.
  • E rececionado pelos A dia 31/012023, cfr. pesquisa no sitio CTT, disponível em https://appserver.ctt.pt/CustomerArea/PublicArea_Detail?ObjectCodeInput=RH...PT&SearchInput=RH...PT&IsFromPublicArea=true

 

  • O presente pedido de pronúncia arbitral foi deduzido dia 10/02/2023.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

            Em primeiro lugar, quanto à falta de fundamentação e insuficiência de notificação está claramente provado que os elementos disponibilizados no PA são suficientes para comprovar a suficiência da fundamentação e da respetiva notificação. Aliás refira-se que não ocorre violação do dever de fundamentação, nem há lugar a insuficiência de notificação, se, em função do contexto do qual emerge o ato de liquidação, é possível ao sujeito passivo alcançar o itinerário cognoscitivo levado a cabo pela AT na tomada de decisão, não sendo censurável a remissão implícita daquele ato para o Relatório de Inspeção Tributária (veja-se o capítulo V a pp. 5-6) do qual consta um quadro factual pormenorizado e exaustivo, bem como um enquadramento aprofundado das normas jurídicas aplicáveis, designadamente da interpretação que é feita das normas do artigo 8.º do CIRS, expendido nas informações vinculativas que identifica e que, embora não sejam fonte de direito, são forma legalmente prevista da Administração manifestar a sua posição relativamente ao sentido desses comandos legais. Assim sendo os argumentos invocados pelos Requerentes, designadamente a ausência de fundamentação legal (veja-se 20.º e 22.º do PPA)improcedem totalmente.

 

Em segundo lugar, cumpre analisar a única questão material que está aqui em causa – a sujeição a IRS da caução paga ao abrigo do contrato de arrendamento.

Ora, face à redação dada ao artigo 115.º pela Lei n.º 82-E/2014 de 31 dezembro (Lei da Reforma Fiscal do IRS), os senhorios são obrigados a emitir recibo de renda eletrónico pelas rendas recebidas ou colocadas à disposição ainda que a título de caução ou adiantamento, quando não optem pela sua tributação no âmbito da categoria B (rendimentos empresariais).

Em termos jurídicos, a caução será a forma de garantir a concretização do contrato negociado entre as partes, ou estabelecida por um outro tipo de exigência pré-contratual de forma a garantir a intenção de estabelecer o contrato. Habitualmente, a caução será devolvida à entidade que prestou essa garantia, quando o contrato ou exigência subjacente a essa caução deixar de existir.

Atendendo a estes conceitos, a entidade que presta a caução a uma outra entidade, no momento inicial, terá o direito de lhe ser devolvida essa garantia prestada, no pressuposto de todas as condições serem satisfeitas ou deixar de existir essa exigência.

O momento da emissão de faturas decorre das regras previstas em termos fiscais, nomeadamente no Código do IVA, não devendo influenciar o momento do reconhecimento dos respetivos factos ou operações nas demonstrações financeiras.

 Assim com a celebração do contrato de arrendamento, as partes podem estipular o recebimento de valores a título de antecipação de rendas (conforme n.º 1 do artigo 1076.º do Código Civil) e a título de caução (como previsto no n.º 2 do mesmo artigo), podendo esta última assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes desse contrato, ou seja, quer o pagamento das rendas, quer a reparação de eventuais danos que possam ser causados no imóvel e/ou mobiliário.

 

Sucede, porém, que a caução não é verdadeiramente um rendimento, nem na perspetiva civilista, nem na perspetiva económica. Aliás, a caução não se integra verdadeiramente no património do seu beneficiário. Basta que se pense que a caução, para além de depósito em dinheiro  "pode  ser prestada por meio de títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária" (623.º-1 CC). Mesmo quando é prestada de forma pecuniária, não se trata de um verdadeiro recebimento de dinheiro mas antes de "depósito de dinheiro".

O mesmo desenho pode ver-se no artigo 199.º-1 do CPPT,  na TGIS que nas verbas 2 e 10 distingue claramente a caução, como o faz o CIVA (artigo 29.º-27 - b) e as rendas, enquanto contrapartida da locação (artigo 9.º, 29). Refira-se, aliás, em termos de IRC também é pacífico que a caução não é um rendimento.

Note-se, a título de exemplo, que se um senhorio arrendar um imóvel por 10 anos, com início em 01-01-2020 e termo em 31-12-2029, na orientação da AT, veria tributada em 2019 a caução que recebesse e, quando o contrato acabasse em 2029, teria de restituir a caução já em 2030. Essa restituição da caução só seria um gasto e no fim do exercício um prejuízo. Se porventura não quisesse voltar a arrendar o imóvel, acabaria por ser tributado pela caução que tinha devolvido.

Na verdade, a Constituição, no seu artigo 104.º, n.º 1, exige que a tributação do rendimento pessoal tenha em conta justamente as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, pelo que por essa lógica, não só não seria permitido ao legislador ordinário a abolição pura das deduções à coleta, mas também, apreciado o caso concreto, não seria permitida a consideração no conceito de rendimentos de realidades que visam apenas a garantia de cumprimento contratual, como é o caso da caução, pelo que o artigo 8.º CIRS só incide sobre as rendas em sentido estrito admitido pelo n.º 1 do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.

Adicional e consequentemente, as orientações constantes do no Ofício Circulado n.º 20256, de 7 de junho de 2023, dos entendimentos sancionado por despachos da Subdiretora-Geral da Área de Gestão dos Impostos sobre o Rendimento, enfermam de violação de lei, por ofensa do princípio da igualdade e da capacidade contributiva constante do n.º 1 do artigo 104.º da CRP, ao qual a AT se encontra subordinada em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT), devidamente explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, devendo assim, e em conclusão, proceder totalmente o pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o presente pedido arbitral e anular a liquidação adicional de IRS n.º 2022..., com as legais consequências.
  2. Condenar a Requerida nas custas arbitrais.

 

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 181.474,00, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 3.672,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido principal foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de outubro de 2023.

 

Os Árbitros,

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins – com voto de vencido)

 

 

(Francisco Carvalho Furtado)

 
 

(Nuno Maldonado Sousa)

 

Voto de vencido pelo Árbitro Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins

 

Considerando o estabelecido no artigo 8.º do Código do IRS, verifica-se que o legislador fiscal procedeu a uma redefinição, para efeitos de IRS, do conceito de renda utilizado no direito civil, dando-lhe uma amplitude maior do que a que resulta desse ramo do Direito.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Código do IRS, consideram-se rendimentos prediais as rendas de prédios rústicos, urbanos e mistos colocadas à disposição dos respetivos titulares, quando estes não optarem pela sua tributação no âmbito da categoria B, explicitando o n.º 2 as ações incidentes sobre o bem imóvel que dão origem à qualificação do rendimento como renda, nomeadamente, “as importâncias relativas à cedência do uso do prédio ou de parte dele e aos serviços relacionados com aquela cedência”.

Ora, está perfeitamente claro na lei que o rendimento disponibilizado a título de caução traduz-se, efetivamente, num acréscimo de valor ao património de quem cede o uso ou o gozo temporário do bem locado, associado e acordado em razão do contrato celebrado e com reflexos na sua capacidade contributiva do ano da disponibilização, e tendo em conta que, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º do Código do IRS, os rendimentos prediais (rendas) relevam no momento do seu pagamento ou colocação à disposição dos respetivos titulares, é de considerar a caução como renda para efeitos de IRS, no ano do seu recebimento.

Tanto é assim que as entidades que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada são obrigadas a reter IRS na fonte, mediante aplicação de uma taxa, em regra de 25%, aos rendimentos ilíquidos de que sejam devedores, inclusive a caução, em função do previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 101.º do Código do IRS.

Finalmente, e no caso de ocorrer a devolução da caução ao locatário (naturalmente no final do contrato), a mesma deve ser considerada um gasto suportado e pago pelo senhorio, no anexo F da declaração modelo 3 do ano em que ocorrer a devolução. Sendo que, em relação ao valor da retenção na fonte que recaiu sobre a mesma, não releva para a situação em concreto, pois foi considerada a título de “pagamento por conta”, no apuramento do imposto a pagar ou a receber respeitante ao ano do recebimento da caução.

Nada disto é novo e há muito que está esclarecido, como aliás o princípio da legalidade fiscal e a tipicidade concetual exigida pelo n.º 2 do artigo 8.º do Código do IRS. Contudo, com vista a uma uniformização de procedimentos por todos os seus Serviços, a Autoridade Tributária procedeu à divulgação, no Ofício Circulado n.º 20256, de 7 de junho de 2023, dos entendimentos sancionado por despachos da Subdiretora-Geral da Área de Gestão dos Impostos sobre o Rendimento.

Por tudo isto, é meu entender que o presente processo deveria improceder totalmente quanto ao pedido formulado pela Requerente.

O Árbitro-Presidente,

Guilherme d’Oliveira Martins

 

 


 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.